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Cadernos de Pesquisa do CDHIS
Caderno de Pesquisa do CDHIS Uberlândia, MG n. 40 ano 22 p. 1-174 1º semestre 2009
ISSN 15187640
CADERNOS DE PESQUISA DO CDHIS
REVISTA DO CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO E PESQUISA EM HISTÓRIA – CDHIS
INSTITUTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
Av. João Naves de Ávila, 2121 – Bloco 1Q – CDHIS – Campus Santa Mônica – Uberlândia – MG
Cep 38400-902 – Telefones: (34) 3239 4204 | 4236 | 4240 | 4501
E-mail: cdhis@ufu.br – www.cdhis.ufu.br
EDITORA
Vera Lúcia Puga
COMITÊ EDITORIAL EXECUTIVO
Dulcina Tereza Bonati Borges (UFU/MG)
Ivanilda Aparecida Junqueira (UFU/MG)
Maucia Vieira dos Reis (UFU/MG)
Velso Carlos de Sousa (UFU/MG)
CONSELHO EDITORIAL
Artur César Isaia (UFSC/SC)
Dilma Andrade de Paula (UFU/MG)
Luciene Lehmkuhl (UFU/MG)
Lúcia Lippi (CPDOC/FGV/RJ)
Maria Beatriz Pinheiro Machado (Arquivo Histórico Municipal/Caxias do Sul/RS)
Maria Clara Tomaz Machado (UFU/MG)
Raquel Glezer (USP/SP)
Yara Koury (PUC/SP)
CONSELHO CONSULTIVO
Ana Maria Said (UFU/MG)
Carlos Henrique de Carvalho (UFU/MG)
Jane de Fátima Silva Rodrigues (UNIMINAS/MG)
Mário Anacleto (CECOR/UFMG/MG)
Marcos Antônio de Menezes (UFG/GO)
Maria Cristina Nunes F. Neto (PUC/GO)
Maria de Lourdes de Albuquerque Fávero (PROEDS-UFRJ/RJ)
Newton Dângelo (UFU/MG)
Regma Maria dos Santos (UFG/GO)
Robson Laverdi (CEPEDAL/SC)
Wenceslau Gonçalves Neto (UFU/MG)
Yonissa Marmitt Wadi (UNIOESTE/PR)
DIREÇÃO EDUFU: Humberto Aparecido de Oliveira Guido
TIRAGEM: 1000 exemplares
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da UFU ISSN 15187640
Cadernos de Pesquisa do CDHIS, n. 40, ano 22, 1º Semestre de 2009.
Universidade Federal de Uberlândia, Instituto de História. Centro de Documentação e
Pesquisa em História – CDHIS. Uberlândia, MG: EDUFU.
Semestral
1. Arquivo, Memória, Documento 2. História Local 3. Estudos Históricos.
DIAGRAMAÇÃO
Eduardo Moraes Warpechowski
TÉCNICA EM LÍNGUA INGLESA
Sandra Chaves Gardellari
SETOR DE PUBLICAÇÕES
Dulcina Tereza Bonati Borges
ARTE FINAL
Maria José da Silva
INDEXAÇÕES: LATINDEX (Portal Iberoamericano); SUMARIOS (http://www.sumarios.org)
Apresentação ................................................................................................................................ 5
K A R Q U I V O , D O C U M E N T O E M E M Ó R I A J
Usos do passado e arquivos: questões em torno da pesquisa histórica ..................................... 9
Paulo Knauss de Mendonça
K A R T I G O S J
Nas margens da política: trajetória, narrativa e mediação na
Baixada Fluminense (RJ/Brasil) ............................................................................................... 17
Alessandra Siqueira Barreto
O problema da compilação na cronística medieval portuguesa do limiar
do século XVI (Rui de Pina) .................................................................................................... 33
Leandro Teodoro Alves
Manutenção da ordem: (re)contextualização de tópicas mitológicas à luz de uma economia 
cristã. ......................................................................................................................................... 41
Cleber Vinícius do Amaral Felipe
Ética e Sociedade Afluente: intelectuais e a agenda para uma esquerda reformista .............. 59
Daniel de Pinho Barreiros
As características da experiência socialista na agricultura de Angola após a independência .... 69
Rodrigo de Souza Pain
Ivan Arruda
Entre preconceitos, vitimização e incapacidade: os deficientes e as imagens que
reforçam a segregação social .................................................................................................... 79
Eliete Antônia da Silva
O cinema como registro. Cenas de violência e gênero no documentário brasileiro ............... 93
Renata Soares da Costa Santos
As recepções do filme Macunaíma pela crítica Ely Azevedo ................................................. 105
Leandro Maia Marques
Sumário
K D O S S I Ê : E N S I N O D E H I S T Ó R I A J
Educação: o que a História nos ensina? .................................................................................. 115
Beatriz Lemos Stutz
Carlos Alberto Lucena
Refletindo sobre o vivido: o cotidiano, o saber escolar e a formação histórica ...................... 127
Cláudia Rodrigues
O jovem e sua concepção de História: patrimônio, museu e memória como
mediadores da construção do conhecimento histórico ........................................................... 133
Joana D’arc Germano Hollerbach
Leituras sobre a África Contemporânea. Representações e abordagens do continente africano
nos livros didáticos de História ................................................................................................ 143
Anderson Oliva
Diversidade e inclusão. Relato de Experiência didática interdisciplinar
de aplicação da Lei n. 10.639 ................................................................................................... 155
Jeanne Silva
K R E S E N H A J
Ofício de historiador: passado e presente.
Tétart, Philippe. Pequena História dos historiadores. Trad. Maria Leonor Loureiro. Bauru/
são Paulo: Edusc, 2000, 166p. ................................................................................................. 167
Diogo da Silva Roiz
É com entusiasmo que apresentamos às/aos leitores o número 40 – jan./jul. de 2009 – Ano 22 dos Cadernos de
Pesquisa do CDHIS (ISSN 15187640). Esta edição reune várias contribuições, abrimos com a sessão ARQUIVO,
DOCUMENTO E MEMÓRIA com um artigo especial do prof. Dr. Paulo Knauss de Mendonça*. Na sessão “Artigos”
os temas são relacionados à política, ética, cinema e literatura medieval. Destaca-se ainda, nesta edição, um dossiê
especial, “Ensino de História”.
A discussão inicia-se especificando o papel dos arquivos, especialmente os das universidades, como uma construção
das formas contemporâneas de promoção de memórias, registro este que distingue o viver dos tempos anteriores.
Nos arquivos, organiza-se o encontro com o presente pela ruptura com o passado e não pela continuidade. Na
diferença dos tempos é que se dá conta da própria historicidade.
Passando-se para os artigos, Alessandra Siqueira Barreto aborda a construção do campo político fluminense,
particularmente da Baixada Fluminense (RJ), uma área conhecida pela pobreza e violência, a partir da trajetória de
um conhecido, e ativo, político local: Jorge Gama. Leandro Alves Teodoro propõe perceber a mudança de perspectiva
da Crônica de D. Afonso IV do cronista Rui de Pina para a Crônica de D. João II, feita a partir do seu levantamento
de dados. Cleber Vinicius do Amaral Felipe, busca mapear a utilização de figuras de ornato e tópicas de invenção em
Prosopopéia, obra atribuída a Bento Teixeira, e nas sátiras de Gregório de Matos Guerra. Daniel de Pinho Barreiros
analisa comparativamente as idéias sociais de importantes intelectuais ligados ao debate político norte-americano,
engajados na crítica ao Welfare State e ao capitalismo de crescimento acelerado, trazendo um momento importante
da história intelectual do séc. XX, que se refere ao surgimento do conceito de sustentabilidade. Rodrigo de Souza Pain
e Ivan Arruda, discutem as características da experiência socialista na agricultura de Angola após a independência.
Eliete Antônia da Silva aborda a marginalização e a segregação das pessoas com deficiência como resultado de
violências e coerções que operam no plano simbólico do imaginário e das representações. Renata Soares da Costa
Santos questiona, por meio do filme Terra para Rose, o complexo problema da questão agrária no Brasil. E, Leandro
Maia Marques, trabalha com a recepção do filme Macunaíma através das leituras críticas do jornalista Ely Azeredo.O dossiê Ensino de História aborda a educação enquanto uma construção em constante transformação. Reflete
sobre alguns problemas concernentes ao ensino e à prática em sala de aula na formação histórica dos indivíduos
inclusive trazendo à tona a necessidade de discutir no espaço escolar conceitos e temas como História da África
Contemporânea; diversidade e inclusão; patrimônio histórico, memória e museu como alternativa para a construção
do conhecimento histórico. Os intelectuais que se dedicaram a discutir a temática da educação são eles: Beatriz
Lemos Stutz, Carlos Alberto Lucena, Cláudia Rodrigues, Joana D’arc Germano Hollerbach, Anderson Oliva e Jeanne
Silva.
A edição se completa com a resenha do livro Ofício de historiador: passado e presente, feita por Diogo da Silva
Roiz.
Boa leitura!
O Comitê Editorial Executivo
Apresentação
(*) Professor da UFF, diretor do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. Esteve presente na UFU e prestigiou o CDHIS visitando a
nós e conferindo nosso acervo.
Arquivo, Documento e Memória
9Cadernos de Pesquisa do CDHIS — n. 40 — ano 22 — p. 9-16 — 1º sem. 2009
Arquivos do nosso tempo
De diferentes formas, o passado sempre ocupou as
sociedades ao longo dos tempos. As sociedades
contemporâneas, segundo a fórmula de Pierre Nora,
inventaram os lugares de memória, distinguindo-se das
sociedades tradicionais que vivem na memória e
justificam seus atos cotidianos a partir da lembrança dos
seus mitos e repetindo seus antepassados.1 Diante da
aceleração do tempo e do compromisso com o progresso,
as sociedades contemporâneas trataram de localizar o
passado em museus, bibliotecas, arquivos, catálogos,
datas, festas e comemorações, testemunhando a sua
própria transformação. Nesse tempo em que vivemos,
procuramos sempre inovar e transformar o mundo,
distanciando-nos de nossos ancestrais. Nossa distância
é a medida de nossa evolução.
Como outros lugares de memória, os arquivos são
uma construção das formas contemporâneas de
promoção de memórias, registro de que nós vivemos num
tempo distinto dos tempos anteriores. Nos arquivos,
organiza-se o encontro com nosso tempo pela ruptura
com o passado e não pela continuidade. Na diferença
dos tempos é que nos damos conta da nossa própria
historicidade. Assim, diante de cartas antigas de uma
mapoteca, descobrimos como o mesmo território foi
representado diversas vezes de modos distintos, mas
diante deles, observando o mesmo território, nos
Usos do passado,
arquivos e universidade
Paulo Knauss
Professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense
e Diretor-Geral do Arquivo Púbico do Estado do Rio de Janeiro.
Resumo: O artigo aborda a função dos arquivos na
atualidade, especialmente os das universidades, como
uma construção das formas contemporâneas de promoção
de memórias, registro de que vive-se num tempo distinto
dos tempos anteriores. Nos arquivos, organiza-se o
encontro com o presente pela ruptura com o passado e
não pela continuidade. Na diferença dos tempos é que se
dá conta da própria historicidade. Enquanto equipamento
cultural, os arquivos públicos são sempre encarados como
recursos de conhecimento e de animação do espírito e da
curiosidade pela ciência e pela educação. A cultura e o
conhecimento são dimensões da cidadania
contemporânea, por serem domínios da livre expressão e
de afirmação de identidades, além de movimentar uma
economia peculiar de proporções significativas.
Palavras-chave: Arquivos Públicos. Arquivos
Universitários. Documentos. Cidadania.
Abstract: This paper is about the current role of files,
especially in universities while being a construction of
contemporary ways of memory promotion. This way they
are recordings showing that we live in a different time. The
encounter with the present time is organized through the
rupture with the past but not through continuity. Times’
differences allow one to feel his own history. While a
cultural tool, public files are always faced both as
knowledge and spiritual happiness resources. They also
help science and education. Culture and knowledge are
dimensions of contemporary citizenship, for they are
domains of free expression and identity confirmation,
besides moving a peculiar economy of significant
proportions.
Keywords: Public Files. University Files. Documents.
Citizenship.
1 NORA, Pierre. Entre mémoire et histoire: la problématique des lieux. In: Les lieux de mémoire. Paris: Gallimard, 1984. v. 1.
10 Cadernos de Pesquisa do CDHIS — n. 40 — ano 22 — p. 9-16 — 1º sem. 2009
convencemos de que nosso espaço é outro. Podemos
reconhecer o Brasil numa carta colonial, contudo, diante
dela nos convencemos de que a nossa terra não é mais
daquele jeito.
Ocorre que, antes disso, há outra constatação a ser
feita. Os documentos de caráter permanente, que
encontramos nos arquivos públicos dos nossos dias, não
foram sempre vestígios de outro tempo. Conforme a
teoria do ciclo de vida dos documentos é possível
demarcar as fases corrente e intermediária, anteriores à
fase permanente de vida dos documentos. Como
documentos correntes eles serviram ao instante do
presente, no aguardo do despacho necessário. A espera
da realização de ações decorrentes da decisão inscrita
nos documentos caracteriza a fase intermediária da vida
documental. Sua terceira fase de vida, a fase permanente,
é a memória da ação produzida e consumada. Alguns
diriam que nessa fase os documentos se tornam inativos,
ou deixam de ter caráter utilitário. Melhor seria falar de
valor primário, próprio da consecução da ação, e de valor
secundário, que envolve novos usos dos documentos, pois
é diante de sua condição permanente que os documentos
afirmam sua dimensão histórica, propriamente dita.2
Importa salientar que durante os ciclos de sua vida,
os documentos sofrem uma transmutação de sentido que
os desloca da produção de um ato para a recordação do
mesmo ato. Considerando que os documentos nascem
correntes, sobrevivem como intermediários, e se
redefinem como permanentes, entre a primeira e a última
fase de sua vida eles continuam sempre sendo os mesmos
suportes materiais de informação, mas o seu sentido é
transformado. Nessa passagem é que os usos dos
documentos são redefinidos, e nesse momento eles
deixam de transportar ações do presente, para
transportar ações do passado. Há uma mudança de
inserção temporal em torno da transmutação de sentido
dos documentos. Nesse caso, os usos do passado fazem
a diferença, pois os documentos passam a ganhar outra
razão de ser e se instalam nos arquivos. No início de sua
vida, o documento é registro do presente, na terceira fase
de sua vida ele passa a ser registro do passado e se afirma
como patrimônio cultural.
Sem dúvida, um dos melhores exemplos dessa
transmutação dos documentos ao longo de sua vida são
os arquivos das polícias políticas do século XX. Isso vale
para o Brasil, para os países do Cone Sul, ou para a
Alemanha oriental, ou para onde quer que os regimes
policialescos tenham sido substituídos por regimes
abertos. Isso porque os documentos da polícia política
nasceram para perseguir os cidadãos, considerando-os
inimigos de Estado, ou “inimigos internos”. Contudo,
hoje eles são instrumentos da garantia de direitos dos
cidadãos frente ao Estado. Trata-se do mesmo papel, do
mesmo suporte material e do mesmo conteúdo, mas sua
razão de ser mudou diante da presença do passado na
sociedade. Mudou seu sentido, porque a sociedade e suas
instituições mudaram, substituindo velhas estruturas por
outras. Os mesmos papéis ganham assim novo interesse,
o que implica em novos usos. Desse modo, os documentos
da polícia política são reconhecidoscomo fontes de outra
época e, assim, localizam o passado. Sua difusão e
publicidade reafirmam as nossas diferenças históricas e
atestam que estamos noutro tempo em que a relação do
Estado e do cidadão se transformou. Sua preservação
atesta a transformação da sociedade.
Portanto, esse uso contemporâneo do passado não
nos situa na continuidade do passado e de gerações
anteriores, mas, ao contrário, nos coloca na desconti-
nuidade do tempo. Nossa época se define pela alteridade
em relação a outras épocas. Revisitar os documentos
históricos de arquivo, nesse caso, significa sempre
reafirmar a particularidade do presente frente aos outros
tempos.
Portanto, os usos do passado se organizam no
presente. Assim, a transmutação do sentido do docu-
mento acompanha de fato um deslocamento dos tempos,
pois é no presente que o passado se define. O passado
não é dado, mas construção atualizada do presente.
Arquivos no campo da cidadania
Enquanto equipamento cultural, os arquivos públicos
são sempre encarados como recursos de conhecimento
e de animação do espírito e da curiosidade pela ciência e
pela educação. Por isso, cada dia mais os arquivos se
dedicam à produção de exposições, publicações, cursos e
eventos. Essa dimensão é fundamental, mas ela não deve
ser vista como marginal à cidadania ou epifenômeno da
vida. A cultura e o conhecimento são dimensões da
cidadania contemporânea, por serem domínios da livre
2 Para uma caracterização do ciclo de vida dos documentos, veja-se, por exemplo, BELLOTTO, Heloisa. Arquivos permanentes:
tratamento documental. 4ª ed. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2007. Cap. 1.
11Cadernos de Pesquisa do CDHIS — n. 40 — ano 22 — p. 9-16 — 1º sem. 2009
expressão e de afirmação de identidades, além de
movimentar uma economia peculiar de proporções
significativas.
De outra parte, porém, é importante notar que o
cidadão só percebe que o arquivo é um equipamento
fundamental na sua vida social, quando descobre que
ali se encontra o papel que pode servir para garantir o
seu direito almejado. Essa é uma cena comum ao dia-a-
dia dos arquivos públicos, espaços de dor e alegria diante
da possibilidade de conquistas sociais individuais. Isso
diz respeito tanto a acervos que documentam a história
das propriedades, como os registros de terra do século
XIX, introduzidos pela Lei de Terras de 1850, como os
documentos do Instituto Médico Legal criado na capital
federal em 1907, entre outros. Todos os dias, os arquivos
recebem cidadãos em busca de uma certidão que ateste
a informação decisiva para sua demanda legal. No caso
dos documentos das polícias políticas, eles são
instrumentos fundamentais para reparação de danos às
vitimas do autoritarismo, por exemplo. Do mesmo modo,
é por meio da gestão documental, que os Estados podem
atender às demandas de transparência social, dando
conta de suas realizações à sociedade. O sistema de
arquivos é base da superação da opacidade do Estado.
Interessa sublinhar, que diante desse duplo caráter
os arquivos são expressão da democracia e se afirmam
no campo da garantia de direitos e da cidadania. Assim,
os arquivos exercem papel importante, especialmente,
no campo dos direitos de quarta geração, em especial, o
direito à informação, à cultura e à memória.
Não sem razão os arquivos públicos no Ocidente se
fortaleceram, sobretudo, depois da Segunda Guerra
Mundial e a derrocada dos regimes totalitários do nazi-
fascismo, marcados pela discriminação étnica e a política
de homogeneização cultural. Há um vínculo na história
contemporânea entre a informação dos arquivos e a
crítica do Estado de exceção. Os arquivos são, assim,
componente fundamental do Estado de direito.
No quadro de Estado de direito se definem, também,
as condições de uma política nacional de arquivos na
atualidade nacional. Ao lado do direito à cultura, a
Constituição da República Federativa Brasileira de 1988
estabelece dispositivos destinados a garantir os direitos
individuais e, ao mesmo tempo, resguardar o direito a
informações contidas nos órgãos públicos. Esta foi a
primeira e única Constituição do Brasil a estabelecer
parâmetros gerais de uma política nacional de gestão de
documentos da administração pública visando a
franquear sua consulta, corroborada pelas disposições
federais da Lei n.º 8.159, de 08 de janeiro de 1991, que
trata dos Arquivos públicos e privados, regulamentando
o acesso a documentos públicos, prazos de sigilo, emissão
de certidões e rito processual do habeas data —
instrumento pelo qual todo cidadão tem direito de
conhecer as informações que o Estado produz sobre ele
— abrindo assim os arquivos aos indivíduos da sociedade.
Desse marco jurídico geral, decorrem as condições
de uso dos arquivos e suas fontes. Há que se balancear o
interesse público diante do privado, os direitos difusos e
os individuais. Especificamente neste âmbito, dois
princípios constitucionais basilares necessariamente são
sopesados: o direito à informação e a inviolabilidade da
intimidade.3
O direito à informação tem a característica de ser
um direito difuso, ou seja, que perpassa toda a sociedade,
sendo um pressuposto da democracia que os cidadãos
tenham conhecimento dos atos, das atividades da
administração para que possam atuar, fiscalizando,
controlando e participando do Poder Público. Nesse
sentido, o direito à informação é da mesma natureza do
direito à cultura e à memória.
A esta questão deve também ser aplicada a norma
inserta no inciso XXXIII, do artigo 5º da Constituição
Federal de 1988, no que tange o direito de sigilo de
informações relevantes à segurança da sociedade e o
Estado. A Lei Federal de Arquivos (n.º 8.159/91) dispõe,
ainda, no artigo 4º que todos têm o direito de receber
dos órgãos públicos informações, ressalvadas aquelas
cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade
e do Estado, bem como a inviolabilidade da intimidade,
da vida privada, da honra e da imagem das pessoas.
Neste mesmo diapasão, no artigo 5º e inciso X da Lei
Maior, se encontra o preceito constitucional de inviola-
bilidade da intimidade, da honra, da vida privada e da
imagem das pessoas, que constitui garantia de direito
individual.
O que a história dos documentos no Brasil demonstra
é que os usos do passado não são exclusividade dos
historiadores. Aliás, eles trafegam na trilha que a ordem
social estabelece como marcos legais e pelos direitos
3 Para esse debate, veja-se: COSTA, Célia Maria Leite. Intimidade versus interesse público: a problemática dos arquivos. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro: n. 21, 1998/1.
12 Cadernos de Pesquisa do CDHIS — n. 40 — ano 22 — p. 9-16 — 1º sem. 2009
garantidos pelo trabalho dos arquivos públicos. Além
disso, é muito freqüente o uso destas fontes pelo mundo
do jornalismo, da produção áudio-visual, de massa ou
não, ao lado dos usos para fins probatórios por cidadãos
comuns. O que se pode dizer é que os documentos de
arquivo são objeto de um espaço público que não se
circunscreve ao mundo dos profissionais de história. Tal
como apontam François Hartog e Jacques Revel, em
torno dos usos políticos do passado se torna possível
observar que no campo da história contemporânea foi
se estabelecendo um campo próprio para a história
recente, explicitando uma particularidade da nossa era.4
Cabe lembrar sempre que as relações entre política e
usos do passado estão na origem da historiografia no
Ocidente. Heródoto é tido até hoje como ‘pai da história’,
depois de ter escrito o livro que ganhou o título de
História. De fato sua obra, lança a idéia da história como
investigação, tal como a etimologia da palavra grega
sugere. No entanto, essa idéia da origem do conheci-mento a partir da obra do famoso autor grego da Anti-
güidade despreza o fato de que as sociedades sempre
conviveram de algum modo com formas de construção
do conhecimento de suas histórias. Mas por que
Heródoto, e depois Tucídides – com a História da Guerra
do Peloponeso – fizeram a diferença na Antigüidade.
Moses I. Finley, o historiador britânico da Antigüidade
clássica, apresenta o argumento de que o aparecimento
da História como investigação e como conhecimento,
na Grécia Antiga, está relacionado com o advento da
polis, que representa a afirmação do campo da política e
da discussão pública.5 A interrogação proposta questiona
as relações entre poder e conhecimento como uma marca
da História. Não sem razão, Heródoto e Tucídides, per-
sonagens emblemáticos da historiografia antiga foram
exilados políticos. Heródoto foi obrigado a fugir de sua
terra natal, Helicarnasso, no contexto das guerras persas
e depois de uma revolta. Foi também um homem do
tempo de Péricles e que esteve ao lado de suas forças na
fundação da colônia de Turios, nos anos de 440 a.C.
Tucídides, por sua vez, chegou a ser o estrataga de sua
cidade, Atenas, assumindo assim uma função pública
de destaque social. Após o fracasso de uma missão militar
e a perda do poder em sua cidade, foi condenado ao exílio.
Nesse sentido, há na historiografia fundadora uma
manifestação de consciência provocada pela condição
política de seus autores e a possibilidade de participar da
discussão pública a partir da escrita. Essa condição
definiu uma moral sob a marca do exílio para o estudo
da história.6
De todo modo, o que se abre diante de nós como
debate é o fato de que os usos do passado organizam as
formas da lembrança, mas igualmente do esquecimento.
Talvez, melhor seria dizer que toda forma de lembrança
é sempre também uma forma de produzir amnésia.7
Arquivos na universidade
No universo dos arquivos da atualidade existe uma
espécie ímpar: os centros de documentação univer-
sitários. Estes centros se formaram como núcleos de
apoio à pesquisa no campo das humanidades e possuem
um perfil diversificado. Ora se definem como custodia-
dores de acervos arquivísticos, bibliográficos e museo-
lógicos, ora se caracterizam como centro de referência
que organiza bases de dados, repertórios e guias de fontes
ou mantêm coleções documentais microfilmadas ou
digitalizadas, combinando essas duas vertentes de modos
variados.
O Instituto de Estudos Brasileiros – IEB da Univer-
sidade de São Paulo é o exemplo pioneiro criado em 1962
sob a liderança de Sergio Buarque de Holanda. Ao longo
dos anos, afirmou-se com um centro multidisciplinar de
pesquisa e documentação sobre história e cultura no
Brasil, reunindo arquivos e bibliotecas pessoais de artistas
e intelectuais brasileiros, com destaque para os acervos
de Mario de Andrade e Alberto Lamego. No início, o
centro se organizou em torno da biblioteca a partir da
coleção do intelectual paulista Yan de Almeida Prado,
mas a partir de 1968 o arquivo da instituição começou a
se constituir e definir o modelo de centro de docu-
mentação.8
 Como indica Célia Camargo Reis, é a partir dos anos
70 do século XX, que se estabelece um contexto
particular que permitiu a construção desses centros e
4 HARTOG, François & REVEL, Jacques (dir.). Les usages politiques du passé. Paris, Ed. EHESS, 2001.
5 Cf., FINLEY, Moses I. Usos e abusos da história. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
6 Para essa discussão, veja-se: KNAUSS, Paulo. Uma história para o nosso tempo: historiografia como fato moral. História Unisinos.
São Leopoldo-RS: v. 12, n. 2, p. 140-147, mai/ago 2008.
7 Para um debate sobre memória e esquecimento, veja-se: RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Ed.
Unicamp, 2007.
8 CALDEIRA, João Ricardo de Castro. IEB: origem e significados. São Paulo, Imprensa, Oficial, 2002.
13Cadernos de Pesquisa do CDHIS — n. 40 — ano 22 — p. 9-16 — 1º sem. 2009
levou à sua constituição, especialmente, ao redor de
cursos de História e Ciências Sociais das universidades
brasileiras.9 Há, de um lado, um movimento oficial que
reconheceu a contribuição que a universidade pode dar
à proteção do patrimônio documental e, por outro lado,
há um outro movimento que buscou proteger o que as
forças oficiais da época não admitiam. A origem, do
Arquivo Edgar Leuenroth, da Universidade de Campinas
– Unicamp, se relaciona a esse segundo movimento a
partir da incorporação, em 1974, do acervo pessoal que
deu nome a um dos maiores centros de documentação
universitários do Brasil.
Usualmente, estes centros de documentação uni-
versitários tendem a ocupar um espaço não trabalhado
por outras instituições arquivísticas públicas de re-
ferência. Por vezes, tornam-se centros de resgate de
documentos de valor histórico, cuja integridade é
ameaçada. Em Alagoas, durante alguns anos, os do-
cumentos da polícia política estadual terminaram sendo
tratados e guardados pela Universidade Federal do estado,
diante do fato de que nenhuma outra instituição esta-
dual assumiu a custódia do acervo. Recentemente, no
âmbito do Projeto Memórias Reveladas, coordenado pelo
Arquivo Nacional, houve a entrega da documentação
ao Arquivo Público de Alagoas, devolvendo os docu-
mentos ao lugar de referência institucional desse tipo de
fundo arquivístico. Outro exemplo conhecido é o do
Centro de Documentação Histórica da Universidade
Severino Sombra – USS, criado em 1987 na cidade de
Vassouras do estado do Rio de Janeiro, que tem a cus-
tódia de documentos cartorários da região do vale do
Paraíba fluminense e da Prefeitura Municipal. Nessa
mesma linha, pode-se citar também o Centro de Do-
cumentação e Apoio à Pesquisa – CEDAP, da Faculdade
de Ciências e Letras de Assis – UNESP, criado em 1973,
que integrou ao seu acervo os documentos cartorários
do Fórum de Assis e os documentos do Poder Legislativo
e Executivo municipais. No Paraná, pode-se mencionar
também o Centro de Documentação e Pesquisa Histórica
da Universidade Estadual de Londrina – UEL, originado
da criação de uma iniciativa universitária do ano de 1973.
Em todos estes casos, o que se observa é que os centros
de documentação universitários têm um papel decisivo
na proteção do patrimônio documental local e regional.
Por vezes, as iniciativas universitárias provocam a ação
do poder público no sentido de constituir a instituição
arquivística de referência local. É assim, que na cidade
de Guarapuava, no estado do Paraná, a mobilização em
torno do trabalho do Centro de Documentação e Me-
mória da Universidade Estadual do Centro-Oeste –
Unicentro, originado de iniciativas comunitárias e uni-
versitárias nos anos de 1970, conduziram ao estabe-
lecimento do Arquivo Público Municipal no espaço da
universidade.
Ao lado disso, os centros de documentação uni-
versitários com freqüência se tornam instituições
importantes na preservação e difusão de arquivos pes-
soais.10 Desse modo, dão reconhecimento social ao uni-
verso privado de documentos, garantindo sua visibili-
dade. Um dos exemplos mais conhecidos nacionalmen-
te é o caso do Centro de Documentação e Informação
Científica – CEDIC/PUC- SP, criado em 1980. No seu
acervo se encontra a coleção CLAMOR – Arquivo do
Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os Países
do Cone Sul, cuja importância foi reconhecida, em 2007,
pelo registro nacional no Programa Memória do Mundo
da UNESCO. O valor social desse acervo é tamanho que
muitas vezes se esquece que sua história decorre do papel
da universidade na promoção do conhecimento histórico.
Mas os exemplos poderiam ser multiplicados em torno
da história política do Brasil. Apenas a título de ilustração,
no campodos arquivos privados, podemos lembrar o
caso do fundo do Partido Comunista Brasileiro, dis-
ponível para consulta no Centro de Documentação e
Memória da UNESP (instituição criada em 1987); e o
Arquivo Ana Lagôa, situado na Universidade Federal de
São Carlos – UFSC, criado em 1996, que é constituído
do arquivo pessoal da jornalista que teve atividade
destacada na grande imprensa nacional e que reúne
pastas temáticas sobre os grandes fatos da política
nacional do período de 1968 a 1985. Ambos os acervos
são importantes para a história política recente do Brasil.
No caso da história da imigração no Sul do Brasil, há
dois acervos valiosos, especialmente de documentos
9 CAMARGO, Célia Reis. Centros de documentação das universidades: tendências e perspectivas. IN: SILVA, Zélia Lopes da (Org.).
Arquivos, patrimônio e memória: trajetórias e perspectivas. São Paulo: UNESP, 1999. Neste livro, encontram-se várias referências
sobre a constituição de centros de documentação universitários do estado de São Paulo, como o Arquivo Edgar Leuenroth – Unicamp,
Arquivo Ana Lagôa – UFSC, Centro de Documentação e Memória – UNESP.
10 Para uma boa discussão sobre os arquivos pessoais, veja-se: CAMARGO, Ana Maria de Almeida & GOULART, Silvana. Tempo e
circunstância: a abordagem contextual dos arquivos pessoais. São Paulo, IFHC, 2007.
14 Cadernos de Pesquisa do CDHIS — n. 40 — ano 22 — p. 9-16 — 1º sem. 2009
fotográficos: Museu Antropológico Diretor Pestana, que
se constituiu e 1961, em torno do trabalho da Uni-
versidade de Ijuí, no Rio Grande do Sul, e o atual
CEPEDAL – Núcleo de Pesquisa e Documentação sobre
o Oeste do Paraná (originado do Centro de Estudos de
Demografia Histórica da América Latina – CEDHAL,
criado em 1989) da Universidade Estadual do Oeste do
Paraná – Unioeste. O Centro de Documentação Histó-
rica – CDHIS da Universidade Federal de Uberlândia –
UFU, criado em 1985, é outro exemplo de como a ação
das universidades envolve tanto a promoção de arquivos
públicos e privados, pois reúne um acervo valioso de
processos criminais do fórum local, ao lado de coleções
e arquivos de inúmeras personalidades da história
regional. Nesse caso, há que se destacar o valor da coleção
fonográfica, com discos de diferentes épocas e gêneros,
de uma das antigas rádios locais.
Há ainda uma ação importante das universidades no
processo de constituição de arquivos especializados em
história oral. O caso do arquivo do Laboratório de His-
tória Oral da Universidade de Joinville e do Laboratório
de História Oral e Imagem da Universidade Federal
Fluminense – LABHOI-UFF, criado em 1982, são pro-
vavelmente os exemplos mais antigos e continuados de
atuação especializada nas universidades brasileiras.
Vários dos centros citados anteriormente também
possuem coleções de história oral no seu acervo. Nesse
campo, é preciso observar que se trata de preservação
de material documental originado das pesquisas aca-
dêmicas na própria universidade, resultado da espe-
cificidade dessa documentação.11
Nos casos citados, fica evidente o compromisso social
da universidade que termina por ampliar as possi-
bilidades de promoção do patrimônio documental,
reforçando o sentido social dos acervos a partir do caráter
público das instituições de ensino superior.
Cabe observar, ainda, que ao lado do papel dos centros
de documentação universitários de preservar arquivos e
coleções, muitas vezes eles cumprem a valiosa função
de difundir acervos, constituindo-se em núcleos de
referência regionais de informação. Talvez, essa seja uma
missão a ser fortalecida por essas instituições uni-
versitárias. O melhor exemplo é dado pelo Arquivo Edgar
Leuenroth, da Unicamp, que possui uma grande coleção
de documentos microfilmados de outros arquivos e
bibliotecas. Desse modo, ele se torna um centro regional
de consulta de acervos estrangeiros e nacionais, exer-
cendo uma função fundamental para a difusão docu-
mental e promovendo a infra-estrutura da pesquisa
nacional no campo das ciências humanas e sociais. Por
vezes, suas boas condições de consulta oferecem maior
conforto e serviços mais eficientes de atendimento à
pesquisa que o das instituições de origem da docu-
mentação. Mas outros exemplos se multiplicam no país,
como é o caso do Laboratório de Pesquisa e Ensino de
História, do Departamento de História da Universidade
Federal de Pernambuco – LABPEH-UFPE, que reúne
coleção de microfilmes de documentação manuscrita
colonial, de cartórios e da imprensa estadual, por exem-
plo. Desse modo, a experiência institucional demonstra
que como núcleos de referência, os centros de docu-
mentação universitários podem exercer um papel fun-
damental na difusão de informação.
Desse modo, o que se observa é uma configuração
diversificada dos centros de documentação universitários.
Ora concentram acervos bibliográficos, hemerotecas,
fundos arquivísticos públicos e privados, coleções ico-
nográficas, fonográficas e/ou de entrevistas de história
oral, constituindo-se em guardiões da preservação de
acervos valiosos. Mas, ao lado disso, por vezes, os centros
de documentação universitários se afirmam antes como
núcleo de referência de informação, reunindo acervo de
documentos repoduzidos para consulta local, privi-
legiando a difusão da informação. Contudo, uma função
não exclui a outra, podendo se combinar, como no
exemplo do Núcleo de Documentação Cultural da Uni-
versidade Federal do Ceará – NUDOC-UFCE, existente
desde 1983 e ligado ao Departamento de História da
instituição, assim como em muitos dos outros casos
citados.
Por fim, é preciso observar que há uma construção
intrínseca entre organização de arquivos e formação de
profissionais de investigação social e histórica, fazendo
do trabalho de preservação e difusão de acervos do-
cumentais campo de ensino para a pesquisa. Além de
servir como instrumento de acesso e difusão da in-
11 É preciso apontar que internacionalmente há uma forte tendência para concentrar arquivos de história oral em universidade,
considerando a especificidade de sua natureza de documentação produzida pela pesquisa. Nesse sentido, serve de exemplo os
programas da Universidade Columbia e da Universidade de Berkeley nos Estados Unidos da América, considerados entre os maiores
do mundo.
15Cadernos de Pesquisa do CDHIS — n. 40 — ano 22 — p. 9-16 — 1º sem. 2009
formação, os centros de documentação universitários se
constituem também em espaço de formação dos pro-
fissionais de arquivo e da pesquisa arquivística. Assim,
de modo original, os centros universitários de docu-
mentação traduzem o compromisso das universidades
com a indissociação entre ensino e pesquisa.
A ordem dos termos nem sempre foi a mesma para
todas as instituições. Os exemplos do Centro de Docu-
mentação e História do Brasil Contemporâneo – CPDOC
da Fundação Getúlio Vargas – FGV, no Rio de Janeiro,
criado em 1973, e da Casa de Oswaldo Cruz, da Fundação
Oswaldo Cruz, criado em 1986, demonstram que, por
vezes, o centro de documentação antecede o trabalho de
ensino, ainda que o modelo predominante seja o inverso.
Mas o que importa é frisar que em torno de centros de
documentação se constitui um espaço institucional da
promoção de acervos documentais que confirma a
missão contemporânea das universidades.
Não há dúvida da importância desses centros de
documentação para o ensino de história, no nível su-
perior. Eles têm assim um papel inusitado de experi-
mentação didática, que anda junto com o trabalho de
promoção de documentos históricos. Com freqüência,
tornam-se laboratórios em diversas áreas — educação
básica, educação patrimonial, história oral, produção
editorial, produção videográfica, produção deexposições
etc., construindo pontes originais entre os documentos e
o ensino. Nesse sentido, recorrentemente, tornam-se
espaços de inovação acadêmica, porque se dedicam a
campos que a ordem curricular formal não consegue
realizar plenamente, tornando-se, assim, espaços de
atividades curriculares complementares. A novidade da
ação permite também que os alunos assumam uma
posição mais protagonista na produção de conheci-
mento, promovendo uma integração entre docentes e
discentes. Desse modo, revelam também sua capacidade
de enriquecer o ambiente acadêmico de formação pro-
fissional universitária e de renovar o ensino e a apren-
dizagem. A base do processo de ensino-aprendizagem,
nesses casos, tem como base a criatividade por meio do
desafio de encontrar soluções para problemas con-
textualizados. No mesmo sentido, os centros de docu-
mentação permitem experimentar a diversidade dos
canteiros do ofício de profissionais da história e do pa-
trimônio.
A interdisciplinaridade se afirma também como uma
marca desses centros de documentação universitários.
A complexidade do trabalho de tratamento da infor-
mação documental conduz, igualmente, a diferentes
domínios, como o da preservação de documentos e
difusão da informação, levando o trabalho institucional
a se ampliar para diferentes áreas que ultrapassam o
universo específico de estudo da história e das ciências
sociais. Desse modo, os centros de documentação his-
tórica se abrem para a colaboração interdisciplinar. Os
professores e alunos envolvidos terminam tendo contato
com outras áreas de conhecimento especializado, cons-
truindo pontes para a redefinição da própria inserção do
profissional de história e ciências sociais no universo do
patrimônio documental. Nesse processo, adquirem uma
consciência patrimonial que os caracteriza para além do
papel de usuários de arquivos e leitores de documentos.
Dito de outro modo, esse vínculo entre ensino e
pesquisa define o caráter dos centros de documentação
universitários, ao mesmo tempo, que são o produto do
aprofundamento de um modelo de universidade que
assume o compromisso com a construção de conhe-
cimento sem se dissociar de seu contexto social.
O maior dos desafios é fazer com que as universidades
entendam a importância destes espaços institucionais,
conseguindo viabilizar sua base operacional — o que
exige recursos materiais e humanos. Seu reconhe-
cimento, certamente, decorre da capacidade de apro-
fundar estes vínculos com a sociedade que abriga a uni-
versidade, mas igualmente com a comunidade acadê-
mica, a partir da pesquisa e do ensino, tendo a experi-
mentação e a inovação como referência fundamental
para a valorização das instituições universitárias.
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17Cadernos de Pesquisa do CDHIS — n. 40 — ano 22 — p. 17-32 — 1º sem. 2009
De perto e de longe: a Baixada e suas
relações com o Rio de Janeiro
 Usualmente ancorada na definição de Geiger e
Santos1, a Baixada Fluminense é identificada como uma
área de planícies baixas constantemente alagadas entre
o litoral e a Serra do Mar, e distribui-se pelos municípios
ao longo da Rodovia Presidente Dutra, numa extensão
de aproximadamente 80 km a partir da cidade do Rio de
Janeiro.
Sua ocupação ocorreu de forma lenta desde o século
XVI, período em que a região foi fornecedora e distri-
buidora de matérias-primas diversas (cana-de-açúcar,
café, etc) à capital (Rio de Janeiro). No entanto, um dos
processos mais significativos de ocupação da Baixada
teve início com a construção da estrada de ferro D. Pedro
II já no século XIX. A ampliação da linha férrea até
Queimados, em 1858, promoveu a atração e fixação da
população que se deslocou para a região às margens da
linha do trem, estabelecendo um padrão que ainda hoje
é marcante em quase a totalidade das cidades que a
compõem. Tal processo implicou no abandono das vias
fluviais, até então fundamentais para a economia local,
que acabaram tornando-se obsoletas.
Um segundo momento crucial foi, já na década de
1930, a criação da Comissão de Saneamento da Baixada
e o Departamento Nacional de Obras de Saneamento
que trouxeram mudanças e repercutiram no novo fluxo
Nas margens da política: trajetória, narrativa e
mediação na Baixada Fluminense (RJ/Brasil)
Alessandra Siqueira Barreto
É professora adjunta do Departamento de Ciências Sociais, da Universidade Federal de Uberlândia/Brasil. Doutora em Antropologia
Social pelo PPGTAS/Musue Nacional /UFRJ e Pós-doutora em Antropologia pelo Departamento de Antropologia do ISCTE/ Portugal (bolsa
do CNPq 2008/2009). E-mail: alessandrabarre@fafcs.ufu.br
Resumo
Neste artigo pretendo abordar a construção do campo
político fluminense, particularmente da Baixada
Fluminense (RJ), uma área conhecida pela pobreza e
violência, a partir da trajetória de um conhecido, e ativo,
político local: Jorge Gama. Sua trajetória permite-nos
perceber ao longo da história local e regional como as
imagens e representações sobre a região Baixada alteram e
re-inventam as diversas concepções acerca da política e
do fazer político. A mediação política e cultural é trazida
como uma das características de sua persona e condição
de possibilidade de sua manutenção no mundo da política.
Palavras-chave: Política. Trajetória. Mediação política e
cultural. Baixada Fluminense.
Abstract
In this article I intend to present the construction of the
Fluminense political field, particularly the Baixada
Fluminense (RJ), an area known for poverty and violence,
from the trajectory of a known and active local political:
Jorge Gama. His trajectory allows us to understand the
local and regional history as the images and
representations on the Baixada change and re-invent the
different conceptions of politics. The political and cultural
mediation is brought as one of the characteristics of his
persona and condition of possibility of his maintaining in
the political world.
Keywords: Politics. Trajectory. Cultural and political
mediation. Baixada Fluminense.
1 GEIGER, Pedro Pichas e SANTOS, Ruth Lira. Notas sobre a evolução da ocupação humana da Baixada Fluminense. Rio de Janeiro,
IBGE, 1956.
18 Cadernos de Pesquisa do CDHIS — n. 40 — ano 22 — p. 17-32 — 1º sem. 2009
a partir de 19402. Algumas obras também contribuíram
nesse processo, como por exemplo, a construção da
Avenida Brasilem 1946, da Rodovia Presidente Dutra
(inaugurada em 1951) e os investimentos que, graças
aos loteamentos, surgiram a partir daí, atraindo mi-
grantes de várias regiões do país e do estado, mas prin-
cipalmente de nordestinos, em busca da possibilidade de
adquirir um lote e de morar próximo ao seu local de
trabalho — o município do Rio de Janeiro. Com isso, as
décadas de 1950 e 1960 representaram o período de
maior crescimento populacional da região, bastante
superior ao restante do estado (crescimentos de mais de
100% só na década de 1950)3.
Aos loteamentos, que determinaram um tipo de
ocupação marcado pela presença majoritária das ca-
madas populares em áreas que não apresentavam as
mínimas condições de infra-estrutura4, somaram-se as
disputas pela terra, desencadeando um violento processo
que teve à sua frente jagunços e capatazes dos grandes
proprietários da região que, na grande maioria dos casos,
jamais residiram nessas localidades5.
As narrativas de moradores locais confirmam os
dados e retomam a saga — desde a cidade de origem,
passando pela viagem de muitas horas em ônibus
precários ou em paus-de-arara, sozinhos ou com toda a
família; o sol e a chuva enfrentados pelo caminho e, por
fim, a chegada ao Rio de Janeiro6. O desembarque,
mencionado em muitos dos relatos que escutei, ocorria,
por exemplo, no bairro carioca de Campo de São Cris-
tóvão — local onde os homens eram avaliados para
possível trabalho na construção civil — e o destino final
era, geralmente, uma das favelas do município ou al-
guma cidade da Baixada Fluminense. As redes familiares
e de amizade apresentavam-se como fatores decisivos
no momento da escolha do local de moradia. Contar com
o auxílio, ainda que temporário, de um irmão, cunhado,
prima ou amigo era essencial para quem não tinha casa,
dinheiro ou mesmo uma ocupação. Alguns poucos já
chegavam empregados — via de regra, por intermédio
desses parentes/ amigos — mas nem todos tinham a
mesma sorte.
Minha família, é uma família humilde, né? Meus pais
são analfabetos, vieram do Nordeste [Pernambuco]
tentar a vida no Rio de Janeiro e sempre trabalhando
pra que pudesse[m] nos sustentar e dar estudo para a
gente, né? Mas as condições […] como é normal no Rio
de Janeiro, acho que no país todo […] É difícil para as
pessoas que não têm condições e a vida muito sacri-
ficada. É pai trabalhando em feira, é […] ajudante de
caminhão, eu, meu irmão, minha irmã também
trabalhamos em feira, em barraca, enfim nós traba-
lhamos muito pra chegar onde nós chegamos” (Waldir
Zito, ex-prefeito de Belford Roxo, 03/02/2004).
Minha família veio pra Nova Iguaçu sem nada, só
com a coragem mesmo. [...] Porque senão, iam passar
fome, né? Eu nasci aqui, sou daqui da Baixada mesmo,
mas já fui lá pro Norte, lá pra casa dos meus parentes
[Sergipe], mas eu não troco isso aqui por lá, não
(M., 36 anos, casada, professora primária, 09/06/
2004).
Outra característica marcante da Baixada é o seu
fluxo constante. Apesar de algumas de suas represen-
tações estarem ancoradas construções a partir de um
“universo rural”, “cidade pequena”, o movimento é
incessante e as estradas que atravessam e cortam a
Baixada demonstram esse fluxo permanente. Duas
principais a atravessam diametralmente: a Estrada de
Ferro D. Pedro II (atualmente, SUPERVIA) e a Rodovia
Presidente Dutra (BR 116). A circulação incessante de
gente, de carros, de imagens aponta, ao mesmo tempo,
para uma estética homogeneizante e para a multi-
plicidade de significados em jogo. Haveria, assim, o olhar
seqüencial e indistinto de quem simplesmente passa por
ali e a percepção matizada de quem se atreve a parar, a
desvendá-la7.
Sua ligação com o município do Rio de Janeiro não
2 Na década de 1930 já percebemos tal migração devida fundamentalmente à citricultura em Nova Iguaçu que terá seu declínio
com o início da Segunda Grande Guerra.
3 Fonte IBGE, 1996.
4 As primeiras áreas loteadas localizavam-se nos distritos, hoje municípios, de Duque de Caxias, São João de Meriti e Nilópolis devido
à sua proximidade com a cidade do Rio de Janeiro.
5 GRYNSZPAN, Mário. “Os idiomas da patronagem: um estudo da trajetória de Tenório Cavalcanti”, In: Revista Brasileira de Ciências
Sociais, n.14. Rio de Janeiro: Vértice, ANPOCS, outubro, 1990. ALVES, José Cláudio Souza. Dos barões ao extermínio. Uma história
da violência na Baixada Fluminense. Duque de Caxias: APPH, CLIO, 2003.
6 BARRETO, Alessandra Siqueira. Cartografia Política: as faces e fases da política na Baixada Fluminense. Tese (Doutorado em
Antropologia)Rio de Janeiro: PPGAS/ Museu Nacional/ UFRJ, 2006.
7 Ibidem. “Um olhar sobre a Baixada: usos e representações sobre o poder local e seus atores”. In: Campos, 5 (2), 2004,p.45-64.
19Cadernos de Pesquisa do CDHIS — n. 40 — ano 22 — p. 17-32 — 1º sem. 2009
se dá apenas pela proximidade. As fronteiras entre os
dois não são sequer tão rígidas e alguns bairros do
subúrbio carioca são por vezes “incorporados” à Baixada
ou vice-versa. Um outro fator representativo dessa
relação refere-se ao número expressivo de moradores da
região que faz diariamente o trajeto Baixada — Rio de
Janeiro — Baixada para trabalhar ou estudar. Os trens e
ônibus lotados em direção ao Rio no horário da manhã
e no sentido oposto à tarde marcam o contato diário de
cerca de 300 mil pessoas da Baixada com a capital
carioca em uma viagem (e esta é uma categoria nativa)
que pode durar de uma a quatro horas, dependendo do
dia da semana, do município de origem e do horário de
saída8.
Esta circulação é mais que o movimento pendular
de trabalhadores das regiões periféricas, ela acaba por
propiciar o contato com mundos sociais diferentes e as
situações de co-presença são marcadas ora pelo inter-
câmbio, ora pelo conflito. Há certa ambigüidade na cons-
trução das representações sobre o Rio e os cariocas por
parte dos moradores da Baixada, assim como o con-
trário, dependendo do contexto. No entanto, a troca de
acusações recíprocas marca essa relação: aos moradores
da Baixada cabem os qualificativos de “bregas”, “pobres”,
“gentinha”, “cafonas”, “perigosos”; aos cariocas “esno-
bes”, “bestas”, “filhinhos de papai”, “patricinhas”.
A construção de uma “fala política”:
trajetória e mediação
A política na Baixada Fluminense9 não pode, de modo
algum, ser entendida à parte das representações sobre o
lugar. Para compreendermos este quadro, devemos
excluir o ponto de vista estático para pensar tais repre-
sentações assim como a política em processos constantes
de abertura e fechamento, aglutinação e reformulação,
densidade e esvaziamento.
Nesse sentido, as imagens e representações acerca
do lugar misturam-se a personalidades políticas e aos
estigmas, atribuindo um caráter especial à “perso-
nalização” enquanto uma das dinâmicas constitutivas
das redes políticas da região, operada a partir de indiví-
duos-chave e da busca por seus interesses particulares,
ora valendo-se de partidos, ora de redes mais amplas
para atingir seus objetivos10. Desse modo, ao transformar
Jorge Gama em narrador de uma das versões sobre a
Baixada, pretendemos trazer à tona um olhar sobre a
política local e seu modus operandi, ao mesmo tempo
em que lançar luz às possibilidades de re-invenção sobre
a Baixada.
Jorge Gama nasceu em 19 de setembro de 1942.
Carioca “do Rocha” (subúrbio do Rio de Janeiro), mudou-
se para Nova Iguaçu com seis anos de idade, juntamente
com o pai, a mãe e os três irmãos. Seu pai, Manuel de
Barros, era imigrante português nascido durante o
regime salazarista. Era comerciante, dono de uma car-
voaria em Nova Iguaçu e de um botequim, localizado
onde hoje situa-se o município de Mesquita. Sua mãe,
Noêmia de OliveiraGama de Barros, era dona de casa.
Jorge fez o primário (hoje chamado de ensino funda-
mental) no Colégio Iguaçuano — na época, uma das
melhores e mais tradicionais instituições educacionais
privadas da cidade e referência local, ainda hoje. Aos 12
anos, foi trabalhar no Fórum, estudando à noite no
Colégio Monteiro Lobato (uma tradicional escola da rede
pública). Continuou trabalhando no cartório e, aos 18
anos, foi nomeado escrevente. Quando concluiu o curso
de direito pela Universidade Federal Fluminense, em
1969, optou por não fazer concurso e permanecer no
cartório onde “ganhava bem”.
Sua fase adulta transcorreu durante os anos de
ditadura no Brasil. Em um primeiro momento, o regime
autoritário cassou mandatos parlamentares e instituiu
o AI-2 (que implicou a extinção dos partidos políticos)
e, logo em seguida, o bipartidarismo (ARENA e MDB),
permitindo o funcionamento, ainda que parcial, da so-
ciedade política e garantindo sua legitimidade com base
na percepção de que tal situação seria transitória11.
8 Alguns municípios fazem divisa com a cidade do Rio: Duque de Caxias, São João de Meriti e Itaguaí. O município mais perto é Duque
de Caxias que fica a 13 km do centro Rio, enquanto que o mais distante fica a cerca de 80 km.
9 Hoje, a configuração mais ampla da região (da qual me utilizo) abrange 13 municípios — Itaguaí, Seropédica, Paracambi, Japeri,
Queimados, Nova Iguaçu, Mesquita, Nilópolis, Belford Roxo, São João do Meriti, Duque de Caxias, Magé e Guapimirim — contando
com uma população de mais de 3 milhões de habitantes.
10 GRYNSZPAN, Mário. “Os idiomas da patronagem: um estudo da trajetória de Tenório Cavalcanti”, In: Revista Brasileira de Ciências
Sociais, n.14. Rio de Janeiro: Vértice, ANPOCS, outubro, 1990. FERREIRA, Marieta de Moraes. Em busca da Idade de Ouro: as elites
políticas fluminenses na Primeira Repúblia (1889-1930). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1994. ALVES, José Cláudio Souza. Dos barões
ao extermínio. Uma história da violência na Baixada Fluminense. Duque de Caxias: APPH, CLIO, 2003.
11 O MDB surgia, oficialmente (registrado na Justiça Eleitoral, apesar de existir desde finais de 1965), em 24 de março de 1966.
Nascido sob o signo da oposição ao regime — e “batizado” por Tancredo Neves (Ulysses Guimarães preferia a palavra ação a
20 Cadernos de Pesquisa do CDHIS — n. 40 — ano 22 — p. 17-32 — 1º sem. 2009
Assim, a estratégia de manter dois partidos políticos
visava evitar a desconfiança e o descrédito gerados por
um sistema autoritário strito sensu12. No entanto, o
processo político implementado pelo novo regime não
conseguiu diferir das antigas relações patrimonialistas e
clientelistas13 já que necessitava angariar apoio, nego-
ciando cargos e privilégios com os antigos — e tradi-
cionais — donos do poder14. Este é o momento posterior
da “abertura” são significativos para o entendimento da
política na Baixada Fluminense, além de constituírem o
contexto de surgimento de algumas trajetórias políticas
expressivas em termos mais gerais. Nessa época,
entraram em cena novos atores que, vinculados ou não
aos militares, perpetuaram-se na vida política local e
ainda demonstram sua influência e prestígio, mesmo
após 20 anos de democracia.
Apesar de uma análise da situação sobre o município
de Nova Iguaçu estar ausente da narrativa de Jorge
Gama durante a primeira entrevista que me concedeu,
na Baixada Fluminense como um todo tal situação
explicitava-se pelo grau de intervenção nos municípios15.
Nas cidades adjacentes, a situação de ingerência era a
mesma. Duque de Caxias, após a lei 5.449, de 4 de junho
de 1968, tornou-se área de segurança nacional devido à
presença de uma refinaria de petróleo e de uma rodovia
interestadual (a Rodovia Washington Luís). Foi sob esse
clima político que teve início a vida pública de Jorge
Gama. Filiado ao MDB desde 1967, a política lhe inte-
ressava, mas ainda com certa distância e muito ligada
às suas relações pessoais e a um “estilo contestador”.
Aqui, em Nova Iguaçu, tinha um fato interessante.
Lançava-se um candidato, assim, da nossa patota, da
nossa turma e aí, nós apoiávamos. Vamos votar no cara,
vamos botar ele na Câmara. Era uma coisa muito des-
politizada, muito eleitoral. Era um modismo. Pegava
um nome, uma espécie de liderança na turma e botava
ele na Câmara. Nós fizemos isso com o Mauro Miguel,
amigo, boêmio. Demos uma força e o elegemos. Bom,
depois com a ditadura começou a ter um grupo que
pensava, que conversava, que trocava idéias. E esse
grupo se reunia, informalmente, perto do Fórum, num
bar que tinha na esquina, em frente à estação [ferro-
viária], era o bar do Zuza. Todo mundo ia pra lá de noite
tomar cerveja, conversar e trocar idéia. Era quase se-
melhante àquele grupo do Pasquim, um pouco influ-
enciado pelo grupo do Pasquim16. Era o Robson, que é
dono do Correio da Lavoura17; eu, o Sérgio Fonseca, o
Eliasar Diniz, o Roque Bone (Roque da Paraíba, com-
positor e pintor), Hugo Freitas (artista), Paulo Faria,
Paulo Amaral. Aquilo era um centro de debate, de
contestação ao prefeito, à política da ditadura. E aí se
criou, no Correio da Lavoura, uma coluna chamada ‘O
Negócio é o seguinte’. Era uma coluna livre e cada um
movimento) — o partido foi inicialmente presidido por um general, Oscar Passos, Senador pelo Acre e, a princípio, pouco defrontava
o partido do governo, a ARENA. (DHBB, 2001). Segundo Diniz (1982), o MDB fluminense caracterizava-se (no período de 1965-
1979) por um alto grau de heterogeneidade, congregando diferentes facções que disputariam a hegemonia interna pelo poder no
partido. A autora faz uma análise da máquina chaguista — desde sua estruturação e ascensão, até a articulação de suas bases de
apoio — demonstrando a construção de um aparato ligado essencialmente ao clientelismo, suas implicações dentro da estrutura
urbana e sua relação com as massas.
12 Segundo Avritzer, “o regime autoritário permitiu o funcionamento parcial da sociedade política, contanto que esta se sujeitasse aos
objetivos primordiais do regime (...) O regime autoritário entendia que a vitória nas urnas dar-lhes-ia legitimidade, mas não
porque seus programas políticos fossem ao encontro do desejo da maioria do eleitorado, e sim porque isso lhe possibilitaria manipular
o processo eleitoral de modo a assegurar o controle a longo prazo do aparelho estatal. O problema dessa estratégia foi que ela criou
um processo político que não levava à legitimidade, e sim ao autoritarismo”. AVRITZER, Leonardo. “Conflito entre a sociedade civil
e a sociedade política no Brasil pós-autoritário: uma análise do impeachment de Fernando Collor de Melo”. In: ROSENN, K. e
DOWNES, R. Corrupção e reforma política no Brasil: o impacto do impeachment de Collor. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2000. p. 170-
1 7 1 .
13 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
1975. LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. O município e o regime representativo no Brasil. São Paulo: Alfa-Ômega,
[1949] 1975.
14 FERREIRA, op. cit.; ALVES, op. cit.
15 Entre 1963 e 1969, a região passou por significativas mudanças políticas. Em Nova Iguaçu, mais especificamente, tais mudanças
resultaram na nomeação de/ ou na eleição de oito prefeitos diferentes, fato que, diante da situação política conturbada que se
estabeleceu após a instauração do regime militar, culminou na interferência direta sobre o poder local, com cassações de prefeitos
e vereadores da oposição e a imposição de interventores na região. A cidade teve como chefes do executivo, nesse período, dois
interventores, dois presidentes da Câmara Municipal, dois prefeitos eleitos e dois vice-prefeitos.
16 O Pasquim — assim como Opinião, Movimento, Em Tempo, Coojornal e Versus — era umjornal alternativo, em formato de tablóide
e com circulação irregular; um jornal de protesto e de oposição. Editado no Rio de Janeiro, foi lançado em 1969, tornando-se um dos
principais jornais do gênero. Teve em seu quadro de redatores nomes como os de Sérgio Cabral, Jaguar, Tarso de Castro, Carlos
Propseri, Claudius Ceccon etc. Durante os anos 1980 sua tiragem foi se tornando extremamente rarefeita. Os últimos números do
jornal saíram no final dessa década.” (p.23).
17 O jornal Correio da Lavoura, de circulação local, foi criado em 22 de março de 1917. Atualmente, sua periodicidade é semanal.
21Cadernos de Pesquisa do CDHIS — n. 40 — ano 22 — p. 17-32 — 1º sem. 2009
fazia uma frase, e foi um sucesso muito grande. O jornal
era semanal e todo mundo comprava pra ver as piadas
e as críticas. Eu usava pseudônimos: ‘o Transeunte’ e
‘Maria Auxiliadora da Paz’. Depois criei um outro
personagem, o ‘Geraldinho boca de trombone’, que escu-
lhambava todo mundo. Enfim... Fazia uns artigos uma
vez ou outra. Aquilo ali era um cenário, ninguém tinha
um projeto eleitoral. Era um cenário meio boêmio e meio
contestador. Aos domingos, o jornal publicava o que
saía dali, mais ou menos. (Jorge Gama, 10/08/2003)
Os personagens criados trazem à tona o papel dos
jornais como um dos poucos espaços possíveis para a
crítica ao regime. A relação e as implicações entre as
diversas mídias e a política perpassam a análise da
trajetória de Jorge Gama e conferem tons distintos aos
marcos temporais, aos “momentos históricos” por ele
vivenciados. O período da ditadura apresenta-se como
basilar para a constituição de sua identidade política a
partir do viés da expressão artística, do humor (sar-
casmo), da crítica e do engajamento, ainda não pro-
priamente vinculado a uma adesão ideológica. Mani-
festa-se, simplesmente, o escritor livre, indignado com o
cerceamento, com o medo, com a incapacidade de agir.
Primeiramente o “Transeunte” e “Maria Auxiliadora da
Paz”, depois “Geraldinho boca de trombone” vão com-
pondo e divulgando discussões políticas e informações
proibidas e censuradas como alternativa às notícias dos
jornais tradicionais, limitadas pelas exigências do regime
e do mercado. Estes novos veículos trazem para o cenário
local (Nova Iguaçu) uma forma de mobilização e de pro-
vocação (aos políticos locais) marcada pela criativida-
de, pela coragem e pela imprudência. Os codinomes
utilizados são emblemáticos: “Transeunte”, aquele que
se move, sem paradeiro fixo, sem destino. O marginal (e
marginalizado) por excelência. “Maria Auxiliadora da
Paz”, mulher, portanto pertencente a uma minoria, que
carrega no próprio nome um apelo. E, por fim, o es-
cracho: “Geraldinho boca de trombone”, o homem
comum que fala; que fala sem que o detenham, sem
limites; em suma, o agitador.
A conjuntura política do país transformou o papel
das mídias — principalmente do jornal e dos jornalistas
— gerando, conforme ressaltou Abreu18, uma valorização
simbólica da ligação entre jovens quadros a partidos,
principalmente o PCB. Assim, “a escolha do jornalismo
como profissão era uma forma de exercer o engajamento
político, divulgar uma ideologia e atuar politicamente”.
Na época de sua atuação como colunista no Correio da
Lavoura, Jorge Gama era um advogado recém-formado
que, de alguma forma, traduziu esse espírito de seu
tempo como porta-voz local da insatisfação, da con-
testação e do anseio pela mudança.
Este “movimento” (como Jorge o denomina) teve
início na década de 1970, influenciando em sua entrada
na vida político-eleitoral local com a candidatura pelo
MDB do advogado Humberto dos Santos, considerada
“mais conseqüente, mais de esquerda”. Jorge coordenou
a campanha vitoriosa de Betinho (como Humberto era
conhecido). Um candidato “mistura de boêmio e con-
testador, mas inorgânico”, que fez um mandato “com-
bativo” sem, no entanto, manter uma relação de proxi-
midade com o partido. Em 1972 (ano em que se casou e
residiu no bairro carioca da Ilha do Governador), deu
prosseguimento à sua atuação como articulador e coor-
denador de campanhas, no interior do estado pelo MDB.
O primeiro turning point de Jorge Gama deu-se, contu-
do, apenas dois anos depois. De seu escritório, foi um
dos responsáveis pela articulação da campanha de Fran-
cisco Amaral à Alerj — apoiada pela esquerda (segundo
Jorge, “uma esquerda independente, uma parte do “Par-
tidão”, além de setores da Igreja”) — que foi eleito e
tornou-se um dos principais nomes da “esquerda local”19.
O escritório de Jorge figura, em sua narrativa, como
o espaço no qual se deu sua formação ideológica. É a
partir da criação desta prestadora de serviço, do contato
com os dois advogados que trabalhavam no escritório e
com Francisco Amaral que Jorge marca sua passagem
para a “política de verdade”. Se a “origem” dessa ligação
localiza-se nas “conversas políticas” com os amigos
boêmios e contestadores, a mudança de seu estatuto
político foi conferida por intermédio da relação com
18 ABREU, Alzira. “Jornalistas e jornalismo econômico na transição democrática”. In: ______, LATTMAN-WELTMAN, F. e KORNIS,
M. 2003. Mídia e política no Brasil. Jornalismo e Ficção. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. p.21.
19 Nesse ano, a eleição para governador deu-se por meio de eleição indireta, realizada pelo sufrágio de um Colégio Eleitoral nas
Assembléias Legislativas, na forma do artigo único, caput e § 1º da Emenda Constitucional n.º 2, de 9 de Maio de 1972. Da mesma
forma ocorreu a eleição para Presidente da República, realizada pelo Colégio Eleitoral (composto de membros do Congresso Nacional
e de delegados das Assembléias Legislativas dos Estados), na forma dos arts. 1º e 2º, da Lei Complementar n.º 15, de 13-08-1973.
(Tribunal Superior Eleitoral)
22 Cadernos de Pesquisa do CDHIS — n. 40 — ano 22 — p. 17-32 — 1º sem. 2009
nomes “mais da esquerda” e se apresenta como fun-
dadora de um novo ciclo: sua entrada como ator político
na arena local.
“Eu tinha uma formação crítica, no máximo. Depois
eu adquiri uma formação ideológica. Uma formação
mais social”. Havia, sem dúvida, um significativo peso
simbólico em classificar-se (e/ ou ser classificado) como
“de esquerda”. De um lado, havia a preocupação em não
ser vinculado a uma postura radical (“esquerdista”), ao
mesmo tempo em que era desconfortável (para alguns
atores sociais) ser rotulado de conservador. Grosso modo,
“ser de esquerda” aludia a um rol de atributos, conhe-
cimentos e práticas remetidos fundamentalmente à
postura de crítica ao regime militar.
A relação com Francisco Amaral, anterior à sua
vinculação com eleições, estreitou-se a partir de sua
entrada no cenário eleitoral de Nova Iguaçu e das
possibilidades abertas por um contato direto com a
Assembléia Legislativa. A atuação no cartório (“desde
criança”) e sua profissão foram decisivas para o esta-
belecimento de contatos com diferentes segmentos
sociais, assim como a vida boêmia e o estilo contestador.
Juntos, estes atributos compunham a imagem de um
profissional responsável, ao mesmo tempo em que o
associavam a um tipo de sociabilidade e de trânsito entre
a classe média (na qual se incluía) e setores populares,
em algum nível mediado pelos locais por ele fre-
qüentados, pelos “personagens” que criou e por seus
escritos nos jornais locais. Forjavam-se, assim, algumas
das características que o distinguiriam e o tornaria um
candidato vitorioso naquele momento. Estavam em jogo
os processos de identificação que resultariam na cons-
tituição de sua persona pública.
Nessa época, na verdade, estava surgindo uma
classe média em Nova Iguaçu. Já não era mais aquela
aristocracia rural. Ali, eu apareço em [19]76 como um
personagem que transitavaentre todo mundo, que con-
versava com todo mundo, que tinha as idéias. Não era
esquerdista, mas não era conservador. Eu também esta-
va buscando uma identidade. (Jorge Gama, 05/10/2003)
Jorge Gama disputou, em 1976, sua primeira eleição
para a Câmara Municipal de Nova Iguaçu, embora o
partido pretendesse lançá-lo como candidato à pre-
feitura20. Preferiu, no entanto, novamente apoiar
Francisco Amaral que, contudo, não conseguiu se eleger,
sendo perseguido, tendo sua candidatura ameaçada de
impugnação e seus colaboradores coagidos21. Jorge, por
sua vez, foi eleito vereador pela legenda do MDB (Movi-
mento Democrático Brasileiro) como o segundo mais
votado do partido — com 3.847 votos — graças à sua
inserção junto às camadas médias de Nova Iguaçu e,
segundo o próprio, ao voto expressivo dos “servidores da
Justiça”, em uma alusão direta a seu vínculo profissio-
nal. Nesse mandato, durante o governo do prefeito da
ARENA, ex-interventor agora eleito, Rui Queirós pre-
sidiu a Comissão de Justiça e a de Redação da Câmara
Municipal e foi um opositor do governo municipal e das
políticas administrativas que o executivo implementava.
Nesse primeiro momento, ainda não havia delineada
uma geografia eleitoral de contornos nítidos. Jorge Gama
não tinha como reduto eleitoral um bairro ou área da
cidade específicos, e sim uma determinada camada social
e um grupo profissional mais facilmente identificável. A
representação espacial, tão cara à política em geral —
como, por exemplo, à política dos vereadores22 — não
era predominante e tornava possível ao candidato (Jorge
Gama) ampliar suas possibilidades eleitorais por inter-
médio de uma “bandeira” que, apesar de representar
interesses específicos, perpassava, no caso de Nova
Iguaçu, diferentes áreas da cidade.
A dinâmica das relações pessoais é outro fator que
merece atenção. Desde o período de sua “formação polí-
tica”, as relações de Jorge com algumas pessoas em Nova
Iguaçu foram fundamentais para sua decisão de ingres-
sar no cenário político-eleitoral. A noção de rede é aqui
retomada privilegiando-se seu aspecto mais centrado no
20 As eleições de 15 de novembro, de âmbito nacional, foram reguladas na forma da Resolução n.º 10.041, do Tribunal Superior
Eleitoral, de 16-06-1976. As eleições para prefeito, vice-prefeito e vereadores deram-se em 20 de dezembro, nos municípios em que
não foram realizadas em 15-11-1976. Consoante disposto no art. 1º da Resolução n.º 10.242, do Tribunal Superior Eleitoral, de 10-
12-1976. (Tribunal Superior Eleitoral)
21 Jorge Gama foi intimado — “convidado para ter uma conversa” — pelo major Carneiro, no Regimento Sampaio, não somente por
estar à frente da campanha de Francisco Amaral, mas essencialmente por sua ligação com o jornal O Pontual, que pertencia ao
empresário Manuel Góes Teles. Na ocasião, Jorge foi inquirido a respeito do jornal e de sua ligação com Manuel Góes Teles e depois
liberado.
22 LOPEZ Jr., Feliz Gracia . As relações entre executivo e legislativo no município de Araruama. Dissertação (Mestrado em Antropologia)Rio
de Janeiro: PPGAS/MN/UFRJ, 2001.
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ego, o ator político, interessando refletir sobre a forma
como as relações diádicas são travadas e operaciona-
lizadas para a prática da política local23. Tais relações
não foram constitutivas apenas dos processos de iden-
tificação política de Jorge Gama, mas qualificaram sua
inserção local a partir da rede a que resolveu aderir.
Sua aproximação com as camadas populares foi, no
entanto, posterior à primeira eleição e deu-se por meio
de sua relação com membros da Igreja Católica da
Diocese de Nova Iguaçu — também por intermédio de
Francisco Amaral que o apresentou a Dom Adriano
Hipólito24, o que permitiu sua inserção no universo dos
movimentos populares. Essa ligação — e o
reconhecimento de seu lugar legítimo como político na
cidade — favoreceu sua eleição para deputado federal,
pelo MDB, em 1978 — com 25 mil votos, apenas em
Nova Iguaçu (totalizando cerca de 38 mil votos), tendo
sido um dos mais votados da região (TRE/RJ). Em seu
relato, Jorge Gama enfatizou sua independência com
relação aos nomes mais importantes do partido na cidade
— como o de Francisco Amaral — assumindo a
responsabilidade pelas despesas da campanha com a
ajuda de alguns parentes, de conhecidos (“um ou outro
me dava alguma coisa...”) e, só mais tarde, de sua
legenda.
A minha eleição, repito, foi pela classe média, [fui]
o segundo mais votado. Mas, logo depois de eleito, o
movimento popular estava começando a ter um
crescimento aqui; esse crescimento, muito ligado à
Diocese de Nova Iguaçu — a Dom Adriano, e aí o
Francisco Amaral, que nós já tínhamos feito a eleição
dele em (19)74, já estava na política antes de mim. Então,
peguei o meu mandato e coloquei o meu mandato à
disposição do movimento popular. Eu me engajei
totalmente no movimento popular, na formação das
associações de moradores, na sua organização do ponto
de vista legal. Nós dávamos uma assessoria [sobre]
como fazer e tal; política, principalmente política. Nós
tínhamos reuniões intermináveis aí, em todo o
município de Nova Iguaçu, que antigamente era
Queimados, Mesquita, Japeri […] era bem maior. E
depois teve uma luta específica que também fortaleceu
muito o movimento popular. (Jorge Gama, idem)
A partir de sua relação com as associações, a bandeira
política de Jorge Gama passou a ser a da “casa própria”.
Assim como o lote25, a “casa própria” não representava
somente um sonho de consumo, mas a própria
incorporação social, tornando possível aos indivíduos
perceberem-se como cidadãos ao expressarem relações
de significação entre espaço e política e sua dimensão
na configuração de modos de vida. Em Nova Iguaçu, e
na Baixada de modo geral, tal problemática mobilizou
discursos políticos e organizações civis, possibilitando a
Jorge a operacionalização de um fazer político
informado por seu fazer profissional: o Direito. Os
despejos em massa consistiram acontecimentos decisivos
para solidificar essa aproximação e reformular as
imagens que compunham sua identidade política. Para
Jorge, ainda que se partisse de uma questão pessoal —
como a casa da família A ou B — o mecanismo de
articulação desenvolvido junto às associações conseguia
originar debates de natureza política. Segundo ele, aquele
era o momento oportuno para “plantar a crítica e a
conscientização” e mobilizar as pessoas para a ação
política. A centralidade da “casa própria” para os
envolvidos nos movimentos sociais refletia-se na
dinâmica local, nos símbolos adotados e no discurso
tornado público pelos atores legitimamente constituídos
(investidos) durante o processo. A “casa própria” aparece
então como palavra-de-ordem para criar e organizar a
ação. Através dela (e por ela), esta última se realizava.
Reuniões eram articuladas no escritório de Jorge nos
domingos à noite; fomentava-se o debate; construía-se
a mobilização. O escritório funcionava como ponto de
encontro para falar de política, conversar com as lide-
ranças das associações de moradores. Era freqüentado
também por artistas e boêmios, ao mesmo tempo em
que funcionava para o atendimento ao eleitor26.
23 MITCHELL, J. Clyde. Social Networks in Urban Situations. Manchester: Manchester University Press, 1971. BEZERRA, Marcos
Otavio. Corrupção: um estudo sobre poder público e relações pessoais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume-Dumará/ANPOCS,1994.
24 Dom Adriano Hipólito foi um personagem marcante na Baixada entre 1966 e 1981. Foi Bispo de Nova Iguaçu e atuou junto aos
movimentos sociais, auxiliando a formação das Comunidades Eclesiais de Base na região. Foi seqüestrado em 1976

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