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Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) Instituto Nacional do Semi-Árido (INSA) Aridez mental, problema maior Contextualizar a educação para construir o ‘dia depois do desenvolvimento’ no Semi-Árido Brasileiro1 José de Souza Silva2 EMBRAPA Algodão josedesouzasilva@gmail.com Campina Grande-PB, 10 de junho de 2011 1 Documento de apoio ao “Curso de Especialização em Educação Contextualizada para a Convivência com o Semi-árido Brasileiro”, realizado no Campus de Cajazeiras-PB da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). O documento corresponde ao conteúdo dos dias 10 e 11 de junho de 2011, originalmente apresentado pelo autor no Painel “Educação Contextualizada para a Convivência com o Semi-Árido Brasileiro”, do I Seminário Nacional sobre Educação Contextualizada para a Convivência com o Semi-Árido Brasileiro, realizado em Campina Grande-PB, de 31 de Maio a 02 de Junho de 2010. 2 Engenheiro Agrônomo, nascido em Areia-PB, com Mestrado em Sociologia da Agricultura e Ph.D. em Sociologia da Ciência e Tecnologia. Foi o criador e primeiro Gerente da Secretaria de Gestão e Estratégia (SGE) da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), trabalhou no International Service for National Agricultural Research (ISNAR), onde criou a Red Nuevo Paradigma para la Innovación Institucional en América Latina, 1995-2006, e foi consultor do Instituto Nacional do Semi-Árido (INSA). Na Embrapa Algodão, Campina Grande-PB, é pesquisador das relações ciência-tecnologia-sociedade-inovação (CTSI) e estrategista em inovação institucional. De Souza Silva, José O dia depois do desenvolvimento 2 Introdução A inovação da inovação na educação, do universal, mecânico e neutro ao contextual, interativo e ético “Se você viajar de avião, de Salvador para as terras do interior da Bahia, e observar a paisagem, irá deparar com uma brusca mudança. O ambiente úmido da orla marinha, povoado de graciosos coqueiros, e a extensa planície de densa vegetação são, repentinamente, substituídos, a menos de 90 quilômetros do mar, por uma plataforma imensa, de solo pedregoso, de coloração amarelo-avermelhada onde vegetam apenas os cactos e arbustos espinhosos e retorcidos. Uma paisagem seca e pobre, contrastando tristemente com o panorama vivo e alegre do mar e das matas que ficaram para trás. É a paisagem do sertão. Sua vegetação é a caatinga. O que caracteriza, realmente, essa vegetação, que se estende a perder de vista sobre as chapadas nordestinas, é a sua aparência ressequida, tortuosa e agressiva, como que torturada pelo sol calcinante e pela ausência de chuvas. O caboclo é o único ser humano capaz de sobreviver nessas terras. O sertanejo é apenas contratado pelo fazendeiro, um rico proprietário, que vive no litoral e que, muitas vezes, nem sequer conhece suas próprias terras. De aparência indolente e tostado pelo sol, com a pele esturricada como as próprias plantas espinhentas e retorcidas que o cercam. O principal meio de transporte no sertão nordestino é o jegue. Como não possui automóvel, o sertanejo leva um dia inteiro transportando, sobre a cabeça ou no lombo do jegue, uma lata d’água que mal dá para saciar a sede da família. A riqueza cultural do sertanejo, responsável pela sua regionalidade e baseada em tradições, observações e costumes milenares, deve ser objeto de estudo para oferecer-lhe explicações racionais e objetivas sobre a natureza da caatinga, em substituição às suas crendices e atitudes incoerentes e nocivas. A jacarezada é prato típico das regiões situadas às margens do Velho Chico e, segundo dizem, muito saboroso. Porque, o solo do Sertão não produz quase nada”3. “Temos exagerado na influência das crises climáticas no atraso do polígono das secas. As condições adversas do meio não têm mais tanto poder inibidor de progresso, na era moderna, com os conhecimentos e o instrumental científico [atuais]. Muitos erros foram cometidos em nome da aridez generalizada. Entre eles está a adoção da solução hidráulica, geral, que não deu os frutos esperados” (Duque 1953:11). Pior do que a aridez das terras é a aridez das mentes. Quem conhece o Semi-Árido Brasileiro (SAB) em sua complexidade, diversidade, diferenças e contradições jamais o descreveria como o faz o Professor da Universidade de São Paulo (USP) citado nesta introdução. A falta de ética profissional e de honestidade intelectual, constitutivas das falsas verdades partilhadas em seu livro, só floresce numa mente em avançado processo de desertificação cultural. Uma mente onde só germinam sementes forâneas, semeadas por dominadores antigos e modernos, cujos frutos localmente irrelevantes são colhidos sempre em uma paisagem esterilizada pela homogeneidade imposta por modelos globais que violam histórias, saberes, desafios e sonhos locais. O citado autor é um fiel representante da educação descontextualizada que prevalece sobre a região, que reproduz a ‘idéia de semi-árido’ dominante desde o tempo do Império, na qual o SAB é um “problema”, uma “região inviável” a ser tratada com o paradigma das “adversidades”. Mas, a pergunta crítica que paira no ar é: se a educação contextualizada é a mais relevante, porque prevaleceu historicamente a educação descontextualizada, que ainda persiste entre nós? A institucionalização da educação contextualizada no SAB exige primeiro desqualificar a visão de mundo—concepção de realidade—que originou e ainda legitima a educação descontextualizada 3 Samuel Murgel Branco, Professor da Universidade de São Paulo (USP), em seu livro Caatinga: A paísagem e o homem sertanejo [Editora Moderna, 2003], adotado em escolas do Sudeste brasileiro; em Queiróz (2009:16, 17). De Souza Silva, José O dia depois do desenvolvimento 3 que nos legou a ‘idéia de semi-árido’ hoje impregnada no imaginário de muitos líderes, gerentes, educadores, profissionais, políticos e intelectuais de todas as religiões, geografias e orientações ideológicas. Sem saber sua gênese histórica, intenção política e conseqüências epistemológicas, muitos não encontrarão razões relevantes para rejeitar sua irrelevância. O documento contribui nesta direção. A v isão de mundo e o pensamento que instituíram o SAB como “região-problema” têm origem na ciência moderna que viabilizou a consolidação do capitalismo a partir dos séculos XVI e XVII, e nos legou o paradigma clássico de inovação que penetrou e condicionou a natureza e dinâmica da “educação universal” que temos, mas que não queremos e devemos superar. O paradigma clássico—universal, mecânico e neutro—de inovação nos legou uma educação que aliena e domestica ao homogeneizar o SAB, ignorando a diversidade das relações, significados e práticas entre as diferentes formas e modos de vida na região. Chegou a hora de inovar nossa forma de inovar na educação, com uma alternativa paradigmática contextual, interativa e ética. No SAB, a educação contextualizada deve formar construtores—e não seguidores—de caminhos, a partir da ‘pedagogia da pergunta’, guiada pelo paradigma das potencialidades e inspirada pela filosofia da semi-aridez como vantagem (INSA 2008). Nossa tese é que a ‘idéia de desenvolvimento’ instituída como meta a ser alcançada por todas as sociedades nos mantém reféns da dicotomia superior-inferior, criada a partir da noção de raça, que no passado classificou a humanidade em civilizados-primitivos e no presente nos divide em desenvolvidos- subdesenvolvidos. No SAB a educação descontextualizada reproduz esta dicotomia criada para a dominação,enquanto a educação contextualizada potencia a construção do ‘dia depois do desenvolvimento’ ao substituir ‘desenvolvimento’ como meta por ‘bom viver’ como fim. O objetivo é construir comunidades e sociedades felizes com modos de vida sustentáveis. A superação da aridez mental, resultante da educação colonial descontextualizada—alienadora, domesticadora—que temos, inclui uma desconstrução cultural e descolonização epistemológica. A desconstrução torna visíveis falsas verdades (culturalmente invisíveis) que inspiram e orientam ‘decisões e ações de desenvolvimento’. A descolonização revela a gênese histórica, a intenção política e a origem epistemológica destas ‘verdades do desenvolvimento’. A desconstrução e a descolonização devem incorporar o marco da etnografia institucional que analisa criticamente as relações entre poder (política) e saber (ciência) que afetam a vida (ética) cotidiana das pessoas comuns (Smith 2005). O enfoque foi aplicado com sucesso por pensadores críticos da América Latina, como o Antropólogo colombiano Arturo Escobar em A Invenção do Terceiro Mundo: “[...] a etnografia institucional [põe] ao descoberto o trabalho das instituições para prepararmos a tarefa de ver o que culturalmente aprendemos a ignorar. A participação das práticas institucionais na construção do mundo [...] nos prepara para discernir como vivemos e inclusive nos produzimos [...] dentro dos espaços conceituais e sociais tecidos...pelo monótono mas eficaz trabalho das instituições de todo tipo. Um trabalho etnográfico como este trata de explicar a produção da cultura feita por instituições que são, elas mesmas, o produto de uma cultura determinada” (Escobar 1998:218). Em sua corrente crítica, a etnografia institucional (Smith 2006) identifica o discurso hegemônico (fonte de realidade) e os dispositivos concretos e subjetivos que o viabilizam: regras políticas (fonte de poder), papéis epistemológicos (fonte de verdades), significados culturais (fonte de sentido), arranjos institucionais (fonte de padrões de comportamento), práticas institucionais (fonte de mudanças). Nesta perspectiva, o trabalho (i) sintetiza a emergência da ciência moderna no contexto da ascensão do capitalismo sobre o feudalismo; (ii) identifica idéias da Revolução Científica que mudaram a forma de ver o mundo e de pensar sobre a natureza e a dinâmica da realidade, descontextualizando a vida e matematizando a existência; (iii) delineia o perfil do paradigma clássico de inovação da ciência que condicionou modos de interpretação e intervenção na época do industrialismo, estabelecendo a educação descontextualizada na África, América Latina e Ásia; e, (iv) reconstrói a presença do paradigma clássico no antigo binômio civilizados- De Souza Silva, José O dia depois do desenvolvimento 4 primitivos, durante o colonialismo imperial, e no binômio desenvolvidos-subdesenvolvidos do atual imperialismo sem colônias. A conclusão comparte premissas críticas para inspirar o esforço de desconstrução cultural e descolonização epistemológica imprescindíveis para construir outra ‘idéia de semi-árido’, e outra educação sobre o que é e como funciona o SAB. A colonização cultural, a desertificação mental e o ‘dia depois do desenvolvimento’ “[...] as sociedades...‘avançadas’ precisam de mentes servis e colonizadas nas áreas mais ‘atrasadas’. No Brasil [e no Semi-Árido Brasileiro] isso é evidente. Colonizam-se as mentes dos dominantes [elites locais], que passam a defender mais os interesses do capital internacional do que os interesses da nação que habita” (Costa 2010: ...)4. “Nós, o povo soberano do Equador, reconhecendo nossas raízes milenares, forjadas por mulheres e homens de distintos povos, celebrando a natureza, a Pacha Mama, da qual somos parte e que é vital para nossa existência, invocando o nome de Deus e reconhecendo nossas diversas formas de religiosidade e espiritualidade, apelando à sabedoria de todas as culturas que nos enriquecem como sociedade, como herdeiros de...lutas sociais de liberação frente às...formas de dominação e colonialismo, [comprometidos] com o presente e o futuro, decidimos construir uma nova forma de convivência cidadã, em diversidade e harmonia com a natureza, para alcançar o bom viver, o sumak kawsai [...]”5 Desenvolver ou não desenvolver? Esta não é a questão. Depois de cinco séculos de progresso e seis décadas de desenvolv imento, a humanidade nunca foi tão desigual e o planeta jamais esteve tão vulnerável. Neste contexto, desde os anos 1990, a América Latina é a região mais desigual do mundo. Se este é o estado atual da região, como reflexo da história do progresso no passado e da do desenvolvimento no presente, que futuro aspirar para o SAB, sob a ‘idéia de semi-árido’ dominante no Brasil? A paisagem—natural, social e institucional—devastada pelo progresso, sob seu disfarce atual, o desenvolvimento, indica que se esgota o tempo para imaginar, negociar e construir outro futuro relevante, que terá inicio no ‘dia depois do desenvolvimento’, como propõe a ousada Constituição do Equador ao substituir o desenvolvimento como meta pelo bom viver como fim. Mas não será fácil; este dia deve nascer primeiro em nossa imaginação (compreensão) e coração (compromisso). A educação contextualizada deve emocionar a muitos. Sem emoção não há paixão, e sem paixão não há compromisso. Contra isso existe o pensamento dominante. O pensamento social hegemônico na América Latina não é latinoamericano. Eram autóctones os construtores de caminhos em Abya-Yala (continente americano) até 1492, cuja construção incluía suas histórias, cores, aromas, sabores, emoções, saberes, sonhos, sons e desafios constitutivos dos modos de ser, sentir, pensar, fazer, produzir, consumir e falar dos povos originários. Desde 1492, caminhantes forâneos chegaram destruindo antigos caminhos e construindo outros com os ingredientes constitutivos de seus modos de ser, sentir, pensar, fazer, produzir, consumir e falar, criando violências, desigualdades e injustiças em nome do progresso ou do desenvolvimento que viabiliza a estratégia de (neo)colonização cultural que reproduz o sistema capitalista e o ideal de sociedade concebido pela civilização ocidental. A (neo)colonização cultural esteriliza a diversidade do pensamento crítico e criativo local e semeia o pensamento único, universal, do dominador. O problema da educação descontextualizada é que foi concebida para levar-nos a pensar como Eles 4 As citações Costa (2010) correspondem ao texto Aspectos históricos e culturais do semiárido brasileiro desenvolvido para o curso de Especialização em Educação Contextualizada para a Convivência com o Semi-Árido Brasileiro, por José Jonas Duarte da Costa, Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da UFPB. As citações não incluem os números das páginas porque o referido texto ainda não foi concluído. 5 Extrato do Preâmbulo da Constitución de la República del Ecuador, 2009 (Negrito no original). De Souza Silva, José O dia depois do desenvolvimento 5 para ser como Eles; um desafio da educação contextualizada é construir o dia a partir do qual pensaremos como nós para sermos nós mesmos. Este será o ‘dia depois do desenvolv imento’. Em países como o Brasil e regiões como o Semi-Árido Brasileiro (SAB), com experiência colonial, a colonização cultural transcendeu à colonização territorial, alienou mentes, desvalorizou saberes e domesticou corações. Gerado para viabilizar a dicotomia superior-inferior, o discurso colonial normalizou relações assimétricas de poder e naturalizou violências, desigualdades e injustiças.Legitimado pela idéia de progresso, o discurso justif icou no passado a conquista do Novo Mundo. O “civilizado” tinha o direito à dominação e o “primitivo” a obrigação da obediência. Porém, como afirma Jonas Duarte, Historiador da UFPB, a resistência histórica de nossos indígenas à ocupação colonial do SAB indicava seu potencial para a sustentabilidade e sentido de seus modos de vida. Porém, prevaleceu o interesse do invasor: saquear as ‘potencialidades’ do SAB e divulgar suas ‘adversidades’. Instituiu-se a visão do SAB como região homogênea em termos de sua paisagem natural e de seu quadro de “problemas”. Ao penetrar, esterilizar e recriar os imaginários—técnico e social—locais, a colonização cultural instituiu a v isão da região seca e pobre: “região inviável”. Dada a geopolítica—eurocêntrica—do conhecimento que prevalece desde 1492 com a expansão colonial do capitalismo, que fez os centros de saber coincidirem com os centros de poder, hoje a educação neocolonial continua reproduzindo e aperfeiçoando a visão do mais forte—civilizado/ desenvolvido—entre os mais débeis—primitivos/subdesenvolvidos. Esta cultiva um pensamento subordinado ao conhecimento autorizado pelo mais forte. O processo de desertificação mental piora com o mimetismo que nos induz a pensar como Eles para ser como Eles. A realidade local do autodenominado superior assume o status de realidade universal, enquanto nossos contextos históricos, materiais, culturais, institucionais locais perdem sua visibilidade e relevância, apesar de sua complexidade, diversidade, diferenças e contradições. No caso do SAB, ao reproduzir certa forma de ver a região, a educação neocolonial institui certo modo de inovação cuja principal característica é a descontextualização do “objeto” de transformação. Se a forma de ver o mundo condiciona a forma de nele atuar para transformá-lo, a cada visão de mundo corresponde uma filosofia de inovação que articula modos de interpretação e intervenção. Nos últimos séculos, a visão de mundo dominante foi concebida durante a Revolução Científica dos séculos XVI e XVII, na Europa ocidental, quando a visão—orgânica e divina—de mundo e o pensamento filosófico estabelecidos na Grécia antiga foram desafiados e depois superados pela visão—mecânica—de mundo e o pensamento—utilitarista—ocidentais. A partir daí, leis universais homogeneizaram—descontextualizaram—as realidades locais. Com a matematização do universo e da vida, o que não pode ser quantificado não existe, não é verdade ou não é relevante. Os saberes, paixões, experiências, desafios, aspirações, frustrações, desejos, histórias, significados, sonhos e potencialidades locais eclipsaram sob o efeito homogeneizador/descontextualizador de modelos globais dominantes em todos os campos do conhecimento, inclusive no da educação. Quando o projeto capitalista de expansão colonial incorporou essa homogeneização da realidade, a educação no Novo Mundo foi concebida sob a pedagogia da resposta para implementar a dicotomia superior-inferior concebida a partir da noção de raça. Camuflada na idéia de progresso, a referida dicotomia classificou a humanidade em civilizados-primitivos; hoje, disfarçada na idéia de desenvolvimento, nos hierarquiza em desenvolv idos-subdesenvolvidos. A geopolítica global do conhecimento estabelece que o relevante existe sempre em certos idiomas, é criado sempre por certos atores e nos chega sempre desde certos lugares, que nunca coincidem com nossos idiomas, atores e lugares. Sem história nem contexto, sem sonhos nem emoção, nossa educação forma receptores de valores, conceitos, teorias e modelos criados longe de nossa realidade e sem compromisso com nosso futuro. Somos formados como “inocentes úteis” que assumem todas as formas de desigualdades como “naturais”, para o que a escola nos prepara para sermos receptores de idéias, conceitos, teorias, paradigmas e modelos, cuja adoção exige apenas imitar, nunca criar nem criticar, porque para ser como Eles devemos apenas pensar como Eles. De Souza Silva, José O dia depois do desenvolvimento 6 Vamos à escola memorizar respostas que os desenvolvidos construíram para suas perguntas, a partir de seus valores locais e seus interesses globais. Este processo de colonização cultural forma seguidores de caminhos já existentes. Há apenas um modelo universal de sociedade— desenvolvida—que todos devem aspirar e podem alcançar. Basta aplicar as soluções globais que o poderoso generoso “transfere” para resolver problemas locais, com uma educação universal concebida para homogeneizar/descontextualizar/domesticar a realidade, que pode ser conhecida, quantificada e controlada de forma objetiva e neutra. Os sistemas de educação reproduzem e refletem a dicotomia superior-inferior que se expressa dentro dos países e de suas regiões. No Brasil, o Centro-Sul é aplaudido como desenvolv ido, e o Norte-Nordeste é condenado como subdesenvolvido. Dentro do Nordeste, a região litorânea é “moderna”, só tem potencialidades; o SAB é “tradicional”, só tem adversidades. Esta intenção de homogeneizar de forma dicotômica a experiência humana, onde a sabedoria flui sempre de certa realidade superior para todas as demais realidades, inferiores, explica a predominância de práticas institucionais assimétricas e descontextualizadas em diversos âmbitos dos diferentes sistemas nacionais das sociedades, inclusive na concepção de pesquisas, formulação de políticas, gestão de processos educativos e execução de estratégias pedagógicas. O capitalismo, a Revolução Científica, a visão mecânica do mundo e a descontextualização da experiência humana “Essa é a lógica do sistema capitalista. Ele se desenvolve produzindo desigualdades. Para termos a riqueza mundial concentrada na Europa ocidental e na América do Norte é preciso ter a pobreza...na América Latina, África e Sul da Ásia. O desenvolvimento capitalista é desigual. Desde sua origem, se acentuando na medida em que o sistema foi dominado por grandes empresas corporativas no mundo todo. E ele se combina com uma parte ‘atrasada’, que alimenta a parte ‘desenvolvida’ com a mão-de-obra barata e um mercado consumidor à disposição, colonizado” (Costa 2010: ...). “A filosofia está escrita neste...livro [a natureza] que permanece...aberto frente a nossos olhos; mas não podemos entendê-la se não aprendemos primeiro a linguagem e os caracteres em que foi escrita. Esta linguagem é a matemática, e os caracteres são triângulos, círculos e outras figuras geométricas” ([Galileu] Capra 1982:50). É impossível compreender a natureza do paradigma clássico de inovação, e de sua contribuição à descontextualização da realidade, sem entender primeiro o momento histórico que pariu a ciência moderna na Europa ocidental antes, durante e depois da Revolução Científica gestada nos séculos XVI e XVII. O capitalismo mercantil em expansão tinha muitas necessidades, entre elas, uma visão de mundo, desde a perspectiva do dominador, para instituir uma nova ordem natural, uma nova ordem social e uma nova ordem moral para “normalizar”—na experiência humana—a superioridade de sua racionalidade sobre a do sistema feudal (Bernal 1971; Busch 2000). O capitalismo emergente exigia um modo de inovação que transcendera a dimensão técnica da transformação da realidade material para mudar, também, a concepção de mundo da sociedade feudal; para que esta aceitara como necessárias, positivas e “normais” as condições que seriam criadas para facilitar o desenvolvimento e sucesso de um sistema cujo objetivo único é apenas acumular, sempre mais, a qualquer custo, ad infinitum. Por exemplo, a premissa religiosa de que “é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino do céu”, condenava o lucro e a usura, o que não interessavaao capitalismo que precisava legitimar a acumulação como fim, o lucro como critério e o crescimento como estratégia (Polanyi 2001). Para instituir uma nova ordem mundial amigável ao capitalismo emergente na Europa ocidental, alguns atores formularam propostas concretas, que foram sintetizadas pelo Sociólogo Lawrence Busch em The Eclipse of Morality: science, state, and market: De Souza Silva, José O dia depois do desenvolvimento 7 “Francis Bacon propôs um mundo ordenado pela ciência natural, Thomas Hobbes, um mundo ordenado pela ciência do Estado e Adam Smith, um mundo ordenado pela ciência da economia [...] Desde tempos imemoriais, os seres humanos se preocupam com o problema da ordem. O desejo por ordem não é limitado a nenhuma forma particular de conhecimento. A ordem natural, a ordem social e a ordem moral necessitam igualmente de explicação, clarificação e segurança” (Busch 2000:3, 5). Segundo Bernal (1971), o capitalismo precisava ocidentalizar—homogeneizar—as regras do jogo da acumulação para facilitar sua penetração e estabelecimento nos quatro pontos cardeais do planeta. A homogeneização e a legitimação de sua racionalidade expansionista foram instituídas pela ciência moderna, dependente de financiamento para seu desenvolvimento. Para criar uma nova ordem de coisas ao seu favor, o capitalismo mobilizou as fontes de inovação disponíveis: do Renascimento italiano à Reforma alemã, das guerras religiosas no Velho Mundo às viagens marítimas para a conquista do Novo Mundo, da Restauração inglesa ao Iluminismo francês, e da Revolução (econômica) Industrial à Revolução (política) Francesa. Porém, a fonte de inovação preferida do capitalismo foi a ciência moderna ocidental (Bernal 1971). O Historiador francês Alexandre Koiré avaliou as mudanças conceituais da Revolução Científica como “a mais profunda revolução alcançada ou sofrida pela mente humana desde a antiguidade Grega”. O Historiador inglês Herbert Butterfield julgou que “a Revolução Científica reluziu mais do que qualquer acontecimento desde a emergência da Cristandade, e reduziu o Renascimento e a Reforma ao status de meros episódios” (Bernal 1971; Shapin 1998). A ordem científica instituída pela referida revolução estabeleceu um regime de verdades que foi disseminado (Basalla 1967) para criar as ordens natural, social e moral dominantes nos últimos séculos, através dos sistemas nacionais de educação e comunicação, e da formação de profissionais especializados na arte de “colonizar”, no passado, e na arte de “desenvolver”, no presente. A Revolução Científica dos séculos XVI e XVII, representada pela separação entre a Igreja católica e a ciência ocidental emergente, teve como pensamento dominante o da burguesia capitalista ascendente em sua época. A v isão teológica de mundo da Igreja perdeu sua força e glamour para uma visão mecanicista, utilitarista e mercantil. Mais tarde, o crescimento da ordem capitalista trouxe consigo o processo de industrialização para o qual a ciência moderna deveria dar respostas e soluções práticas no campo da técnica. A noção de verdade passou a depender necessariamente da legitimação da ciência, e o método científico se transformou na medida da verdade. Só há uma verdade: a verdade científica (Bernal 1971; Capra 1982; Shapin 1998). No entanto, a natureza das contribuições do paradigma clássico tampouco pode ser entendida a partir de uma lista de suas características. É imprescindível conhecer a gênese histórica, intenção política e conseqüências epistemológicas das idéias que o constituem. Como é extensa a lista dos protagonistas da Revolução Científica, cujas contribuições já foram analisadas (Bernal 1971; Shapin 1998), aqui foram selecionados apenas alguns dos que geraram as premissas essenciais constitutivas da ciência moderna: Galileu Galilei, Francis Bacon, René Descartes e Isaac Newton. Outros foram selecionados porque contribuíram à penetração do paradigma clássico de inovação em outros campos do conhecimento: John Locke na política, August Comte nas ciências sociais e Frederick W. Taylor na ciência da administração. Algumas idéias essenciais da Revolução Científica Segundo Bernal (1971), o mecanicismo da ciência moderna começou a ser gestado bem antes da Revolução Científica. O Renascimento projetou Leonardo da Vinci, um apaixonado pelos artefatos mecânicos que podiam ter utilidade militar. Era um especialista também em Hidráulica e Mecânica, mas seu gênio era demasiado avançado para seu tempo. Não havia conhecimento quantitativo sobre dinâmica e estática que viabilizara a produção material da maioria de suas De Souza Silva, José O dia depois do desenvolvimento 8 propostas inovadoras, que ficaram imortalizadas nos seus desenhos. Concretamente, ele nunca logrou ultrapassar os limites das práticas tradicionais dos artesãos de seu tempo, mas diferia deles em sua criatividade desde o pensamento mecânico. Neste período o capitalismo emergente inovava o pagamento dos salários em dinheiro, o que gerou turbulências no sistema feudal que explorava o trabalho forçado. Era necessário criar um sistema de valores que legitimasse a agenda inovadora do capital mercantil, na qual os trabalhadores seriam libertados do jugo da terra para serem aprisionados pelo salário, que seria supostamente alto para premiar a eficiência, mas que dava apenas para reproduzir a força de trabalho. Foi neste contexto que alguns atores contribuíram à criação da nova visão de mundo, do novo pensamento e da nova ordem que o capitalismo emergente exigia. Galileu Galilei (1564-1642) A Revolução Científica teve início realmente quando Nicolau Copérnico (1473-1543) se opôs à concepção geocêntrica do universo, de Ptolomeu e da Bíblia, aceitada como um dogma por mais de mil anos. Com sua astronomia heliocêntrica, Copérnico destronou a Terra do centro do universo, e a pôs entre outros planetas que circundavam o Sol, um astro secundário na fronteira de um número infinito de galáx ias. Como conseqüência, também destronou ao homem da sua arrogante posição central na criação de Deus (Bernal 1971). Certo de que sua teoria heliocêntrica teria um grande impacto na consciência religiosa, Copérnico retardou sua publicação até 1543, o ano de sua morte. Ainda assim, apresentou sua teoria como mera hipótese. Menos prudente do que Copérnico, Giordano Bruno (1548-1600) foi queimado pela Inquisição romana por promover o sistema heliocêntrico. Mas foi Galileu quem desqualificou a velha cosmologia quando estabeleceu a hipótese de Copérnico como teoria científica válida. Galileu Galilei, o Pai da Ciência Moderna, foi o primeiro a combinar a experimentação científica com a linguagem matemática para formular as leis da natureza (Capra 1982). Para que a natureza fora descrita cientificamente, Galileu postulou que os cientistas deveriam restringir-se ao estudo das propriedades essenciais dos corpos materiais, suas quantidades, formas e movimentos, que podiam ser medidos e quantificados. A sensibilidade, a estética, os valores, a qualidade, a subjetividade, os sentimentos, os motivos, as intenções, a consciência, o espírito, tudo desapareceu da paisagem científica, inclusive a experiência humana dependente do contexto e seus significados. Esta contribuição de Galileu levou à obsessão dos cientistas pela quantificação e a medição nos últimos quatrocentos anos. Sob a perspectiva da matemática e da geometria, o desinteresse pela história e o contexto deixou de instigar a curiosidade científica. Francis Bacon (1561-1626) Enquanto Galileu realizava seus criativos experimentos na Itália, Francis Bacon descrevia o método empírico da ciência na Inglaterra, formulando pela primeiravez uma teoria clara dos procedimentos do processo indutivo: realizar experimentos para retirar deles conclusões gerais a serem testadas outra vez por novos experimentos. Desenvolveu a Filosofia Experimental, e foi o primeiro a dar uma nova direção à ciência emergente rumo ao progresso da indústria material. Para ele, a idéia de entender a natureza era a única maneira de controlá-la para o lucro dos empreendimentos humanos. Saber é poder, quando é útil ao lucro e à acumulação, pensava ele. Em sua novela ficção Nova Atlântida, Bacon apresentou seu ideal para a organização da ciência, a Casa de Salomão, que mais tarde inspirou a criação de sociedades e institutos científicos na Europa. Ele propunha um mundo administrado no qual os cientistas informam ao Estado que conhecimento é bom e que conhecimento é mau. Também propôs que a ciência deve controlar a natureza para fazê-la útil ao homem, e que os cientistas devem eliminar a emoção e deixar-se manejar apenas pela razão: De Souza Silva, José O dia depois do desenvolvimento 9 “Para vencer a natureza é preciso obedecê-la. Para vencer é preciso obedecer, e para obedecer é preciso disciplinar a mente, eliminar todos os subjetivismos” (Filho e Chaves 2000:70). Desde seu utilitarismo e objetiv ismo, Bacon, em Novum Organum, queria destronar Aristóteles e o pensamento de outros “antigos”, para que uma “Nova América” de conhecimento fora possível, viabilizando viagens transoceânicas para “descobrir” novos continentes. O colonialismo ocidental se legitimou com sua obra. Bacon também foi um dos primeiros ideólogos do mundo-máquina, e sua atitude patriarcal marcou profundamente a emergência da ciência moderna. A natureza para Bacon era como uma mulher à espera de ser v iolada; seus segredos deveriam ser arrancados sob tortura—o experimento—com a ajuda de instrumentos mecânicos. O antigo conceito da Mãe Terra nutriente desapareceu por completo dos escritos de Francis Bacon (Capra 1982). Reduzida a um depósito passivo de recursos úteis para o capitalismo emergente, a complexidade da natureza perdeu sua importância para a relação simples de causa-efeito que dispensa preocupações com as demais variáveis do contexto. A descontextualização da realidade ganha mais um adepto em Bacon. Sob a ditadura da razão, Bacon não somente achava que poder é saber, mas também pensava que os homens racionais eram verdadeiros Deuses, como hoje os biólogos moleculares pensam que são Deuses porque descobriram e podem alterar o código da vida. Por tanto, podem inventar uma segunda Natureza, inclusive “fabricar” seres humanos. René Descartes (1596-1650) O Pai da Filosofia Moderna teve que lutar contra o sistema medieval de pensamento consolidado nas universidades oficiais da França, o que não o impediu de desenvolver o método dedutivo de pesquisa. Rompeu com o passado e consolidou um conjunto de conceitos para argumentar sobre o mundo material em termos exclusivamente quantitativos e geométricos. Obcecado pela dúvida, Descartes propôs um mundo ordenado e previsível: “...rejeitamos todo conhecimento que é meramente provável e consideramos que só se deve crer naquelas coisas que são perfeitamente conhecidas e sobre as quais não pode haver dúvidas...Toda ciência é conhecimento certo e evidente” (Filho e Chaves 2000:71). Como conseqüência de sua concepção mecânica do universo, Descartes valorizou apenas a parte física da realidade. Ele ignorou a dimensão moral e reduziu a experiência sensorial à Mecânica e à Geometria. O foco da ciência passou a ser tudo o que é quantificável, que resulta ser o que ele chamou de “qualidades primárias” da realidade. Com sua premissa Cogito ergo sum (Penso, logo existo), Descartes desenvolveu seu método analítico, que consiste em decompor certa realidade, problema ou pensamento em todas suas partes constitutivas, para recompô-la em um processo semelhante à desmontagem e remontagem de um relógio. O método de Descartes incluía a combinação de quatro regras: (i) a regra da evidência, que evita os preconceitos e qualquer precipitação, para acolher apenas idéias claras e distintas; (ii) a regra da análise, sob a qual os problemas devem ser divididos no maior número possível de partes para melhor resolvê-los; (iii) a regra da síntese, que distingue as verdades mais simples das mais complexas, o que presume a ordenação das partes segundo o critério da relação constante entre elas de modo que possam ser comparadas sempre com base na mesma unidade de medida; e (iv) a regra da enunciação, sob a qual se deve selecionar exclusivamente o que for necessário e suficiente para a solução do problema. A coerência deste conjunto de regras emergiu da visão cartesiana de um mundo mecânico, constituído de partes discretas, a ser descoberto pela Física: “Toda filosofia é como uma árvore. As raízes são a Metafísica, o tronco é a Física e os ramos são todas as demais ciências” (Capra 1982: 63). De Souza Silva, José O dia depois do desenvolvimento 10 Com seu método analítico—reducionista, mecanicista, racionalista—Descartes descontextualizou o próprio contexto da prática científica. Como conseqüência, descontextualizou todas as decisões e ações derivadas dos resultados da pesquisa científica. Isaac Newton (1643-1727) O golpe final da Revolução Científica à visão de mundo e ao pensamento dos “antigos” foi dado por Isaac Newton: a Lei da Gravitação Universal. O universo Newtoniano é um sistema mecânico que funciona segundo leis matemáticas exatas, sob a influência determinante da força da gravidade. Esta Lei natural explica e sustenta o padrão dos movimentos dos corpos celestes. No entanto, temendo o poder da Igreja, Newton explicava que esta máquina perfeita implicava na existência de um criador externo, o Deus monárquico que governava o mundo a partir do alto, impondo-lhe a Lei divina. Porém, ele não falava que os fenômenos físicos eram divinos e, pouco a pouco, o divino foi desaparecendo de seus escritos até que foi criado um vazio espiritual em sua ciência mecânica. Desapareceu o Deus celestial, ficando os monarcas terrenais administrando o mundo-máquina de Newton. Com Newton, o método cartesiano se transformou em sinônimo de método científico. Os aportes da Física Mecânica foram aperfeiçoados e sintetizados do sistema de Copérnico à racionalidade de Descartes. As leis mecânicas para a consagração do mundo-máquina foram institucionalizadas e canonizadas em equações matemáticas. Newton finalizou a “substituição da antiga imagem de um mundo qualitativo, orgânico, limitado e religioso, herdado dos Gregos e canonizado pelos teólogos da Igreja, por outro mundo, quantitativo, mecânico, infinitamente grande, ilimitado e dessacralizado” (Carvalho 1991:48, 49). Ele desenvolveu uma formulação matemática da concepção mecânica da natureza, em uma impressionante síntese das obras de Copérnico, Kepler, Galileu, Bacon e Descartes. Criou um método novo—Cálculo Diferencial—para descrever o movimento dos corpos sólidos, e foi muito brilhante realmente quando unificou a experimentação sistemática de Bacon, o método indutivo, com a análise matemática de Descartes, o método dedutivo. Segundo Isaac Newton, tanto os experimentos sem interpretação sistemática como a dedução a partir de princípios sem evidência experimental não conduziam a uma teoria confiável. Uma vez que a visão mecânica de mundo foi consolidada “cientificamente” no século XVIII, a Física se transformou naturalmente na referência para todas as ciências. Se o mundo é uma máquina e funciona como tal, para melhor entendê-lo e descobrir como ele funciona basta recorrer à Física mecânica de Newton (Capra 1982), para a qual omundo-máquina existe de forma independente da história e do contexto. Como conseqüência da síntese newtoniana, a Física Mecânica se tornou o verdugo racionalista que, com golpes matemáticos e geométricos precisos, exterminou a história e o contexto da paisagem científica, des-historializando e descontextualizando a existência. Quando a Física de Newton foi institucionalizada como o paradigma a ser emulado pelas demais ciências, a natureza e dinâmica de todos os campos do conhecimento passaram a responder às suas premissas, descontextualizando tudo com seu “toque” matemático e geométrico. Outras idéias relevantes O espaço do documento não comporta uma exploração profunda nem mais ampla de outros pensadores que contribuíram diretamente à Revolução Científica, o que já foi realizado por outros autores (Bernal 1971; Shapin 1998). Nem há espaço para incluir atores que contribuíram para a consolidação, aperfeiçoamento e disseminação das idéias essenciais da referida revolução. Mas, De Souza Silva, José O dia depois do desenvolvimento 11 devemos citar três, pela importância de suas contribuições a características do paradigma clássico de inovação em outras áreas de interesse para o tema abordado aqui. Este é o caso de John Locke, August Comte e Frederick W. Taylor. Locke contribuiu à ciência política (ou à Arte do Estado), Comte às ciências sociais e Taylor à ciência da administração. John Locke (1632-1704) A teoria de Newton do universo e o enfoque racional dos problemas humanos tiveram impacto tão grande nas classes medias do século XVIII que o período de sua influência foi chamado de Iluminismo, a era da Ilustração, era das luzes. Um dos atores mais influentes desta era foi o Filósofo britânico John Locke, adepto fervoroso do pensamento de Descartes e Newton, a partir do qual desenvolveu uma concepção atomística da sociedade, descrevendo-a em termos de seu componente básico, o ser humano individual, átomo social. Locke reduziu os padrões observados na sociedade ao comportamento dos indivíduos. A análise da natureza humana de Locke foi derivada do pensamento do Filósofo Thomas Hobbes para quem a percepção sensorial é a base do conhecimento. Inspirado nesta teoria, John Locke propôs a metáfora da Tabula Rasa para comparar a mente humana, em seu nascimento. Como uma Tabula Rasa, onde nada existe ao início, a mente humana “grava” o conhecimento adquirido através da experiência sensorial. Locke estava também convencido de que as leis da natureza governavam a sociedade humana, leis semelhantes às que governavam o universo físico. Suas idéias foram a base do pensamento do movimento da Ilustração e tiveram influência no desenvolvimento do pensamento econômico e político. Os ideais de individualismo, mercados livres, governos representativos e direito de propriedade, que são atribuídos a ele, influenciaram o pensamento de Thomas Jefferson e estão refletidos na Declaração de Independência e na Constituição dos Estados Unidos (Capra 1982). August Comte (1798-1857) Como observador interessado em manter a ordem burguesa vigente, Comte criou uma corrente de pensamento denominada Positivismo, a tradição filosófica que monopolizou a consolidação de certas premissas essências da ciência moderna, estendendo a influência do regime de verdades de seu paradigma clássico de inovação ao âmbito das relações humanas, condicionando o desenvolvimento das ciências sociais. Sua proposta de uma nova filosofia e de uma reforma na ciência tinha como objetivo sustentar ideologicamente o poder conquistado pela classe burguesa. Para Comte, o conhecimento é baseado na observação dos fatos e nas relações entre eles. Estas relações são as descrições das leis que regem o fenômeno. O conhecimento só é possível quando se observa o concreto, de forma objetiva e neutra. Somente o que pode ser comprovado por meio da experiência é considerado científico. Os termos “útil”, “certo”, “positivo” e “neutro” descrevem certas qualidades do conhecimento “produzido” sob a filosofia de Comte (Filho e Chaves 2000). Segundo Comte, as ciências deveriam usar um método único, o método positivo. Neste método, o rigor metodológico, a estandardização das condições da experimentação, a possibilidade da repetição das experiências, a neutralidade científica baseada na objetividade (o abandono da subjetividade), a definição operacional do “objeto” de pesquisa, a ordenação e precisão dos dados, tudo era condição sine qua no para a prática correta da pesquisa científica. Comte assumiu a ordem natural como referência para o estudo da sociedade, que chamou Física Social e que, depois, foi denominada Sociologia. Para Comte, a sociedade é regida pelas mesmas leis universais, naturais, mecânicas, invariáveis e independentes da vontade humana, e pode ser estudada pelos mesmos métodos empregados pelas ciências da natureza. Ele queria ver na sociedade a mesma ordem imutável que percebia na natureza. Obcecado pela ordem social, Comte contribuiu à institucionalização da idéia de De Souza Silva, José O dia depois do desenvolvimento 12 progresso vinculada à questão da ordem. Acreditava que somente através da ordem era possível o progresso, e v ice-versa. “Ordem e Progresso” foi o lema que Comte criou para seu movimento filosófico. O positiv ismo foi tão disseminado e seu impacto tão profundo e duradouro que seu lema—Ordem e Progresso— ficou institucionalizado na Bandeira do Brasil. A idéia de progresso está associada à imagem de uma linha contínua, como um rio seguindo seu curso sempre adiante, rumo à perfeição onde mais é sinônimo de melhor. A idéia de progresso assume que uma civ ilização se move rumo a um modelo perfeito de vida em sociedade onde o maior número de indivíduos é feliz. No entanto, Comte e seus seguidores nunca responderam satisfatoriamente às perguntas: Que é a felicidade? Pode o progresso assegurar a felicidade? Os positivistas que tentaram fazê-lo igualaram a maior felicidade ao maior conforto material e ao maior acesso ao progresso tecnológico. Frederick Winslow Taylor (1856-1915) Taylor não foi um filósofo, não foi um cientista, não participou da Revolução Científica nem contribuiu à sua consolidação. Porém, ele foi instrumental para a penetração de algumas das premissas—verdades—da referida revolução no campo da administração, com efeitos profundos na pesquisa e na educação, e principalmente na administração de fábricas e, depois, na gestão de organizações (privadas e púbicas), e de programas e projetos de “desenvolvimento”. Ele era muito interessado na gestão eficiente da produção industrial e no controle preciso dos obreiros, seus corpos e seus movimentos. Em 1872, Taylor realizou uma viagem à Europa para conhecer os métodos de administração das fábricas industriais e principalmente para familiarizar-se com as idéias e o pensamento em ascensão da ciência moderna, positivista. O mais atrativo para ele foi a metáfora do mundo- máquina construída e cultivada por grandes nomes da ciência ocidental, como René Descartes, do qual foi um admirador fanático, principalmente de seu método analítico. Em 1909, ele realizou uma conferência na Escola de Negócios da Universidade de Harvard onde comparou seu método de pesquisa a uma organização militar, que para ele era a instituição que mais se aproximava do ideal da organização-máquina. Seus princípios da administração científica, resultantes de seu método cartesiano de pesquisa e gestão, representam a penetração das premissas da ciência moderna, e de suas verdades sobre a natureza e sua dinâmica, assim como sobre o ser humano, a sociedade e suas instituições, no mundo da administração pública e da gestão privada.Sua influência continua através de modelos racionalistas de gestão disfarçados sob novas etiquetas que hoje estão de moda: planejamento estratégico, reengenharia e qualidade total (Boje e Winsor 1993). A promessa da administração científica era controlar com precisão matemática o trabalho dos obreiros industriais em particular e as empresas em geral. Taylor cultivou a razão instrumental que se manifestava em sua fé na eficiência, tecnificação do planejamento, organização dos fatores de produção e a divisão do trabalho entre os que planejam e decidem e os que devem só executar. Refém da visão mecânica da realidade, herdada da ciência moderna, Taylor percebia aos obreiros como autômatos biológicos. No Congresso dos Estados Unidos lhe perguntaram seu conceito do trabalhador ideal, aquele que preencheria todos os requisitos dos princípios de sua “administração científica”. Comte respondeu assim: “Meu conceito do trabalhador ideal é o de ‘homem boi’, forte, submisso e estúpido: forte para produzir muito, submisso para cumprir ordens sem questioná-las, e estúpido para não perceber que é sobre-explorado. Ademais, o ‘homem boi’ é tão estúpido que não se presta para outro tipo de serviço” (De Souza Silva 2007:36). De Souza Silva, José O dia depois do desenvolvimento 13 Portanto, o paradigma clássico da ciência moderna emerge principalmente da articulação da realidade matemática e geométrica de Galileu, do utilitarismo e empirismo mecanicista de Bacon, do racionalismo e reducionismo mecanicistas de Descartes, da Física do mundo-máquina de Newton e da ciência objetiva, neutra e positiva de Comte. No campo do desenvolvimento, pode- se adicionar para o caso da educação a Tabula Rasa de Locke, que descontextualizou a realidade educativa do processo pedagógico, e o conceito de “homens bois” de Taylor que, transformado em “recursos humanos”, descontextualizou as histórias de vida de educadores e educandos. Dada a natureza dos referidos aportes, pode-se agora imaginar a natureza do paradigma clássico e de suas contribuições à educação, que foi des-historializada e des-contextualizada. O paradigma clássico de inovação da ciência moderna Se queremos compreender a natureza das contribuições do paradigma clássico de inovação da ciência moderna à educação que temos, é imprescindível entender o que é um paradigma. A maioria dos profissionais e dos educadores nem sequer está consciente de que a natureza e dinâmica de sua prática são influenciadas por verdades que o paradigma clássico instituiu sobre o que é a realidade e como esta funciona, no caso, sobre a natureza e dinâmica da educação em geral e do processo de aprendizagem em particular. Se certas verdades ontológicas, epistemológicas, metodológicas e axiológicas de um paradigma definem a natureza e dinâmica da realidade, o paradigma clássico de inovação, que emergiu durante a Revolução Científica dos séculos XVI e XVII, influenciou também o significado da idéia de progresso, da idéia de desenvolv imento, da “idéia de semi-árido” e do conceito e da prática da educação. Mas, o que é um paradigma? Paradigma: o conceito e suas dimensões constitutivas Depois da publicação em 1962 de A Estrutura das Revoluções Científicas, de Thomas Khun, um Físico, Filósofo e Historiador da Ciência, o conceito de paradigma ganhou imensa popularidade ao transcender as fronteiras do imaginário científico e invadir os imaginários técnico e social. Em termos gerais, um paradigma (Khun 1970) é um marco que articula uma constelação de “regras” para influenciar a forma de ser, sentir, pensar, fazer e falar de uma comunidade de seguidores. Para Khun, um paradigma científico define para a comunidade de seus seguidores os valores culturais a compartilhar, os temas relevantes a pesquisar, as perguntas críticas a responder, as teorias apropriadas a adotar, as regras metodológicas a seguir, os exemplos paradigmáticos de pesquisas já realizadas a emular e até a natureza dos resultados a lograr. Sob estas condições, ocorre o que Khun chama ciência normal, quando a coerência do conhecimento gerado está em correspondência com as premissas constitutivas do paradigma, e a dinâmica de seu avanço é de caráter acumulativo. Porém, cedo ou tarde, anomalias nos resultados de pesquisa emergem em contradição com uma ou mais premissas orientadoras do paradigma. I sso deflagra uma crise irreversível do paradigma, que perde sua credibilidade como fonte de inspiração e orientação, como ocorreu com o paradigma geocêntrico da astronomia, quando certos resultados mostraram que a Terra não era fixa nem o centro do universo. Este foi o paradigma desafiado e superado pelo paradigma heliocêntrico de Copérnico. Esta crise gera o que Khun denomina revolução científica, que transforma o pensamento científico dominante e abre espaço para a construção de outros candidatos a paradigma, um dos quais, em competição com os demais, substituirá àquele no qual a comunidade científica perdeu a confiança. Apesar de que Khun atribui excessiva autonomia à comunidade científica no processo político de substituição de paradigmas, ignorando a influência da sociedade nestas matérias, sua teoria é robusta e consegue demonstrar que o avanço do conhecimento científic o não é acumulativo e De Souza Silva, José O dia depois do desenvolvimento 14 que os paradigmas não são eternos. Rupturas e emergências caracterizam melhor a história paradigmática do conhecimento científico em qualquer campo. Um paradigma é construído a partir de uma visão de mundo—concepção de realidade que é a fonte de coerência das verdades que este propõe para explicar a natureza e dinâmica da realidade. O conjunto dessas verdades é a lente cultural através da qual indivíduos, famílias, comunidades, grupos sociais, sociedades e até civilizações inteiras interpretam a realidade e nela atuam para transformá-la. Se uma premissa é uma crença, e uma crença é uma verdade que não necessita ser demonstrada, uma visão de mundo é um regime de verdades sobre o que é e como funciona a realidade. Então, derivado de uma visão de mundo, um paradigma é o meio através do qual uma concepção de realidade é implementada em sua plenitude. Todo candidato a paradigma concebe verdades na forma de respostas a perguntas críticas que estão vinculadas às dimensões—ontológica, epistemológica, metodológica e axiológica—que o constituem: • Dimensão ontológica. Refere-se à natureza da realidade; a pergunta crítica a responder é: que é a realidade? Perguntas como, Que é o semi-árido?, Que é ser Sertanejo no SAB, Que é a educação, Que é saúde e Quem sou Eu?, são perguntas de caráter ontológico. • Dimensão epistemológica. Refere-se à natureza do conhecimento e do processo para sua geração e apropriação; a pergunta crítica a responder é: que é relevante conhecer na realidade, através de que processo? • Dimensão metodológica. Refere-se ao método e à natureza do indagar (à natureza do diálogo com a realidade que se quer conhecer); a pergunta crítica a responder é: como conhecer o que é relevante conhecer na realidade? • Dimensão axiológica. Refere-se a valores éticos e estéticos e à natureza da intervenção; a pergunta crítica a responder é: que valores éticos e estéticos devem prevalecer na intervenção para conhecer o que é relevante conhecer na realidade? Para o paradigma clássico da ciência moderna, a fonte de coerência para suas respostas a estas perguntas críticas, a que todos os candidatos a paradigma devem responder, é a visão mecânica de mundo que o inspira, construída na Revolução Científica dos séculos XVI e XVII. Nesta visão, o universo é uma engrenagem perfeita, o mundoé uma máquina regular, precisa e objetiva, que pode ser conhecido, controlado e traduzido à linguagem matemática, sem nenhuma alusão à história ou ao contexto, à subjetividade ou à emoção, e muito menos ao potencial transformador da experiência humana sobre sua realidade, através de outras percepções, decisões e ações. É a partir de premissas como estas que o perfil do paradigma clássico da ciência ocidental pode ser delineado para revelar suas profundas implicações para a educação descontextualizada que hoje prevalece na maioria dos países da África, América Latina e Ásia. O perfil do paradigma clássico da ciência moderna e a emergência da educação descontextualizada “O problema do ‘modo [paradigma] clássico’ de inovação não é…sua origem européia, mas sim o fato de que, sendo uma concepção particular, desenvolvida desde certo lugar, por certos atores e em certos idiomas, haja sido imposto a todos como o único modo possível para a inovação para o desenvolvimento. [...] Se o ‘modo clássico’— eurocêntrico—não resultou...satisfatório para promover o bem-estar inclusivo, chegou a hora de inovar nossa forma de inovar” (Escobar 2005:18, 19) “Para Descartes como para Newton, o universo material é como uma máquina na qual não há vida, nem telos, nem mensagem moral...só movimentos e coisas ensambladas De Souza Silva, José O dia depois do desenvolvimento 15 que podem explicar-se de acordo com a disposição lógica de suas partes. Não só a natureza física, mas também os homens, as plantas, os animais são vistos como meros autômatos, regidos por uma lógica mecânica. Um homem enfermo equivale...a um relógio descomposto, e o grito de um animal ferido não significa mais do que o ruído de uma roda sem óleo lubrificante” (Castro-Gómez 2007: 82, 83). O perfil de um paradigma emerge de suas respostas às perguntas vinculadas às suas dimensões ontológica, epistemológica, metodológica e axiológica. O paradigma clássico da ciência moderna manteve o monopólio das respostas às referidas perguntas, construídas durante a Revolução Científica e instituídas como as únicas válidas a partir da Revolução Industrial que o capitalismo emergente estabeleceu para sua expansão. Os demais paradigmas específicos foram concebidos refletindo as premissas do paradigma clássico da ciência moderna incorporado à realidade da indústria capitalista em ascensão. Estes paradigmas foram amplamente aplicados a todos os campos do conhecimento e todas as esferas da experiência humana, como referência para sua compreensão do que é a realidade e como esta funciona. O monopólio das respostas instituídas pelo paradigma clássico foi assegurado por uma única tradição filosófica, o Positivismo, para a qual “só existe uma ciência”, aquela que aplica “o método científic o”, o único capaz de gerar conhecimento objetivo e válido para todas as realidades. As respostas do paradigma clássico às perguntas paradigmáticas, que persistiram nos últimos séculos, mas que já não têm o monopólio da verdade, são as seguintes: • Que é a realidade? A realidade—o mundo—é uma máquina constituída de partes; para conhecer o todo basta desmontá-lo em suas partes constitutivas, até conhecer todas elas, inclusive a menor de todas (o átomo, no caso do universo, o gene no caso da vida), para remontá-lo ou reconfigurá-lo. A realidade concreta—objetiva—é como um relógio; pode ser decomposta para ser conhecida, e recomposta para ser controlada e manejada. Esta resposta des-historializa y descontextualiza a realidade em geral e a experiência humana em particular. Por exemplo, nesta percepção, tanto as políticas públicas quanto a educação são concebidas de forma abstrata, desvinculadas da diversidade, diferenças e contradições constitutivas da complexidade das múltiplas realidades locais em qualquer continente, região, pais, município ou comunidade. • Que é relevante conhecer na realidade? Existe apenas uma realidade concreta, objetiva. Nesta realidade fixa e independente, o relevante é conhecer as leis—naturais, universais, mecânicas, imutáveis—que regem seu funcionamento, através de um processo de decomposição do todo para que suas partes sejam sistematicamente analisadas, e suas relações traduzidas à linguagem matemática. O conhecimento da realidade é objetivo porque sua “produção” é inspirada em leis naturais e orientada pelo método científico. Estas leis e método condicionam a natureza da pesquisa e de sua gestão, para assegurar sua objetiv idade e neutralidade. A essência desta resposta é que, se as leis que regem o funcionamento da realidade são universais, as histórias e diferenças locais eclipsam sob o efeito homogeneizador das referidas leis, insensíveis à complexidade da realidade. • Como conhecer o que é relevante conhecer na realidade? A realidade objetiva é também independente da percepção humana. O método ideal para conhecer a realidade é aquele que separa o pesquisador do “objetivo” de pesquisa, para evitar que valores e interesses humanos “contaminem” a descrição da realidade como ela realmente é. Além disso, o método científico deve separar o “objeto” de pesquisa do seu “contexto”. O contexto é uma inconveniência, por possuir mais variáveis do que as que devem ser analisadas na relação causa-efeito. Como para cada efeito só há uma causa, onde A causa B, sempre em um só sentido, da causa ao efeito, o que se necessita é de uma hipótese sobre que causa o que, para isolar ambas variáveis e analisar o efeito e sua causa, em um lugar absolutamente controlado para estudar, manejar, descrever e controlar suas relações de De Souza Silva, José O dia depois do desenvolvimento 16 forma sistemática. A interação entre o pesquisador com atores humanos e não-humanos do contexto de pesquisa é uma inconveniência; os atores humanos podem contaminar os resultados com seus valores, enquanto o contexto pode alterar os resultados com a presença de variáveis que não participam da relação simples de causa-efeito. Esta dupla separação tenta realizar duas proezas absolutamente impossíveis. Por um lado, tenta separar o pesquisador do contexto da pesquisa, a realidade da qual ele passa a ser parte constitutiva no momento que começa a pensá-la para atuar sobre ela com seu método de observação, com seu modo de intervenção para indagá-la e com seu marco cultural de referência para descrevê-la. Por outro lado, o método tenta separar o problema estudado do contexto que o gerou. Mas é o contexto que o faz emergir e expressar-se de certa forma e não de outra, contexto este do qual é parte constitutiva, e que também oferece “pistas” para distinguir entre opções de solução aquela cuja coerência estará em maior grau de correspondência com as circunstâncias históricas, materiais, culturais, socioeconômicas, políticas, ecológicas, institucionais e éticas locais. • Que valores—éticos e estéticos—devem prevalecer na intervenção para conhecer o que é relevante conhecer na realidade? A dimensão axiológica é totalmente desnecessária na prática científica. O método científico faz uma “assepsia” político-ideológica no processo de pesquisa para afastar os valores e interesses humanos que podem contaminar seus resultados. Igualmente, o método científico evita que o contexto contamine o “objeto” de pesquisa ao evitar a intromissão de variáveis que não participam da relação simples de causa-efeito. O contexto é reduzido às variáveis indicadas na hipótese científica. Em um lugar absolutamente controlado, descontextualizado, só as relações entre as variáveis propostas pela hipótese científica são controladas e sistematicamente analisadas sob a aplicação meticulosa e precisa de certos procedimentos metodológicose instrumentos científicos. A resposta indica que a pesquisa científica dispensa discussão sobre valores. Na concepção positivista da ciência, o método científico esteriliza qualquer vestígio de vida humana e não-humana, já que as plantas, os animais e até os seres humanos são percebidos como máquinas bioquímicas. Por isso, os “objetos” de pesquisa prescindem de atenção ou de preocupação ética, já que o contexto axiológico inexiste em um mundo vazio de valores, de sonhos, de desejos, de paixões, de decepções, em fim, de emoção. Concebidas no ventre da metáfora do mundo-máquina, as respostas do paradigma clássico às perguntas paradigmáticas compartilham a visão do universo como uma engrenagem perfeita; a universalidade do conhecimento científico; a existência de leis naturais, mecânicas e imutáveis que regem o funcionamento da natureza e da sociedade; a hierarquia constitutiva da ordem natural; o mecanicismo do funcionamento da realidade; o reducionismo “natural” do processo analítico que estuda apenas as partes da realidade; e a singularidade, objetividade e neutralidade do conhecimento “produzido” a partir da aplicação disciplinada do método científico. Nesta ordem de coisas, conclui-se que o paradigma clássico de inovação da ciência moderna se apresenta como universal em suas possibilidades, é mecânico na sua abordagem da dinâmica da realidade e reivindica ser neutro quanto aos seus impactos. Sua racionalidade instrumental elimina a relevância da história, contexto, complexidade, diversidade, diferenças, contradições, emoção, em fim, tudo vinculado à subjetividade, à espiritualidade. O humano, o social, o cultural, o ecológico e o ético estão ausentes do foco do referido paradigma; o que não é quantificável não existe, não é verdade ou não é relevante. Portanto, não deve constituir surpresa a resultante descontextualização de tudo que é penetrado, influenciado ou condicionado pelo paradigma de inovação da ciência moderna, desde a concepção de políticas até a execução de projetos, da formulação de programas educativos até a execução de estratégias pedagógicas. Porém, no contexto mais amplo da crise da civilização ocidental, tudo está sob questionamento, suas instituições, seu modelo cultural, seu sistema capitalista (Wallerstein 1999), sua idéia de De Souza Silva, José O dia depois do desenvolvimento 17 progresso (Dupas 2006), sua idéia de desenvolvimento (Attali et al. 1980), sua ciência (Restivo 1988) e seu método científico (Feyerabend 1975), seus modelos de gestão (Boje et al. 1996) e sua educação, criticada por Paulo Freire. Depois de cinco séculos da idéia de progresso e seis décadas da idéia de desenvolvimento, a humanidade nunca este tão desigual e o planeta tão vulnerável. É sob estes e outros questionamentos graves que os significados da contribuição do paradigma clássico da ciência moderna à educação devem ser interpretadas. Mas, para explorar o processo de descontextualização da realidade em geral e da educação em particular, é critico compreender a geopolítica do conhecimento que revela a gênese histórica, intenção política e origem epistémica da dicotomia superior-inferior. Esta foi estrategicamente disfarçada na idéia de progresso durante o colonialismo imperial, através do binômio civilizados- primitivos, e camuflada na idéia de desenvolv imento durante o atual imperialismo sem colônias, iniciado depois da Segunda Guerra Mundial, através do binômio desenvolvidos-subdesenvolvidos. A geopolítica do conhecimento, a idéia de progresso/desenvolvimento e a descontextualização da realidade, desde 1492 “A história do conhecimento está marcada geograficamente...tem um valor e um lugar de origem [...] Os conhecimentos [produzidos] na África, América Latina ou Ásia não são...sustentáveis. O conhecimento, como a economia, está organizado em centros de poder e regiões subalternas...Não devemos pensar que o que vale como conhecimento está em certas línguas e chega de certos lugares. A geopolítica do conhecimento [impede] que o pensamento seja gerado em outras fontes [...] O pensamento crítico... deve ser um processo de descolonização intelectual [para] contribuir à descolonização de outras áreas, ética, econômica e política” (Mignolo 2003: 1, 2, 3, 23). “O nativo dessas bandas [Semi-Árido Brasileiro], batizado depois de índio, se utilizava dessas extensas áreas de terras, ao seu modo e sob sua forma que considerava mais adequada para...seu povo e...sua terra. A sabedoria indígena veio de seu aprendizado com a rica flora e fauna que a cobria e a habitava, pois nela e dela se consolidou um povo apegado ao lugar [seu território, seu contexto]...” (Costa 2010 ). “O neocolonialismo é um aperfeiçoamento do antigo sistema. Continua a dependência dos países periféricos em relação aos países centrais, cujo poder emana, não da força de suas armas, mas da pujança de suas economias e, sobretudo, da sua supremacia tecnológica e financeira [...] Alem disso, impõem padrões comportamentais e culturais estranhos aos países dependentes” (Ribemboim 2002:69, 70). “No futuro, as raças civilizadas quase certamente exterminarão e substituirão as raças selvagens em todo o mundo” (Darwin 2000:33) “[...] O mais forte não o será jamais bastante, para ser sempre amo e senhor, se não transforma sua força em direito e a obediência em dever” (Rousseau 1985:95). Rousseau reconhece, no Contrato Social, que o mais forte não está satisfeito em ser apenas o mais forte em sua relação com o mais débil. Ele institucionaliza relações assimétricas de poder para criar seu direito à dominação e estender ao subalterno a obrigação da obediência. O direito do mais forte há sido a fonte de inspiração mais efetiva do discurso, regras, papéis, arranjos, significados e práticas institucionais que estabeleceram as desigualdades globais desde 1492 (Dussel 1992; Escobar 1998, Mignolo 2000, 2003). A etnografia institucional investiga os vínculos entre a experiência social cotidiana e os processos trans-locais que organizam e coordenam esta experiência como parte dos dispositivos de poder— relações e práticas institucionais de controle-comando-dominação—da sociedade (Smith 1987; Brooks 1994; Campbell e Gregor 2002). Nesta perspectiva, a institucionalização internacional da desigualdade incorporou a América Latina desde o final do século XV, quando impérios da Europa De Souza Silva, José O dia depois do desenvolvimento 18 ocidental invadiram o que denominaram Novo Mundo com a estratégia de dominação para a exploração que instituiu seu imaginário para “naturalizar” sua superioridade e a inferioridade do Outro (Dussel 1992; Quijano 2000, 2007). A estratégia materializou-se na dicotomia superior-inferior—civilizados-primitivos—que viabilizou o projeto político-ideológico-epistêmico da Europa ocidental para criar uma ordem política, econômica e militar conveniente aos seus interesses globais e à sua ambição expansionista. A institucionalização da dicotomia superior-inferior implicou na emergência da colonialidade do poder, colonialidade do saber e colonialidade do ser6, absolutamente críticas para a criação, consolidação e sustentabilidade do sistema-mundo—moderno/colonial—capitalista a partir de 1492 (Lander 2000; Mignolo 2007). Desde então, a natureza e dinâmica das relações ciência- tecnologia-sociedade-inovação (CTSI) foram influenciadas pela colonialidade do poder, do saber e do ser (Castro-Gómez e Grosfoguel 2007). A colonialidade do poder (Quijano 2007) expressa uma estrutura global de poder criada pelo colonizador para controlar a subjetividade dos povos colonizados. A invasão do imaginário do Outro e sua ocidentalização se deu atravésdo discurso—moderno/colonial—que tenta destruir o imaginário do Outro ao mesmo tempo em que reafirma o próprio. O centro de seu núcleo ideológico está na idéia de raça. Existem raças superiores e raças inferiores, o que dá à raça superior o direito à dominação e exige das raças inferiores a obrigação da obediência, conforme o direito do mais forte criticado por Rousseau em sua pesquisa para escrever O Contrato Social. Na antiguidade, existia uma visão tripartite do mundo—África, Ásia e Europa—na qual a Europa aparece como uma cultura superior, visão esta reforçada pelo relato cristão da Idade Media que menciona uma Europa povoada pelo bom Jafé, o filho abençoado de Noé. Por isso, o discurso do colonialismo incluiu a América como uma extensão da Europa, ainda que inferior, para legitimar a “civilização” e “cristianização” deste continente. Com o discurso da pureza de sangue na Espanha do século XIV, emergia a primeira classificação social da população mundial, que ao início do século XVI inclui a união de cor e raça, e permite comparar para justificar certos modos de vida. Na geografia social do sistema capitalista emergente, nasce uma divisão racial do trabalho na qual a escravidão é a ocupação exclusiva do negro, a servidão é a ocupação obrigatória do índio e o trabalho assalariado é quase um monopólio do branco. O Estado gerencia a colonialidade do poder, da qual é também constitutivo. Em síntese, a colonialidade do poder é uma estrutura hegemônica global de poder e dominação que articula raça, trabalho, espaços e pessoas, de acordo com as necessidades do capital e para o benefício da raça superior. A colonialidade do saber (Lander 2000; Mignolo 2007) é uma geopolítica do conhecimento cuja hegemonia epistemológica surge do singular poder de dar nome pela primeira vez, criar fronteiras, decidir quais conhecimentos e comportamentos são ou não legítimos, e estabelecer uma visão de mundo dominante. E sta concepção é imposta aos colonizados para subalternizar suas culturas e suas línguas, o que é violência epistemológica para os que têm seu imaginário invadido e eventualmente destruído. Para isso, inventaram a ciência ocidental com o objetivo de criar uma justificativa científica do mundo e sua dinâmica, a partir da visão do colonizador (Blaut 1993). Também para comparar os modos de vida das várias raças, para justif icar a missão das superiores de “civilizar”—ocidentalizar—às raças inferiores. A ciência da Europa foi criada para viabilizar o capitalismo através de inovações tecnológicas para transformar a realidade material e de inovações institucionais, sociais e políticas convenientes para os interesses globais do capitalismo emergente e da ambição expansionista dos impérios da Europa ocidental. 6 Os conceitos de colonialidade do poder, colonialidade do saber e colonialidade do ser foram desenvolvidos por pensadores desobedientes da América Latina que integram o Grupo Latinoamericano de Pesquisa sobre a Modernidade/Colonialidade. Seu pensamento foi analisado e sintetizado por Escobar (2003) e Pachón-Soto (2007a), e pode ser encontrado atualizado pelo próprio grupo em Castro-Gómez e Grosfoguel (2007). De Souza Silva, José O dia depois do desenvolvimento 19 Apoiados na razão e na experimentação, os cientistas querem ser Deuses. A natureza pode ser controlada quando expressada matematicamente na forma de leis universais. As ciências sociais podem decifrar as leis naturais do funcionamento da sociedade e suas instituições. A legitimação científica do mundo surge de um ponto de vista supostamente universal, objetivo e neutro, que Santiago Castro-Gómez conceitua como a hybris do ponto zero: “localizar-se no ponto zero é o começo epistemológico absoluto. Equivale a ter o poder de instituir, de representar, de construir uma visão sobre o mundo social e natural reconhecida como legítima e avalizada pelo Estado” (Castro-Gómez 2005:25). O cânon, o molde, o modelo, o padrão, o paradigma, em fim, o centro civilizado do mundo é Europa, superior, enquanto o resto é sua periferia, inferior. Para legitimar a superioridade de uns e estabelecer a inferioridade de outros, os impérios da Europa ocidental contaram com filósofos, como Kant, e com cientistas, como Linnaeus, que emprestaram sua credibilidade científica e competência epistemológica à iniciativa imperial de classificação social da humanidade a partir do critério de raça: “Gênero original: branco; Primeira raça: ...louro de frio úmido (Europeus); Segunda raça: vermelho cor de cobre (Americanos [indígenas]), de frio seco; Terceira raça: negra (Africanos) de calor seco; Quarta raça: amarelo cor de oliva (Índios [asiáticos]) de calor seco. Em países cálidos o ser humano amadurece primeiro, mas não alcança a perfeição das zonas temperadas. A humanidade existe em sua maior perfeição na raça branca. Os negros são inferiores, mas os mais inferiores são os povos americanos [indígenas]. Os...amarelos são os que têm menor talento”7. “Karl Von Linnaeus...famoso catalogador de nosso conhecimento do mundo natural enumerou quatro importantes e originais grupos humanos...os Europeus, governados com base em leis, os americanos governados por meio de seus costumes, os asiáticos governados pela opinião, e os africanos governados com base no contingente e no arbitrário” (Mendieta 1998:148). A colonialidade do ser (Maldonado-Torres 2007) é a dimensão ontológica da colonialidade que se afirma na violência da negação do Outro. O ser europeu, superior, é um ser excludente, que não inclui a experiência colonial da não-Europa. A certeza do Ego conquiro (Eu conquisto) do conquistador (Dussel 1992) precede a certeza do Ego cogito de Descartes. Como disse Fanón: “Não basta ao colono limitar o espaço do colonizado; o colono faz do colonizado a quinta essência do mal. O colonizador desfigura e deforma o imaginário do colonizado” (Fanón 2003: 35, 36). Sob esta racionalidade cruel, os subalternos vivem dominados, sem esperança, com sua vida em perigo constante, sem utopia, sem futuro. A modernidade se consolida como paradigma da guerra, da violência, sob o qual o Outro é descartável, é um mero objeto de domínio, para ser apropriado e explorado (Pachón-Soto 2007a). A colonialidade do ser naturaliza a escravidão e a servidão, legitima o genocídio em nome do progresso (e de Deus) e banaliza a violência, a desigualdade e a injustiça. A colonialidade do ser emerge da colonialidade do poder, gerenciada pelo Estado, e da colonialidade do saber, liderada pela ciência moderna. O ser europeu emerge junto com a invenção do Outro, que pode e deve ser conquistado, domesticado e explorado. A Europa criou a modernidade e seu outro rosto, a colonialidade (Mignolo 2007), se posicionou por cima dela e se auto-proclamou modelo perfeito para a humanidade. O Outro do Novo Mundo (periferia) se encontra na minoria de idade: a incapacidade de servir-se do próprio entendimento sem a tutela de outro. Por exemplo, assim 7 Immanuel Kant em Sobre as Variedades das Diferentes Raças de Homens (De Souza Silva et al. 2006:82; grifo nosso) De Souza Silva, José O dia depois do desenvolvimento 20 pensava Sepúlveda, o contraditor de Bartolomeu de las Casas, quando se referiu aos indígenas da América, e Montesquieu, quando se referiu aos africanos, respectivamente: “com perfeito direito, os espanhóis imperam sobre os bárbaros do Novo Mundo e ilhas adjacentes, havendo entre eles tanta diferença como a que vai de monos a homens” (Sepúlveda, em Pachón-Soto 2007a:16). “Não é concebível que Deus, um ser tão sapientíssimo, haja
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