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Lei 10.216.doc Lei no 10.216, de 6 de abril de 2001 Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. O Presidente da República Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1o Os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental, de que trata esta Lei, são assegurados sem qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno, ou qualquer outra. Art. 2o Nos atendimentos em saúde mental, de qualquer natureza, a pessoa e seus familiares ou responsáveis serão formalmente cientificados dos direitos enumerados no parágrafo único deste artigo. Parágrafo único. São direitos da pessoa portadora de transtorno mental: I – ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades; II – ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando a alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade; III – ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração; IV – ter garantia de sigilo nas informações prestadas; V – ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária; VI – ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis; VII – receber o maior número de informações a respeito de sua doença e de seu tratamento; VIII – ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis; IX – ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental. Art. 3o É responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos mentais, com a devida participação da sociedade e da família, a qual será prestada em estabelecimento de saúde mental, assim entendidas as instituições ou unidades que ofereçam assistência em saúde aos portadores de transtornos mentais. Art. 4o A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes. § 1o O tratamento visará, como finalidade permanente, à reinserção social do paciente em seu meio. § 2o O tratamento em regime de internação será estruturado de forma a oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros. § 3o É vedada a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com características asilares, ou seja, aquelas desprovidas dos recursos mencionados no § 2o e que não assegurem aos pacientes os direitos enumerados no parágrafo único do art. 2o. Art. 5o O paciente há longo tempo hospitalizado ou para o qual se caracterize situação de grave dependência institucional, decorrente de seu quadro clínico ou de ausência de suporte social, será objeto de política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida, sob responsabilidade da autoridade sanitária competente e supervisão de instância a ser defi nida pelo Poder Executivo, assegurada a continuidade do tratamento, quando necessário. Art. 6o A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos. Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica: I – internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário; II – internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; III – internação compulsória: aquela determinada pela Justiça. Art. 7o A pessoa que solicita voluntariamente sua internação, ou que a consente, deve assinar, no momento da admissão, uma declaração de que optou por esse regime de tratamento. Parágrafo único. O término da internação voluntária dar-se-á por solicitação escrita do paciente ou por determinação do médico assistente. Art. 8o A internação voluntária ou involuntária somente será autorizada por médico devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina – CRM do estado onde se localize o estabelecimento. § 1o A internação psiquiátrica involuntária deverá, no prazo de setenta e duas horas, ser comunicada ao Ministério Público Estadual pelo responsável técnico do estabelecimento no qual tenha ocorrido, devendo esse mesmo procedimento ser adotado quando da respectiva alta. § 2o O término da internação involuntária dar-se-á por solicitação escrita do familiar, ou responsável legal, ou quando estabelecido pelo especialista responsável pelo tratamento. Art. 9o A internação compulsória é determinada, de acordo com a legislação vigente, pelo juiz competente, que levará em conta as condições de segurança do estabelecimento, quanto à salvaguarda do paciente, dos demais internados e funcionários. Art. 10 Evasão, transferência, acidente, intercorrência clínica grave e falecimento serão comunicados pela direção do estabelecimento de saúde mental aos familiares, ou ao representante legal do paciente, bem como à autoridade sanitária responsável, no prazo máximo de vinte e quatro horas da data da ocorrência. Art. 11 Pesquisas científicas para fins diagnósticos ou terapêuticos não poderão ser realizadas sem o consentimento expresso do paciente, ou de seu representante legal, e sem a devida comunicação aos conselhos profissionais competentes e ao Conselho Nacional de Saúde. Art. 12 O Conselho Nacional de Saúde, no âmbito de sua atuação, criará comissão nacional para acompanhar a implementação desta Lei. Art. 13 Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Brasília, 6 de abril de 2001; 180o da Independência e 113o da República. FERNANDO HENRIQUE CARDOSO Jose Gregori José Serra Roberto Brant BRASIL. Presidência da República. Lei 10.216 de 6 de abril de 2001. Legislação em Saúde Mental: 1990 – 2004. Brasília: Ministério da Saúde, p. 17-19. Oficinas Terap�uticas em um Centro de Aten��o de Aten��o Psicossocial AD.pdf OÞ cinas terapêuticas em um Centro de Atenção Psicossocial – álcool e drogas Luiz Gustavo Silva Souza Luciene Bittencourt Pinheiro Resumo: São descritas Oficinas Terapêuticas conduzidas por psicólogos em um Centro de Atenção Psicossocial – álcool e drogas, direcionadas a adultos de ambos os sexos, usuários de álcool e/ou outras drogas. Seus objetivos principais eram proporcionar espaços de expressão, construção e transformação subjetiva. Aborda-se especialmente um encontro de uma “Oficina de Poesia”. Como metodologia, a Oficina incluiu: leitura de uma poesia junto com os usuários, apreensão de seus significados, abertura de espaços de expressão nos quais os usuários, indagados pelos psicólogos, relacionavam as palavras e versos lidos a suas experiências de vida. Sete usuários participaram do encontro relatado. Falaram sobre experiências diversas: usar droga para poder se expressar; sentir-se solitário; sentir-se insatisfeito consigo mesmo; sentir a necessidade do apoio da família e dos profissionais do CAPSad. As falas dos usuários foram pontuadas por intervenções dos psicólogos. A discussão ressalta que as Oficinas são condizentes com diretrizes clínicas e políticas da Reforma Psiquiátrica. Palavras-chave: Droga (dependência); redução de danos; centro de atenção psicossocial. Therapeutic workshops in a Psychosocial Care Center – alcohol and other drugs Abstract: This paper describes workshops conducted by psychologists towards drug dependent patients in a Brazilian Psychosocial Care Center. The workshops had the main objectives of fostering patients’ expression, subjective construction and subjective change. We specially describe one session of a “Poetry Workshop”. In this session, patients and psychologists read a poem together. The psychologists asked the patients to speak about the images and meanings of the poem and to link these images and meanings to their experiences of life. Seven patients participated in the session. They talked about various experiences: the need to use drugs to allow expression; the feelings of being lonely and of having low self-esteem; the need to search for support from the family and from the professionals of the Center. These participations allowed the psychologists to perform insight-oriented interventions. The discussion highlights that the workshops embody important political and clinical guidelines of the Brazilian Psychiatric Reform. Keywords: Drug dependency; harm reduction; psychosocial care center. Introdução No Brasil, as políticas e práticas de atenção à saúde mental passaram por consideráveis transformações nas últimas quatro décadas. A Reforma Psiquiátrica Brasileira é vista como processo social complexo, do qual participam diversos atores (proÞ ssionais, usuários, serviços, conselhos, etc.), envolvidos na construção de formas acolhedoras, não asilares, de lidar com a diferença, com a loucura, com o sofrimento mental. A Reforma implica o funcionamento de serviços substitutivos ao manicômio, dentre os quais se destaca o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). O CAPS é tido Aletheia 38-39, p.218-227, maio/dez. 2012 Aletheia 38-39, maio/dez. 2012 219 como serviço estratégico e central, responsável pelo atendimento diário de uma parcela dos usuários e pela organização dos outros pontos da rede de saúde mental. Para os problemas com uso de álcool e outras drogas, o serviço de referência é o CAPSad, Centro de Atenção Psicossocial – álcool e drogas (Amarante, 2008). No modelo asilar, o tratamento é feito essencialmente pelo médico. Intervenções grupais, como as OÞ cinas Terapêuticas, Þ cam em lugar secundário, de mera ocupação do tempo. Com a Reforma Psiquiátrica, as OÞ cinas ganharam destaque, voltando seu foco para a expressão subjetiva, reintegração social, produção de autonomia e de cidadania (Guerra, 2004). Ao mesmo tempo, estudos têm enfatizado a importância da atuação dos proÞ ssionais de psicologia nos serviços de saúde pública, especialmente as intervenções grupais, embora haja evidências de que essa atuação seja ainda subaproveitada (Rutsatz & Câmara, 2006). A “Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas” (Brasil, 2004) adota como referencial técnico-político a noção ampliada de redução de danos. Essa “lógica” implica reconhecer o uso de drogas como fenômeno humano e propor a redução de riscos e danos possivelmente causados por esse uso sem condicionar o tratamento à obtenção prévia ou Þ nal da abstinência. Para essa abordagem, a abstinência é apenas mais uma forma de reduzir os danos. A noção ampliada a que se fez referência implica não só diminuição do consumo da droga ou adoção de medidas protetoras no que diz respeito ao funcionamento bioÞ siológico. Pressupõe também determinantes psicossociais e a participação ativa do usuário na reß exão sobre suas experiências e transformação de seu estilo de vida. A lógica da redução de danos convoca à diminuição da estigmatização dos usuários de drogas e a promoção de sua participação ativa na construção do autocuidado, da assistência e das políticas de saúde (Andrade & Friedman, 2006; Brasil, 2004). A referida “Política para Atenção Integral” enfatiza a responsabilidade do sistema de saúde público brasileiro de oferecer uma rede de alternativas para o acolhimento e tratamento de pessoas com problemas com álcool e outras drogas. AÞ rma a importância do CAPSad e de seu papel de atender a uma parte da demanda e de coordenar o cuidado em outros pontos da rede. Preconiza a territorialização da assistência e a parceria estreita com serviços de Atenção Básica. Como exemplos de estratégias do CAPSad, menciona os atendimentos individuais, de grupo, as visitas domiciliares e as OÞ cinas Terapêuticas (Brasil, 2004). No estudo de Moura e Santos (2011), os usuários de CAPSad entrevistados percebiam as OÞ cinas Terapêuticas como espaços de convivência que poderiam promover o sentimento positivo de pertencimento a um grupo. Descreveram as OÞ cinas como meios de expressão, de troca, de aprendizado (inclusive sobre redução de danos) e de construção de novas formas de ser. Os autores caracterizam as OÞ cinas como estratégias “propulsoras de mudanças subjetivas, que produzem efeitos narrativos determinados, embora imprevisíveis” (p.130). A importância dos atendimentos de grupo certamente não é reconhecida apenas no Brasil. Johnson, Gibbons & Crits-Christoph (2011) aÞ rmam que o “aconselhamento de grupo” é o mais importante recurso terapêutico nos serviços comunitários nos Estados Unidos (EUA). Autores fazem referência a tratamentos de dependência do álcool e da Aletheia 38-39, maio/dez. 2012220 cocaína com grupos de orientação cognitivo-comportamental, grupos de aconselhamento, grupos para treinamento de técnicas de autoajuda. Esses atendimentos são tipicamente estruturados, com temas e número de sessões pré-deÞ nidos (GreenÞ eld, Trucco, McHugh, Lincoln, Gallop, 2006; Johnson et al. 2011). Esses exemplos da literatura internacional mostram a preocupação com variáveis especíÞ cas nos atendimentos de grupo: gênero, etnia, comportamentos dos participantes no grupo (níveis de autorrevelação, de empatia, de uso da palavra, de aconselhamento dos outros participantes, etc.) (Johnson et al. 2011). GreenÞ eld et al. (2006) veriÞ caram que, em comparação com grupos estruturados mistos, atendimentos de grupo estruturados especíÞ cos para mulheres apresentaram indícios de maior eÞ cácia: maior satisfação com a intervenção e maiores níveis de redução de consumo de drogas no acompanhamento seis meses pós-intervenção. A literatura brasileira parece distante dessas preocupações especíÞ cas. Cordeiro, Oliveira e Souza (2012) observaram um aumento da produção cientíÞ ca nacional sobre os CAPS a partir de 2001, com a aprovação da Lei da Reforma Psiquiátrica Brasileira (Lei 10.216/2001). Entretanto, artigos sobre intervenções grupais em CAPSad continuam escassos. Este artigo pretende contribuir para o enriquecimento dessa literatura. Trata-se de um relato de experiência proÞ ssional construída junto a usuários de um CAPSad na forma de OÞ cinas Terapêuticas. Será especialmente descrito um encontro da “OÞ cina de Poesia” para ilustrar métodos e resultados obtidos com as OÞ cinas em geral e para embasar reß exões sobre sua pertinência em relação às propostas de redução de danos (Andrade & Friedman, 2006; Brasil, 2004) e clínica ampliada (Campos, 2003). “Um encontro de sete faces” O referido CAPSad localizava-se em um município do sudeste brasileiro com cerca de 330 mil habitantes. O projeto terapêutico de cada usuário poderia prever sua frequência a uma ou a várias OÞ cinas Terapêuticas. As OÞ cinas descritas aqui eram conduzidas por psicólogos (solo ou em dupla), direcionadas a adultos, de ambos os sexos, usuários de álcool e/ou outras drogas, sem haver restrição quanto à escolaridade. Disponibilizavam quinze vagas e podiam acolher novos participantes a cada encontro. Eram realizadas quatro vezes por semana, com duas horas de duração por encontro, utilizando-se de diversos tipos de materiais como mediadores e disparadores: jornais, vídeos, folderes e obras de artistas consagrados da pintura e da literatura. Este artigo abordará especialmente um encontro da “OÞ cina de Poesia” que utilizou, como disparador, um trabalho de Carlos Drummond de Andrade. A discussão trará reß exões sobre características e potencialidades desse dispositivo terapêutico. O encontro da OÞ cina de Poesia foi conduzido por uma psicóloga e um psicólogo, com apoio de uma estagiária de letras. Foi realizado ao redor de uma mesa que ocupava o centro do pátio interno do CAPSad. Contou com sete participantes ao todo, cinco homens e duas mulheres, com diagnósticos de transtornos relacionados a álcool e/ou cocaína/crack. As idades variavam de 32 a 58 anos. O tempo de tratamento era diverso, indo de alguns dias a até 11 anos. Um deles participava pela primeira vez da OÞ cina. Os participantes tinham baixa escolaridade, cinco estavam desempregados, um era comerciante e outro, aposentado. Aletheia 38-39, maio/dez. 2012 221 Para começar, os psicólogos falaram brevemente sobre objetivos e métodos da OÞ cina, apresentando-a aos novatos e reaÞ rmando a proposta aos já participantes. Lembraram aspectos do contrato coletivo, referente ao horário inicial e Þ nal e à dinâmica de funcionamento. AÞ rmaram que se tratava de um grupo terapêutico e que o objetivo principal era proporcionar um espaço de expressão para os participantes. Dessa forma, todos poderiam falar de suas ideias, dúvidas e dos desaÞ os que vinham encontrando para repensar sua relação com as drogas. A poesia foi apresentada como manifestação artística que poderia inspirar, surpreender e desconcertar, abrindo possibilidades de novas reß exões sobre temas diversos. A partir dela, seria possível conversar sobre relacionamentos amorosos e familiares, amizade, trabalho, saúde, arte, religiosidade, cultura, drogas, etc., temas que emergem da existência humana e que fazem parte do cotidiano de todos. Em seguida, fez-se a proposta para o encontro em questão: debater uma poesia de Carlos Drummond de Andrade. O autor e o conjunto de sua obra foram brevemente apresentados. Em seguida, abordou-se o trabalho escolhido, o “Poema de sete faces” (o belo texto de Drummond pode ser apreciado no livro “Alguma poesia”). Um dos psicólogos fez uma leitura em voz alta e o grupo teve o primeiro contato com o texto. Nesse momento, já surgiram comentários sobre palavras ou versos. Em uma etapa seguinte, pediu-se aos participantes que Þ zessem uma “leitura circular” da poesia: cada um leu um ou dois versos e passou o livro adiante. As leituras repetidas constituíam um esforço de apropriação crescente do texto. Os participantes eram solicitados a prestar atenção à impostação da voz e a tentar declamar com ritmo e cuidado, sentindo o impacto de cada palavra. Apenas um dos participantes não pôde fazer a leitura circular, por ser analfabeto. Isso não inviabilizou sua participação nas reß exões sobre o texto e não gerou desconforto a ele ou ao grupo. Um dos psicólogos fez mais uma leitura em voz alta, mas, dessa vez, parando a cada verso, questionando os sentidos das palavras e frases, levantando dúvidas sobre a poesia. Perguntou-se, por exemplo, o que os usuários entendiam por “anjo torto que vive na sombra” e por “ser gauche na vida”. Tentou-se aproximar a poesia do universo léxico, semântico e imagético dos participantes, destacando a polissemia das palavras. Os participantes Þ zeram ricas associações dos elementos dos textos com experiências que viveram e com representações que construíam sobre o mundo, sobre si e sobre o outro. Muitas vezes, a fala de um participante encontrou ressonância em outros membros do grupo. A etapa de “aquecimento” (informações sobre o autor, primeira leitura, leitura circular, contextualização das palavras) era seguida pela etapa de “análise”, na qual os psicólogos questionavam diretamente cada um dos participantes sobre como aquelas palavras e reß exões se relacionavam com suas questões existenciais e com seu momento de vida atual. A intenção era que cada um pudesse se apropriar de um espaço para a fala: garantir seu direito a ter um ponto de vista, uma opinião, uma análise. Esse espaço se prestava à construção de lugares subjetivos, mesmo com as possíveis diÞ culdades. Pedia- se que cada participante destacasse uma parte da poesia ou das discussões já efetuadas, associando-a a suas opiniões, crenças e comportamentos, momento privilegiado para conhecer o participante (sua situação psicossocial, seu funcionamento psicodinâmico) e para realizar intervenções. A seguir, destacam-se falas de quatro participantes (com nomes Aletheia 38-39, maio/dez. 2012222 Þ ctícios). Entre chaves, descrevem-se algumas intervenções feitas pelos psicólogos e algumas informações que as embasaram: Daniel (32 anos, usuário de cocaína): “Percebi no poema um camarada com um conß ito interior, talvez ele não fosse feliz, ele era mais calado, talvez ele quisesse ter mais amigos, sair, aproveitar os prazeres da carne, talvez não aguentasse mais tanto peso e fardo. Ele queria pôr tudo pra fora. Por isso, bebia conhaque.” {Os psicólogos sublinharam a importância de “colocar tudo pra fora”, o que parecia ser uma questão central para Daniel, novato no grupo, e reaÞ rmaram a OÞ cina como espaço de expressão} Márcio (55 anos, usuário de crack): “O personagem do poema está num baixo astral, se comparando com o diabo.” [Queixou-se de sua própria solidão e de ser abandonado pela família. Ao comentar o texto, aÞ rmou que] “a solidão pode levar a pessoa à depressão, a um problema mental. Eu mesmo estou me sentindo assim, porque eu estou me isolando muito. Eu tô numa paranoia danada... Preciso terminar o que começo”. {Márcio já estava em tratamento havia anos e já tinha feito reß exões sobre como ele próprio também produzia seu sofrimento. Entretanto, parecia não passar da fala à ação. Esse também poderia ser o sentido de “terminar o que começa”. Os psicólogos questionaram: “ter uma noção do que acontece com a própria vida não pode fazer diferença? O uso da droga não está boicotando o tratamento? Não seria à hora de tentar uma abstinência”? (naquele momento, a abstinência parecia ser uma condição para reconstruir suas relações familiares)} Bruna (35 anos, usuária de crack): “O poema mostra uma insatisfação pessoal dele com ele mesmo, por ele estar insatisfeito consigo mesmo, ele recorre ao conhaque. O coração é vasto porque está vazio”. {Psicólogos: por que ele está insatisfeito consigo mesmo?}. “Introspecção e timidez, ele tem que tentar alguma coisa, superar a timidez. Não ter medo demais nem coragem demais”. Roberta (45 anos, usuária de álcool): “Acho que ele está se escondendo atrás da barba. Ele tem que ser mais otimista, se expressar mais, dialogar mais com os outros”. [Em seguida, comentou sua própria necessidade de] “falar de seus problemas com os outros”, [aÞ rmou que procurava a bebida para alcançar esse objetivo e que considerava o CAPSad como] “uma família”. “Eu sinto bem aqui, para soltar, para conversar com as pessoas. É um paraíso. Tomei uma atitude [entrar em tratamento] e minha família está apoiando”. {Psicólogos: como é a relação com essas “famílias” (a família e o CAPSad)? Será que se poderia realmente esperar que fosse um “paraíso”, como tinha dito?} Aletheia 38-39, maio/dez. 2012 223 Não é preciso ser acadêmico ou erudito para apreciar poesia. Os participantes da OÞ cina o demonstraram. Suas análises dos textos às vezes surpreendiam. Ao longo do encontro, imaginaram os elementos do poema, “um coração vasto”, “um homem atrás do bigode”, conferiram sentidos a esses elementos, interpretaram o texto, o personagem e suas motivações. Com isso, efetivamente “aproveitaram” a poesia, a polissemia dos versos, a multiplicidade de interpretações que os recobriam, exercitando sensibilidade às emoções transmitidas. Não foi o caso do encontro relatado, mas, em várias ocasiões, os participantes eram solicitados a produzir suas próprias poesias. AÞ rmavam-se assim como criadores de novos discursos, movimento semelhante à reconstrução de novas formas de vida. Os “textos” que os participantes produziram ao interpretar a poesia, suas falas, também se prestavam a múltiplas interpretações. Ao mesmo tempo em que falavam do poema, falavam também de sua realidade psicossocial, da cidade (da sociedade), da família, dos vizinhos, das drogas, do CAPSad e da própria OÞ cina. Evidentemente, também falavam de si. Daniel se mostrava como o “camarada fechado” que “precisa pôr tudo pra fora”, que ele mesmo citou ao comentar a poesia. Bruna, ao mencionar a importância de “não ter medo demais nem coragem demais” falava das diÞ culdades que enfrentava no processo de construir formas de existência não centradas na droga: não ter medo demais, para tentar outras formas de vida, não ter coragem demais, para não se iludir com os resultados iniciais do tratamento. Roberta mencionou sua necessidade (compulsiva) de falar e a relação de dependência idealizada que estabelecia com seus “familiares”. Expressar-se sobre si mesmo pode ser difícil. Uma das vantagens estratégicas das OÞ cinas é proporcionar essas formas indiretas (mediadas por objetos, textos, etc.) de falar de si. Considera-se, portanto, que o discurso produzido pelos usuários nas OÞ cinas terapêuticas se refere também às suas formas de ser, a seus investimentos afetivos, a seu funcionamento psicodinâmico, às suas fantasias inconscientes. É importante destacar que as interpretações feitas acima são algumas dentre as inÞ nitas possíveis. Elas foram formuladas não por um suposto valor de verdade, mas sim por sua conexão com o contexto psicossocial e com o caso clínico e por sua utilidade terapêutica. Elas adquiriam valor e legitimidade na relação de conÞ ança que se estabelecia com os psicólogos e com o grupo. “Duas faces do instrumento, clínica e política” A psicanálise serve como referencial teórico para as intervenções descritas, trabalhos de “inspiração psicanalítica” no sentido abordado por Figueiredo (2002). Ferreira Neto (2008) lembra da importância histórica da psicanálise e de sua inß uência na Reforma Sanitária Brasileira. Para Guerra (2004) a psicanálise pode contribuir para a consecução dos objetivos da Reforma Psiquiátrica, desde que não ceda às tentações do purismo, da exclusividade ou da hegemonia. Obviamente, não se pretende psicanalisar os participantes das OÞ cinas. Entretanto, a aplicação de uma escuta psicanalítica pode se mostrar útil para a clínica psicológica a ser estabelecida no CAPSad, uma escuta atenta à polissemia do discurso e aos investimentos afetivos. Com a criação de vínculos transferenciais, questionam-se Aletheia 38-39, maio/dez. 2012224 permanentemente as formas de relação que os usuários constroem com os psicólogos, com as OÞ cinas e com o CAPSad. A partir desses vínculos, simultaneamente obstáculos e motores do processo, as falas são escutadas e produzem-se interpretações (Freud, 1925/1987; Reis & Moraes, 2008). Interpretar não signiÞ ca descrever ou explicar. “Trata-se de um esforço de poesia, pois, como no modo poético de enunciação, não está em questão na interpretação o verdadeiro e o falso, já que ela é sempre verdadeira” (Holck, 2008, p.23). Pode-se dizer que o psicólogo, o oÞ cineiro, é um “acompanhante”, cujo objetivo é assessorar os usuários na redução de danos, na construção de formas de vida não centradas no objeto-droga. Espera-se produzir um deslocamento do objeto-droga, possibilitando a construção de outros sujeitos (Pereira, 2008). Cabe lembrar que as diÞ culdades podem ser muitas. Frequentemente, os vínculos são precários. A entrada, saída ou retorno de cada participante às OÞ cinas expressam características de seus laços com o CAPSad e com os proÞ ssionais; expressam também peculiaridades do momento de tratamento de cada um e de sua situação de vida, incluindo uso de drogas, possíveis recaídas ou internações. Nas OÞ cinas, buscava-se exercitar uma clínica ampliada, conceituada por Campos (2003) como prática de cuidado atenta à dialética entre sujeito e doença. A clínica ampliada não desconsidera os padrões da “doença” (no caso, a toxicomania), mas também não perde de vista a singularidade de cada usuário e, sobretudo, não reduz o sujeito à doença como entidade abstrata. A clínica é uma forma de promoção de autonomia e de cidadania, na medida em que o sujeito e o grupo podem se apropriar ativamente de sua história, que é sempre também sociopolítica, reconhecendo-se como cocriadores dela. É possível retomar falas do encontro relatado para exempliÞ car essa “abertura temática” própria à clínica ampliada. Os participantes trataram de experiências diversas: usar droga para poder se expressar (“ele queria pôr tudo pra fora”); sentir-se solitário (“a solidão pode levar a pessoa à depressão”); sentir-se insatisfeito consigo mesmo (“ele tem que tentar alguma coisa”); sentir a necessidade de falar e de contar com o apoio da família e dos proÞ ssionais do CAPSad (“dialogar mais com os outros”). As intervenções dos psicólogos buscaram fazer com que os usuários prestassem atenção a seu próprio discurso, que se comprometessem com ele, que o repensassem, reposicionando-se frente a seus desejos e diÞ culdades. O CAPSad trabalha com a lógica de redução de danos. Os usuários não são internados, mas estabelecem uma frequência regular ao Centro. A abstinência não é um pressuposto para o tratamento. A lógica de redução de danos envolve não somente a diminuição dos prejuízos físicos causados pelo uso crônico de drogas, mas também a redução dos prejuízos sociais e psicológicos (Brasil, 2004). Com as OÞ cinas, realizava- se um convite para que os usuários participassem ativamente de seu tratamento. O objetivo principal não era fazer com que o participante parasse de usar drogas, mas sim promover reß exões sobre como cada um lidava com sua saúde e com sua vida, propondo corresponsabilidade na construção de práticas diferenciadas de cuidado de si. Estar ou não abstinente é uma condição que pode mudar de um minuto a outro. Mais do que a preocupação com essa condição, a lógica de redução de danos convoca Aletheia 38-39, maio/dez. 2012 225 a promover corresponsabilização e transformações subjetivas. Diferentemente dos estudos internacionais citados (GreenÞ eld et al. 2006; Johnson et al. 2011), as OÞ cinas descritas se aÞ rmam como possibilidades de atendimento não estruturado, adaptadas à lógica de “atenção diária” que organiza o CAPSad (Brasil, 2004). Os objetivos das OÞ cinas Terapêuticas, das quais se pôde ver um exemplo no relato da OÞ cina de Poesia, podem ser esquematizados como se segue: a) proporcionar um espaço de expressão sobre os mais diversos temas: relações amorosas, amizades, trabalho, sexualidade, família, lazer, cultura, saúde, etc., um espaço que não esteja centrado exclusivamente no tema “droga”, mas sim aberto à pluralidade da vida cotidiana; b) possibilitar intervenções psicológicas, partindo da criação de vínculo (entre os participantes e entre eles e os proÞ ssionais), partindo da produção artística e do discurso dos sujeitos; c) acompanhar a evolução dos casos clínicos, veriÞ cando que sentidos os usuários atribuem ao seu próprio tratamento e ao CAPSad; d) proporcionar a busca de sentido existencial e de satisfação por meio da relação com um grupo, com a cultura e com as artes, fornecendo alternativas ao recurso às drogas para obtenção “solipsista” de prazer. Em suma: as OÞ cinas eram espaços de relação com o prazer, de expressão, de reß exão e de acompanhamento. Estudos têm enfatizado a importância dos trabalhos grupais em psicologia e a corresponsabilização dos sujeitos em direção à modiÞ cação de estilos de vida (Rutsatz & Câmara 2006). É preciso buscar as potencialidades especíÞ cas do grupo como forma de intervenção em saúde. Nas OÞ cinas, um participante acolhia a fala do outro, concordando, discordando, relatando experiências parecidas, etc. Estar em grupo permitia aliviar a ansiedade, comum entre os usuários, de falar e produzir estando sozinho frente ao proÞ ssional. Apreciar obras de arte em grupo pode favorecer a adesão ao tratamento. O trabalho em OÞ cinas, ler ou produzir textos, por exemplo, não é terapêutico em si. O que pode ser ou não terapêutico são as relações estabelecidas por meio da OÞ cina (Almeida, Moraes, Barroso, Barros & Sampaio, 2004). Os CAPS também não são terapêuticos em si. Não basta juntar os usuários em uma nova estrutura, pensada como alternativa sociopolítica ao manicômio, para que os problemas se resolvam. É preciso estar atento para não repetir velhas relações asilares nos serviços substitutivos (Amarante, 2008). Ella (2005) lembra que, nos “tempos heroicos da desospitalização”, quando os proÞ ssionais e movimentos sociais batalhavam para aÞ rmar os CAPS como novo modelo de atenção em saúde mental, a palavra “clínica” se tornou “palavra maldita”, pois encarnava “os riscos da medicalização e da patologização” (p.58). Entretanto, segundo o autor, passados os primeiros momentos, veriÞ cou-se que não bastava prescrever inclusão e cidadania. Ele aÞ rma que “[...] a doença mental existe como positividade fenomênica e estrutural, que não é mero resultado de processos político-sociais de exclusão” (Ella, 2005, p.58). Ou seja, para tratar, os proÞ ssionais tiveram (ou estão tendo) que resgatar a clínica. As OÞ cinas Terapêuticas são possíveis estratégias para esse resgate: não basta “ocupar” os usuários no espaço inclusivo do CAPSad. É preciso garantir que seu discurso seja ouvido e “questionado”. Para resumir a argumentação desenvolvida aqui, pode-se dizer que a OÞ cina não é terapêutica em si (importância das relações); que o CAPS não é terapêutico em Aletheia 38-39, maio/dez. 2012226 si (importância da clínica); que a clínica deve ser ampliada (não reduzir o sujeito ao toxicômano); que as OÞ cinas permitem tratar com base na lógica de redução de danos e na forma de atenção diária (próprias ao CAPSad); que elas favorecem a expressão dos usuários e buscam promover autonomia, cidadania e novas relações (não asilares) entre sujeitos, grupos e a polis, sendo portanto instrumentos clínicos e políticos. Inseridas em um CAPSad, as OÞ cinas relatadas seguiam seus preceitos, mas, nelas, buscava-se principalmente levantar diversos temas e os usuários podiam se posicionar de maneira diferente e divergente nos debates. Como em qualquer trabalho, as OÞ cinas comportavam limites. Os usuários muitas vezes não se sentiam à vontade para expor experiências e sentimentos para o grupo, o que levava à necessidade de manter alternativas de atendimento individual. DiÞ culdades emergiam quando os vínculos eram frágeis, quando não havia conÞ ança nos proÞ ssionais, nos demais participantes ou em si mesmo. O tratamento certamente não era unívoco e simples. O tempo e a escolha de cada um poderiam variar. A participação na OÞ cina contemplava alguns usuários, mas não era a única opção para todos. Este relato também possui inúmeros limites: entre outros, descreveu apenas algumas falas de um tipo especíÞ co de OÞ cina e não contemplou a história pregressa de tratamento de cada usuário. Dentro desses limites, buscou ilustrar o uso de OÞ cinas Terapêuticas como instrumentos de intervenção psicológica, relacionando-as a princípios teóricos e metodológicos. Conclui-se que as OÞ cinas podem ser bons dispositivos para a atuação de psicólogos em CAPSad, ao lado de outros tipos de intervenção como atividades de mobilização social, acompanhamento de familiares, grupos informativos, acompanhamento de atividades de vida diária e atendimentos individuais, contribuindo para atingir os objetivos gerais de prevenção de internações e de suicídio, de redução de danos e de reabilitação psicossocial. Referências Almeida, A. M. G., Moraes, B. M., Barroso, C. M. C., Barros, M. M. M., & Sampaio, J. J. C. (2004). Oficinas em saúde mental: relato de experiências em Quixadá e Sobral. Em: C. M. Costa & V. C. Figueiredo (Orgs.), Oficinas terapêuticas em saúde mental: sujeito, produção e cidadania (pp.117-134). Rio de Janeiro: Contra Capa. Amarante, P. D. C. (2008). 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Endereços para contato: luizsouza@hotmail.com Reforma Psiqui�trica e pol�tica de Sa�de Mental no Brasil.pdf Reforma Psiquiátrica e política de Saúde Mental no Brasil Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental : 15 anos depois de Caracas Brasília, novembro de 2005 Ministério da Saúde Reforma Psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil Brasília, novembro de 2005 Ministério da Saúde Reforma Psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental : 15 anos depois de Caracas Brasília, 07 a 10 de novembro de 2005 Ficha Catalográfica Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde.DAPE. Coordenação Geral de Saúde Mental. Reforma psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil. Documento apresentado à Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental : 15 anos depois de Caracas. OPAS. Brasília, novembro de 2005. Índice I - A Reforma Psiquiátrica no Brasil:Política de Saúde Mental do SUS ...............................6 O processo de Reforma Psiquiátrica ............................................................................................... 6 Histórico da Reforma: (I) crítica do modelo hospitalocêntrico (1978-1991).................................. 7 Histórico da Reforma: (II) começa a implantação da rede extra-hospitalar (1992-2000)............... 8 A Reforma Psiquiátrica depois da lei Nacional (2001 -2005) ........................................................ 8 A III Conferência Nacional de Saúde Mental e a participação de usuários e familiares ................ 9 II - O processo de desinstitucionalização...........................................................................10 Redução de leitos .......................................................................................................................... 10 A avaliação anual dos hospitais e seu impacto na reforma ........................................................... 13 As residências terapêuticas............................................................................................................ 14 O Programa de Volta para Casa .................................................................................................... 16 A estratégia de redução progressiva a partir dos hospitais de grande porte.................................. 17 Algumas situações exemplares: Campina Grande ........................................................................ 20 Manicômios Judiciários: um desafio para a Reforma ................................................................... 21 Redução de leitos: cenários possíveis de médio e longo prazo..................................................... 22 III - A rede de cuidados na comunidade ............................................................................23 Importância dos conceitos de rede, território e autonomia na construção da rede de atendimento23 Rede e Território ........................................................................................................................... 24 O papel estratégico dos CAPS ..................................................................................................... 25 Saúde Mental na atenção primária: articulação com o programa de saúde da família ................. 31 A rede de saúde mental para a infância e adolescência................................................................. 33 IV - Saúde Mental e Inclusão social: a rede se amplia ......................................................34 Programa de inclusão social pelo trabalho.................................................................................... 34 Centros de Convivência e Cultura: uma proposta em debate........................................................ 36 A participação dos familiares e usuários dos serviços e seu protagonismo .................................. 37 V- A política de álcool e outras drogas ..............................................................................38 Antecedentes: a omissão histórica da saúde pública ..................................................................... 38 Tabela 7 – Epidemiologia no Brasil: uso e dependência de outras drogas por gênero ................. 40 A organização da rede de atenção ................................................................................................. 40 Estratégias para redução de danos e riscos associados ao consumo prejudicial ........................... 41 VI - Os principais desafios da Reforma Psiquiátrica ..........................................................42 Acessibilidade e eqüidade ............................................................................................................. 42 Formação de Recursos Humanos .................................................................................................. 43 O debate cultural: estigma, inclusão social, superação do valor atribuído ao modelo hospitalocêntrico, papel dos meios de comunicação..................................................................... 44 O debate científico: evidência e valor ........................................................................................... 44 Anexos...............................................................................................................................46 Referências .......................................................................................................................51 I - A Reforma Psiquiátrica no Brasil:Política de Saúde Mental do SUS O processo de Reforma Psiquiátrica O início do processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil é contemporâneo da eclosão do “movimento sanitário”, nos anos 70, em favor da mudança dos modelos de atenção e gestão nas práticas de saúde, defesa da saúde coletiva, eqüidade na oferta dos serviços, e protagonismo dos trabalhadores e usuários dos serviços de saúde nos processos de gestão e produção de tecnologias de cuidado. Embora contemporâneo da Reforma Sanitária, o processo de Reforma Psiquiátrica brasileira tem uma história própria, inscrita num contexto internacional de mudanças pela superação da violência asilar. Fundado, ao final dos anos 70, na crise do modelo de assistência centrado no hospital psiquiátrico, por um lado, e na eclosão, por outro, dos esforços dos movimentos sociais pelos direitos dos pacientes psiquiátricos, o processo da Reforma Psiquiátrica brasileira é maior do que a sanção de novas leis e normas e maior do que o conjunto de mudanças nas políticas governamentais e nos serviços de saúde. A Reforma Psiquiátrica é processo político e social complexo, composto de atores, instituições e forças de diferentes origens, e que incide em territórios diversos, nos governos federal, estadual e municipal, nas universidades, no mercado dos serviços de saúde, nos conselhos profissionais, nas associações de pessoas com transtornos mentais e de seus familiares, nos movimentos sociais, e nos territórios do imaginário social e da opinião pública. Compreendida como um conjunto de transformações de práticas, saberes, valores culturais e sociais, é no cotidiano da vida das instituições, dos serviços e das relações interpessoais que o processo da Reforma Psiquiátrica avança, marcado por impasses, tensões, conflitos e desafios. Nas páginas seguintes, fazemos o esforço de descrição dos principais componentes da história da Reforma Psiquiátrica no Brasil, com destaque para o processo de delineamento progressivo da política de saúde mental do Ministério da Saúde, alinhada com os princípios da Reforma. Histórico da Reforma: (I) crítica do modelo hospitalocêntrico (1978-1991) O ano de 1978 costuma ser identificado como o de início efetivo do movimento social pelos direitos dos pacientes psiquiátricos em nosso país. O Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), movimento plural formado por trabalhadores integrantes do movimento sanitário, associações de familiares, sindicalistas, membros de associações de profissionais e pessoas com longo histórico de internações psiquiátricas, surge neste ano. É sobretudo este Movimento, através de variados campos de luta, que passa a protagonizar e a construir a partir deste período a denúncia da violência dos manicômios, da mercantilização da loucura, da hegemonia de uma rede privada de assistência e a construir coletivamente uma crítica ao chamado saber psiquiátrico e ao modelo hospitalocêntrico na assistência às pessoas com transtornos mentais. A experiência italiana de desinstitucionalização em psiquiatria e sua crítica radical ao manicômio é inspiradora, e revela a possibilidade de ruptura com os antigos paradigmas, como, por exemplo, na Colônia Juliano Moreira, enorme asilo com mais de 2.000 internos no início dos anos 80, no Rio de Janeiro. Passam a surgir as primeiras propostas e ações para a reorientação da assistência. O II Congresso Nacional do MTSM (Bauru, SP), em 1987, adota o lema “Por uma sociedade sem manicômios”. Neste mesmo ano, é realizada a I Conferência Nacional de Saúde Mental (Rio de Janeiro). Neste período, são de especial importância o surgimento do primeiro CAPS no Brasil, na cidade de São Paulo, em 1987, e o início de um processo de intervenção, em 1989, da Secretaria Municipal de Saúde de Santos (SP) em um hospital psiquiátrico, a Casa de Saúde Anchieta, local de maus-tratos e mortes de pacientes. É esta intervenção, com repercussão nacional, que demonstrou de forma inequívoca a possibilidade de construção de uma rede de cuidados efetivamente substitutiva ao hospital psiquiátrico. Neste período, são implantados no município de Santos Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) que funcionam 24 horas, são criadas cooperativas, residências para os egressos do hospital e associações. A experiência do município de Santos passa a ser um marco no processo de Reforma Psiquiátrica brasileira. Trata-se da primeira demonstração, com grande repercussão, de que a Reforma Psiquiátrica, não sendo apenas uma retórica, era possível e exeqüível. Também no ano de 1989, dá entrada no Congresso Nacional o Projeto de Lei do deputado Paulo Delgado (PT/MG), que propõe a regulamentação dos direitos da pessoa com transtornos mentais e a extinção progressiva dos manicômios no país. É o início das lutas do movimento da Reforma Psiquiátrica nos campos legislativo e normativo. Com a Constituição de 1988, é criado o SUS – Sistema Único de Saúde, formado pela articulação entre as gestões federal, estadual e municipal, sob o poder de controle social, exercido através dos “Conselhos Comunitários de Saúde”. Histórico da Reforma: (II) começa a implantação da rede extra-hospitalar (1992-2000) A partir do ano de 1992, os movimentos sociais, inspirados pelo Projeto de Lei Paulo Delgado, conseguem aprovar em vários estados brasileiros as primeiras leis que determinam a substituição progressiva dos leitos psiquiátricos por uma rede integrada de atenção à saúde mental. É a partir deste período que a política do Ministério da Saúde para a saúde mental, acompanhando as diretrizes em construção da Reforma Psiquiátrica, começa a ganhar contornos mais definidos. É na década de 90, marcada pelo compromisso firmado pelo Brasil na assinatura da Declaração de Caracas e pela realização da II Conferência Nacional de Saúde Mental, que passam a entrar em vigor no país as primeiras normas federais regulamentando a implantação de serviços de atenção diária, fundadas nas experiências dos primeiros CAPS, NAPS e Hospitais-dia, e as primeiras normas para fiscalização e classificação dos hospitais psiquiátricos. Neste período, o processo de expansão dos CAPS e NAPS é descontínuo. As novas normatizações do Ministério da Saúde de 1992, embora regulamentassem os novos serviços de atenção diária, não instituíam uma linha específica de financiamento para os CAPS e NAPS. Do mesmo modo, as normas para fiscalização e classificação dos hospitais psiquiátricos não previam mecanismos sistemáticos para a redução de leitos. Ao final deste período, o país tem em funcionamento 208 CAPS, mas cerca de 93% dos recursos do Ministério da Saúde para a Saúde Mental ainda são destinados aos hospitais psiquiátricos. A Reforma Psiquiátrica depois da lei Nacional (2001 -2005) É somente no ano de 2001, após 12 anos de tramitação no Congresso Nacional, que a Lei Paulo Delgado é sancionada no país. A aprovação, no entanto, é de um substitutivo do Projeto de Lei original, que traz modificações importantes no texto normativo. Assim, a Lei Federal 10.216 redireciona a assistência em saúde mental, privilegiando o oferecimento de tratamento em serviços de base comunitária, dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais, mas não institui mecanismos claros para a progressiva extinção dos manicômios. Ainda assim, a promulgação da lei 10.216 impõe novo impulso e novo ritmo para o processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil. É no contexto da promulgação da lei 10.216 e da realização da III Conferência Nacional de Saúde Mental, que a política de saúde mental do governo federal, alinhada com as diretrizes da Reforma Psiquiátrica, passa a consolidar-se, ganhando maior sustentação e visibilidade. Linhas específicas de financiamento são criadas pelo Ministério da Saúde para os serviços abertos e substitutivos ao hospital psiquiátrico e novos mecanismos são criados para a fiscalização, gestão e redução programada de leitos psiquiátricos no país. A partir deste ponto, a rede de atenção diária à saúde mental experimenta uma importante expansão, passando a alcançar regiões de grande tradição hospitalar, onde a assistência comunitária em saúde mental era praticamente inexistente. Neste mesmo período, o processo de desinstitucionalização de pessoas longamente internadas é impulsionado, com a criação do Programa “De Volta para Casa”. Uma política de recursos humanos para a Reforma Psiquiátrica é construída, e é traçada a política para a questão do álcool e de outras drogas, incorporando a estratégia de redução de danos. Realiza-se, em 2004, o primeiro Congresso Brasileiro de Centros de Atenção Psicossocial, em São Paulo, reunindo dois mil trabalhadores e usuários de CAPS. Este processo caracteriza-se por ações dos governos federal, estadual, municipal e dos movimentos sociais, para efetivar a construção da transição de um modelo de assistência centrado no hospital psiquiátrico, para um modelo de atenção comunitário. O período atual caracteriza-se assim por dois movimentos simultâneos : a construção de uma rede de atenção à saúde mental substitutiva ao modelo centrado na internação hospitalar, por um lado, e a fiscalização e redução progressiva e programada dos leitos psiquiátricos existentes, por outro. É neste período que a Reforma Psiquiátrica se consolida como política oficial do governo federal. Existem em funcionamento hoje no país 689 Centros de Atenção Psicossocial e, ao final de 2004, os recursos gastos com os hospitais psiquiátricos passam a representar cerca de 64% do total dos recursos do Ministério da Saúde para a saúde mental. Tabela 1- Proporção de recursos do SUS destinados aos Hospitais Psiquiátricos e aos Serviços Extra- Hospitalares nos anos de 1997, 2001 e 2004 Fonte : Ministério da Saúde Composição de Gastos 1997 2001 2004 % Gastos Hospitalares em Saúde Mental 93,14 79,54 63,84 % Gastos Extra-hospitalares em Saúde Mental 6,86 20,46 36,16 Total 100 100 100 A III Conferência Nacional de Saúde Mental e a participação de usuários e familiares Merece destaque a realização, ao final do ano de 2001, em Brasília, da III Conferência Nacional de Saúde Mental. Dispositivo fundamental de participação e de controle social, a III Conferência Nacional de Saúde Mental é convocada logo após a promulgação da lei 10.216, e sua etapa nacional é realizada no mesmo ano, em dezembro de 2001. As etapas municipal e estadual envolvem cerca de 23.000 pessoas, com a presença ativa de usuários dos serviços de saúde e de seus familiares, e a etapa nacional conta com 1.480 delegados, entre representantes de usuários, familiares, movimentos sociais e profissionais de saúde. Durante todo o processo de realização da III Conferência e no teor de suas deliberações, condensadas em Relatório Final, é inequívoco o consenso em torno das propostas da Reforma Psiquiátrica, e são pactuados democraticamente os princípios, diretrizes e estratégias para a mudança da atenção em saúde mental no Brasil. Desta forma, a III Conferência consolida a Reforma Psiquiátrica como política de governo, confere aos CAPS o valor estratégico para a mudança do modelo de assistência, defende a construção de uma política de saúde mental para os usuários de álcool e outras drogas, e estabelece o controle social como a garantia do avanço da Reforma Psiquiátrica no Brasil. É a III Conferência Nacional de Saúde Mental, com ampla participação dos movimentos sociais, de usuários e de seus familiares, que fornece os substratos políticos e teóricos para a política de saúde mental no Brasil (ver “Relatório Final da III Conferência”). II - O processo de desinstitucionalização Redução de leitos O processo de redução de leitos em hospitais psiquiátricos e de desinstitucionalização de pessoas com longo histórico de internação passa a tornar-se política pública no Brasil a partir dos anos 90, e ganha grande impulso em 2002 com uma série de normatizações do Ministério da Saúde, que instituem mecanismos claros, eficazes e seguros para a redução de leitos psiquiátricos a partir dos macro-hospitais. Para avaliar o ritmo da redução de leitos em todo o Brasil, no entanto, é preciso considerar o processo histórico de implantação dos hospitais psiquiátricos nos estados, assim como a penetração das diretrizes da Reforma Psiquiátrica em cada região brasileira, uma vez que o processo de desinstitucionalização pressupõe transformações culturais e subjetivas na sociedade e depende sempre da pactuação das três esferas de governo (federal, estadual e municipal). O gráfico abaixo ilustra o processo de redução de leitos da segunda metade da década de 90 até agora: Gráfico 1 – Leitos Psiquiátricos SUS por ano (1996-2005) Fontes : Até o ano 2000, SIH/SUS. Em 2001, SIH/SUS, corrigido. Em 2002-2003, SIH/SUS, Coordenação Geral de Saúde Mental e Coordenações Estaduais. Em 2004-2005, PRH/CNES.1 Assim, a distribuição dos atuais 42.076 leitos psiquiátricos no Brasil ainda expressa o processo histórico de implementação nos estados de um modelo hospitalocêntrico de assistência em saúde mental. Esta oferta hospitalar, em sua maioria de leitos privados ( 58% dos leitos em psiquiatria), concentrou-se historicamente nos centros de maior desenvolvimento econômico do país, deixando vastas regiões carentes de qualquer recurso de assistência em saúde mental. Assim, 1 O total de leitos anual não inclui leitos psiquiátricos de Hospitais Gerais e leitos do sistema penitenciário. Observe- se que há mudança na base de dados a partir do ano de 2002. 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 0 5000 10000 15000 20000 25000 30000 35000 40000 45000 50000 55000 60000 65000 70000 75000 Ano N úm er o de le ito sAno Leitos HP 1996 72514 1997 71041 1998 70323 1999 66393 2000 60868 2001 52962 2002 51393 2003 48303 2004 45814 2005 42076 configuram-se como estados de grande tradição hospitalar e alta concentração de leitos de psiquiatria, os estados da Bahia e Pernambuco ( na Região Nordeste do Brasil), Goiás ( no Centro- Oeste ), Paraná ( na região Sul ) e São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais ( na região Sudeste ). A região Sudeste, como grande centro histórico de desenvolvimento do país, sedia cerca de 60% dos leitos de psiquiatria no país. Tabela 2 – Distribuição dos Leitos Psiquiátricos SUS por UF e Hospitais Psiquiátricos. Fonte : Ministério da Saúde Nos últimos três anos, o processo de desinstitucionalização de pessoas com longo histórico de internação psiquiátrica avançou significativamente, sobretudo através da instituição pelo Ministério da Saúde de mecanismos seguros para a redução de leitos no país e a expansão de serviços substitutivos aos hospital psiquiátrico. O Programa Nacional de Avaliação do Sistema Hospitalar/Psiquiatria (PNASH/Psiquiatria), o Programa Anual de Reestruturação da Assistência Hospitalar Psiquiátrica no SUS (PRH), assim como a instituição do Programa de Volta para Casa e a expansão de serviços como os Centros de Atenção Psicossocial e as Residências Terapêuticas, vem permitindo a redução de milhares de leitos psiquiátricos no país e o fechamento de vários Unidade Federativa Leitos Psiquiátricos Região Norte Amazonas 126 1 0,3 Acre 53 1 0,13 Amapá 0 0 0 Pará 56 1 0,13 Tocantins 160 1 0,38 Roraima 0 0 0 Rondônia 0 0 0 Subtotal Região Norte 395 4 0,64 Região Nordeste Alagoas 880 5 2,09 Bahia 1633 9 3,88 Ceará 1120 8 2,66 Maranhão 822 4 1,96 Paraíba 801 6 1,91 Pernambuco 3293 16 7,83 Piauí 400 2 0,95 Rio Grande do Norte 819 5 1,95 Sergipe 380 3 0,9 Subtotal Região Nordeste 10.148 58 24,13 Região Centro-oeste Distrito Federal 74 1 0,18 Goiás 1303 11 3,1 Mato Grosso 117 2 0,28 Mato Grosso do Sul 200 2 0,48 Subtotal Região Centro-Oeste 1.694 16 4,04 Região Sudeste Espírito Santo 620 3 1,47 Minas Gerais 3052 21 7,26 Rio de Janeiro 8134 41 19,35 São Paulo 13634 58 32,34 Subtotal Região Sudeste 25.440 123 60,42 Região Sul Paraná 2688 17 6,39 Rio Grande do Sul 911 6 2,17 Santa Catarina 800 4 1,9 Subtotal Região Sul 4.399 27 10,46 Brasil 42.076 228 100 Hospitais Psiquiátricos % do Total de Leitos Psiquiátricos SUS hospitais psiquiátricos. Embora em ritmos diferenciados, a redução do número de leitos psiquiátricos vem se efetivando em todos os estados brasileiros, sendo muitas vezes este processo o desencadeador do processo de Reforma. Entre os anos de 2003 e 2005 foram reduzidos 6227 leitos. A avaliação anual dos hospitais e seu impacto na reforma Entre os instrumentos de gestão que permitem as reduções e fechamentos de leitos de hospitais psiquiátricos de forma gradual, pactuada e planejada, está o Programa Nacional de Avaliação do Sistema Hospitalar/Psiquiatria (PNASH/Psiquiatria), instituído em 2002, por normatização do Ministério da Saúde. Essencialmente um instrumento de avaliação, o PNASH/Psiquiatria permite aos gestores um diagnóstico da qualidade da assistência dos hospitais psiquiátricos conveniados e públicos existentes em sua rede de saúde, ao mesmo tempo que indica aos prestadores critérios para uma assistência psiquiátrica hospitalar compatível com as normas do SUS, e descredencia aqueles hospitais sem qualquer qualidade na assistência prestada a sua população adscrita. Trata-se da instituição, no Brasil, do primeiro processo avaliativo sistemático, anual, dos hospitais psiquiátricos. Se a reorientação do modelo de atenção em saúde mental no Brasil é recente, mais recente ainda são seus processos de avaliação. É importante ressaltar que a tradição de controle e avaliação anterior ao PNASH-Psiquiatria ancorava-se em dois mecanismos: as supervisões hospitalares, realizadas por supervisores do SUS, de alcance limitado, e as fiscalizações ou auditorias que atendiam a denúncias de mau funcionamento das unidades. É a partir da instituição do PNASH/Psiquiatria que o processo de avaliação da rede hospitalar psiquiátrica pertencente ao Sistema Único de Saúde passa a ser sistemático e anual, e realizado por técnicos de três campos complementares: o técnico-clínico, a vigilância sanitária e o controle normativo. Fundamentado na aplicação, todos os anos, em cada um dos hospitais psiquiátricos da rede, de um instrumento de coleta de dados qualitativo, o PNASH/Psiquiatria avalia a estrutura física do hospital, a dinâmica de funcionamento dos fluxos hospitalares, os processos e os recursos terapêuticos da instituição, assim como a adequação e inserção dos hospitais à rede de atenção em saúde mental em seu território e às normas técnicas gerais do SUS. É parte deste processo de avaliação, a realização de “entrevistas de satisfação” com pacientes longamente internados e pacientes às vésperas de receber alta hospitalar. Este instrumento gera uma pontuação que, cruzada com o número de leitos do hospital, permite classificar os hospitais psiquiátricos em quatro grupos diferenciados: aqueles de boa qualidade de assistência; os de qualidade suficiente; aqueles que precisam de adequações e devem sofrer revistoria; e aqueles de baixa qualidade, encaminhados para o descredenciamento pelo Ministério da Saúde, com os cuidados necessários para evitar desassistência à população. A política de desinstitucionalização teve um forte impulso com a implantação do Programa Nacional de Avaliação dos Serviços Hospitalares – PNASH/Psiquiatria. O PNASH vem conseguindo nos últimos três anos vistoriar a totalidade dos hospitais psiquiátricos do país, leitos de unidades psiquiátricas em hospital geral, permitindo que um grande número de leitos inadequados às exigências mínimas de qualidade assistencial e respeito aos direitos humanos sejam retirados do sistema, sem acarretar desassistência para a população. O processo demonstrou ser um dispositivo fundamental para a indução e efetivação da política de redução de leitos psiquiátricos e melhoria da qualidade da assistência hospitalar em psiquiatria. Em muitos estados e municípios, o PNASH/Psiquiatria exerceu a função de desencadeador da reorganização da rede de saúde mental, diante da situação de fechamento de leitos psiquiátricos e da conseqüente expansão da rede extra-hospitalar. Em permanente aprimoramento, o PNASH/Psiquiatria ainda exerce um impacto importante no avanço da Reforma Psiquiátrica em municípios e estados com grande tradição hospitalar. As residências terapêuticas A desinstitucionalização e a efetiva reintegração das pessoas com transtornos mentais graves e persistentes na comunidade são tarefas às quais o SUS vem se dedicando com especial empenho nos últimos anos. A implementação e o financiamento de Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT) surgem neste contexto como componentes decisivos da política de saúde mental do Ministério da Saúde para a concretização das diretrizes de superação do modelo de atenção centrado no hospital psiquiátrico. Assim, os Serviços Residenciais Terapêuticos, residências terapêuticas ou simplesmente moradias, são casas localizadas no espaço urbano, constituídas para responder às necessidades de moradia de pessoas portadoras de transtornos mentais graves, egressas de hospitais psiquiátricos ou não. Embora as residências terapêuticas se configurem como equipamentos da saúde, estas casas, implantadas na cidade, devem ser capazes em primeiro lugar de garantir o direito à moradia das pessoas egressas de hospitais psiquiátricos e de auxiliar o morador em seu processo – às vezes difícil – de reintegração na comunidade. Os direitos de morar e de circular nos espaços da cidade e da comunidade são, de fato, os mais fundamentais direitos que se reconstituem com a implantação nos municípios de Serviços Residenciais Terapêuticos. Sendo residências, cada casa deve ser considerada como única, devendo respeitar as necessidades, gostos, hábitos e dinâmica de seus moradores. Uma Residência Terapêutica deve acolher, no máximo, oito moradores. De forma geral, um cuidador é designado para apoiar os moradores nas tarefas, dilemas e conflitos cotidianos do morar, do co-habitar e do circular na cidade, em busca da autonomia do usuário. De fato, a inserção de um usuário em um SRT é o início de longo processo de reabilitação que deverá buscar a progressiva inclusão social do morador. Cada residência deve estar referenciada a um Centro de Atenção Psicossocial e operar junto à rede de atenção à saúde mental dentro da lógica do território. Especialmente importantes nos municípios-sede de hospitais psiquiátricos, onde o processo de desinstitucionalização de pessoas com transtornos mentais está em curso, as residências são também dispositivos que podem acolher pessoas que em algum momento necessitam de outra solução de moradia. O processo de implantação e expansão destes serviços é recente no Brasil. Nos últimos anos, o complexo esforço de implantação das residências e de outros dispositivos substitutivos ao hospital psiquiátrico vem ganhando impulso nos municípios, exigindo dos gestores do SUS uma permanente e produtiva articulação com a comunidade, a vizinhança e outros cenários e pessoas do território. De fato, é fundamental a condução de um processo responsável de trabalho terapêutico com as pessoas que estão saindo do hospital psiquiátrico, o respeito por cada caso, e ao ritmo de readaptação de cada pessoa à vida em sociedade. Desta forma, a expansão destes serviços, embora permanente, tem ritmo próprio e acompanha, de forma geral, o processo de desativação de leitos psiquiátricos. A rede de residências terapêuticas conta hoje com 357 serviços em funcionamento, com aproximadamente 2850 moradores. A expansão dos Centros de Atenção Psicossocial, o desativamento de leitos psiquiátricos e, em especial, a instituição pelo Ministério da Saúde de incentivo financeiro, em 2004, para a compra de equipamentos para estes serviços, são alguns dos componentes para a expansão deste rede, que contava em 2002 com apenas 85 residências em todo o país. Esta rede deverá experimentar ainda nos próximos anos grande expansão. Estimativas do Ministério da Saúde indicam que cerca de 12.000 pessoas poderão se beneficiar dos Serviços Residenciais Terapêuticos. Gráfico 2 – Expansão das Residências Terapêuticas entre os anos 2000 e 2005 Fonte : Ministério da Saúde. Dados de 2005 colhidos até outubro de 2005. O Programa de Volta para Casa O Programa de Volta para Casa é um dos instrumentos mais efetivos para a reintegração social das pessoas com longo histórico de hospitalização. Trata-se de uma das estratégias mais potencializadoras da emancipação de pessoas com transtornos mentais e dos processos de desinstitucionalização e redução de leitos nos estados e municípios. Criado pela lei federal 10.708, encaminhada pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva ao Congresso, votada e sancionada em 2003, o Programa é a concretização de uma reivindicação histórica do movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira, tendo sido formulado como proposta já à época da II Conferência Nacional de Saúde Mental, em 1992. O objetivo do Programa é contribuir efetivamente para o processo de inserção social das pessoas com longa história de internações em hospitais psiquiátricos, através do pagamento mensal de um auxílio-reabilitação, no valor de R$240,00 (duzentos e quarenta reais, aproximadamente 110 dólares) aos seus beneficiários . Para receber o auxílio-reabilitação do Programa De Volta para Casa, a pessoa deve ser egressa de Hospital Psiquiátrico ou de Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, e ter indicação para inclusão em programa municipal de reintegração social. O Programa possibilita a ampliação da rede de relações dos usuários, assegura o bem estar global da pessoa e estimula o exercício pleno dos direitos civis, políticos e de cidadania, uma vez que prevê o pagamento do auxílio-reabilitação diretamente ao beneficiário, através de convênio entre o Ministério da Saúde e a Caixa Econômica Federal. Assim, cada beneficiário do Programa recebe um cartão magnético, com o qual pode sacar e movimentar mensalmente estes recursos. O município de residência do beneficiário deve, para habilitar-se ao Programa, ter assegurada uma estratégia de acompanhamento dos beneficiários e uma rede de atenção à saúde mental capaz de dar 2000 2002 2005 0 25 50 75 100 125 150 175 200 225 250 275 300 325 350 375 40 85 357 uma resposta efetiva às demandas de saúde mental. A cada ano o benefício pode ser renovado, caso o beneficiário e a equipe de saúde que o acompanha entendam ser esta uma estratégia ainda necessária para o processo de reabilitação. Trata-se de um dos principais instrumentos no processo de reabilitação psicossocial, segundo a literatura mundial no campo da Reforma Psiquiátrica. Seus efeitos no cotidiano das pessoas egressas de hospitais psiquiátricos são imediatos, na medida em que se realiza uma intervenção significativa no poder de contratualidade social dos beneficiários, potencializando sua emancipação e autonomia. A implementação do Programa, no entanto, não se dá sem dificuldades. Além do esperado desafio da mudança efetiva do modelo de atenção à saúde mental nos estados e municípios, o Programa de Volta para Casa enfrenta uma situação paradigmática, produzida por um longo processo de exclusão social. A grande maioria dos potenciais beneficiários, sendo egressos de longas internações em hospitais psiquiátricos, não possuem a documentação pessoal mínima para o cadastramento no Programa. Muitos não possuem certidão de nascimento ou carteira de identidade O longo e secular processo de exclusão e isolamento dessas pessoas, além dos modos de funcionamento típicos das instituições totais, implicam muitas vezes na ausência de instrumentos mínimos para o exercício da cidadania. Este é ainda um desafio para a consolidação do Programa, que vem sendo enfrentado através da parceria entre o Ministério da Saúde, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal e a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, para restituir o direito fundamental de identificação e garantir o direito destas pessoas ao auxílio-reabilitação do Programa de Volta para Casa. Desta forma, verdadeiros “mutirões da cidadania” vêm se estruturando nos municípios para garantir a identificação tardia destas pessoas, num processo fundamental de inclusão social e garantia dos direitos fundamentais das pessoas com transtornos mentais, desafio primeiro da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Atualmente 1747 pessoas já recebem o auxílio-reabilitação. Até o final de 2006, cerca de 3000 usuários poderão ser beneficiados pelo Programa. A estratégia de redução progressiva a partir dos hospitais de grande porte Aprofundando as estratégias já estabelecidas para a redução de leitos em hospitais psiquiátricos e para o incremento dos serviços extra-hospitalares, o Ministério da Saúde aprova em 2004 o Programa Anual de Reestruturação da Assistência Hospitalar no SUS (PRH). A principal estratégia do Programa é promover a redução progressiva e pactuada de leitos a partir dos macro- hospitais (acima de 600 leitos, muitas vezes hospitais-cidade, com mais de mil leitos) e hospitais de grande porte (com 240 a 600 leitos psiquiátricos). Assim, são componentes fundamentais do programa a redução do peso assistencial dos hospitais de maior porte, e a pactuação entre os gestores do SUS – os hospitais e as instâncias de controle social – da redução planejada de leitos, evitando a desassistência. Desta forma, procura-se conduzir o processo de mudança do modelo assistencial de modo a garantir uma transição segura, onde a redução dos leitos hospitalares possa ser planificada e acompanhada da construção concomitante de alternativas de atenção no modelo comunitário. Para tanto, são definidos no Programa os limites máximos e mínimos de redução anual de leitos para cada classe de hospitais (definidas pelo número de leitos existentes, contratados pelo SUS). Assim, todos os hospitais com mais de 200 leitos devem reduzir no mínimo, a cada ano, 40 leitos. Os hospitais entre 320 e 440 leitos podem chegar a reduzir 80 leitos ao ano (mínimo: 40), e os hospitais com mais de 440 leitos podem chegar a reduzir, no máximo, 120 leitos ao ano. Desta forma, busca-se a redução progressiva do porte hospitalar, de modo a situarem-se os hospitais, ao longo do tempo, em classes de menor porte (idealmente, até 160 leitos). Ao mesmo tempo, garante- se que as reduções de leitos se efetivem de forma planejada, de modo a não provocar desassistência nas regiões onde o hospital psiquiátrico ainda tem grande peso na assistência às pessoas com transtornos mentais. Este processo, com ritmo pactuado entre os gestores do município e do estado, hospitais e controle social, deve incluir o aumento progressivo dos equipamentos e das ações para a desinstitucionalização, tais como CAPS, Residências Terapêuticas, Centros de Convivência e a habilitação do município no Programa de Volta para Casa. Na mesma direção estratégica, o Programa recompõe as diárias hospitalares em psiquiatria. Assim, a partir do Programa, passam a vigorar diárias hospitalares
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