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1 ANA LÚCIA DE AGUIAR HISTÓRIA DOS SISTEMAS JURÍDICOS CONTEMPORÂNEOS Uberlândia, janeiro de 2010 2 Agradecimentos Agradeço ao Alexandre, companheiro de vida e de trabalho, pelo apoio durante a elaboração e auxílio na conclusão deste livro; à Florisa, pela primeira revisão; e aos meus alunos, que me trazem o conhecimento que só a convivência com o outro pode proporcionar. 3 Dedicatória A meus pais, João e Gilda e a meu irmão, João Henrique: base de tudo o que sou. A minhas filhas, Ana Clara e Ana Laura, responsáveis por minhas transformações diárias. 4 A AUTORA Natural de Frutal – MG, Ana Lúcia de Aguiar passou por algumas cidades dos estados de Goiás e Tocantins antes de chegar a Uberlândia, em 1985, quando terminou o “colegial” e graduou-se em História (1988-1992) e em Direito (1992-1997) pela Universidade Federal de Uberlândia e pós graduou-se em Filosofia pela mesma Instituição de ensino. Desde 1999 é professora no Curso de Direito da Universidade de Uberaba (UNIUBE), trabalhando desde 2005 apenas no Campus de Uberlândia e ministrando os componentes “História dos Sistemas Jurídicos”, “Filosofia do Direito” e “Ética Jurídica”, além de “Cidadania: heterogeneidade e diversidade” e “Instituições de Direito”, componentes que leciona também nos cursos de Administração e Ciências Contábeis, nas modalidades presencial e a distância. Além do trabalho com o ensino, possui ainda larga experiência com atividades de extensão, orientando atividades complementares, trabalhos de conclusão de curso e projetos inter e multidisciplinares junto a alunos da graduação dos cursos de Direito, Administração e Ciências Contábeis. Após quase 16 anos de atuação na cadeira de História do Direito, a autora sente-se confortável para tratar, de forma sucinta, do tema que trabalha com seus alunos de primeiros períodos e tentar criar aqui um caminho para facilitar a adaptação de ingressantes nos Cursos de Direito por meio de uma linguagem simples e objetiva, que possibilite um melhor entendimento do tema, apesar de não ter pretensões de se aprofundar ou esgotar tema tão vasto. . 5 APRESENTAÇÃO _________________________________________________________________________ A obra apresenta-se a partir de uma necessidade sentida no decorrer de quase 11 anos ministrando a disciplina “História dos Sistemas Jurídicos” – antes denominada “História do Direito” e “História dos Sistemas Jurídicos Contemporâneos” – no curso de Direito da UNIUBE (Universidade de Uberaba), primeiro em Uberaba (de 1999 a 2002) e, desde 2005, em Uberlândia, cidades importantes do Triângulo Mineiro. Durante nossas aulas, percebemos a dificuldade em encontrar um livro que nos possibilitasse o estudo dos sistemas jurídicos contemporâneos de uma forma que fosse acessível aos alunos e desenvolvesse o conteúdo de forma crítica e analítica. Optamos, na maioria das vezes, durante a elaboração de nossos Planos de Ensino, pela utilização da obra do autor francês René David, “Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo”, que nos fornece uma análise da História dos principais sistemas jurídicos existentes na contemporaneidade, mas não nos traz um estudo específico acerca do Sistema Jurídico Brasileiro, o que obviamente não seria prioridade para um jurista francês. Tornava-se necessário, assim, complementar a leitura da obra adotada com trechos de outros livros, como o capítulo 12 da “Introdução ao Estudo do Direito”, de Sílvio de Salvo Venosa e partes da obra “História do Direito no Brasil”, de Antônio Carlos Wolkmer. Tais dificuldades e o aprofundamento em leituras que serviram para aprimorar nossas aulas no decorrer dos anos nos levaram a perceber que a elaboração de uma obra específica para o nosso curso facilitaria nosso trabalho e forneceria aos alunos uma linguagem mais adequada aos nossos estudos, na medida em que o ingressante no curso de Direito, mesmo já possuindo um curso superior – uma realidade bastante presente em meio à clientela encontrada na instituição onde trabalhamos –, muitas vezes apresenta uma dificuldade de adequação a leituras jurídicas. Alguns leitores poderão sentir falta de trechos que tratem de conflitos ou guerras que levaram a momentos de regressão ou possibilitaram a evolução dos sistemas jurídicos aqui tratados em determinados momentos de sua história. Justificamos a ausência de tais aprofundamentos como uma falha nossa em estudos acerca de conflitos armados. Tal falha 6 não se apresenta simplesmente por uma dificuldade de entendimento acerca da dinâmica dos conflitos – o que também é real –, mas principalmente por uma recusa em nos determos ao estudo de algo que, para nós, não possui a menor lógica. Mesmo possuindo a percepção de que nem tudo precisa passar por um pensamento lógico, podendo ser este abstrato ou dialético, por exemplo; não conseguimos entender como um governante ou um líder político ou religioso possa escolher como alternativa para a solução de problemas ou a acumulação de bens, o envio de pessoas que geralmente não estão envolvidas nos interesses reais para que matem ou morram em seu lugar. Achamos que cada um deve resolver seus próprios problemas, apesar de reconhecermos que não é isso que prevalece no processo de desenvolvimento histórico do Direito. Optamos, porém, por uma História do Direito que cita alguns conflitos, mas não se aprofunda neles, na medida em que há, antes deles, ideias que lhes deram origem e que são, assim, mais importantes. Para quem tenha interesse em complementar sua leitura, aprofundando-se no assunto aqui tratado, uma obra que traz uma boa análise – tão boa que conseguiu, inclusive, despertar o nosso interesse para o assunto – de conflitos que serviram de base para a evolução dos sistemas jurídicos é “História do Pensamento Jurídico e da Filosofia do Direito”, de Cláudio de Cicco. Assim, da necessidade percebida e dos textos desenvolvidos ao longo dos anos como preparação das aulas, surge esta tentativa de criar uma obra que sirva como manual para os estudos de História do Direito dos cursos jurídicos no Brasil e que possa auxiliar estudantes e profissionais do Direito que queiram aprimorar seus conhecimentos acerca da história dos sistemas jurídicos existentes hoje. Esperamos ajudar e quem sabe agradar, não só nossos alunos, mas todos aqueles que se interessarem pela leitura da obra. Ana Lúcia de Aguiar Uberlândia, 10 de janeiro de 2010. 7 Prefácio ________________________________________________________________________ Esta obra representa a percepção de uma nova geração brasileira de estudiosos do direito sobre o direito e principalmente, sobre a justiça. Compreender os dois termos na grandiosidade de suas significâncias não se pode no pragmatismo técnico-jurídico tradicional, quase predominante no ensino jurídico brasileiro até os dias de hoje. Esta nova geração reconheceu a sinalização para a mudança do ensino, da aprendizagem e da operação do direito numa época de transformações sociaismui céleres, ampliadas pela tecnologia da informação e especialmente potencializada no Brasil pelos efeitos do processo político-democrático inaugurado a partir da Constituição Federal de 1988 e atualmente em franca consolidação. Reconhecer a instrumentalidade do direito como um importante meio para a prevalência da justiça exige um exercício investigativo crítico do passado, sem o qual os efeitos presentes perdem a referência e a necessária valoração lógica. Trata-se de um processo de conhecimento que ultrapassa os limites teóricos da doutrina jurídica para se revelar amplo, indissociável do pensamento filosófico, ético, sociológico, político, econômico, antropológico; tudo, na verdade, servindo de fundamento maior para qualquer sistema jurídico vigente. A autora se valeu de sua formação jurídica, filosófica e histórica, aliada a uma década de experiência docente e de investigação dos principais sistemas jurídicos vigentes no mundo para convidar o novo estudioso do direito a compreender o direito e a justiça como resultados de um processo histórico, caracterizado pela pluralidade do pensamento humano, ao mesmo tempo em que pode ser reduzido a poucos princípios e valores sociais que orientam os homens a se organizarem em sociedades cada vez mais justas, solidárias e pacíficas. Alexandre Corrêa do Espírito Santo Uberlândia, janeiro de 2010. 8 Sumário _________________________________________________________________________ Capítulo 1. Transformações na ideia de direito 1.1. A História do Direito como disciplina fundamental nos cursos jurídicos – p. 1.2. Justificativa do título da obra a partir do uso das fontes disponíveis – p. 1.3. Evoluções e regressões da ideia de direito – p. 1.4. Exemplos de fontes primárias – p. Capítulo 2. Diversidade dos Direitos Contemporâneos 2.1. O Direito Comparado – Origem e Funções – p. 2.2. Os Sistemas Jurídicos – Definições e relações – p. 2.3. Sistemas Jurídicos de menor influência no Direito Ocidental – p. 2.4. Exemplos de fontes primárias – p. Capítulo 3. O Sistema Romano-Germânico 3.1. Origem do sistema – p. 3.2. Evolução do sistema – p. 3.3. Funcionamento do sistema – p. 3.4. Exemplos de fontes primárias – p. Capítulo 4. O Sistema Socialista 4.1. Origem do sistema – p. 4.2. Evolução do sistema – p. 4.3. Funcionamento do sistema – p. 4.4. Exemplos de fontes primárias – p. Capítulo 5. O sistema de Common Law 5.1. O Direito Inglês – Origem e evolução – p. 5.2. O Direito dos EUA – Origem e evolução – p. 5.3. Funcionamento do sistema – p. 9 5.4. Exemplos de fontes primárias – p. Capítulo 6. O Sistema Jurídico Brasileiro 6.1. Origem, evolução e influências – p. 6.2. Transformações do Direito Brasileiro – p. 6.3. O Direito pós-Constituição Federal de 1988 – p. 6.4. Exemplos de fontes primárias – p. Considerações Finais – p. Referências Bibliográficas – p. 10 CAPÍTULO 1. TRANSFORMAÇÕES NA IDEIA DE DIREITO _________________________________________________________________________ 1.1. A História do Direito como componente fundamental para os cursos jurídicos A presente obra vem tratar da História do Direito tratando-a como um componente fundamental ao curso de Direito. Observamos, hoje, a presença desta em quase todos os cursos jurídicos brasileiros, mas não foi sempre assim. Durante o regime militar, tanto a história quanto a filosofia, a sociologia e qualquer outra disciplina que despertasse o pensamento crítico sobre os complexos problemas sociais e políticos foram simplesmente “retiradas” do currículo. O fim do governo militar no Brasil, a promulgação da Constituição Federal de 1988 e o fortalecimento das instituições democráticas no país permitiram o resgate do estudo de questões sociais e políticas sob a ótica da sociologia, filosofia e história. Nos dizeres de Lopes (2009, p. 2), “a história do direito volta a ter um lugar nos cursos jurídicos depois de várias décadas de abandono”. Tal lugar é nada mais que as salas de aula dos primeiros períodos. O próprio Lopes cita Octavio Paz para buscar uma forma de explicar o fenômeno que faz com que a história volte a ocupar o seu lugar. Segundo ele, a humanidade está sempre passando por mudanças sociais que, às vezes, levam a crises. E “em tempos de crise, uma sociedade volta seu olhar para o seu próprio passado e ali procura por algum sinal” (LOPES, 2009, p. 2). Para que possamos entender a importância da disciplina em questão, faz-se necessária a compreensão do Direito enquanto instrumento usado nas relações entre as pessoas. Aqui chegamos a uma questão sempre presente nas introduções aos cursos de História do Direito ministrados por nós durante os últimos anos: desde quando existe o Direito? Esta é uma discussão muito rica que nos leva a pensar no Direito como algo positivado – como observamos através de uma visão positivista – ou algo necessário ao homem enquanto ser social – visão jusnaturalista, que vê o Direito como algo inerente à natureza racional e social do próprio homem. Tendo em vista o primeiro ponto de vista, muitos acham que o Direito existe desde que foi codificado por Justiniano e, assim, o primeiro sistema jurídico existente seria o Romano. Outros vislumbram o aparecimento do 11 Direito a partir do direito egípcio ou do Código de Hamurabi. Há ainda, aqueles que observam nos direitos religiosos a primeira manifestação de normas jurídicas em comunidades que se organizavam – alguns, como os muçulmanos e hindus, ainda se organizam – a partir de regras estabelecidas por seres divinos ou sagradas. Se nos detivermos no segundo ponto de vista, porém, observaremos que, independente de códigos positivados ou legislações registradas de forma oral ou escrita, desde que existam duas ou mais pessoas vivendo em sociedade, já existe o Direito. Segundo Nascimento (2001, p.3), “o direito atua como força de contenção dos impulsos individualistas e egoístas do homem, o que torna a sua presença inevitável no seio do grupo social. Assim, se o grupo evolui, o direito há de evoluir igualmente (...)”. Partindo, então, do pressuposto de que o Direito existe desde que duas ou mais pessoas se relacionem socialmente e de que ele evolui de acordo com a evolução da sociedade, observamos que “em Direito não há dogmas, mas princípios, normas e leis que podem e devem ser alterados de acordo com as necessidades sociais” (VENOSA, 2010, p. 6). Nesse sentido, o próprio Venosa ressalta que a História seria, então, o laboratório do jurista, já que o Direito reflete a experiência da História. Podemos, assim, passar à próxima pergunta: o que é História do Direito? Diversos autores tentaram desenvolver um conceito, passando por hipóteses e objetivos da disciplina. A definição apresentada por John Gilisen em sua obra “Introdução Histórica ao Direito” demonstra sabedoria na medida em que mostra a disciplina como algo que buscará as origens e o desenvolvimento do direito e dos diversos sistemas jurídicos existentes. Segundo Gilissen (2001, p. 13), “a história do direito visa fazer compreender como é que o direito actual se formou e desenvolveu, bem como de que maneira evoluiu no decurso dos séculos”. Partindo da citação desse trecho da obra de Gilissen, Wolkmer desenvolve um pouco mais a finalidade da História do Direito ao analisar seus objetivos como algo que vai além da simples observação da origem e evolução de questões jurídicas. Para ele:a História do Direito só alcança real significado enquanto interpretação crítico- dialética da formação e da evolução das fontes, idéias norteadoras, formas técnicas e instituições jurídicas, primando pela transformação presente do conteúdo legal instituído e buscando nova compreensão historicista do Direito num sentido social e humanizador. (WOLKMER, 2001, p. 5). 12 Independente do autor analisado, o que fica claro em um estudo como esse é que, sem a História, o Direito fica sem critérios, sem parâmetros que lhe permitam evoluir e aprimorar normas que irão regular uma determinada sociedade. Tanto legisladores como operadores do Direito precisam conhecer sua história para conseguir, de forma mais aprofundada, melhorar sua elaboração e sua aplicação. Precisamos ressaltar, ainda, que no processo de estudo da História, várias ‘escolas’ colaboraram para a elaboração de métodos que nos levassem a ter uma melhor percepção dos acontecimentos do passado. Na contemporaneidade, a percepção que nos fica é a de que só se conhece o passado de uma sociedade a partir do conhecimento de seu cotidiano, de seus pensamentos, de seus hábitos e costumes. Não se conhece o Direito de um determinado povo em uma determinada época sem que se conheça como esse povo pensava e vivia na época em questão. Precisamos relacionar o Direito em sua aplicação às necessidades sociais para que possamos ter uma visão mais completa e mais crítica de sua origem e evolução. 1.2. Justificativa do título da obra a partir do uso das fontes disponíveis Partindo da afirmação de Venosa de que o Direito é essencialmente dialético, pretendemos realizar análises também dialéticas, em meio às quais raciocínios críticos nos levem a ver de uma maneira diferente a sociedade na qual vivemos e na qual o nosso direito está inserido, observando a origem e o desenvolvimento do ordenamento jurídico, voltando à pré-história e buscando a origem da Ciência do Direito, o que nos levará aos códigos e legislações que vieram ‘positivar’ o Direito já existente. Buscando estudar, principalmente, o Direito como Ciência, tentaremos desenvolver uma análise acerca das transformações pelas quais passaram os diversos sistemas jurídicos existentes na contemporaneidade. Torna-se óbvio o fato de que, para que possamos entender a origem e as consequentes transformações pelas quais passou cada um desses sistemas, é necessário o estudo de outras etapas da história da humanidade, já que são sistemas antigos que não surgiram apenas na Idade Contemporânea. Optamos pelo título “História dos Sistemas Jurídicos Contemporâneos” ao nos depararmos com uma obra que se atém aos sistemas jurídicos 13 existentes hoje, não desenvolvendo um exaustivo estudo de toda a história do direito, como acontece na obra de Gilissen. No nosso ponto de vista, obras que optem por trilhar o caminho percorrido pelo citado autor enfatizam mais o Direito Clássico ou o Medieval e não nos levam a entender como chegamos aos sistemas jurídicos atuais. Não podemos, porém, perder de vista a importância do texto de Gilissen para todo o desenvolvimento dos estudos acerca da História do Direito. O livro, entretanto, que nos remete ao título da presente obra é aquele intitulado “Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo”, do jurista francês René David, como já citado na apresentação. Quando iniciamos nossos estudos de História do Direito e começamos a escolher livros que nos auxiliassem na preparação de nossas aulas para o primeiro período do Curso de Direito, observamos que não havia, na literatura nacional, uma obra que desenvolvesse o seu estudo a partir da história dos sistemas jurídicos. Sempre que nos deparávamos com a questão ‘o que adotar’, só encontrávamos textos que nos remetiam à contemporaneidade de forma mais completa em René David. Nos últimos tempos, porém, percebemos que os autores brasileiros começaram a se preocupar com o estudo em questão, como observado na obra do professor Guido Fernando Silva Soares, “Common Law: Introdução ao Direito dos Estados Unidos”, apesar de ser esta uma obra mais restrita, na medida em que se aprofunda mais no sistema de Common Law, fornecendo algumas informações sobre o sistema de ‘Civil Law’ e deixando de lado os demais direitos. Mais recentemente, nos deparamos com a obra de Cristiano Carrilho Silveira de Medeiros, “Manual de História dos Sistemas Jurídicos”, que consegue realizar um estudo acerca dos principais sistemas jurídicos existentes e observados no estudo da História do Direito. Além das referidas obras, descobrimos ainda o livro do italiano Mario G. Losano, “Os Grandes Sistemas Jurídicos”, que desenvolve um estudo mais próximo daquele observado em René David, realizando uma relação entre os principais sistemas jurídicos e observando suas origens e funcionamentos. O que percebemos, entretanto, é que ainda há uma lacuna em estudos que consigam tratar dos sistemas jurídicos existentes e relacioná-los ao Direito Brasileiro, prevalecendo ainda estudos históricos que tratam das principais instituições jurídicas existentes em tempos remotos. No nosso entender, é mais importante que se conheça a origem do Sistema Romano-Germânico do que a citação de todos os artigos da ‘Lei das Doze Tábuas’, por 14 exemplo. Claro está, porém que, para entendermos a origem do citado sistema, é necessária a compreensão da História do Direito Romano e, consequentemente, da Lei das Doze Tábuas; razão pela qual não a ignoramos por completo. Porém, não nos deteremos ao seu estudo sistêmico normativo e literal, mas a sua importância histórica para a evolução do direito, principalmente do Sistema Romano-Germânico. Fica claro por tudo que foi colocado, então, o nosso objetivo principal: o estudo da história dos principais sistemas jurídicos existentes no mundo contemporâneo e das relações existentes entre eles. Para que isso aconteça, é necessário que passemos pela origem de cada um dos citados sistemas e, neste sentido, o estudo das fontes é fundamental para conhecermos a origem de tudo que foi apontado até aqui. Devemos lembrar que o estudo da História e, mais especificamente, da História do Direito, necessita de métodos adequados para que um bom entendimento aconteça. Para que possamos estudar a disciplina analisada, então, já que não possuímos laboratórios que nos forneçam a comprovação do processo histórico de cada sistema jurídico, necessitamos de métodos próprios e de fontes adequadas. Os métodos não são muito diferentes daqueles utilizados em muitas disciplinas teóricas, principalmente na área das ciências humanas. Pesquisa, leitura, discussão, análise, trabalhos em grupo e outros. Para que esses métodos sejam colocados em prática, precisamos de fontes de pesquisa e de muita leitura, para que o trabalho se desenvolva a contento. Alguns autores gostam de separar tais fontes históricas em primárias e secundárias, sendo que as primárias seriam os documentos existentes na época estudada, por exemplo, a Lei das Doze Tábuas. As fontes secundárias, por seu turno, podem se utilizar das fontes primárias, já que resultam do que os autores identificam como essencial nos documentos analisados. Podemos ter fontes secundárias da época em que aconteceu o fato ou de épocas futuras, com análises feitas por autores-pesquisadores. Devemos lembrar que uma fonte secundária é sempre uma interpretação que um determinado autor realizou acerca da história do direito de um povo. Quando fazemos a leitura de uma fonte secundária, estamos interpretando algo que já é uma primeira interpretação. Como é importante que se faça, também, a leitura da fonte primária, achamos por bemcolocar ao final de cada capítulo um conjunto de anexos que nos remetem a documentos originais exemplares de cada um dos sistemas estudados por nós na presente obra. Esperamos que o leitor possa, com isso, 15 realizar a sua primeira interpretação observando os documentos da forma que foram elaborados por seus legisladores. Fica justificado, então, o título da obra a partir da análise das fontes disponíveis até o momento, ressaltando que as pesquisas históricas e antropológicas vêm se aprimorando muito, o que nos possibilita uma gama maior de fontes primárias que aumentam o nosso ‘laboratório’ de pesquisas e a nossa capacidade de investigação. Queremos, com isso, ressaltar que não é este um trabalho ‘pronto e acabado’, na medida em que o processo histórico está em constante construção. Esperamos poder, ainda, revisar e aumentar a nossa obra, muitas vezes. 1.3. A ideia de direito e suas transformações Para facilitar nossos estudos, achamos por bem realizar, ainda neste primeiro capítulo, uma análise acerca das transformações pelas quais o Direito passou no decorrer da História para que o leitor, principalmente o estudante ingressante, possa se contextualizar e obter uma visão geral do processo de evoluções e regressões pelo qual passou o Direito no decorrer da história da humanidade. Em nossas aulas de História dos Sistemas Jurídicos, costumamos intitular esta parte do conteúdo introdutório como ‘evolução da ideia de direito’, na medida em que tentamos desenvolver um estudo acerca do processo de evolução intelectual e cultural do direito, demonstrando as relações intrínsecas existentes entre a origem de um sistema jurídico e as ideias inerentes ao cotidiano do povo ao qual tal sistema é destinado. Precisamos lembrar, porém, que é perigoso falar em “evolução” quando se observa a história de um determinado povo. Sabemos que o termo “evolução” é utilizado principalmente a partir do movimento positivista, que observa a história como um processo de evolução automática, como se não houvesse lutas e movimentos contestatórios por parte do povo que foi responsável pelas transformações acontecidas. Começando, então, pelo mundo antigo, ressaltamos a dificuldade que se encontra quando se procura uma documentação que possibilite entender, por exemplo, o direito dos povos sem escrita. Isto não quer dizer que não se tenha conhecimento acerca da organização das sociedades antigas. O processo de pesquisa no campo da História se 16 desenvolveu muito nos últimos tempos e análises arqueológicas e antropológicas nos levam a descobrir informações que estavam escondidas e, às quais, mais recentemente, nos foi permitido ter acesso. Assim, podemos saber, hoje, sobre os direitos cuneiformes, elaborados a partir de uma linguagem cunhada em madeira e que já determinava alguma forma de organização jurídica. Com o passar do tempo, os direitos egípcio, com as normas individualistas criadas pelo Faraó; babilônico, representado pelo Código de Hamurabi; hebreu, base de diversos direitos religiosos contemporâneos e outros; nos demonstraram que havia, sim, Direito no mundo antigo. Ora, sabemos que quando duas ou mais pessoas vivem em sociedade, ali existe alguma forma de Direito e alguma evolução ele sofrerá, de acordo com o processo histórico da sociedade na qual é aplicado. Nader (2006), realizando um estudo acerca da história da filosofia do Direito, destaca o caráter consuetudinário do direito aplicado no mundo antigo e ressalta a importância do Código de Hamurabi para a evolução do direito quando observa que: embora se afirme que os códigos antigos se limitavam à compilação dos costumes, o Código de Hamurábi (2000 a.C.) pode ser indicado como exceção, de vez que diversas inovações, ditadas pelo sentimento de justiça social daquele imperador, foram introduzidas no Direito da Babilônia. (NADER, 2010, p. 143). Porém, o que precisa ficar claro com relação ao mundo antigo é a grande ligação existente entre o Direito e a religião, como nos demonstra o exemplo do Direito Hebraico, que observa suas regras jurídicas em livros religiosos, basicamente no Pentateuco, também denominado Torá ou Lei. Atribuída a Moisés, aquela obra apresenta cinco livros: Gêneses, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio, que reúnem preceitos religiosos e legais, dispersos em narrativas históricas. (NADER, 2010, p. 149). No mundo antigo, então, por mais que se desenvolvessem regras de organização social, a fonte última de aplicação era sempre divina ou sagrada, transformando o Direito em algo estático, que não acompanhava as transformações sociais e não conseguia servir como base de solução de conflitos. O homem não era o foco do Direito, destinado a resguardar interesses individuais dos governantes ou ressaltar o caráter religioso presente em praticamente todas as sociedades antigas. 17 O foco só foi alterado a partir da laicização sofrida pelo Direito durante a Antiguidade Clássica, período de apogeu da civilização greco-romana, principalmente em meio ao desenvolvimento da civilização grega, famosa por sua filosofia, inventora da Ciência Política e subestimada, por alguns autores, no campo do Direito. Devemos ressaltar, porém que, mesmo não possuindo grandes juristas, a civilização grega não pode ser esquecida em uma obra que se proponha a estudar a História do Direito. Se não fundaram escolas de Direito e não desenvolveram uma ciência essencialmente jurídica, os gregos, com sua Filosofia e sua Ciência Política, foram os responsáveis pelas primeiras discussões acerca da ética e da justiça, assuntos primordiais no campo do Direito. Além disso, como já afirmamos anteriormente, os filósofos gregos são os responsáveis pela laicização do Direito, que significa a separação entre o Direito e a religião que foi, durante todo o período anterior, a grande fonte em que se buscavam as regras jurídicas. A laicização acontece a partir do momento em que os gregos deixam para trás o período da história de sua Filosofia denominado pré-socrático, quando o foco da discussão era a análise do cosmos; e passam a colocar o homem no centro dos diálogos filosóficos, o que já é real a partir da sofística, apesar da visão negativa que foi passada à História através da crítica socrática aos Sofistas. Hoje, realizando uma análise mais aprofundada, percebemos que os ‘sofismas’ não eram tão ‘vazios’ como afirmado por Sócrates e escrito por Platão em seus diálogos; afinal, sem os Sofistas, não teríamos a laicização do Direito. Como diriam Bittar e Almeida (2015, p. 103), “há quem não reconheça à sofística nenhuma importância filosófica, ou mesmo não lhe confira nenhuma expressividade no contexto em que veio à lume, visão esta que obscurece a realidade dos fatos”. O que deve ficar claro é que os gregos conseguiram, com a laicização, realizar algo que foi fundamental para todo o futuro do Direito e que foi o ponto de partida para que a ciência do Direito Romano se desenvolvesse e tivesse a influência que tem até hoje nos principais sistemas jurídicos. Ainda na Antiguidade Clássica, então, tivemos outra civilização extremamente importante para todo o futuro do Direito, na medida em que criou regras, desenvolveu estudos doutrinários e jurisprudenciais, inaugurou escolas jurídicas e deixou, para as futuras gerações, a visão do Direito como algo científico e dinâmico. Se os gregos afirmaram que o Direito não era divino, mas humano, criado pelos homens para sua própria organização em sociedade e modificado por eles sempre que necessário; os romanos foram além. Partindo 18 da laicização e utilizando o Direito Comparadopara estudar leis gregas – principalmente as de Sólon –, tornaram-se os responsáveis pela elaboração do Direito Romano, primeira ciência jurídica de que se tem notícia e base para a maioria dos direitos existentes na contemporaneidade. Observamos a Antiguidade Clássica, então, como um período de grande evolução para o mundo jurídico, na medida em que as regras saíram do campo religioso e tornaram-se científicas, modificando-se e evoluindo sempre que novas necessidades sociais demandarem novas regras. O próximo período histórico observado, porém, demonstra o processo cíclico e dialético que se observa em qualquer ciência humana ou social. A Idade Média vem demonstrar uma regressão no campo do Direito. A partir das invasões de povos estrangeiros às regiões até então dominadas pelas civilizações grega e romana, comumente chamados de bárbaros porque, como afirma Albergaria (2008, p. 31), “para os gregos e romanos, o que não fazia parte do seu mundo era considerado resto, bárbaro”; o Império Romano do Ocidente acaba caindo e dando lugar a uma sociedade composta por misturas culturais, o que modificou o processo de aplicação das regras jurídicas. Ora, os conflitos, agora, não são somente romanos, mas envolvem diversos povos que passam a conviver com a antiga civilização romana. Nesse processo de convivência entre romanos e ‘bárbaros’, aparecem novas formas de se aplicar o Direito. Leis romanas vulgarizadas por costumes trazidos por outros povos e leis bárbaras romanizadas levam a uma heterogeneidade nas regras estabelecidas. Com o passar do tempo, a organização governamental passa a se descentralizar, surgindo o sistema feudal, em que senhores responsáveis por pequenas extensões de terras estabelecem as regras em seu território. Assim, o Direito Romano passou a ser substituído pelos direitos feudais, consuetudinários e descentralizados. Cada feudo possuía o seu costume próprio e o aplicava sempre que precisava resolver um conflito interno. Quando acontecia um conflito entre pessoas de feudos diferentes, o ‘direito comum’ aplicado era o Direito Canônico, direito interno da Igreja Católica, principal representante do cristianismo, movimento religioso que surgiu ainda no Império Romano e conseguiu se impor de forma a demonstrar grande poder nos campos econômico e político durante o período medieval. Assim, o Direito Romano, que era laico, escrito e científico, foi substituído por direitos consuetudinários – os direitos feudais – e por um direito novamente religioso – o 19 Direito Canônico. Todo o processo de evolução do Direito percebido a partir da laicização grega e da ciência romana havia desaparecido, dando lugar a um processo de regressão que perdurou durante todo o medievo. Em ciências humanas, porém, nada é estático. O período moderno chega para trazer novas transformações a partir, principalmente, do fim do feudalismo, do surgimento das universidades e, posteriormente, das revoluções burguesas. Como o sistema feudal se mantinha a partir de um governo descentralizado, de um sistema jurídico consuetudinário e uma produção econômica para subsistência das pessoas que viviam no feudo, sendo que o senhor feudal cobrava dos vassalos uma parte de sua produção; ele sobreviveu bem durante o período posterior às invasões bárbaras, quando a população do feudo era pequena. Essa diminuição na população da Europa medieval aconteceu, principalmente, em razão das guerras advindas da invasão de povos estrangeiros e de pestes trazidas por eles. Com o passar do tempo, porém, as guerras foram acabando e as pestes sendo controladas. Com isto, havia menos mortes e os nascimentos aumentavam. Houve um grande aumento populacional que dificultou a produção para subsistência engendrada nos feudos. O alimento produzido não era mais suficiente para todas as pessoas que ali viviam. A Igreja, detentora do Direito Canônico e responsável por toda a educação, lazer e cultura da época, achou uma forma de diminuir a população mandando um contingente para as Cruzadas, que serviram para dirimir o problema da fome por um tempo. Porém, o problema não estava resolvido. O próximo passo foi a saída dos feudos. As pessoas que não estavam mais satisfeitas com a situação saíam e passavam a viver em cidades que, na ausência dos exércitos disponibilizados pelos senhores feudais, precisavam se cercar por muros que garantissem a proteção dos cidadãos. Tais cidades passaram a ser chamadas de burgos. Daí surge a palavra ‘burgueses’ para denominar as pessoas que viviam nos burgos. Surge assim uma nova classe social, com novas necessidades e formas de organização que precisam de um novo Direito que estabeleça as regras e resolva os novos conflitos, modernos, diferentes dos conflitos medievais, característicos do sistema feudal. Na modernidade, então, observamos um novo momento de evolução do Direito, evolução essa que se inicia ainda no final da Idade Média, quando nas cidades, surgem as primeiras universidades nos moldes daquelas que temos hoje. São elas que trazem de volta a evolução do Direito a partir da retomada dos estudos das obras de Direito Romano e de 20 Direito Canônico, objetivando a criação de um direito comum a todos os Estados Nacionais – união dos burgos realizada pelos soberanos absolutistas visando novamente centralizar o poder que haviam perdido durante o regime feudal. A elaboração de um direito escrito levaria a uma maior segurança jurídica, tanto para os soberanos absolutistas quanto para a burguesia nascente. Os estudos realizados nas universidades são, então, o princípio para a formação de novas regras que servirão de base para o desenvolvimento do Sistema Romano-Germânico, que encontra a sua segurança jurídica a partir da Revolução Francesa, na elaboração dos primeiros códigos. Essas são as características principais do nascimento de um sistema que surge no continente ocidental europeu, enquanto no oriente e na ilha da Grã-Bretanha, surge um movimento diferente que levará ao surgimento dos sistemas Socialista e de Common Law, respectivamente. O estudo mais aprofundado de cada um dos citados sistemas será realizado nos capítulos que se seguem. Assim, partindo das fontes a que tivemos acesso e com a intenção de escrever algo acessível ao aluno da graduação, optamos por organizar a presente obra na forma apresentada no sumário, dividindo-a em capítulos e subtítulos, com a intenção de facilitar o estudo e entendimento do conteúdo por parte do aluno ingressante que, muitas vezes, não possui ainda a base teórica necessária para se embrenhar nos estudos da História do Direito. Tentamos apresentar, através de uma linguagem simples, que evita o rebuscamento, mas não pretende se tornar vulgar, na tentativa de preservação da beleza de nossa língua pátria; a história dos principais sistemas jurídicos existentes hoje. Esperamos poder auxiliar não só estudantes dos primeiros períodos dos cursos jurídicos, mas também outros possíveis leitores que possuam curiosidades acerca da História do Direito ou profissionais da área que queiram enriquecer seus conhecimentos ou aprimorar seus estudos acerca do Direito aplicado. Passemos, então, ao segundo capítulo, com um estudo geral acerca dos sistemas jurídicos contemporâneos. 1.4. Exemplos de Fontes Primárias Direito Babilônico 21 Código de Hammurabi (cerca de 1694 antes de Cristo) 1. Se alguém acusou um homem, imputando-lhe um homicídio, mas se ele não pôde convencê-lo disso, o acusador será morto. 2. Se alguém imputou a um homem actos de feitiçaria, mas se ele não pôde convencê-lo disso, aquele a quem foram imputadas as actividades de feitiçaria, irá aoRio; mergulhará no Rio. Se o Rio o dominar, o acusador ficará com a sua casa. Se este homem for purificado pelo Rio, e se sair são e salvo, aquele que lhe tinha imputado actos de feitiçaria será morto; aquele que mergulhou no Rio ficará com a casa do seu acusador. 45. Se alguém entregou o seu terreno contra o produto a um trabalhador e se ele recebeu o produto desses terrenos, se em seguida o deus Adad inundou o terreno ou se uma inundação o destruiu, os danos ficam apenas a cargo do trabalhador. 60. Se alguém entregou um terreno a um arboricultor para aí plantar um pomar, se o arboricultor plantou o pomar, durante quatro anos, ele cultivará o pomar; no quinto ano, o proprietário e o arboricultor partilharão em igualdade os frutos, mas é o proprietário do pomar que escolhe a parte com que quer ficar. 64. Se alguém entregou o seu pomar a um arboricultor para o fazer frutificar, o arboricultor, enquanto tiver o pomar, entregará ao proprietário do pomar dois terços da produção do pomar; ele mesmo tomará um terço. 133. Se um homem desaparecer e na sua casa há de comer, a sua esposa manterá a sua casa e tomará conta de si; não entrará na casa de outrem. Se essa mulher não tomou conta de si e se entrou na casa de outro, essa mulher será condenada e será deitada à água. 134. Se um homem desapareceu e se não há de que comer na sua casa, a sua esposa poderá entrar na casa de um outro; essa mulher não é culpada. 22 145. Se um homem casou com uma sacerdotiza naditum(sacerdotisa de classe elevada) e se ela não lhe deu filhos e se ele se propôs casar com uma sacerdotiza sugétum (sacerdotisa de classe subalterna),este homem poderá casar com uma sugétum; e poderá fazê-la entrar na sua casa. Esta sugétum não será tida em pé de igualdade com a naditum. 195. Se um filho agrediu o seu pai, ser-lhe-á cortada a mão por altura do pulso. 196. Se alguém vazou um olho de um homem livre, ser-lhe-á vazado o lho. 197. Se ele partiu um osso de um homem livre, ser-lhe-á partido o osso. (A. FINET, Le Code de Jammurapi, Introduction, traduction et annotations, Paris 1973; in: GILISSEN, 2001, p. 65 e 66). Direito Grego Gortina (Creta), Leis da Cidade (cerca de 480-460 a.C.) Se alguém comete violência contra um homem livre ou tra uma mulher livre, pagará 100 estateros; se um escravo (comete violência) contra um homem livre ou uma mulher livre, pagará o dobro. Se o pai, em vida, quer dar alguma coisa à sua filha quando do seu casamento, que lhe dê conforme o que foi escrito, mas não mais. Se um homem ou uma mulher morrerem, deixando filhos, netos ou bisnetos, que estes herdem os bens. Se aquele que comprou um escravo no mercado não resolveu a compra nos sessenta dias (seguintes), e se (o escravo) causou algum prejuízo antes ou (o causa) posteriormente, a acção em tribunal será dirigida contra o detentor (do escravo). (Trad. Segundo a ed. M. Guardacci, Inscriptiones creticae..., t. IV, Roma, 1950, n. 72, p. 128 e ss; in: GILISSEN, 2001, p. 79 e 80). 23 Direito Romano Lei das XII Tábuas (cerca de 450 antes de Cristo) Tabula IV. 1. (Cícero, De leg., 3, 8,19) Cito necatus tanquam ex XII tabulis insignis ad deformitatem puer. 2. Si pater filium ter venum duuit filius a patre liber esto. 3. (Cícero, Phil., 2, 28, 69) Illam suam suas res sibi habere jussit, ex XII tabulis clavis ademit, exigit. 4. (Aulo Gélio, 3, 16, 12) Comperi feminam... in undecimo mense post mariti mortem peperisse, factumque esse negotium, quasi marito mortuo postea concepsset, quoniam decembiri in decem mensibus gigni hominem, non in undecimo scripsissent. Tradução 1. Que seja morta, segundo a Lei das XII Tábuas, a criança monstruosa. 2. Se o pei vendeu por três vezes o seu filho, que o filho seja libertado de seu pai. 3. Segundo a Lei das XII Tábuas (em caso de divórcio) que ele ordene a sua mulher que leve os seus trastes, e que ela entregue as chaves. 4. Recolhi a informação seguinte: uma mulher... deu à luz uma criança no décimo primeiro mês depois da morte do seu marido, porque os decênviros tinham escrito que o parto deve ter lugar no prazo de dez meses e não no décimo primeiro. 24 (P. Girard, textes de droit romain, Paris 1937, p. 13-14; in: GILISSEN, 2001, p. 93 e 94). Direitos Germânicos – “Bárbaros” Capitular de Pepino, o Breve, de 768 – personalidade do direito Ut omnes homines eorum legis habeant, tam Romani quam et Salici, et si de alia provincia advenerit, segundum legum ipsius patriae vivat. Tradução Que todos os homens, tanto Romanos como Sálios, tenham as suas leis próprias; aquele que vem doutra região, viverá segundo a lei da sua pátria. (BORETIUS e KRAUSE, Capitularia regum Francorum, 1883, t. I, p. 43; in: GILISSEN, 2001, p. 182). Direito Canônico Codex Iuris Canonini (1917), sobre o casamento e o divórcio Can. 1013, § 2: Essentiales matrimonii proprietas sunt unitas et indissolubilitas, quae in matrimonio christiano peculiarem obtinent firmitatem ratione sacramenti. Can. 1118: Matrimonium validum ratum et consummatum nulla humana potestate nullaque causa, praeterquam morte, dissolvi potest. Tradução As propriedades essenciais do casamento são a unidade e a indissolubilidade, que têm uma força particular no casamento cristão em consequência do sacramento. 25 O casamento válido rato e consumado não pode ser dissolvido por nenhum poder humano, nem por nenhuma causa, a não ser pela morte. (GILISSEN, 2001, p. 155) Direito Feudal CONTRATO VASSÁLICO: acto de fé e homenagem dos vassalos do conde da Flandres ao novo conde, Guilherme da Normandia (1127); relação feita por Galbert de Bruges, notário flamengo do condado. Primum hominia fecerunt ita: Comes requisivit si integre vellet homo suus fieri, et ille respondit: “volo” et junctis manibus, amplexatus a manibus comitis, osculo confederati sunt. Secundo loco fidem dedit is qui hominium fecerat prolocutori comitis in iis verbis: “Spondeo in fide mea me fidelem fore amodo comiti Willerlmo et sibi hominium integraliter contra omnes observaturum fide bona et sine dolo”; idemque super reliquias sanctorum tertio loco juravit. (GALBERT DE BRUGES, Histoire du meurtre de Charles de Bon, comte de Flandre, c. 56, éd. H. Pirenne, Paris, 1891, p. 89; in: GILISSEN, 2001, p. 193). Tradução Em primeiro lugar fizeram homenagem da maneira seguinte. O conde perguntou ao futuro vassalo se ele queria tornar-se seu homem, sem reserva, e este respondeu-lhe: “Quero”, depois com as suas mãos apertadas nas do conde, aliaram-se com um beijo. Em segundo lugar, aquele que tinha prestado homenagem comprometeu a sua fé ao delegado do conde nestes termos: “Prometo por minha fé ser, a partir deste instante, fiel ao conde 26 Guilherme e de lhe guardar contra todos, e inteiramente, a minha homenagem, de boa-fé e sem embustes”; e em terceiro lugar, jurou o mesmo sobre as relíquias dos santos. (F. L. GANSHOF, Qu’est-ce que la féodalité, 3ª ed. Bruxelas 1957, p. 97; in: GILISSEN, 2001, p. 193) Questões para análise e verificação de aprendizagem 1) Quando estudamos História, percebemos momentos em que há uma ênfase em tal estudo e momentos em que não se dá a devida importância às análises históricas? Disserte sobre isso, destacando os momentos em que a História é valorizada e analisando os motivos que levam a essa valorização. 2) Desde quando existe o Direito? 3) Quais asprincipais tarefas da História do Direito na atualidade? 4) Faça uma análise da História do Direito, ressaltando a importância do estudo, o objeto a ser estudado, os métodos e as fontes utilizadas. 5) Explique a importância das fontes históricas para o estudo e a evolução do Direito, diferenciando fontes primárias de fontes secundárias. 6) Analise as transformações pelas quais passou a ideia de Direito ressaltando as características principais de cada um dos momentos seguintes: Mundo Antigo, Idade Média, Mundo Moderno e Contemporaneidade. 27 Capítulo 2. Diversidade dos Direitos Contemporâneos _________________________________________________________________________ 2.1. Direito Comparado – Origem e Funções Quando optamos por estudar os sistemas jurídicos existentes na contemporaneidade, de todos aqueles métodos citados como inerentes à História do Direito, um em particular torna-se essencial: o Direito Comparado. Tratamos aqui do método que utiliza a comparação de elementos constantes ou variáveis para agrupar Direitos em sistemas ou ‘famílias’, para utilizar um termo presente na obra do professor René David, segundo quem, “a comparação dos direitos, considerados na sua diversidade geográfica, é tão antiga como a própria ciência do direito” (DAVID, 2002, p. 1). Sua origem, então, dá-se na Grécia Antiga, quando alguns juristas se utilizaram da comparação para elaborar leis e artigos de códigos. Além disso, Aristóteles, na elaboração do seu tratado sobre a Política, realizou a comparação de 153 Constituições de cidades gregas ou bárbaras. Posteriormente, passou a ser também usado no Direito Romano, quando os decênviros criaram a Lei das Doze Tábuas a partir de pesquisas realizadas na Grécia, com as Leis de Drácon e, principalmente, de Sólon. Após este período de surgimento na Antiguidade Clássica, o método comparativo passou por uma fase de decadência durante a Idade Média, apesar de se manter na Inglaterra, onde se comparava Direito Canônico e Common Law. Como já observado no capítulo anterior, a Idade Média, às vezes denominada como a ‘Idade das Trevas’, é a fase em que a ciência jurídica sofre um retrocesso, na medida em que a laicização ocorrida na Grécia dá lugar à força do direito religioso desenvolvido pela Igreja Católica. Além disso, o Direito Romano, a ciência jurídica escrita fundamental no período clássico, perde espaço e dá lugar aos direitos consuetudinários trazidos com os povos invasores, denominados por alguns historiadores mais tradicionais de ‘povos bárbaros’. É apenas no final da Idade Moderna que o Direito Comparado se recupera e passa a ter uma força maior no momento em que se impõe como reação ao nacionalismo decorrente da implantação dos códigos romano-germânicos. Segundo René David, “o 28 desenvolvimento do direito comparado foi uma reação contra a nacionalização do direito que se produziu no século XIX. Por outro lado, tornou-se necessário e urgente devido à expansão sem precedentes que, na nossa época, tomaram as relações da vida internacional” (DAVID, 2002, p. 3). Este fato será analisado mais detalhadamente em um momento posterior, quando passarmos ao estudo da evolução do Sistema Romano-Germânico. O Direito Comparado, então, que se originou tão prematuramente e só se impôs ao final do período anterior à contemporaneidade, passou por diversas transformações e é, hoje, inclusive fonte amplamente utilizada em decisões judiciais de vários tribunais ocidentais. Além disso, em estudos de disciplinas fundamentais dos cursos jurídicos, como sociologia, filosofia e, claro, história; possui atualmente uma importância fundamental. No que diz respeito a nossa disciplina, o Direito Comparado é de extrema importância, além de possuir outras funções no mundo jurídico. Quais seriam as funções desse método tão necessário aos nossos estudos? Em primeiro lugar, ele serve para comparar os diversos ‘direitos’ existentes, observando seus pontos em comum e também aqueles divergentes. O professor René David, por exemplo, ao desenvolver seus estudos, optou por ignorar os pontos divergentes – denominados por ele de ‘elementos variáveis’ – e se concentrar nos pontos semelhantes – denominados de ‘elementos constantes’. Foi assim que chegou às ‘famílias’. Sistemas jurídicos que possuam mais pontos em comum que divergentes podem ser agrupados em ‘famílias’ de direitos. Assim como as famílias compostas por pessoas, esses direitos não são idênticos, mas possuem semelhanças que os tornam ‘aparentados’. Segundo René David, “a noção de ‘família de direito’ não corresponde a uma realidade biológica; recorre-se a ela unicamente para fins didáticos, valorizando as semelhanças e as diferenças que existem entre os diferentes direitos”. (DAVID, 2002, p. 22). O Direito Comparado estudará tais sistemas de Direito a partir de seu agrupamento, observando sua evolução e enfatizando os pontos semelhantes. Os outros sistemas que, na observação de elementos constantes e variáveis, possuem mais elementos variáveis que constantes quando observados em comparação com as três famílias, necessitam de um estudo próprio, na medida em que não poderiam ser, em razão de seus elementos variáveis, simplesmente ‘encaixados’ nas três famílias. Tais sistemas possuem em comum uma característica religiosa ou costumeira muito forte, mesmo hoje, quando observamos que a maioria dos sistemas jurídicos já se desvencilhou de suas origens 29 religiosas ou consuetudinárias, voltando-se para um direito mais legalista ou jurisprudencial. Como exemplo dessas ‘famílias menores’, temos o Direito Muçulmano, o Direito da Índia, o Direito da África e os Direitos do Extremo Oriente (China e Japão). Outras funções existem para o Direito Comparado, como auxiliar nas decisões jurídicas na medida em que os juízes se utilizam da comparação de decisões jurisprudenciais, estudos doutrinários e costumes que possam auxiliar no pronunciamento da sentença. O estudo de outras disciplinas fundamentais também utilizará o Direito Comparado para relacionar questões de grande importância para o Direito. Assim, percebemos a importância da comparação em qualquer estudo que vise entender relações entre elementos ou grupos. No caso das ciências humanas, nas quais as relações sociais estão sempre presentes, o método comparativo torna-se fundamental. Quanto mais compararmos as sociedades e suas regras de aplicação do Direito, mais conseguiremos compreender os processos de evolução pelos quais passamos e mais aprimorado se tornará o nosso próprio direito em suas relações com os direitos de outros povos. No caso da História do Direito, o método comparativo torna-se fundamental, na medida em que a comparação do direito de hoje com as regras estabelecidas no passado nos possibilitará o entendimento de inúmeras questões que se nos apresentam em nossas investigações históricas. Partindo do método que nos foi apresentado por René David e observado também em outras obras que o utilizam no desenvolvimento de seus estudos, como “Estudos de Direito Constitucional Comparado”, de Maria Garcia e José Roberto Neves Amorim (organizadores), “Como utilizar o Direito Comparado para a elaboração de tese científica”, de Pablo Jiménez Serrano e outros; passamos então a introduzir os sistemas jurídicos observados hoje. 2.2. Os Sistemas Jurídicos – Definições e relações Utilizando nossos estudos de fontes históricas secundárias disponíveis e observações feitas a partir de investigações históricas possíveis nos dias de hoje, além da utilização do Direito Comparado; chegamos a alguns sistemasjurídicos mais importantes e necessários a nossos estudos de História do Direito. 30 Os principais sistemas encontrados na contemporaneidade são: Sistema Romano- Germânico, Sistema Socialista, Sistema de Common Law e alguns outros grupos de menor influência no mundo ocidental ou aplicados em uma região menor, já que os principais não abrangem todo o direito existente. Citando mais uma vez René David, lembramos que “estes grupos de direitos, (...), qualquer que seja o seu valor e qualquer que possa ter sido a sua expansão, estão longe de dar conta de toda a realidade do mundo jurídico contemporâneo”. (DAVID, 2002, p. 23) O Sistema Romano-Germânico, também chamado por alguns autores de Sistema Romanista, Românico ou Civil Law; é aquele que se originou a partir da união dos Direitos Romano e Germânicos – além de outros direitos consuetudinários trazidos por povos que chegaram à Europa quando da chegada dos povos germânicos –, com influência do Direito Canônico e que vê na lei a fonte primária do Direito. René David faz sua opção pelo uso da denominação romano-germânica e justifica tal escolha a partir de uma crítica aos demais termos, que seriam muito restritos para a amplitude do sistema que se propõe estudar e de uma explicação que afirma que “a denominação romano-germânica foi escolhida para homenagear estes esforços comuns, desenvolvidos ao mesmo tempo nas universidades dos países latinos e dos países germânicos.” (DAVID, 2002, p. 24). A escolha, portanto, não foi feita simplesmente a partir dos direitos que deram origem ao sistema em estudo, mas das influências exercidas pelos países que se empenharam no desenvolvimento de um sistema que surgiu a partir de um movimento universitário, em um primeiro momento, para depois tornar-se codificado. É um sistema que se funda em decisões judiciais baseadas, principalmente, nas criações do Legislativo. Já o Common Law é o Direito originário da Inglaterra e aparece também, embora um pouco diferenciado, nos Estados Unidos e outros países que passaram por colonização inglesa. É um sistema que, apesar da existência das leis, tem um enfoque maior na jurisprudência ou decisão judicial. O judiciário cria e aplica a regra jurídica, também chamada de Legal Rule, aplicada de acordo com os precedentes e considerada regra específica, que não visa estabelecer a conduta observada através do direito material, como no caso da Família Romano-Germânica. A regra do Common Law parte do processo e não da matéria de direito. 31 Quanto ao Sistema Socialista, temos aqui um grupo semelhante ao Romano- Germânico, na medida em que também enfatiza a lei como fonte primordial de Direito. Porém este é, em tese, um Direito transitório, na medida em que deveria ser aplicado apenas na fase intermediária que aconteceria logo após a revolução socialista vislumbrada por Marx e Engels em sua doutrina do materialismo histórico e dialético. Após este período transitório, o Estado Socialista deveria se transformar em uma sociedade comunista, na qual não haveria Estado nem Direito. Na fase transitória, porém, permaneceria a aplicação de um direito legalista e que determina a conduta, assim como na Família Romano-Germânica. Se optamos pela utilização do Direito Comparado como método de estudo, podemos realizar, a partir de sua utilização, uma comparação entre as famílias, percebendo que sistemas a primeira vista tão diferentes uns dos outros, possuem pontos em comum que farão com que se relacionem entre si; o que já pode ser observado nas definições dos sistemas vistas nos parágrafos anteriores, em que já podemos observar comparações e relações entre os sistemas estudados. É necessário, porém, que se faça uma melhor observação de tais relações na medida em que é comparando e relacionando os direitos existentes no mundo que poderemos aprimorar o nosso próprio direito e nos relacionar melhor com os outros direitos, sejam eles romano-germânicos, anglo-saxões ou socialistas. O importante é obtermos uma percepção da globalização e de suas consequências para as relações existentes entre as pessoas, entre os Estados e entre os ordenamentos jurídicos existentes hoje, sejam eles codificados, organizados em uma regra do precedente, religiosos ou consuetudinários. Quando analisamos as famílias Romano-Germânica e de Common Law, notamos que ambas possuem alguma influência dos Direitos Romano e Canônico e passaram por uma grande evolução até chegar ao sistema atual. Porém, partem de regras jurídicas diferentes e o enfoque é divergente, já que a primeira concentra-se na criação do Legislativo e a segunda, na atuação do Judiciário. Porém, elas têm em comum, de acordo com juristas da família Socialista, o fato de ambas estabelecerem regras ‘burguesas’, que veem o Direito, assim como o Estado, como algo essencial a toda e qualquer sociedade, não vislumbrando nunca, como aconteceria com a família socialista, uma sociedade organizada sem Direito e sem Estado. O já tão citado René David comenta este fato afirmando que: 32 família de direito romano-germânica e família da common law são (...) confundidas sob o mesmo epíteto, pretendido infamante, de ‘direitos burgueses’ pelos juristas do campo socialista, composto pela União Soviética e pelos países que tomaram por modelo a União Soviética ou que professam, como ela, a sua adesão ao dogma do marxismo-leninismo. (DAVID, 2002, p. 26 - 27). A família Socialista, então, diverge das outras na observação da importância do Direito em uma sociedade. Porém, esta família tem diversos pontos em comum com a família Romano-Germânica, já que ambas veem a lei como fonte primordial do Direito e tiveram sua origem nos Direitos Romano, Canônico e costumeiro. Quanto aos direitos que não fazem parte de um sistema ou família na medida em que são aplicados em regiões mais restritas, temos relações religiosas ou consuetudinárias que os ligam. Apesar de possuírem sistemas religiosos diferentes, não formando assim uma ‘família religiosa’, os ‘direitos divinos’ observados nos sistemas Muçulmano, Hindu e Hebraico – cujas regras ainda prevalecem em meio aos povos judaicos – ligam-se pelo fato de que acreditam que o Direito seja algo sagrado, que não é criado pelo homem, mas enviado por um ou mais Deuses e que deve ser apenas seguido pelos homens, nunca modificado. Os Direitos do Extremo Oriente e os Direitos da África não podem ser considerados religiosos, já que valorizam costumes ou regras de convivência deixados pelos antepassados; nada impede, porém, que se observe nos costumes predominantes uma ligação direta com algum tipo de religião. Percebemos, assim, que o uso do Direito Comparado nos leva a observar diversas relações entre os direitos existentes no mundo, hoje, e essas relações tendem a se estreitar em razão da globalização e da aproximação cada vez maior entre os direitos existentes. Nos capítulos que se seguem, passaremos a um estudo mais detalhado de cada um dos sistemas aqui apresentados e relacionados em uma tentativa de comparação entre eles no que diz respeito a sua história (origem e evolução) e a seu funcionamento (regra de direito, divisões e conceitos fundamentais). Antes, porém, para fechar esse segundo capítulo, optamos por realizar aqui uma análise mais aprofundada dos sistemas jurídicos que não se encaixam nas três grandes famílias e que possuem menos influência nos sistemas jurídicos ocidentais, entre os quais se encontra o Direito Brasileiro. 33 2.3. Sistemas Jurídicos de menor influência no direito ocidental Quando saímos das principais famílias de direitos, observamos alguns sistemas menores, quetiveram pouca ou nenhuma influência no Direito do Ocidente e possuem algumas características próprias que os distinguem dos sistemas estudados até aqui. Podem ser direitos mais voltados para a religião ou que tenham costumes e regras de convivência como fonte primordial. O importante é que não se encaixam em nenhuma das três grandes famílias ou, quando se encaixam, na prática não aplicam o direito como está programado no funcionamento da família em questão. Por isso, precisamos observar separadamente alguns destes sistemas menores, que acabam demonstrando a grande força que a evolução das sociedades nas quais são aplicados tem sobre seus sistemas jurídicos. O Direito Muçulmano, assim como o Hindu e o Judaico, observam uma ligação muito forte entre direito e religião. Para eles, o Direito não é algo estabelecido pelos homens, mas por uma divindade. Da forma como ‘Deus’ estabeleceu, assim os homens devem viver. Quando analisamos o modo como os seguidores dos direitos religiosos vivem, pensamos que a laicização do Direito, realizada pelos gregos na Antiguidade Clássica, parece não ter nenhum sentido para eles. O homem não pode criar nem modificar regras, apenas seguir o que foi estabelecido nos ‘livros sagrados’. Mais especificamente no que diz respeito ao Direito Muçulmano, percebemos as regras jurídicas confundidas com as regras religiosas, que se apresentam, principalmente, no Corão ou Alcorão, livro sagrado constituído por revelações de Alá, que escolheu o Profeta Maomé para transmitir à humanidade uma mistura de história sagrada e profana, de máximas filosóficas, de regras rituais. Não foi Maomé, porém, o responsável pela redação do Alcorão, já que foi Zaîd, um de seus colaboradores, quem o escreveu 20 anos após sua morte. Além do Corão, o Direito Muçulmano possui outras fontes sagradas, constituídas pela Suma ou Suna, composta pela tradição relativa ao enviado de Deus; o Idjma ou Idjmã, consentimento universal da comunidade muçulmana; e o Quiyás ou Qiyâs, raciocínio por analogia. Apesar da imutabilidade apresentada por um direito religioso, divino; observamos no Direito Muçulmano uma falsa unidade, já que existem no mundo muçulmano ritos diversos, o que demonstra um menor ou maior tradicionalismo, dependendo da 34 flexibilidade observada na interpretação das fontes religiosas. Hoje em dia, inclusive, o costume e a legislação passaram a desempenhar papel de importância em situações que requeiram maior flexibilidade, desde que não contrariem os livros sagrados. O Direito Hindu, assim como o Muçulmano, é um direito religioso. Devemos lembrar aqui que a Índia foi colonizada pela Inglaterra, o que a leva a ter um Direito oficial aplicado lá, chamado de Direito Indiano, baseado no Common Law. Temos, então, a seguinte realidade jurídica na Índia: de um lado, o direito indiano oficial baseado na Common Law; de outro, o Direito Hindu, que é, na realidade, o que prevalece, ou seja, o que é realmente aplicado. Quando há alguma divergência entre religiões, já que na Índia também há seguidores da religião muçulmana, aplica-se o direito oficial, que servirá para dirimir conflitos. Esta é a principal função do Direito Indiano que, além dessa, só possui a função de aplicação a estrangeiros. Hoje em dia, há a imposição do direito oficial na tentativa de modernização de uma sociedade em que ainda predominam os dogmas religiosos. O que se percebe, porém, é que as pessoas ainda tentam preservar ‘os costumes’ evitando assim que o Direito Indiano prevaleça e conservando regras religiosas que estabelecem a necessidade do dote para realização de um casamento e o uso da água do Rio Ganges para curar doenças. O Direito Hindu, porém, assim como o Muçulmano, não é aplicado só na Índia. É o direito de todos os países do sudeste asiático que aderiram ao hinduísmo. É um Direito aplicado em uma sociedade dividida em castas, o que significa que não há mobilidade social e as castas não devem se misturar. Só podem acontecer casamentos dentro de uma mesma casta. Mesmo com uma Constituição que proíbe a discriminação no que diz respeito às castas, a maioria da população indiana ainda vive no campo e segue o direito religioso que tem como principal fonte o Código de Manu, escrito em versos com fundo religioso que trazem preceitos jurídicos. Segundo Venosa, “os hindus não conhecem regras que impõem um constrangimento físico. O que melhor corresponde à noção de direito é dharma, cuja compreensão se aproxima de dever.” (VENOSA, 2010, p. 266). Além do Código de Manu, o costume também é reconhecido como fonte do Direito Hindu, sempre voltado, é claro, para uma índole moral e sagrada. Além dos Direitos religiosos, há ainda “outras concepções da ordem social e do direito”, como diria René David (2002). No Extremo Oriente, por exemplo, representados 35 principalmente por China e Japão, não há a influência religiosa encontrada nos Direitos Muçulmano e Hindu, mas há, também, a existência de um direito oficial que, no entanto, não predomina no momento de sua aplicação. Assim como a Índia pertence, ‘oficialmente’, à família da Common Law; oficialmente, a China faz parte da família Socialista e o Japão se insere na família Romano-Germânica. Na prática, entretanto, há uma cultura bem diferente da que observamos nos países ocidentais inseridos nas três principais famílias. A cultura oriental não busca soluções jurídicas para os conflitos. Pelo contrário, o povo oriental tenta fugir ao máximo da necessidade de se buscar uma resolução do poder judiciário. O que existe lá é a tentativa de se aplicar, sempre, as regras de convivência familiar. As famílias tentam resolver entre elas os conflitos existentes, buscando ajuda apenas dos seus próprios ancestrais. Os mais velhos são ouvidos sempre e o Direito escrito só é utilizado em último caso, momento em que aquele que precisou buscar ajuda jurídica passa a ser até mesmo mal visto pelo restante da sociedade. Mesmo no Japão, onde ocorreu uma maior ocidentalização, ainda há o predomínio da conciliação em detrimento do litígio judiciário. Para nós, torna-se difícil entender o funcionamento de um sistema jurídico em que não se busca o direito. Nós temos um costume ocidental que nos leva a demandar sempre que podemos, deixando de lado os acordos, as arbitragens e as conciliações. Até mesmo nossos advogados, que deveriam tentar realizar acordos e, só em último caso, partir para o litígio, não o fazem. Como afirma José Renato Nalini: pode-se pensar que o advogado, por depender de trabalho, deverá estimular quem o procure a iniciar um processo perante a justiça. Muitas vezes isso é de fato necessário. Ninguém pode ser aconselhado a desistir da defesa de seus direitos. Viver injustiçado é viver indignamente. Outras vezes a solução passa ao largo da justiça convencional. Pode haver entendimento direto entre as partes e nesse sentido o advogado deverá encaminhar a questão posta (NALINI, 2008, p. 360). Percebemos, assim, que não precisamos nos tornar ‘orientais’ de uma hora para a outra. As soluções jurídicas são, muitas vezes, necessárias e o Poder Judiciário existe para fornecê-las. Porém, precisamos observar o exemplo oriental no que diz respeito à harmonia, observância às orientações dos mais velhos e nos voltar para uma ética menos demandista e mais conciliatória. Assim como a Índia, o continente africano passou por diversas colonizações no decorrer de sua história, o que acabou levando aos países independentes influências da maioria dos sistemas jurídicos existentes. Em decorrência do processo imperialista, há 36 países que baseiam o seu direito no sistema de Common Law,outros tem base romano- germânica e há até mesmo países que aderiram a um direito misto ou religioso, em decorrência de invasões muçulmanas. Porém, o que se observa é que, apesar das influências trazidas pelas metrópoles, o que predomina nos países independentes é o direito consuetudinário, já que este continente apresenta uma grande quantidade de tribos com etnias e dialetos distintos, o que acaba acarretando permanentes guerras civis em razão das diversidades culturais que produzem, juridicamente, regras ainda consuetudinárias, apesar da imposição de direitos oficiais baseados nos processos colonizatórios. Assim, enquanto oficialmente aplicam-se direitos religiosos ou códigos e jurisprudências de origem estrangeira, na prática, é o costume que dita as regras aplicadas em cada uma das tribos. Os direitos oficiais só são utilizados quando acontece algum conflito entre elas, o que dificulta ainda mais as relações, na medida em que a maioria dos africanos não tem acesso à linguagem utilizada nos direitos oficiais. Precisamos ressaltar que, infelizmente, ainda hoje a África sofre as consequências dos processos de colonização e escravização de sua população. Os negros africanos e seus descendentes espalhados pelo mundo ainda são marginalizados e tratados em desigualdade com os brancos que os escravizaram e exploraram. O processo de recuperação de gerações inteiras que ficaram perdidas em decorrência das explorações estrangeiras e das guerras internas que não permitem um desenvolvimento econômico, político e social a um continente tão rico em sua natureza e tão pobre nas relações humanas; só poderá acontecer a partir de um processo lento, em que se torna necessário, em alguns momentos, estabelecer desigualdades que possam restabelecer a igualdade que nunca foi observada. No Brasil, temos o exemplo do sistema de cotas para negros nas universidades públicas, questão tão polêmica que demonstra a tentativa de se restaurar a justiça em um processo histórico contínuo de exploração, desigualdade e, consequentemente, de ausência de dignidade e possibilidade de ascensão social. As cotas mantêm a desigualdade e até a ressaltam, mas são necessárias para que possamos nos redimir de anos de escravização e exploração e equanimizar as relações entre brasileiros que, independente da cor, possuem, constitucionalmente, os mesmos direitos. 2.4. Exemplos de Fontes Primárias 37 Direito Muçulmano Alcorão (cerca de 640) XII, 21: Alá é soberano (senhor) da sua ordem, mas a maior parte dos homens não o sabe. XVI, 69: Dos frutos das palmeiras e das vinhas, vós tirais uma bebida inebriante e um alimento excelente. Na verdade, nisto está seguramente um sinal para criar um povo sábio. II, 216: Os crentes interrogam-te sobre as bebidas fermentadas e os jogos. Responde-lhes: Ambos são para os homens um grande pecado e uma utilidade, mas o pecado que neles reside é maior que a sua utilidade. II, 226: Àqueles que fazem juramento de nunca mais se aproximarem das suas mulheres, é-lhes concedido um prazo de quatro meses; se voltarem atrás quanto à sua decisão, esta será anulada. Deus absolve e é indulgente. II, 227: Se, pelo contrário, eles mantêm a sua decisão, o repúdio tornar-se-á efectivo. Deus ouve tudo, sabe tudo. II, 234: Em caso de morte do marido, as viúvas são obrigadas a um prazo de viuvez de quatro meses e oito dias. Passado este prazo, poderão dispor de si próprias, segundo o costume reconhecido: não tereis nada a censurar quanto a este facto. Deus está informado, na verdade, de tudo o que fazeis. (GILISSEN, 2001, p. 124). Direito Hindu 38 Dharmasûtra de Baudhay Ana (I, 18, 2-5) (cerca de 500-300 antes de Cristo) Teoria dos quatro Varna. Brama deu o brabman (a ciência sagrada, o poder místico) aos brâmanes, com o dever e o direito de se dedicarem ao estudo, ao ensino, de fazerem sacrifícios por eles mesmos e pelos outros, de fazerem oferendas e de as receberem, a fim de assegurarem a protecção dos Vedas. Aos ksatriya, conferiu o ksatra (a força, o imperium), com o dever e o direito de se dedicarem ao estudo, de fazerem sacrifícios, de fazerem oferendas, de empregarem as armas e de protegerem as riquezas e a vida das criaturas, a fim de assegurarem o bom governo do país. Aos vaisya, conferiu o vis, o poder de trabalhar, com o dever e o direito de se dedicarem ao estudo, de fazerem sacrifícios, de fazerem dons, de cultivarem as terras, de fazerem negócio e de vigiarem o gado, a fim de assegurarem o desenvolvimento do trabalho produtivo. Aos sudra, impôs o dever de servirem os varna superiores. (R. Lingat, Les sources du droit dans le système traditionnel de l’Inde, Paris 1967, p. 45; in: GILISSEN, 2001, p. 107). Direito Chinês – Extremo Oriente Decreto sobre o casamento na República Soviética Chinesa, assinado por Mao Zedong, 1º de dezembro de 1031. “Sob a dominação feudal, o casamento entre o homem e a mulher é uma instituição bárbara e desumana. A opressão e o sofrimento suportados pelas mulheres são maiores que os suportados pelos homens. Só a vitória da revolução dos operários e dos camponeses, 39 seguida pelos primeiros passos no sentido da libertação económica dos homens e das mulheres, traz uma modificação no carácter da relação do casamento entre o homem e a mulher que se torna livre. No momento actual, nas regiões soviéticas, o casamento entre o homem e a mulher recebeu uma base de liberdade. O casamento deve ser concluído segundo o princípio da livre escolha. Todo o sistema feudal do casamento é abolido, incluindo o poder dos pais sobre os seus filhos, o uso do constrangimento e o carácter de compra e venda do acto do casamento. No entanto, no momento em que as mulheres acabam de ser libertadas do jogo feudal, elas sofrem ainda handicaps físicos enormes (tal como a ligadura dos pés), e não obtiveram também uma completa independência económica. Por consequência, no que diz respeito ao divórcio, é preciso defender os interesses da mulher, e atribuir aos homens a maior parte das obrigações e das responsabilidades que este comporta. As crianças são os senhores da nova sociedade; e o que importa destacar ainda mais, é que, de acordo com os hábitos da antiga sociedade, não se prestava atenção à proteção das crianças. Por conseguinte, uma regulamentação especial foi feita no que diz respeito à protecção das crianças. Este regulamento será promulgado e entrará em vigor no dia 1 de Dezembro de 1931. O presidente do Comité central executivo Mao Zedong”. (Stuart-Schram, Mao Tse-Toung. Coll. U, 2ª ed., 1972, p. 401; in: GILISSEN, 2001, p. 115 - 116). Questões para análise e verificação de aprendizagem 1) Conceitue Direito Comparado e faça um estudo histórico a respeito de sua origem e evolução. 2) Explique cada uma das funções do Direito Comparado e fale sobre sua importância para a organização jurídica atual. 40 3) Analise a diversidade dos direitos contemporâneos e explique o uso do Direito Comparado na observação de tais direitos. 4) Relacione os principais sistemas jurídicos existentes hoje e forneça as principais características de cada um deles. 41 Capítulo 3. O Sistema Romano-Germânico _________________________________________________________________________ 3.1. Origem do sistema Há divergências entre os autores quando tratam da origem do sistema Romano-
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