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TEXTO IV DIREITO INGLÊS

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Texto IV- Direito inglês
Caráter histórico do direito inglês: Mais ainda do que para o direito francês, o conhecimento histórico é indispensável quando se considera o direito inglês. Este não conheceu nem a renovação pelo direito romano, nem a renovação pela codificação, que são características do direito francês e dos outros direitos da família romano-germânica. Desenvolveu-se de forma autônoma, sofrendo apenas de forma limitada a influência de contatos com o continente europeu. O jurista inglês - que subestima a continuidade dos direitos continentais, convencido de que a codificação provocou uma ruptura com a tradição destes direitos - gosta de valorizar a continuidade histórica do seu direito; este surge-lhe como sendo produto de uma longa evolução que não foi perturbada por nenhuma revolução; orgulha-se desta circunstância, da qual deduz, não sem razão, a prova da grande sabedoria da common law, das suas faculdades de adaptação, do seu permanente valor, e de qualidades correspondentes nos juristas e no povo inglês. Não se deve exagerar esse caráter "histórico" do direito inglês. A verdade é que os ingleses gostam de pôr em evidência esse caráter tradicional, enquanto os franceses preferem evidenciar o caráter racional e lógico do seu direito. Na realidade, a parte tradicional e racional de ambos os direitos não são fundamentalmente diferentes. O direito francês e o inglês tiveram de se adaptar a mudanças e fazer face às necessidades de sociedades que sempre foram e são, afinal de contas, muito semelhantes. As revoluções foram simples acidentes de percurso na longa evolução do nosso direito.
Podem reconhecer-se quatro períodos principais na história do direito inglês. O primeiro é o período anterior à conquista normanda de 1066. O segundo, que vai de 1066 ao advento da dinastia dos Tudors (1485), é o da formação da common law, no qual um sistema de direito novo, comum a todo o reino, se desenvolve e substitui os costumes locais. O terceiro período,
que vai de 1485 a 1832, é marcado pelo desenvolvimento, ao lado da common law, de um sistema complementar e às vezes rival, que se manifesta nas "regras de eqüidade". O quarto período, que começa em 1832 e continua até os nossos dias, é o período moderno, no qual a common law deve fazer face a um desenvolvimento sem precedentes da lei e adaptar-se a uma sociedade dirigida cada vez mais pela administração. 
Estrutura do direito inglês
Importância da matéria: Até uma época recente procurou-se pôr em destaque, como sendo o aspecto original mais notável do direito inglês, a teoria das fontes do direito admitida na Inglaterra. Os juristas do continente europeu eram educados no culto pela lei e admiravam os códigos. Parecia-lhes estranho, e quase inconveniente, ver um país altamente civilizado, o maior país comercial do mundo, rejeitar a fórmula da codificação e continuar ligado a uma fórmula no seu entender ultrapassada, vendo na jurisprudência a fonte fundamental do direito. A lei e a jurisprudência não desempenham a mesma função no direito francês e no direito inglês. Contudo, antes de expor as notáveis diferenças que existem neste assunto, parece-nos importante fazer notar uma diferença de outra ordem entre direitos da família romano-germânica e de common law, a saber, a diferença que existe entre esses direitos na sua própria estrutura. Esta diferença tende, nos nossos dias, a ser reconhecida como a mais fundamental: é a mais difícil de ser superada pelo jurista do continente europeu, e é ela que explica, afinal, por que razão os juristas ingleses têm uma teoria das fontes do direito diferente da nossa e por que razão o direito inglês, em particular, não aceitou nem pode aceitar a fórmula romano-germânica da codificação. As diferenças de estrutura existentes entre o direito românico e o direito inglês foram, durante muito tempo, negligenciadas; só recentemente os juristas se aperceberam do seu caráter essencial. A razão disso é que, durante um grande período sob a influência de uma certa teoria, se julgou poder analisar
o direito como sendo um conjunto de normas. Para aquele que considerar com mais critério, o essencial em um direito parecerá ser, contudo, mais do que as simples regras que em dado momento ele comporta, a própria estrutura desse direito, as classificações que admite, os conceitos que usa, o tipo de regras de direito sobre o qual se fundamenta. O próprio ensino do direito só se concebe por isso: porque, além das regras mutáveis, existem quadros que são relativamente estáveis. O essencial é, para o estudante de direito, aprender um vocabulário, familiarizar-se com os conceitos que subsistirão e que lhe permitirão estudar mais tarde uma questão, quando as regras por ele estudadas na escola de direito terão provavelmente mudado. Depende do legislador a modificação ou a abolição desta ou daquela regra do direito atual. Pouco depende dele, porém, a mudança da linguagem que empregamos e a modificação dos quadros nos quais ordenamos o nosso raciocínio. Através de múltiplas mudanças e revoluções, mantemos as palavras e os conceitos de propriedade, de contrato, de casamento, de hipoteca; as regras referentes a estas matérias já não são as mesmas, porém, as novas regras que substituíram as antigas estão expostas no mesmo lugar em obras jurídicas cujo plano se manteve quase inalterado durante séculos.
DIVISÕES E CONCEITOS JURÍDICOS
Importância das categorias jurídicas: A primeira coisa que um jurista pergunta a si próprio, quando lhe é colocada uma questão de direito, é em que categoria de direito se enquadra esta questão. Trata-se de direito criminal, de direito das coisas, de direito de contratos, de direito do trabalho ou das sociedades? Situar deste modo a questão que lhe é proposta é primordial para o jurista, particularmente porque, para ele, trata-se de saber se está ou não qualificado para a resolver. Os juristas sempre se especializaram em uma certa parte do direito nacional: tradicionalmente operou-se uma distinção entre privatistas e publicistas, entre civilistas, comercialistas e criminalistas. A complexidade do direito moderno obrigou os juristas a especializarem- se ainda mais, nos nossos dias: o mesmo jurista não se sente capaz de aconselhar um cliente, e de dirigir eventualmente um processo, em assuntos tão diversos como o direito da propriedade literária e o direito das falências, o direito criminal
ou o da família, ou o direito fiscal. Cada ramo do direito, interessando especialistas diferentes, possui uma literatura que somente os especialistas conhecem bem, tendo os outros juristas apenas conhecimentos gerais sobre estes ramos mais ou menos ultrapassados pela evolução das idéias e do direito. 293. Originalidade das categorias e conceitos do direito inglês. O mesmo acontece no sistema inglês. Mas, por razões de ordem histórica, as grandes divisões do direito, que se encontram neste sistema, não são as mesmas que as dos direitos românicos. Daí resulta, para o jurista francês, uma dificuldade, quando procura estudar o direito inglês. A bibliografia deste direito, por mais abundante e rica que seja, corre o risco de não lhe oferecer o livro básico, correspondente à categoria a que está habituado, e à qual pertence, a seus olhos, a questão que lhe é posta. As obras básicas, das quais se serve o jurista inglês, usam
palavras tais como contract, torts, real property, personal property,trusts, evidence, companies, bailment, quasi-contract, local govemment, conflict oflaws, pleading andpractice, etc. As decisões e categorias francesas são assim substituídas, na Inglaterra, por divisões e categorias que podem, conforme o caso, ser traduzíveis ou não em francês, mas que não são, ao menos de modo geral, as divisões e categorias elementares do direito francês.
A diferença de estrutura que se observa ao nível das grandes divisões do direito, com a divisão da common law e da equity, com a da substantive law e a da adjective law, também com a rejeição ou a ignorância das divisões de base do direito continental, encontra-sea um nível inferior, porém fundamental: o dos conceitos. Ainda neste capítulo o jurista francês muitas vezes não encontra os conceitos familiares do seu direito: as noções de personalidade moral de pessoas coletivas, de órgão público, de dolo, de contravenção não existem no direito inglês. Para se exprimirem em termos compreensíveis neste direito é necessário, pelo contrário, que utilizem conceitos como o de domicilie of origin, de indictable offence, de perpetuity, de charity ou de injunetion, que não têm correspondentes no direito francês.
Explicação pela História da estrutura do direito
inglês. Por que razão existem estas diferenças de estrutura? A sua explicação é evidente: ela se encontra na diferente evolução histórica dos dois tipos de direito: direitos românicos e
common law. O sistema dos direitos românicos é um sistema relativamente racional e lógico, porque foi ordenado, considerando as regras substantivas do direito, graças à obra das universidades e do legislador. Subsistem nele, sem sombra de dúvida, numerosas contradições e anomalias devidas à História ou que se explicam por considerações de ordem prática. Os direitos da família romano-germânica estão longe de uma ordenação puramente lógica, mas realizou-se um grande esforço nesse sentido para simplificar o seu conhecimento. O direito inglês, pelo contrário, foi ordenado, sem qualquer preocupação lógica, nos quadros que eram impostos pelo processo; só numa época recente - nos últimos cem anos - , tendo sido abolido o antigo sistema de processo, a ciência do direito pôde esforçar-se no sentido de racionalizar estes quadros. Progressos notáveis foram realizados, mas conservaram-se, de modo geral, as noções e classificações às quais se estava habituado devido a uma longa tradição. Damos aqui alguns exemplos, mostrando a força da tradição. O mais típico é, talvez, a célebre definição de equity, à qual chega o mais ilustre expositor da matéria, F. W. Maitland. "A equity, escreve Maitland. é este corpo de regras que, se não fosse a reforma dos Judicature Acts, seriam aplicadas de maneira exclusiva pelas jurisdições especiais chamadas Tribunais de equity." O direito inglês das coisas divide-se em personal property e realproperty: esta última considera os direitos que, antes da reforma do processo de 1833, eram garantidos pelas ações ditas reais; a personal property considera os direitosque, antes de 1832, eram garantidos pelas ações ditas pessoais. A noção inglesa de contrato apenas engloba os compromissos outrora sancionados pela ação de assumpsir, não se aplica nem às doações, nem ao trust, nem ao depósito que foram, na História, sancionados de maneira diferente. Compreender-se-á através destes exemplos como as categorias e conceitos do direito inglês puderam vir a ser totalmente diferentes das categorias e conceitos da ciência românica.
Common law e equity
Caráter fundamental desta distinção. A distinção mais elementar ensinada ao estudante desde a sua chegada à escola é, na família romano-germânica, a que existe entre o direito
público e o direito privado. Esta distinção, pelo contrário, não é feita tradicionalmente pelo direito inglês, em que durante muito tempo se recusou a sua admissão, vendo nela a manifestação da idéia de que o Estado e a administração não estariam submetidos ao direito.
A distinção fundamental ensinada ao estudante de direito inglês é, pelo contrário, uma distinção que ignora completamente os direitos da família romano-germânica: é a que distingue a common law da equity. Já pudemos observar, na história do direito inglês, a origem desta distinção; a equity é um conjunto de soluções que foram, principalmente nos séculos XV e XVI, outorgadas pela jurisdição do Chanceler, para completar e eventualmente rever um sistema o da common law - , então bastante insuficiente e defeituoso. E necessário, neste momento, dar certas precisões sobre estas soluções de equity e mostrar, particularmente,
como a distinção da common law e da equity continuou a ter importância até a época atual, apesar da "fusão da common law e da equity", operada no que se refere à organização judiciária em 1875. De fato, ainda hoje, a distinção da common law e da equity continua a ser a distinção fundamental do direito inglês, comparável à nossa entre o direito público e privado, tanto que, tal como na França, onde os juristas se classificam naturalmente em privatistas e publicistas, os juristas ingleses se dividem também em common lawyers e equity lawyers.
Origem da equity.
 É necessário reconsiderar as condições em que se desenvolveram as regras de equity no direito inglês. Quando o sistema da common law funcionava mal – ou porque os Tribunais Reais não podiam ser consultados, ou porque não podiam conceder a solução adequada solicitada por um pleiteante, ou porque não tinham meios para bem conduzirem um processo, ou ainda porque chegavam a uma decisão contrária à eqüidade - , os particulares tinham, segundo as idéias da Idade Média, a possibilidade de pedir a intervenção do rei, fazendo apelo aos imperativos de sua consciência, para que tomasse uma decisão que facilitasse o curso da justiça ou para que impusesse a solução exigida pela justiça. O direito não era um tabu. O rei, soberano justiceiro, devia assegurar aos seus súditos a justiça; a sua intervenção era legítima nos casos em que a técnica do direito era defeituosa.
Equity follows the law. A intervenção do Chanceler nunca consistiu em formular regras novas de direito, que os juizes deveriam aplicar no futuro. O Chanceler nunca pretendeu modificar o direito, tal como fora explicitado e era aplicado pelos tribunais de common law. Bem pelo contrário, o Chanceler professa o seu respeito por este direito: "A eqüidade respeita o direito" (equity follows the law) é um dos axiomas proclamados pela Chancelaria. Contudo, respeitar o direito não implica que se deva negligenciar a lei moral; é em nome desta última que o Chanceler vai intervir. Com efeito, não se admitiria que o summum jus resultasse em summa injuria. Em outros países, os próprios juizes podem remediar isso, proibindo o abuso do
direito ou a fraude, ou fazendo intervir as noções de ordem pública ou de bons costumes. Estas intervenções produzem-se, no continente europeu, no quadro dos próprios princípios do
direito. Na Inglaterra os Tribunais Reais, tendo apenas uma competência limitada e estando obrigados a observar processos rígidos, não tiveram a mesma liberdade de manobra; foi
necessário recorrer a uma jurisdição especial, fundada sobre a prerrogativa real, para introduzir no restrito direito da common law as limitações ou complementos que a lei moral e a consciência reclamavam. Mostraremos, com alguns exemplos, como se produziu esta intervenção.
A common law pode apenas, no caso de inexecução de um contrato, outorgar perdas e danos à parte que se queixa dessa inexecução. A ação de assumpsit, pela qual são sancionados os contratos, é, com efeito, modelada sobre a ação delituosa de trespass, que pode resultar apenas em uma condenação por perdas e danos. Pode acontecer que esta sanção seja
inadequada, e que seja do interesse de um contratante obter a própria prestação que lhe foi prometida. Nenhuma ação diante do tribunal da common law permite conseguir esse resultado. Já na jurisdição do Chanceler, poder-se-á obter uma decisão de execução forçada (decree of specific performance), ordenando ao contratante que execute in natura a obrigação por ele assumida. A common law não é de modo nenhum violada; só se outorga uma solução que ela não está habilitada a conceder. A common law considera o processo como uma espécie de torneio no qual o juiz desempenha um papel de simples árbitro. Cada uma das partes deve apresentar as suas provas, e nenhuma delas dispõe de qualquer meio para obrigar a outra a apresentar, por exemplo, um documento que esteja na sua posse. A jurisdição do Chanceler, se necessário, poderá ainda aqui intervir e ordenar a uma das partes, por um discovery order, a apresentação de um tal documento.A common law, sistema arcaico, elaborou, em matéria de contratos, uma teoria dos vícios do consentimento bastante grosseira, pouco desenvolvida. Tem, por exemplo, uma concepção de coação (duress) que se limita a sancionar a coação física, não reconhecendo a coação moral. O Chanceler intervirá
contra aquele que, contrariamente à consciência, tirou partido da sua qualidade de parente, de tutor, de patrão, de confessor,de médico para obter de uma outra pessoa um contrato ou
qualquer outra vantagem indevida; ser-lhe-á proibido prevalecer-se desse contrato e exigir a sua execução. É a doutrina da iindite influence que dita o seu imperativo moral às regras jurídicas da duress. Uma pessoa entregou a outra um bem, confiando nela, para que o administre no interesse de um terceiro, ao qual teria sido inconveniente ou impossível tornar proprietário. Segundo a common law, a pessoa que recebeu o bem (trustee) torna-se
proprietária pura e simples; o compromisso que tomou de o gerir no interesse de um terceiro e de lhe remeter os lucros não tem valor. O Chanceler dará efeito a esse compromisso. Não
irá contra a common law e não negará que o trustee seja o proprietário do bem; mas acrescentará à common law, sancionando o compromisso tomado conscientemente pelo trustee.
Como se vê, o Tribunal do Chanceler aceita os princípios da common law (equity follows the law), mas intervém num certo número de casos - do que resultarão regras complementares,
ditas de equity - a fim de aperfeiçoar, no interesse da moral, o sistema de direito aplicado pelos tribunais. O que se poderia desejar em relação a estas regras complementares seria
que os tribunais de common law as desenvolvessem. Por uma série de razões, não puderam fazê-lo ou não o fizeram. Foi outra autoridade, a Chancelaria, que as elaborou.
Pelo fato de essa autoridade - pelo menos originariamente - não ter sido considerada como um tribunal, ela não se apresentou como estatuindo "em direito", o que poderia ter originado
um conflito com os Tribunais de Westminster interessados, tanto do ponto de vista pecuniário como moral, em manter o seu monopólio da administração da justiça. A própria terminologia empregada pelo Tribunal do Chanceler dá testemunho disso: não se intenta diante deste tribunal uma ação, apresentam- se, por meio de uma petição (suit), certos "assuntos" (matters), fazendo valer interesses (interests) e não direitos (rights), e o Chanceler formula, no fim do processo, não um "julgamento", mas uma ordem (decree), na qual poderá eventualmente outorgar uma indenização e não conferir danos-interesses (damages). O Chanceler intervém "em eqüidade", sem pretender modificar as próprias regras do direito administrado pelos tribunais. O que justifica a intervenção do Chanceler, em todos os casos, são as exigências da consciência. A consciência se choca com a solução que resulta de um direito imperfeito. É contrário à consciência, para aquele contra o qual se age, agir como pretende, aproveitando-se dessa má situação do direito.
Equity acts in personam. A maneira como o Chanceler age é sempre a mesma. Equity acts in personam: o Chanceler age por ordens, por mandados formais dirigidos ao réu; ele ordena a essa pessoa, ou proíbe-lhe, pelo contrário, que se comporte desta ou daquela maneira, e impõe-lhe, no interesse da salvação da sua alma (o Chanceler é originariamente um clérigo), um comportamento de acordo com as exigências da lei moral e da consciência. O réu, se transgride a ordem que lhe foi dada pela Chancelaria, irá para a prisão ou terá os seus bens
apreendidos e penhorados. O Chanceler só intervém se puder eficazmente ameaçar o réu com estas sanções. As regras que determinam a competência do Tribunal do Chanceler são, por conseqüência, diferentes das que regem a competência dos tribunais da common law.
Processo da Chancelaria. O Chanceler examina os casos que lhe são submetidos segundo um processo e um sistema de provas inteiramente diferentes dos da common law. O Chanceler recebe sempre, inicialmente, um writ of subpoena; não existem forms of action na equity. O processo da equity, inspirado no do direito canônico, não comporta em nenhum caso, a colaboração de um júri, o que permite dar maior importância aos documentos escritos e se reportar a um dossiê; o Chanceler, deliberando em nome da moral, pode igualmente, para descobrir a verdade, tomar iniciativas que não são permitidas aos juizes da common law. Acrescentemos que a Chancelaria exerce numerosas atribuições de jurisdição gratuita: é convocada constantemente para fornecer diretivas aos trustees quanto à gestão dos bens
que lhes são confiados, para aprovar modificações nos estatutos de uma sociedade por ações, para tomar medidas no interesse de um menor declarado sob tutela do tribunal (ward of court), etc.
Caráter distinto do direito inglês. O direito inglês não é uni direito de universidades nem um direito de princípios; é um direito de processualistas e de práticos. O grande jurista na Inglaterra é o juiz, saído das fileiras dos práticos; não é o professor da universidade; somente uma minoria de juristas, outrora, estudou nas universidades; nenhum dos grandes juizes do século XIX possuía título universitário. A maioria dos juristas era formada unicamente pela prática, escutando as lições dos juizes e participando no trabalho dos advogados. Estudar
e conhecer os princípios não teria sido para eles uma grande ajuda. O essencial foi, até o século XIX, na Inglaterra, encontrar uma forma de ação que permitisse convocar os tribunais
reais e evitar as ciladas que se apresentavam, a cada passo, num processo muito formal ista. Se se chegar ao termo do processo, pode-se depositar confiança no júri para reconhecer a
justiça da causa. Mas a dificuldade é chegar até o fim do processo e, para isso, é necessário concentrar a atenção nos obstáculos de todos os gêneros que podem encontrar-se nele. O processo, por outro lado, desenrola-se perante um júri; rigorosas e necessárias regras de prova foram, por isto, elaboradas, para que se obtivessem vereditos razoáveis de jurados ignorantes e facilmente emotivos. A preocupação do processo vai colocar-se, então, no primeiro plano das preocupações destes práticos que são os juristas ingleses: porque parece claramente a esta gente de bom senso que não serve para nada ter razão se não se puder obter a justiça que se deseja. O direito inglês continuou a ser, em sua essência, até o século XIX, extraordinariamente impreciso e informe. Do direito contratual inglês, principalmente, pode dizer- se que apenas data dos séculos XIX e XX.
O processo inglês atua. O processo inglês, nos últimos cem anos, tornou-se muito mais simples. O direito inglês, por outro lado, enriqueceu-se consideravelmente quanto à sua essência e adquiriu um rigor comparável ao dos direitos do continente europeu. Os juristas ingleses frequentam cada vez mais os cursos de direito das universidades, para aprenderem
os princípios que foram sistematizados nos nossos dias de maneira totalmente semelhante aos princípios dos diferentes direitos românicos. Contudo, o estado de espírito produzido por uma tradição secular perpetua-se em numerosas instituições e continua vivo nos juristas. O processo seguido nos tribunais de justiça, por exemplo, continua largamente a ser o que era seguido quando era normal existir um júri, embora a presença do júri seja hoje, especialmente
em matéria civil, excepcional. O processo é cuidadosamente preparado de modo que os pontos de desacordo entre as partes surjam claramente e sejam fixados nas questões em relação às quais se poderia responder sim ou não, segundo a prática que conhecemos na única jurisdição que funciona na França com um júri: o tribunal criminal. O processo conclui-se por
uma audiência pública, the day in Court, em que os pontos de desacordo vão ser elucidados por uma técnica de provas inteiramente orais audição de testemunhas, que são interrogadas
sucessivamente pelos advogados das duas partes (examination- in-chief e cross-examination):não existe qualquer auto do processo; tudo deve ser feito oralmente em audiência, para que
um júri, outrora inculto, possa formar a sua opinião. A audiência não deve ser interrompida, e a decisão sobre a questão deve ser imediatamente tomada: o júri, se o houvesse, deveria, com
efeito, ser libertado o mais cedo possível dessas funções. Certas provas devem ser excluídas, quer em matéria civil, quer em criminal, porque seriam suscetíveis de produzir um efeito impróprio sobre o espírito destes jurados ignorantes que têm de supor-se sempre presentes; o direito inglês caracteriza-se pela riqueza e pelo tecnicismo, considerado excessivo por alguns, do seu direito de provas14. Devido a todas estas regras, o processo conservou na Inglaterra uma importância considerável em comparação com os países do continente europeu, sobretudo se se considerarem, no direito inglês, as suas partes tradicionais, as que constituem o que se chama o direito dos juristas.
A concepção jurisprudencial da legal rule. Uma outra diferença de estrutura entre direitos da família romano germânica e a common law manifesta-se em outro plano, se se comparar o que um jurista francês entende pelas palavras règle de droit e aquilo que um jurista inglês chama legal rule. Teremos de sublinhar, ao examinarmos a função da jurisprudência e a da legislação, consideradas como fontes do direito, a grande diferença que, quanto a este assunto, existe entre direito francês e direito inglês. O direito inglês, proveniente dos processos da common law, é essencialmente um direito jurisprudencial (case law)\ suas regras são, fundamentalmente, as regras que se encontram na ratio decidendi das decisões tomadas
pelos tribunais superiores da Inglaterra. Na medida em que faz declarações que não são estritamente necessárias para a solução do litígio, o juiz inglês fala obiter, emite opiniões
que podem ser sempre postas em causa e discutidas, porque não constituem regras de direito. A legal rule inglesa colocasse ao nível do caso concreto em razão do qual, e para cuja resolução, ela foi emitida. Não se pode colocá-la a um nível superior sem deformar profundamente o direito inglês, fazendo dele um direito doutrinai; os ingleses são bastante avessos a uma tal transformação e apenas adotam, verdadeiramente, em particular as regras formuladas pelo legislador, por menor que seja a interpretação que elas exijam, quando forem efetivamente interpretadas pela jurisprudência; as aplicações jurisprudenciais tomam então o lugar, no sistema do direito inglês, das disposições que o legislador editou. Muito diferente é, como se sabe, a situação nos direitos do continente europeu: direitos que não se tecem a partir de decisões de jurisprudência, mas cujos princípios foram elaborados pela doutrina, nas universidades, sistematizando e modernizando os dados do direito de Justiniano. A regra de direito inglês é uma regra apta a dar, de forma imediata, a sua solução a um litígio; não a compreendemos verdadeiramente e não podemos apreciar o seu alcance sem conhecer bem todos os elementos do litígio, a propósito do qual ela foi afirmada. A regra de direito continental, mais ligada à teologia moral do que ao processo, é uma regra, evidenciada pela doutrina ou enunciada pelo legislador, apta a dirigir a conduta dos cidadãos, numa generalidade de casos, sem relação com um litígio particular. As duas regras, visando pela sua origem uma finalidade diferente, não podem ter o mesmo nível de generalidade; a regra de direito francês é inevitavelmente mais abrangente do que a regra inglesa. A tradução de legal rule por regra de direito corresponde, nestas condições, a uma aproximação bastante grosseira; deforma nos nossos espíritos a verdadeira concepção da legal rule inglesa.
Fontes do direito inglês
Justificação do plano. O direito inglês, elaborado historicamentepelos Tribunais de Westminster (common law) epelo Tribunal da Chancelaria (equity), é um direito jurisprudencial,não apenas por suas origens remotas. Tendo sido menor na Inglaterra do que no continente a influência das universidades e da doutrina, e nunca tendo sido efetuada pelo legislador através da técnica de codificação uma reforma geral, o direito inglês conservou, no que respeita às suas fontes tal como à sua estrutura, os seus traços originários. Ele é, de forma típica, um direito jurisprudencial (case law), e é pelo estudo da jurisprudência que convém começar o estudo das suas fontes. A lei chamada em inglês statute - apenas desempenha,
na história do direito inglês, uma função secundária, limitando-se a acrescentar corretivos ou complementos à obra da jurisprudência. Contudo, a situação está nos nossos dias modificada em larga medida. Na Inglaterra de hoje, a lei e os regulamentos (de lega teci legislation, subordinate legislation) já não podem ser considerados como tendo uma função secundária. A sua função é, com efeito, igual àquela que essas fontes do direito desempenham
no continente europeu. No entanto, por razões de ordem histórica, essa função exerce-se de um modo diferente; a estrutura do direito inglês opõe-se a que se veja na obra do legislador
o equivalente aos códigos e leis do continente europeu. Comparadas à jurisprudência e à lei, as outras fontes desempenham no direito inglês de hoje uma função secundária. Essa função está, contudo, longe de ser desprezível e importa por isso conhecê-la.
JURISPRUDÊNCIA
O estudo da jurisprudência, principal fonte do direito inglês, pressupõe o conhecimento dos grandes princípios da organização judiciária inglesa. Exporemos, por consequência, esses princípios, antes de estudar, a partir da regra do precedente, a autoridade reconhecida pelo direito inglês às decisões judiciais.
Diferentes tipos de jurisdições. A organização judiciária inglesa foi durante muito tempo extremamente complexa e ainda hoje é bastante desconcertante para o jurista do continente
europeu, apesar das reformas que durante uma centena de anos a simplificaram e, em certa medida, a racionalizaram. Faz-se na Inglaterra uma distinção básica, desconhecida no continente, entre o que se pode chamar a "alta justiça, administrada pelos Tribunais Superiores, e a "baixa justiça", administrada numa série de jurisdições inferiores ou por organismos "quase-judiciários". A atenção dos juristas concentra-se especialmente sobre a atividade dos Tribunais Superiores, pelo fato de estes não se limitarem a resolver os processos; as suas decisões, de grande alcance, constituem precedentes" que devem ser seguidos no futuro e pelo estudo dos quais se poderá conhecer qual é o direito na Inglaterra. A maior parte dos assuntos é resolvida, no entanto, fora da alçada daqueles tribunais, por jurisdições inferiores ou organismos "quase-judiciários", mas estes não participam do "poder judiciário" e as sentenças que proferem têm seu interesse limitado à espécie por eles julgada.
Tribunais superiores: o Supreme Court of Judicature. Ao longo da História, na Inglaterra, surgiu um grande número de tribunais superiores: Tribunais de Westminster (Tribunal
do Banco do Rei, Tribunal dos Delitos Comuns, Tribunal da Fazenda), que administram a common law; Tribunal da Chancelaria, que administra a equity; Tribunal do Almirantado,
competente em determinadas matérias de direito marítimo; Tribunal de Divórcio, competente em matéria de direito canônico; Court of Probate, competente em matéria de testamentos. Os Judicature Acts de 1873-1875 vieram simplificar tudo isto. Suprimiram todos estes tribunais, reunindo-os num novo tribunal superior único o Supreme Court of Judicature – o qual pode sofrer, excepcionalmente, o controle da Comissão de Apelo da Câmara dos Lordes. A organização posta em funcionamento pelos Judicature Acts foi modificada várias vezes, particularmente pelo Administration of Justice Act, de 1970, e pelo Courts Act, de 1971,
que entrou em vigor em 1972. Limitar-nos-emos a descrever aqui a atual organização, na qual o Supreme Court of Judicature é composto por três organizações: o High Courl of Justice,o
Crown Court e o Court ofAppeal. O High Court of Justice é formado por três seções: seção
do Banco da Rainha, seção da Chancelaria e seção da Família. A repartição das questões entre as diferentes seções tem apenas um caráter de conveniência de serviço, sendo cada uma
das seções competentes para estatuir sobre qualquer causa que seja da alçada do High Court of Justice. A formação, na seção do Banco da Rainha, de um Admiralty Court e de um Commercial Court, ou, na Chancelaria, a criação de um Companies Court e de um Bankruptcy Court significa apenas que, no seio destas seções, podem existir juizes especializados e certas regras especiais de processo para o exame de diferentes tipos de assuntos. O High Court of Justice comporta, no máximo, nos termos da lei, setenta e cinco puisne judges, chamados Justices, aos quais se acrescentam o Lord Chief Justice, que preside à seção do Banco da Rainha, o Vice-Chancelier, que preside à seção da Chancelaria, e o President, que preside à seção da Família. Todos estes juizes são recrutados entre os advogados para os quais a elevação à dignidade de Justice de Sua Majestade constitui o coroamento do sucesso profissional e social. As questões são submetidas, em primeira instância, ao julgamento
de um único juiz. Este juiz era assistido, antigamente, por um júri, quando se tratava de questões referentes à common law, em matéria civil a presença de um júri tornou-se excepcional e abandonou-se igualmente a regra segundo a qual o veredito do júri (nos raros casos em que subsiste) devia ser proferido por unanimidade.
O Crown Court é uma organização nova, instituída pelo Courts Act de 1971; compete-lhe julgar em matéria criminal. O seu pessoal é bem mais diversificado. A justiça pode ser aí feita segundo a natureza da infração considerada, quer por um juiz do High Court of Justice, quer por um "juiz de circuito" (que é igualmente um juiz profissional, que exerce a sua atividade em tempo integral), quer ainda por um recorder, advogado investido temporariamente das funções de juiz. Havia, em 1975, trezentos e vinte e oito recorders, dos quais quarenta
eram solicitors. Ao lado do juiz encontra-se o júri, se o acusado declara-se inocente.
O Court of Appeal constitui, dentro do Supreme Court of Judicature, um segundo grau de jurisdição. Comporta dezesseis Lords Justices, presididos pelo Master of the Rolls. As
questões são aí submetidas, em princípio, a um colégio de três juizes; o recurso é rejeitado se não se estabelece uma maioria para modificar a decisão contra a qual foi formado. Um dos
colégios do tribunal ocupa-se especialmente das questões criminais; é a Criminal Division do Court of Appeal. As causas são geralmente julgadas, nesta seção, por um Lord Justice e
por dois juizes da Queen 's Bench Division; ao contrário do que acontece nas seções que julgam matéria civil, não é costume que os juizes colocados em minoria o façam conhecer no seio da Crimina! Division.
O Poder Judiciário, característica da Inglaterra. A posição proeminente reconhecida aos juizes dos tribunais superiores deixa clara esta característica; diversamente do que se passa no continente europeu, principalmente na França, existe na Inglaterra um verdadeiro Poder Judiciário, que por sua importância e dignidade não é inferior ao Poder Legislativo
e ao Poder Executivo. Os tribunais superiores de justiça representam, na Inglaterra,
um verdadeiro poder. E a eles que se deve, historicamente, a elaboração da common law e da equity. A situação se modificou em nosso século, mas não houve nenhuma codificação
geral que levasse os juristas ingleses a pensar que a lei se tornou a principal fonte do direito. A Inglaterra não esquece o papel histórico desempenhado pelos tribunais para estabelecer e
defender as liberdades. São muitos os que pensam que este papel continua válido e que um Poder Judiciário real pode constituirum contrapeso útil à aliança, hoje realizada, entre o governoe o parlamento. Pode-se considerar como uma norma constitucionalcostumeira o princípio de que nenhuma decisão contenciosapode ser tomada sem que se submeta ao controle dos tribunais superiores de justiça, tendo, o Poder Judiciário, de certa forma, o direito nato (inherent right) de controlar este tipo de questão. A existência de um Poder Judiciário plenamente independente e grandemente respeitado parece indispensável ao bom funcionamento das instituições inglesas, à formação e ao fortalecimento das quais os tribunais contribuíram fortemente através da História.
Algumas regras do direito inglês permitem compreender a importância reconhecida aos tribunais superiores. Todos os contenciosos são decididos, na Inglaterra, pelo Supreme Court of Judicature, ou pelo menos sob o controle deste tribunal, sejam de matéria civil, criminal ou administrativa. As partes podem se dirigir diretamente ao High Court of Justice ou ao Crown
Court, em todos os casos. Estes tribunais normalmente encaminharão o processo a uma jurisdição inferior, mas cabe-lhes se pronunciar discricionariamente sobre este ponto; estes tribunais podem, da mesma forma, a qualquer momento, evocar qualquer causa que esteja tramitando em qualquer outro tribunal. O High Court of Justice e o Crown Court têm, na Inglaterra, plena jurisdição, sob o controle do Court ofAppeal e da Câmara dos Lordes.
Dominando a elaboração do direito, os tribunais superiores dominam igualmente sua administração. O regulamento do processo do Tribunal Superior (Rules of the Supreme Court)
não é estabelecido pelo parlamento, mas resulta do trabalho de uma comissão na qual predominam os juízes.
Enfim, os tribunais superiores têm poderes para fazer respeitar suas decisões. Diferentemente do que acontece na França, podem dar ordens aos agentes da administração (às vezes, com exceção dos funcionários da Coroa). Podem, também, declarando que existe contempt of court, condenar à prisão quem perturbar o exercício da justiça (publicando, por exemplo, informações relativas a um caso criminal que esteja suh judice), ou quem demonstre má vontade para executar as decisões da justiça em determinadas matérias.
Ausência de Ministério Público. Na Inglaterra não existe, junto aos tribunais de justiça, nenhum Ministério Público. A presença de um agente representante do Poder Executivo
parece aos ingleses inconciliável com a autonomia e com a dignidade do Poder Judiciário. O estatuto reconhecido ao Ministério Público parece-lhes, por outro lado, que destrói a igualdade que é necessário assegurar, em matéria penal, entre a acusação e o acusado. Do mesmo modo, não se encontrará, na Inglaterra, um Ministério da Justiça, embora espíritos brilhantes preconizem a instituição de tal ministério. A autonomia do Poder Judiciário é ainda reconhecida pelo modo de recrutamento e de formação dos juristas; esse recrutamento e essa formação são assegurados pelas instituições que funcionam sob o único controle da autoridade judiciária, e não são confiados às universidades ou a outros organismos independentes dos tribunais.
Significado e alcance da regra. Analisa-se a regra do precedente, teoricamente, em três proposições muito simples: 1º- As decisões tomadas pela Câmara dos Lordes constituem
precedentes obrigatórios, cuja doutrina deve ser seguida por todas as jurisdições salvo excepcionalmente por ela própria; 2º - As decisões tomadas pelo Court of Appeal constituem
precedentes obrigatórios para todas as jurisdições inferiores hierarquicamente a este tribunal e, salvo em matéria cri minai, para o próprio Court of Appeal; 3º - As decisões tomadas pelo High Court of Justice impôem-se às jurisdições inferiores e, sem serem rigorosamente obrigatórias, têm um grande valor de persuasão e são geralmente seguidas pelas diferentes
divisões do próprio High Court of Justice e pelo Crown Court.
As proposições assim enunciadas simplificam muito o problema. Uma certa tendência parece, assim, manifestar-se hoje, sem que os princípios sejam postos em causa, para aumentar
o número de exceções que eles comportamou para tornar mais rigorosas as condições em que são aplicados. Até 1966 foi admitido que a Câmara dos Lordes estivesse estritamente vinculada aos seus próprios precedentes; uma declaração solene, feita pelo Lorde Chanceler em 1966. deu a conhecer que, no futuro, a Câmara dos Lordes poderia afastar-se desta regra, se razões prementes parecessem exigi-lo no interesse da justiça. A Câmara dos Lordes fez, desde então, um uso moderado desta possibilidade e nada apreciou que o Court of Appeal se recusasse a seguir um dos seus acórdãos, apesar de longamente motivado, considerando que havia sido dado per incutiam
E conveniente sublinhar que os únicos precedentes obrigatórios são constituídos pelas decisões emanadas dos tribunais superiores, isto é, do Supreme Court of Judicature e da
Câmara dos Lordes. As decisões emanadas de outros tribunais ou organismos "quase-judiciários" podem ter um valor de persuasão; não constituem nunca precedentes obrigatórios.
Forma dos julgamentos ingleses. Qual o significado desta fórmula de precedentes obrigatórios? Para a compreender é necessário considerar o modo como se apresentam, na Inglaterra, as decisões judiciárias. Estas são, na sua forma, muito diferentes dos julgamentos ou acórdãos franceses. A decisão inglesa, rigorosamente falando, está reduzida a um simples dispositivo que dá a conhecer a solução dada, pelo juiz, ao litígio: X deve pagar a Y uma determinada soma, o contrato realizado entre X e Y foi anulado, a sucessão de X à pessoa de Y. Os juízes ingleses não têm de motivar as suas decisões; talvez fosse um atentado à sua dignidade impor-lhes essa obrigação: eles ordenam e não têm de se justificar.
Entretanto, ao menos nos tribunais superiores, o juiz inglês geralmente expõe as razões que explicam sua decisão. Em um comentário, que não tem a brevidade nem a precisão dos "motivos" franceses, expõe, de forma dedutiva, as regras e os princípios do direito inglês, a propósito da decisão tomada. Nesta exposição, freqüentemente, emprega fórmulas e anuncia regras que, por sua generalidade, ultrapassam o âmbito do processo. A técnica das “distinções" se baseara nesta particularidade.
Publicação dos precedentes. Uma certa flexibilidade é trazida ao funcionamento da regra do precedente pelas condições em que é assegurada a publicação das decisões judiciais.
Esta publicação está sujeita a uma certa seleção: 75% dos acórdãos da Câmara dos Lordes, 25% dos acórdãos do Court of Appeal e unicamente 10% das decisões do High Court of
Justice são publicadas. Torna-se assim possível eliminar um grande número de decisões que não são dignas de se considerarem como precedentes. Evita-se, por outro lado, que os juristas
Ingleses sejam submersos pela avalanche de precedentes.
Compilações de jurisprudência. O significado das letras pelas quais se faz referência às diferentes compilações de jurisprudência é conhecido, de uma maneira geral, pelos juristas
ingleses. Está indicado no princípio de cada volume do Laws ofEngland de Halsbury.
As compilações mais correntes são atualmente os Law Reports, que comportam várias séries: uma é consagrada às decisões da Câmara dos Lordes e da Comissão Judiciária do Conselho Privado, três outras consagradas às decisões das três seções do High Court of Justice (e aos acórdãos do Court of Appeal, aceitando ou recusando recursos contra estas decisões). Paralelamente a esta compilação semi-oficial, outras compilações a que se faz muito freqüentemente referência são os Ali Engiand Law Reports e os Weekly Law Reports.
A common law tradicional e o novo direito. Ao lado da common law tradicional, há uma tendência hoje na Inglaterra, no que respeita a algumas matérias, à formação de um
sistema complementar de regras prescritas pelo legislador ou pela administração, de certo modo análogo ao direito administrativo francês. E fato que não existe na Inglaterra uma hierarquia de jurisdições administrativas opostas às jurisdições da ordem judiciária. O Poder Judiciário controla soberanamente a aplicação das novas leis. Como já foi dito, pode, no entanto, acontecer frequentemente que este controle seja restrito e que se reduza a um controle do processo empregado para resolver os litígios pela administração, distinto de um controle sobre a substância das soluções proferidas. Administrado por comissões administrativas de títulos diversos, o novo direito pode constituir, de fato, um direito da administração (law ofadministration), por oposição ao direito dos juristas (lawyers' law), embora seja a segunda expressão a adotada pelos autores in gleses. E este novo direito que, frequentemente, interessa mais diretamente aos particulares (direito de pensões, da previdência social, etc.) e igualmente à economia inglesa (direito econômico), mais que o direito cuja aplicação continua inteiramente nas mãos dos juristas e das jurisdições tradicionais. A função desempenhada pela lei, na Inglaterra, não pode ser apreciada sensatamente se não for considerado este novo desenvolvimento, que assume uma importância fundamental nos dias de hoje. A lei desempenha, na Inglaterra de hoje, uma função que não é inferior à da jurisprudência. Contudo, o direito inglês, nas atuais circunstâncias, continua a ser um direito essencialmente jurisprudencial por duas razões: porque a jurisprudência continua a orientar o seu desenvolvimento em certos setores que se mantêm muito importantes e, por outro lado, porque, habituados a séculos de domínio da jurisprudência, os juristas ingleses não conseguiram até a presente data libertar-se da sua tradição. Para eles, a verdadeira regra de direito somente existe vista através dos fatos de uma espécie concreta e reduzida à dimensão necessária à resolução de um litígio. Este amor à tradição constitui um handicap para o direito legislativo e impede as leis inglesas de serem plenamente equivalentes aos códigos e às leis do continente europeu.
CONCLUSÃO
Circulam tantas opiniões errôneas e preconceitos, nos países do continente europeu, acerca da teoria das fontes do direito inglês, que me parece necessário, depois de exposta esta teoria, retomar ainda o assunto em algumas linhas para dissipar qualquer equívoco.
O costume. Antes de tudo o mais, devemos abandonar a idéia tão corrente de que o direito inglês é um direito consuetudinário. Esta idéia advém para muitos juristas do continente
europeu da admissão da alternativa: ou o direito é um direito escrito, fundado sobre os códigos, ou não é um direito escrito e, por conseguinte, é consuetudinário; é um direito jurisprudencial. A common law teve por efeito fazer desaparecer o direito consuetudinário da Inglaterra, existente nos costumes locais. O atual funcionamento da regra do precedente ignora a noção, aparentada com a do costume, de jurisprudência constante (standige Rechtsprechung); o precedente obrigatório é constituído por um único acórdão, dado por uma jurisdição de determinada categoria.
A lei. Em segundo lugar, devemos abandonar a ideia de que a legislação é, no direito inglês, uma fonte de importância secundária'. Esta idéia já não é verdadeira nos nossos dias. Na verdade, a Inglaterra não tem códigos, mas o "direito escrito" é, neste país, quase tão importante e está tão desenvolvido como no continente europeu. Atualmente encontram-se na lei bem mais do que simples corretivos trazidos à common law, existem vastos setores da vida social cujos princípios jurídicos reguladores devem ser procurados na obra do legislador. A
única coisa que continua sendo verdade é que o legislador inglês não tem a tradição que tem seu colega do continente europeu; ele quase desconhece o modo de formulação das regras de direito que postulem um princípio geral; por outro lado, é verdade que o jurista inglês continua a ter uma certa dificuldade em se habituar à técnica das regras de direito estabelecidas pelo legislador. As leis inglesas se revestem de um caráter mais casuístico que as nossas. Não se trata de consagrar aí, como o fez o código civil com a obra de Pothier, fórmulas utilizadaspelos autores. A generalização inevitável que estas fórmulas comportam é vista com desconfiança. Os ingleses, perante as nossas regras jurídicas, ficam naturalmente perturbados; estas lhes parecem muitas vezes ser princípios gerais, exprimindo aspirações morais ou estabelecendo um programa político, mais do que regras de direito. O legislador inglês procura colocar- se tanto quanto possível no plano da regra jurisprudencial, considerada como a única regra normal em direito inglês. Por outro lado, os princípios contidos na lei só são plenamente reconhecidos pelos juristas ingleses e verdadeiramente integrados no sistema da common law quando são aplicados, reformulados e desenvolvidos pelas decisões da jurisprudência.
A regra do precedente. Em terceiro lugar, devemos abandonar a ideia de uma regra do precedente aplicada com automatismo e paralisante da evolução do direito inglês. A História contesta uma tal concepção; a regra do precedente não representa maior obstáculo para a evolução do direito inglês que aquele que representou a codificação para os direitos do continente europeu, a despeito das sinistras predições dos seus adversários no século passado. A regra do precedente tem por finalidade fornecer quadros ao direito inglês, mantendo uma estrutura jurisprudencial, de acordo com a tradição deste direito. Se ela pareceu adquirir, no século XIX, uma certa rigidez é porque as condições da época o exigiram; na mesma época e em condições análogas dominava na França a escola da exegese. A evolução da sociedade parece exigir, atualmente, mais flexibilidade, em razão do ritmo acelerado de transformação a que está submetida. Nós temos feito face a esta exigência, no continente europeu, conservando os nossos códigos, mas adotando métodos de interpretação
mais flexíveis. Na Inglaterra conservou-se a regra do precedente mas, nos domínios em que se tornou necessária, fez-se a adaptação às necessidades da nossa época, elaborando novas doutrinas e utilizando, sobretudo, a técnica das "distinções". A evolução é suficientemente rápida para que, nos assuntos tradicionais da common law, o legislador seja muito raramente
solicitado a intervir.
A doutrina. Finalmente, deve dizer-se uma palavra acerca da doutrina. Mais ainda do que no continente europeu, a importância da doutrina foi subestimada na Inglaterra, onde o direito deve menos aos professores e mais aos juizes. Contudo, ainda aqui se torne necessário desconfiar das fórmulas. A Inglaterra é o país onde certas obras de doutrina - escritas, na verdade, por juizes - receberam a qualificação de books of authority. as obras de Glanvill, de Bracton, de Littleton e de Coke alcançaram um tal prestígio q ue nos tribunais se consideraram re positórios autorizados do direito da sua época, dotados de uma autoridade comparável à que a lei tem nos nossos países.
Depois da supressão do formalismo, no século XIX, a função da doutrina sofreu uma transformação e ampliou-se. Nos dias de hoje, os estudantes de direito recebem cada vez mais frequentemente uma formação nas universidades. Conhecem mais o direito através dos cursos ou das obras dos seus mestres, de tratados ou manuais (textbooks), que através de coletâneas
para práticos; o ensino do direito que lhes é ministrado reporta-se à substância do direito, sendo o processo excepcionalmente ensinado nas escolas de direito inglês. Um novo estado de espírito deve resultar inevitavelmente disso, no que diz respeito ao modo de considerar a doutrina.
BIBLIOGRFIA:
Os Grandes Sistemas do Direito - René David

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