Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
AT 1 2 32 S U M Á R IO 3 UNIDADE 1 - Introdução 6 UNIDADE 2- Os direitos fundamentais 10 UNIDADE 3 - A assistência social e os direitos sociais no brasil em tempos de neoliberalismo 10 1) Estado Democrático de Direito 10 2) Dignidade humana 11 3) Universalidade, igualdade e seletividade 12 4) Descentralização e Participação Popular 14 5) Reserva do Possível 15 6) A Proibição do Retrocesso 16 7) Segurança Jurídica 17 8) Uniformidade e Diferenciação Regional 18 9) Proporcionalidade ou Proibição de Excessos 20 3.1 E a Assistência social nesse emaranhado de direitos sociais? 22 3.2 Críticas às prioridades da política social brasileira – uma política pró-idoso e anticriança 26 UNIDADE 4 - A seguridade social 27 4.1 Assistência social 28 4.2 Saúde 29 4.3 Previdência Social 30 UNIDADE 5 - Notícias do ministério do desenvovimento social - mds 31 5.1 Programa Brasil Sem Miséria 33 5.1.1 Brasil Sem Miséria no Campo 33 5.1.2 Brasil Sem Miséria na Cidade 39 UNIDADE 6 - Programas de transferência de renda 42 UNIDADE 7 - O programa bolsa-família 46 REFERÊNCIAS 2 33 UNIDADE 1 - Introdução Desde o fim da Primeira Guerra Mundial (1918), vimos o aumento acentuado de problemas relacionados a questões so- ciais e os países começaram a sentir a ne- cessidade de reconfigurar suas funções, principalmente em relação a encargos li- gados às políticas econômicas e sociais. No Brasil, a construção da proteção so- cial estatal, remonta aos anos 1930, mos- trando que a regulação do Estado brasi- leiro, no campo das políticas sociais, tem, historicamente, se efetivado mediante programas e ações fragmentadas, even- tuais e descontínuas (SILVA, YASBEK, GIO- VANNI, 2008). A histórica e profunda concentração de renda decorrente dos modelos de desen- volvimento econômico adotados ao longo da construção do capitalismo industrial no Brasil e a sobre-exploração da força de trabalho vêm se aprofundando, apesar da adoção de um conjunto amplo de pro- gramas sociais que são marcados por um caráter essencialmente compensatório, pouco contribuindo para amenizar as con- dições de pobreza e largo contingente da população brasileira. Isso ocorre apesar do volume elevado de recursos aplicados e da grande quantidade e variedade de programas (DRAIBE et al 1995; DRAIBE, 1990). Esse sistema tem situado, historica- mente, a população beneficiária no campo do não direito ou da cidadania regulada, deslocando o espaço do direito para o ter- reno do mérito, além de servir como ins- trumento para a corrupção, demagogia, fisiologismo e clientelismo político. Por conseguinte, Silva, Yasbek e Gio- vanni (2008) asseveram que, enquanto economia subdesenvolvida, o Brasil não conseguiu construir uma sociedade sa- larial, nem o que se convencionou deno- minar de Welfare State, o que marcou as sociedades salariais dos países desenvol- vidos. Há que se considerar, todavia, que o processo de rearticulação da sociedade civil brasileira, que marcou os anos 1980, colocou em pauta a luta política por di- reitos sociais básicos. Nesse contexto de efervescência popular, é destacada a questão da cidadania, cujo marco foi a am- pliação dos direitos sociais na Constitui- ção Federal de 1988, que introduziu a no- ção de Seguridade Social. Ampliam-se os deveres do Estado para com os cidadãos bem como se vivencia maior visibilidade política e acadêmica sobre as questões sociais (SILVA, YASBEK, GIOVANNI, 2008). O discurso popular, que coloca a neces- sidade do resgate da dívida social, é apro- priado pelo Estado. Parece que se estava caminhando para a possibilidade de uni- versalização de direitos sociais básicos, com garantia de mínimos sociais. Todavia, a partir dos anos 1990, com a crise fiscal do Estado e a opção do Governo brasileiro pelo projeto neoliberal, no plano da inter- venção estatal, foram impostas limitações para os programas sociais, acompanhadas do desmonte dos direitos sociais conquis- tados, o que se concretizou nas reformas da Constituição Federal de 1988. Estamos, por conseguinte, no contex- to de profunda crise do padrão interven- cionista do Estado, constituído nos anos 1930 e aprofundado durante o período da 4 5 Ditadura Militar, com maiores consequên- cias para a área social. Como já foi dito, mesmo durante a vi- gência do padrão intervencionista do Es- tado brasileiro, não chegamos a construir um Estado de Bem-Estar Social, pautado pela cidadania. O mais grave é que, mes- mo com a redemocratização da socieda- de, a possibilidade de constituição de um Estado de Bem-Estar Social, orientado pela cidadania, é colocada na contramão da história, com o estabelecimento da he- gemonia do projeto neoliberal. Chega-se, portanto, ao início do século XXI, com um Sistema de Proteção Social marcado pelos traços da reforma dos programas sociais, sob a orientação de organismos interna- cionais como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, ex- presso pela descentralização, privatiza- ção e focalização dos programas sociais. Os programas de transferência de ren- da têm-se tornado fundamental como po- lítica social em muitos países com elevado número de famílias pobres, cujo objetivo é o de criar uma rede de proteção social para as populações mais carentes. Toda- via, muitos países ricos também já ado- taram ou ainda possuem programas que transferem recursos para famílias que vi- vem num determinado patamar de pobre- za (AFONSO, 2006). O modelo de proteção existente na América Latina, desde a década de 1930 até a década de 1970, baseava-se no em- prego formal que garantia aposentado- rias, pensões e benefícios por acidentes de trabalho e assistência à saúde, tendo como pré-requisito a contribuição prévia. Os não contribuintes dependiam da assis- tência social. Os programas de transferências mo- netárias foram criados sem este vínculo. Além disso, os programas estabeleceram condicionalidades com o intuito de elevar os níveis de educação, reduzir a evasão escolar e o trabalho infantil e, também, melhorar os indicadores de saúde e nutri- ção. Nos países que apresentam o progra- ma, os mesmos não têm necessariamen- te a mesma formatação. Todavia, os seus beneficiários são focalizados nas famílias extremamente pobres ou pobres, com crianças ou adolescentes. No Brasil, programas de transferência de renda nos moldes estrangeiros, foram criados, inicialmente, em alguns municí- pios e estados a partir de 1995. Pois bem, os conceitos básicos de direi- tos fundamentais, direitos sociais míni- mos e básicos, seguridade social e renda, a política social brasileira e os programas de transferência de renda são os temas compilados ao longo desta apostila, visto pela ótica de magistrados e à luz da legis- lação vigente. Evidentemente, de forma a expor os pontos positivos e negativos, entretanto, sem intenção de criticar ou reforçar alguma opinião. Estas reflexões deixamos para vocês que terão um forte aparato teórico para consultas. Esperamos que apreciem o material e busquem, nas referências anotadas ao fi- nal da apostila, subsídios para sanar pos- síveis lacunas que venha surgir ao longo dos estudos. Ressaltamos que, embora a escrita aca- dêmica tenha como premissa ser científi- ca, baseada em normas e padrões da aca- demia, fugiremos um pouco às regras para 1-Dentre estes se destacam o programa mexicano Progresa desde 1997, o da Nicarágua, o programa Red de Proteción Social (RPS) desde 2000, o da Colômbia, Famílias em Accion que iniciou em 2001 e o indiano Food-for-Education iniciado em 1995 (RESENDE; OLIVEIRA, 2006) e o programa Chile Solidário desde 2002 (SOARES et al., 2006). 1 4 5 nos aproximarmos de vocês e para que os temas abordados cheguem de maneira clarae objetiva, mas não menos científi- cas. Em segundo lugar, deixamos claro que este módulo é uma compilação das ideias de vários autores, incluindo aqueles que consideramos clássicos, não se tratando, portanto, de uma redação original. 6 7 UNIDADE 2- Os direitos fundamentais A construção do nosso pensamento, para chegar aos programas de transfe- rência de renda, não necessariamente precisa passar pelos direitos fundamen- tais, mas acreditamos que compreendê- -los é importante. As declarações de direitos são um dos traços mais característicos do Constitu- cionalismo. A ideia de se estabelecer, por escrito, uma lista de direitos em favor dos indivíduos, direitos estes que se imporiam ao próprio poder que os concedeu ou re- conheceu, não é nova. Os forais, as cartas de franquia, conti- nham, já na Idade Média, uma enumera- ção com esse caráter entre as declarações de um lado, e os forais e as cartas de fran- quia, de outro. A distinção fundamental se assentava em que, nas declarações, o objeto de preocupação era o homem, o ci- dadão, em abstrato, enquanto que nos fo- rais e nas cartas o documento se voltava para determinadas categorias ou grupos específicos e particulares de homens. Pode-se dizer, em apertada síntese, que nas declarações se reconheciam di- reitos a todos os homens, pelo simples fato de serem homens, em razão de sua natureza, ao passo que nos forais e cartas de franquia, direitos eram reconhecidos a alguns homens por fazerem parte de cer- ta corporação ou pertencerem a determi- nada cidade. Por outro lado, as declarações dos sé- culos XVIII e XIX apresentam nítida hosti- lidade ao poder, considerado como o inimi- go por excelência da liberdade (ARAÚJO, 2009). Em todas elas observa-se a mesma pre- ocupação de armar os indivíduos de meios e modos de resistência contra o Estado. Por vezes, esta preocupação se revelava com o estabelecimento de uma zona imu- ne à intervenção do Estado liberdades / li- mites, armando o indivíduo contra o poder dentro do próprio domínio estatal liberda- des / oposição. Dois grupos de direitos, portanto, apa- recem bem nítidos: o das liberdades/limi- tes, como, por exemplo, a liberdade pes- soal, o direito de propriedade, a liberdade de comércio, a liberdade de indústria, de religião etc., que impedem a intromissão do Estado numa esfera íntima da vida hu- mana, e o das liberdades/oposição, como, por exemplo, a liberdade de imprensa, a liberdade de reunião, a liberdade de ma- nifestação etc., que servem de meios de oposição política (ARAÚJO, 2009). Voltando um pouco às declarações, atribui-se à opressão do Estado absolu- tista a causa próxima do seu surgimento. Destas, a primeira foi a do Estado de Virgí- nia de 1776, a qual serviu de modelo para as demais colônias da América do Norte, muito embora a mais famosa delas - a de- claração dos “Direitos do Homem e do Ci- dadão” - tenha sido editada pela Revolu- ção Francesa em 1789. O fato é que existe, em todas estas de- clarações, de forma pontuada, resposta para cada abuso do absolutismo. O que se buscava, enfim, nestas declarações, era enumerar os direitos imemoriais que, como no caso dos cidadãos ingleses, jul- gavam gozar os que haviam sido vilipen- diados pelo Monarca. Os franceses, tam- bém, procuraram impedir os abusos mais 6 6 7 frequentes. Fizeram-no de forma mais racional, tornando seu produto mais uni- versal e perene. Pode-se afirmar que a causa mais pro- funda do reconhecimento de direitos naturais e intangíveis, em prol dos indi- víduos, derivam, de forma imediata, da natureza humana, e é de ordem filosófi- co-religiosa. O cristianismo pregou a igualdade fun- damental de todos os homens, criados à imagem e semelhança de Deus, daí con- solidando a ideia sobre o direito natural como sendo aquela participação na lei eterna que o homem concretiza, conside- rando sua essência: a vontade de Deus, o criador de tudo, revelada pela razão da criatura. Essa base religiosa do Direito Natural, foi substituída pela obra dos racionalistas, do Século XVII, sob o fundamento de que o Direito Material não seria a vontade de Deus, mas a razão - medida última do cer- to e do errado, do bem e do mal, do verda- deiro e do falso. Foi a versão racionalista do Direito Material, inserida no Iluminis- mo, que inspirou as primeiras declarações de direitos. A absorvente preocupação econômica, da época do surgimento das declarações, impulsionou a afirmação do indivíduo, posto que, a revolução individualista, era a mola mestra do capitalismo emergente, ávido pelo progresso econômico. O individualismo é o traço fundamental das declarações dos Séculos XVIII e XIX e daquelas editadas até a primeira Guer- ra Mundial, com a marca da preocupação em defesa do indivíduo contra o Estado, considerado um mal, embora necessário (ARAÚJO, 2009). Tal viés individualista grava essa preo- cupação dos direitos individuais contra o Estado e perdura na maioria das Consti- tuições do século XX. Nestas, porém, sur- ge outro vetor, que é o de conceder aos indivíduos determinados direitos a serem positivamente assegurados pelo Estado, direitos em geral de cunho econômico. Embora a classificação de Gerações dos Direitos Fundamentais seja criticada por alguns autores, posto que indicaria uma falsa superação de fases (gerações) e não a concomitância e convivência entre elas, impõe-se elencá-Ias para a completa com- preensão da evolução histórica do tema. Os direitos de primeira geração são aqueles referidos nas revoluções ameri- cana e francesa, os quais fixaram a esfera de autonomia pessoal imune à interven- ção do Estado ou a qualquer expansão de seu poder. Traduzem postulados de abs- tenção dos governos, de viés universalis- ta e podem ser traduzidos nas liberdades individuais da liberdade de consciência, de culto, da inviolabilidade de domicílio e de reunião. Não aparece, ainda, a preocupação com as desigualdades sociais, posto que o pa- radigma de proteção é o homem individu- almente considerado. Com o tempo, o Estado passou a ser convocado a realizar a denominada Jus- tiça Social em decorrência, basicamente, das tensões sociais causadas pela indus- trialização, do rápido crescimento demo- gráfico e dos consequentes reclames de sua intervenção, com vistas a realizar um papel mais ativo na sociedade. Os direitos de segunda geração são aqueles que obrigam o Estado a entregar prestações positivas, estabelecendo uma liberdade real e igualitária para todos, por 7 8 9 meio da ação corretiva dos poderes públi- cos, tais como a prestação de assistência social, a saúde, a educação, o trabalho, o lazer, o direito de greve, a sindicalização etc. Sob os direitos de segunda geração, o princípio da igualdade toma contornos de igualdade substancial, gerando direitos a prestações positivas, daí serem chamados sociais, por se ligarem a reivindicações de justiça social, tendo como titulares indiví- duos singularizados. Os direitos de terceira geração são aqueles de titularidade difusa ou coletiva. Neste contexto, concebe-se a proteção de coletividades ou de grupos, não se vol- tando para o ser humano como indivíduo propriamente dito. Como exemplos de tais direitos, temos o direito à paz, ao desen- volvimento, ao meio ambiente, à conser- vação do patrimônio histórico, cultural etc. Os direitos de quarta geração surgem como aqueles relativos à manipulação do patrimônio genético, tais como a clona- gem, os alimentos transgênicos, a ferti- lização in vitro com a escolha do sexo do bebê, ou ainda, como ressalta parte da doutrina, são aqueles ligados à globaliza- ção econômica. Nota-se que a classificação dos Direi- tos Fundamentais em gerações revela o caminho histórico da evolução destes di-reitos, sendo que, cada geração, interage e se complementa, permitindo a completa compreensão do tema. Quanto à justificação dos Direitos Fun- damentais, diversas correntes filosóficas disputam vertentes filosófico-jurídicas sobre a razão de ser dos Direitos Huma- nos. Os jusnaturalistas afirmam que os direitos do homem são decorrentes do di- reito natural, anteriores superiores à von- tade do Estado. Para os positivistas, os direitos do ho- mem são faculdades concedidas pela lei e por ela reguladas. Já os idealistas ponde- ram que os Direitos Humanos são ideias, princípios abstratos que a vida de relação vai acolhendo e sedimentando ao longo do tempo, os quais para os realistas se- riam o resultado do direito das lutas so- ciais e políticas. Os direitos fundamentais designam, no nível do direito positivo, aquelas prerro- gativas e instituições que o ordenamen- to jurídico concretiza em garantia de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas. No qualificativo “fundamentais” en- contra-se a indicação de que se tratam de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, por vezes, sequer sobrevive. Nosso Supremo Tribunal Federal é sen- sível à identificação de normas de direito fundamental fora do catálogo específico (art. 5º, § 2º, da CF/88) a partir do exame da existência de um especial vínculo - que pode ser evidenciado por elementos de ordem histórica - do bem jurídico prote- gido com alguns dos valores essenciais do resguardo da dignidade humana, tais como a vida, a liberdade, a igualdade, a segurança e a propriedade. Conceituar os Direitos Fundamentais, isto é, descrever seus contornos, não é tarefa simples, muito menos fixar as ca- racterísticas que sejam sempre válidas. A validade universal dos Direitos Funda- mentais não pressupõe uma uniformida- de. O conteúdo concreto e a significação dos Direitos Fundamentais para um Es- tado dependem de numerosos fatores 8 9 extrajurídicos, especialmente das pecu- liaridades da cultura e da história de cada (cultura e sociedade). No Brasil, a constitucionalização dos Di- reitos Fundamentais revela a sua imposi- tividade máxima em face de todos os po- deres constituídos, com destaque para o poder de reforma que nela encontra limite intransponível de alteração (art. 60, § 4º, da CF/88), nas denominadas cláusulas pé- treas, como veremos na próxima unidade (GONÇALVES, 2005). 10 1110 UNIDADE 3 - A assistência social e os direitos sociais no brasil em tempos de neoliberalismo Em sua tese de doutorado em Políticas Públicas, intitulada “POLÍTICAS DOS DIREI- TOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS NA CONSTI- TUIÇÃO FEDERAL DE 1988: releitura de uma constituição dirigente” Gonçalves (2005) registra e elenca alguns princípios que regem constitucionalmente as políti- cas sociais, os quais são elencados sucin- tamente: 1) Estado Democrático de Direito Em fins do século XVIII e durante o sé- culo XIX, o liberalismo econômico trouxe à tona o modelo do Estado de Direito para fazer frente ao absolutismo. De maneira bem simples, tinha como objetivo confor- mar os poderes públicos aos ditames da lei. No caso do Brasil, a Constituição Fe- deral de 1988, segundo as diretrizes do constitucionalismo atual, integralizou, no caput do seu artigo 1º, um novo paradig- ma – Estado Democrático de Direito −, a partir das seguintes configurações: trata-se de um Estado estruturado no interior de uma Constituição que rede- fine o pacto político, reiterando a primazia de homens e mulheres no seu cotidiano histórico. Daí a relevância dada aos direi- tos fundamentais, a partir da noção jus política da dignidade humana; o Estado Democrático de Direito deve visar, por conseguinte, à garantia dos direitos fundamentais, contemplando as liberdades individuais, assim como os direitos sociais e políticos enquanto con- quistas da sociedade, e não como favores do Estado. nesse tipo de configuração consti- tucional, não há prevalência entre as me- diações dos direitos fundamentais; todas são igualmente importantes e interliga- das. o pluralismo, enquanto possibili- dade de manifestação das diferenças, é também traço marcante do Estado Demo- crático de Direito. a atualidade dos direitos funda- mentais sociais, no interior do Estado De- mocrático de Direito, impede que a Cons- tituição seja instrumento legal a serviço de poucos. Desse modo, o diálogo e as lu- tas políticas não restam esmorecidas, mas podem verdadeiramente alargar-se. Em suma: o Estado Democrático de Di- reito exige que a Constituição simultane- amente assegure: a separação de poderes; a garantia dos direitos fundamen- tais (individuais, sociais, coletivos, políti- cos e difusos); a possibilidade de participação po- pular não apenas nos certames eleitorais, mas também na própria gestão e controle das políticas públicas; e, ainda, a multiplicidade de meios de tutela dos direitos fundamentais. Enfim, o Estado Democrático de Direito é princípio cuja existência facilmente de- preende-se da Constituição e, nela, por- tanto, deve encontrar mecanismos de sua própria eficácia. 2) Dignidade humana A Constituição Federal de 1988 princi- pia sua normatividade (artigo 1º, III), es- tabelecendo, dentre os fundamentos da 10 1111 República Federativa do Brasil, a dignida- de da pessoa humana. É certo, por conse- guinte, que bastaria esse comando cons- titucional para que estivessem, em igual medida, garantidas as necessidades hu- manas básicas, haja vista que a dignidade não é, no interior do sistema constitucio- nal brasileiro, qualidade ou atributo de al- guns, fixada por discussões meta-jurídi- cas; expressa-se e materializa-se, antes e acima de tudo, pelo conjunto dos direitos fundamentais. Com efeito, a dignidade humana ou con- junto dos direitos fundamentais não re- presentam meras abstrações legislativas; antes pelo contrário, traduzem os careci- mentos cotidianos de homens e mulheres inseridos em seus contextos históricos. Em outros termos isso quer dizer: Em primeiro lugar a dignidade da pes- soa é da pessoa concreta na sua vida real e cotidiana; não é de um ser ideal e abstra- to. É o homem ou a mulher tal como existe, que a ordem jurídica considera irredutível, insubstituível e irrepetível, e cujos direi- tos fundamentais a Constituição enuncia e protege (MIRANDA, 2000, p.184). De toda sorte, cumpre verificar que a imensa dívida social brasileira, assim como os longos anos de instabilidade institucio- nal (Estado Novo, Regime Militar de 1964), impeliram o constituinte, sobretudo atra- vés das demandas populares, a explicitar o conteúdo constitucional da dignidade humana. Defende-se, aqui, portanto, que as necessidades humanas básicas e os meios materiais para sua consecução, es- tabelecem o perfil da dignidade humana no interior do constitucionalismo brasilei- ro (GONÇALVES, 2005). Lembremos ainda que as diversas me- diações da luta política, no plano infra- constitucional, podem alargar o conteúdo da dignidade − o que tende a ocorrer −, não, contudo, reduzi-lo. Essa, portanto, é a proteção que a Carta de 1988 assegura a todos. 3) Universalidade, igualdade e seletivi- dade A própria Constituição Federal de 1988, em seu artigo 194, I, III, respectivamente, consagrou os princípios da universalida- de de cobertura e de atendimento, assim como da seletividade e da distributivida- de dos benefícios e serviços. Pois bem, os princípios da não contra- riedade das normas constitucionais e da harmonização, ou concordância prática, impõem ao tema a seguinte reflexão pro- posta por Gonçalves (2005): A Carta Polí- tica de 1988, transmuta as necessidades humanas básicas em direitos fundamen- tais, o que, por via reflexa, desconstituia ideia de favor, de caridade ou concessão que fortemente marcou – e, em alguns casos, ainda marca - as políticas sociais no Brasil. Desse entendimento, decorre que as necessidades humanas básicas, enquan- to mediações dos direitos fundamentais, são igualmente atingidas pelo princípio da universalidade. Contudo, citado princípio, enquanto mandato de otimização, sub- mete-se a ponderações e, por conseguin- te, não se constitui enquanto comando absoluto. Ou seja: universalidade significa que todos têm direito e deveres e, bem por isso, são sujeitos de direito constitu- cionalmente reconhecidos. Contudo, o próprio princípio da igual- dade relativiza o conteúdo e o alcance da universalidade, já que traz à tona o dever 12 13 de serem estabelecidas diferenças entre pessoas e grupos que se encontrem em determinadas situações fáticas desfa- voráveis ao exercício dos direitos funda- mentais. Feitas essas considerações, evi- dencia-se que: Todos têm todos os direitos e deveres – princípio da universalidade; todos (ou, em certas condições ou situações, só alguns) têm os mesmos direitos e deveres – prin- cípio da igualdade. O princípio da univer- salidade diz respeito aos destinatários da norma, o princípio da igualdade ao seu conteúdo (MIRANDA, 2000, p. 215). Deste modo, o princípio da universali- dade das políticas dos direitos fundamen- tais sociais tem, assim, seu alcance rela- tivizado pelo princípio da igualdade que suscita, deste modo, o direito à diferença e o dever de estabelecê-la, enquanto ins- trumento de redução das desigualdades regionais e sociais (artigo 3º, III da Consti- tuição Federal). O princípio da universalidade não sig- nifica, por exemplo, que todos tenham acesso a todos os benefícios e serviços da assistência social, de moradia básica, de distribuição de livros e de merendas esco- lares, além do ensino fundamental, de ali- mentos, ou de suplementação nutricional. O princípio da igualdade focaliza ne- cessariamente os destinatários desses programas sociais, a fim de que possa se efetivar a redistribuição de riquezas e, por via reflexa, a ruptura das desigualdades regionais e sociais, de acordo com o que estabelece, por exemplo, o artigo 3º, III da Constituição Federal. Embora muitos possam ser os meios seguidos pelas políticas públicas para al- cançarem esse escopo, uma observação é determinante: seletividade e distribu- tividade dos benefícios e serviços (arti- go 194, III da Constituição) devem ser in- terpretados enquanto focalização e não como políticas residuais, ou seja, políticas sociais que, em seu conjunto, a médio e longo prazos, não visem à redistribuição de riquezas, mas contentem-se ad infi- nitum em distribuir prestações mínimas, incapazes de restituir autonomia aos be- neficiários através da satisfação de suas necessidades humanas básicas (GONÇAL- VES, 2005). 4) Descentralização e Participação Po- pular O Texto Constitucional mantém, hoje, não obstante, os impactos da globaliza- ção, sua centralidade enquanto Estatuto Político não apenas do governo, mas tam- bém da sociedade civil. Entretanto, não se pode deixar, aqui, de mencionar que o constitucionalismo recebe, agora, muito mais que antes, influxos da ordem inter- nacional − notadamente no que concer- ne aos direitos humanos −, assim como dos poderes locais, levando, nesse último caso, a execuções de políticas sociais bem mais descentralizadas, visando torná-las, pois, participativas. Vale lembrar que ainda não estamos analisando experiências concretas de descentralização e participação popular, muito menos execução de políticas so- ciais, somente discutindo os princípios que devem reger, por imposição constitu- cional, as políticas sociais no Brasil. No que tange à descentralização, re- ferido princípio acha-se consagrado na Carta de 1988, quando, por exemplo, o Texto Constitucional confere aos Mu- nicípios status de unidade político−ad- ministrativa autônoma (artigos 1 e 18 e 12 13 respectivos, caput). Acha-se igualmente contemplada a descentralização na disci- plina constitucional das políticas de saúde (artigo 118, I), de assistência social (204, I), de educação (ensinos infantil e funda- mental, prioritariamente implementados pelos municípios e ensinos fundamental e médio de competência sobretudo dos Estados Membros e do Distrito Federal (artigo 211, parágrafos 2 e 3, sem prejuí- zo, por certo, das demais políticas sociais (moradia, alimentos, geração de emprego e renda etc.) que se constituem também em competências comuns da União, dos Estados Membros, do Distrito Federal e dos Municípios. Até fins do século XVIII, o constitucio- nalismo revolucionário reinante era inspi- rado na ideia de que a lógica da racionali- zação, legado do Iluminismo, propiciaria justiça e equidade, de acordo com as dis- posições das leis. Não obstante, a partici- pação popular, aí, contentava-se basica- mente com o processo eleitoral e com a garantia dos direitos políticos. Por outro lado, as experiências do socialismo racio- nalizaram ainda mais o poder, reiterando a prevalência da burocracia estatal sob o conjunto da sociedade civil. Hoje, contudo, a ideia de pluralismo, enquanto espaço e possibilidade concreta de exercício e discussão das diferenças, passa a ser a marca de políticas sociais que desejam se ver livres das amarras do autoritarismo. Concordamos com Gonçalves que a ideia não é defender que o Estado se des- vincule de suas obrigações sociais, nem se pretende tomar o termo “participação popular” e solidariedade enquanto enca- recimento exagerado da sociedade civil, no interior da qual, aliás, historicamente tem se produzido sérias violências e ex- clusões. O Estado, portanto, deve conti- nuar sendo ente privilegiado na gestão das políticas dos direitos fundamentais sociais, sob pena de se trocar a conquista dos direitos por favores e, bem por isso, o dever jurídico pela consciência moral de cada um, revivendo-se, desse modo, a to- tal exclusão imposta pelo individualismo liberal. Nesse sentido, a Constituição de 1988, consagra a descentralização político-ad- ministrativa. Em um país com grandes di- mensões geográficas e marcantes dife- renciações culturais, tal opção não apenas é benéfica, mas também necessária. Ou seja: como se pode, a partir de uma con- cepção democrático-pluralista, admitir, por exemplo, que políticas de moradia, ali- mentação, educação e até mesmo de saú- de desconheçam a realidade histórica das comunidades locais? O costume, por con- seguinte, torna-se valor constitucional a ser observado sobretudo pelos Poderes Executivo e Legislativo na implementa- ção, gestão e avaliação das políticas so- ciais. O dito acima nos leva a perceber que a participação popular depende da descen- tralização político-administrativa, isto é: estando o poder mais próximo do cotidia- no das pessoas, em tese, mais facilmente se estabelece o diálogo entre sociedade civil e Estado. A necessidade de partici- pação da sociedade civil no conjunto das políticas públicas trouxe à tona a noção de um constitucionalismo moralmente refle- xivo, ou seja: Um dos desafios com que se defronta este constitucionalismo moralmente re- flexivo, consiste na substituição de um direito autoritariamente dirigente, mais 14 15 ineficaz, através de outras fórmulas que permitam completar o projeto da moder- nidade − onde não se realizou − nas con- dições complexas da pós-modernidade. Nessa perspectiva, certas formas de “eficácia reflexiva” ou de “direção indire- ta” − subsidiariedade, neocorporativismo, delegação − podem apontar para o desen- volvimento de instrumentos cooperativos que, reforçando a eficácia, recuperem as dimensões justas do princípio da respon- sabilidade, apoiandoe encorajando a di- nâmica da sociedade civil. Além disso, de- vem-se considerar superadas as formas totalizantes e planificadas globais abrindo caminho para ações e experiências locais (princípio da relevância), e dando guarida à diversidade cultural (princípio da tole- rância) (CANOTILHO, 2001). Realmente não se pode supor uma Constituição democrática e pluralista que não privilegie e dê relevância à participa- ção popular e à descentralização política. Contudo, reitere-se: a sociedade civil não é o melhor dos mundos; ela é produto e, ao mesmo tempo, tem reproduzido tam- bém inúmeros espaços de intolerância e de exclusão; por conseguinte, a sociedade civil pode e deve dialogar com as instân- cias do poder estatal, assim como contro- lar políticas públicas e realizar de forma autônoma ações e programas sociais; não deve, contudo, ser a substituta do Estado no seu mister de prover e de garantir que todos tenham acesso aos direitos funda- mentais sociais (GONÇALVES, 2005). 5) Reserva do Possível A reserva do possível apresenta-se ba- sicamente com as configurações de um princípio instrumental, ou seja, constitui- -se enquanto mecanismo jurídico de afe- rição de constitucionalidade das políticas dos direitos fundamentais sociais. Ora, o que a sociedade pode esperar razoavelmente, no que concerne aos ser- viços sociais e bens que lhes sejam dispo- nibilizados, condiciona-se, de um lado, ao grau de desenvolvimento econômico-so- cial do país e, de outro, às opções políticas realizadas tanto pelos poderes públicos quanto pela sociedade civil. Cuidando-se de país economicamente desenvolvido, que tenha optado por políticas sociais baseadas no modelo Institucional Redis- tributivo, o princípio aqui estudado apro- xima-se da universalização. Em outros termos: satisfeitas as necessidades hu- manas básicas de todos, os serviços so- ciais vão se generalizando para o conjun- to da sociedade. Tal possibilidade, hoje, é mais restrita, considerando-se tanto os condicionantes fiscais quanto − e sobre- tudo − os influxos do neoliberalismo. O aspecto, aqui, suscitado, isto é, a univer- salização dos programas sociais do gover- no, é, contudo, uma dimensão muito mais política do que constitucional, sob pena de se configurar um Estado Social Tota- litário que acabe por rechaçar a própria autonomia dos indivíduos e da sociedade civil como um todo (GONÇALVES, 2005). Ocorre, porém, que a reserva do pos- sível é imposição constitucional, isto por- que as necessidades humanas básicas, ou seja, os direitos fundamentais sociais, constituem o limite mínimo da reserva do possível, abaixo do qual podem se confi- gurar situações de inconstitucionalidade. Assim, limitações de recursos não po- dem justificar que o Estado deixe de pres- tar serviços básicos de saúde aos que não podem pagar ou que deixe ao relen- to, expostas à desnutrição, pessoas que 14 15 perambulem pela rua; que não garanta acesso à Justiça, à previdência social, ao ensino fundamental; que não fomente programas de assistência à maternidade, à infância, aos adolescentes, aos idosos e às pessoas portadoras de deficiência que necessitem de serviços sociais enquanto garantia de dignidade. No que tange às necessidades huma- nas básicas, a reserva do possível é mui- to mais garantia de dignidade do que de escusas dos poderes públicos. Em suma: somente acima do paradigma das necessi- dades básicas, cabe ao Legislativo, Execu- tivo e à sociedade civil definirem a reserva do possível. 6) A Proibição do Retrocesso É importante lembrar que o princípio em epígrafe é, acima de tudo, um avanço na busca de patamares mais justos e dig- nos de vida material. A proibição do retrocesso impede que direitos sociais já disciplinados e garan- tidos pela legislação infraconstitucio- nal e implementadas através de ações e programas de políticas sociais sejam, ao livre-arbítrio dos Poderes Públicos, ex- tintos, configurando o vácuo do direito. Referido princípio, desse modo, decorre da segurança jurídica enquanto um dos direitos fundamentais (artigo 5º, caput) que, hoje, diversamente do constitucio- nalismo liberal, não contempla apenas as mediações do direito de propriedade, mas ampara também as necessidades huma- nas básicas, sobretudo dos mais necessi- tados. É dizer-se: a segurança que emana das constituições é garantia que deve ser compartilhada verdadeiramente por to- dos. É garantia, portanto, do próprio prin- cípio democrático. Sob o ponto de vista jurídico-consti- tucional, a consagração do princípio da democracia econômica, social e cultural abarca várias refrações: a) constitui uma imposição constitucio- nal dirigida aos órgãos de direção política e da administração ativa em geral, no sen- tido de desenvolverem atividades confor- madoras e transformadoras no domínio econômico, social e cultural, de modo a evoluir-se para uma sociedade democráti- ca cada vez mais conforme aos objetivos da democracia social [...]; b) representa uma autorização consti- tucional no sentido de o legislador demo- crático e os outros órgãos encarregados da concretização político constitucional adotarem medidas necessárias a evolu- ção da ordem constitucional, sob a óptica de uma “justiça constitucional” nas vestes de uma justiça social; c) implica a proibição do retrocesso, subtraindo à livre e oportunística dispo- sição do legislador a diminuição dos direi- tos adquiridos, em violação do princípio de proteção e confiança e de segurança dos cidadãos no âmbito econômico, social e cultural (ex.: direito de subsídio de de- semprego, direito a prestações de saúde, direito a férias pagas, direito ao ensino, etc) (CANOTILHO, MOREIRA, 1991). Especialmente no Brasil, para quebrar a lógica do favor em substituição ao direito, o princípio da proibição do retrocesso rei- tera que os direitos fundamentais sociais são garantias da Constituição que, no caso brasileiro, foi confeccionada inclusive com a participação de amplos segmentos po- pulares. Os direitos fundamentais sociais, bem por isso, não são concessões pa- ternalistas de governos, mas sim im- 16 17 posições constitucionais. Ou seja: a legislação brasileira que garante, por exemplo: o Sistema Único de Saúde; o ensino fundamental; a bolsa escola e a erradicação do trabalho infantil; o seguro desemprego; o fundo de garantia por tempo de serviço; condições de segurança e higiene no trabalho; previdência social; benefícios de prestação continu- ada para pessoas idosas e portadoras de deficiência que não possam manter seu sustento de forma autônoma ou com au- xílio da família e a assistência jurídica pú- blica. São Legislações que podem ser altera- das, mas não revogadas, sem que, em seu lugar, promulguem-se novos dispositivos legais e programas de políticas públicas que continuem a preservar os direitos fundamentais sociais já disciplinados e implementados. Assim, o sentido do princípio da proi- bição do retrocesso não é engessar a ar- gumentação e os espaços democráticos, mas garantir, com segurança, condições materiais básicas para que a democracia não seja prerrogativa de alguns, espe- cialmente hoje, quando as necessidades do pluralismo político desarticulam as no- ções de homogeneidade ideológica. Atente-se, por conseguinte, que o princípio da proibição do retrocesso, que decorre das configurações do Estado De- mocrático de Direito (artigo 1º, caput da Carta de 1988), assim como do princípio da segurança jurídica (artigo 5º, caput), visa a garantir a identidade do núcleo bá- sico da Constituição, ou seja, os direitos fundamentais. A proibição do retrocesso, contudo, é um princípio passível de pon- deração motivada do legislador, e não um direito absoluto (GONÇALVES, 2005).7) Segurança Jurídica É claro que o caput do artigo 5º da Cons- tituição Federal de 1988, ao consagrar a segurança como um dos direitos funda- mentais, contempla também o direito à segurança enquanto garantia de integri- dade física e do próprio direito à vida. Em se tratando das políticas sociais, contudo, a segurança jurídica, como já explicitado, aponta para a satisfação das necessida- des humanas básicas, cujo eixo fundante decorre e, ao mesmo tempo, conforma o perfil jurídico da dignidade. Mais que isso, a segurança jurídica, sob o viés das políticas sociais, não visa res- tringir o pluralismo, o confronto ideológi- co ou a possibilidade de mudanças, antes pelo contrário, busca garantir que o deba- te, a interlocução e a luta política sejam realizados em bases materiais nos quais, todos, de forma estável, disponham de possibilidades concretas para o exercício da autonomia. A segurança que o núcleo dos direitos fundamentais sociais im- põe é garantia, por conseguinte, de que a democracia não será confundida ou in- teiramente identificada com as posições políticas de uma maioria que, eventual e transitoriamente, assuma a condução das políticas sociais. A segurança jurídica, por via reflexa, garante que, no plano das po- líticas públicas, maiorias e minorias par- ticipem do processo democrático, cujos requisitos formais, e as condições mate- riais para seu exercício, encontram-se já 16 17 garantidos pela dicção constitucional dos direitos fundamentais. A democracia tem como suporte ineli- minável o princípio majoritário, mas isso não significa qualquer “absolutismo da maioria” e, muito menos, o domínio da maioria. O direito da maioria é sempre um direito em concorrência com o direito das mino- rias com o consequente reconhecimento de estas se poderem tornar maiorias (CA- NOTILHO, 1998). Enfim, a segurança jurídica é princípio que, ao preservar as regras dos direitos fundamentais, não só das oscilações po- lítico-partidárias, mas também do próprio poder reformador (artigo 60, parágrafo 4º), propicia fecundos espaços para que a diversidade e o pluralismo político não destruam a identidade constitucional ar- duamente conquistada com o processo de redemocratização política do país que propiciou, inclusive, a participação de amplos movimentos populares na Consti- tuinte de 1987/1988: Cumpre relembrar que a função pre- cípua das assim denominadas ‘cláusulas pétreas’ é a de impedir a destruição dos elementos essenciais da Constituição, en- contrando-se, neste sentido, a serviço da preservação da identidade constitucio- nal, formada justamente pelas decisões fundamentais tomadas pelo Constituinte. Isto se manifesta com particular agudeza no caso dos direitos fundamentais, já que sua supressão, ainda que tendencial, fa- talmente implicaria agressão (em maior ou menor grau) ao princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc III, da CF). [...] Quanto ao risco de uma indesejá- vel galvanização da Constituição, é preci- so considerar que apenas uma efetiva ou tendencial abolição das decisões funda- mentais tomadas pelo Constituinte se en- contra vedada, não se vislumbrando qual- quer obstáculo à sua eventual adaptação às exigências de um mundo em constante transformação (SARLET, 2001, p. 367). 8) Uniformidade e Diferenciação Regio- nal O sistema federativo brasileiro estabe- lece certas particularidades no que tange à formulação e à execução de políticas so- ciais, ou seja, o princípio da uniformidade obriga a União, os Estados-Membros, o Distrito Federal e os Municípios a não cria- rem diferenciações desarrazoadas entre as unidades federadas ou entre regiões e áreas geográficas do país. Tudo isso de- corre, enfim, do princípio da igualdade que é parte integrante da própria estrutura jurídica do Estado Democrático de Direito (artigo 1º, caput da Constituição Federal). Tal princípio impõe que os benefícios pecuniários pagos pela União, em decor- rência de programas de políticas sociais (benefícios da assistência e previdência social), sejam uniformes em todo territó- rio, haja vista o padrão unificado do salá- rio mínimo, fixado por força do artigo 7 º, IV, da Carta Política de 1988. Ou seja: se o salário mínimo que, cons- titucionalmente, visa à satisfação das ne- cessidades básicas do trabalhador e de sua família (artigo 7º, IV), é unificado, as prestações pecuniárias decorrentes de programas federais de assistência social que objetivam auxiliar necessidades bási- cas, devem, por força da Constituição, ser também uniformes. Lembre-se, contudo, que a ilustração aqui esboçada é apenas um esforço retórico para explicitar o tema, 18 19 já que não se admite a vinculação do salá- rio mínimo para quaisquer fins (artigo 7º, IV) e, por conseguinte, podem haver pro- gramas sociais que paguem pecúnia abai- xo do valor salário mínimo, sem que, sob esse aspecto, haja censura de inconstitu- cionalidade (GONÇALVES, 2005). Por outro lado, deve-se observar que as diferenciações regionais, econômico-fi- nanceiras e culturais do extenso território brasileiro, de acordo com o que já foi inclu- sive analisado, ao se cuidar da descentrali- zação e da participação popular, vinculam constitucionalmente (por exemplo, arti- gos 3º, III e 170, VII) os Poderes Públicos a ultrapassarem as diferenças econômico- -financeiras que produzem entre regiões e áreas do território brasileiro agudas in- justiças sociais. Não se cuida, contudo, de desconstituir as diferenças regionais que decorram da diversidade cultural; essas, aliás, devem ser preservadas até por for- ça do pluralismo e do regime democrático assegurados pela Constituição de 1988. 9) Proporcionalidade ou Proibição de Excessos Segundo Gonçalves (2005) não exis- tem direitos − nem mesmo os fundamen- tais − absolutos, haja vista que esses podem estar em conflito entre si ou em colisão com outros bens constitucional- mente protegidos. Isso quer dizer que o direito de expres- são de alguém pode conflitar, por exem- plo, com o direito à proteção da honra de outrem, cabendo, por conseguinte, a li- mitação circunstancial e motivada do pri- meiro. A própria focalização (restrição) que a lei pode compor, no que concerne a alguns programas sociais em virtude das limitações financeiras do Estado − e, portanto, do interesse público −, também representa uma forma de ponderação do legislador, restritiva da abrangência de di- reitos fundamentais sociais. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal já se valeu do princípio da proporcionali- dade, concretizando, assim, a ponderação entre bens e direitos constitucionalmente protegidos. A título de exemplo, cite-se: Em face da atual Constituição, para con- ciliar o fundamento da livre iniciativa e do princípio da livre concorrência com os da defesa do consumidor e da redução das desigualdades sociais, em conformidade com os ditames da justiça social, pode o Estado, por via legislativa, regular a polí- tica de preços de bens e serviços, abusivo que é o poder econômico que visa ao au- mento arbitrário de lucros. Logo, determi- nada lei não é inconstitucional pelo fato de só dispor sobre critérios de reajuste de mensalidades das escolas particulares. (ADIN n° 319/DF). [...] o princípio da proporcionalidade, em matéria de limitação dos direitos fundamentais, pressupõe a estrutu- ração de uma relação meio-fim, na qual o fim é o objetivo ou finalidade perseguida pela limitação, e o meio é a própria decisão normativa, legis- lativa ou judicial, limitadora que pre- tende tornar possível o alcance do fim almejado. O princípio ordena que a relação entre o fim que se preten- de alcançar e o meio utilizado deve ser proporcional, racional, não ex- cessiva, não arbitrária. Isso significa que entre meio efim deve haver uma relação adequada, necessária e ra- cional ou proporcional. (STEINMETZ, 2001, p.149, grifo nosso). 18 19 Assim, o princípio da ponderação ou da proibição de excessos é de relevante importância, pois impõe que restrições a direitos, inclusive aos direitos fundamen- tais, contenham embasamento objetivo, necessário, adequado, racional e, por via reflexa, não arbitrário. Seria o mesmo que dizer: não basta apenas alegar insuficiên- cia de recursos financeiros para restringir direitos fundamentais sociais, é preciso, antes e acima de tudo, poder demonstrar, objetivamente, a situação financeira que justifique o resultado de uma determi- nada ponderação realizada no interior de uma lei restritiva do alcance ou do conte- údo de um direito fundamental social. Por conseguinte, em face dos citados princípios que devem configurar as polí- ticas dos direitos fundamentais sociais, ressalta-se que tais políticas, por força da Constituição de 1988, devem alicerçar-se simultaneamente nos seguintes padrões: Padrão Inclusivo – Ou seja, políticas sociais, notadamente as que concernem a direitos fundamentais, devem estar atreladas à finalidade de incluir o imenso contingente de pessoas que não têm sa- tisfeitas suas necessidades humanas bá- sicas (artigos 1, III, 3º, III, 170, VII e 193 da Constituição brasileira). Um exemplo é a credencial que a Carta de 1988 confere às políticas sociais que focalizam, sem tor- nar residual, determinados grupos que se encontram em situações materiais desfa- voráveis à concretização da dignidade hu- mana. Aliás, é preciso perceber, de outro lado, que as políticas públicas dos direitos fundamentais como um todo devem apre- sentar, ainda, programas e ações capazes de rechaçar discriminações de quaisquer natureza; permitindo, com efeito, que o exercício das diferenças, sejam elas de gênero, raça, origem, condições físicas ou mentais, idade, orientação sexual, não legitime violências e intolerâncias incom- patíveis com o teor da dignidade humana (artigo 3º, IV, da Constituição de 1988). Padrão Participativo – Em um Esta- do que não é somente social, mas é irriga- do também pelos valores da democracia e do pluralismo, as políticas dos direitos fundamentais sociais devem estar atre- ladas sobretudo à participação popular e à descentralização político-administrati- va, sob pena de permitirem que o dirigis- mo estatal rompa com os contornos do Estado Democrático de Direito constitu- cionalmente previstos e, em substituição ao diálogo, galvanize a estagnação das políticas públicas. O sentido participativo das políticas dos direitos fundamentais sociais, expresso, por exemplo, no inte- rior do artigo 1º, da Constituição de 1988, é relevante para que, através do controle e das participações populares, o domínio tecnocrata não se sobreponha ao núcleo rígido da Constituição, expresso pelo con- teúdo e pelo sentido dos direitos funda- mentais. Padrão Descentralizado - A estru- tura federativa do país e a tendência mu- nicipalista, expressa na Constituição de 1988, impõem também ao conjunto das políticas sociais um padrão descentraliza- do, cujo escopo maior é, sem dúvida, per- mitir a participação popular nos processos de implementação, execução, avaliação e controle dos programas e ações de direi- tos sociais. Cabe ponderar, contudo, que não obstante os argumentos já inferidos, para a consecução do princípio constitu- cional da eficiência (artigo 37, caput, da Carta de 1988), a descentralização, res- 20 21 peitadas as particularidades regionais e locais, deve ter suas diretrizes básicas atreladas a uma Política Nacional de Direi- tos Fundamentais, para evitar desneces- sárias superposições de programas. Tudo isso, enfim, deve conduzir o diálogo entre as unidades federadas e, acima de tudo, a participação popular na concretização do Texto Constitucional (GONÇALVES, 2005). 3.1 E a Assistência social nesse emaranhado de direi- tos sociais? Enquanto ação do Estado, a Assistência Social configurou-se, até os anos 1980, como uma ação paliativa, pontual, frag- mentada, secundária, marginal. Se quer merecia o estatuto de política social. Era um campo de ação marcado por ações po- bres, precárias, para a parcela da popula- ção a quem a sociedade capitalista nega os direitos mais elementares à sobrevi- vência. Diante da forma como se caracte- rizou historicamente as ações públicas de enfrentamento à pobreza no Brasil, Yaz- bek (1993, p. 50-51) chama atenção para o que considera de distorções nesta área: “seu apoio, muitas vezes, na matriz do favor, do apadrinhamento, do clientelismo e do mando, formas enraizadas na cultura política do país, sobretudo no trato com as classes subalternas (...); sua vincula- ção histórica com o trabalho filantrópico, voluntário e solidário dos homens em sua vida em sociedade (...); sua conformação burocratizada e inoperante, determinada pelo lugar que ocupa o social na política pública e pela escassez de recursos para a área”. A partir da Constituição de 1988 e da Lei Orgânica da Assistência Social ( LOAS - Lei n.º 8742 de 7 de dezembro de 1993), a assistência tornou-se uma política de res- ponsabilidade do Estado, direito do cida- dão e, portanto, uma política estratégica no combate à pobreza e para a constitui- ção da cidadania das classes subalternas. Ao mesmo tempo, assim como em outras áreas de política pública, de acordo com as definições legais, a gestão desta polí- tica, passa a ser efetivada por um sistema descentralizado e participativo, cabendo aos municípios uma parcela significativa de responsabilidade na sua formulação e execução. Assim configurada, abriu-se para a as- sistência social, juntamente com a saúde e a previdência social, a possibilidade de se constituir como política pública de se- guridade social, direito do cidadão e de- ver do Estado. Este aparato jurídico, ao ser aprovado, sinalizava para a superação da assistência social como benemerên- cia, assistencialismo e para sua afirmação como política social. No Artigo 1º da LOAS a assistência é as- sim definida: “A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada atra- vés de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade para garantir o atendimento às necessidades básicas”. Alguns elementos parecem centrais no texto da LOAS: a afirmação da assistência social como política de seguridade social, a noção de mínimos sociais e a gratuidade dos serviços e benefícios. Estas e outras definições da referida lei e da Constitui- ção de 1988 no campo dos direitos so- ciais, “equiparam o Brasil aos sistemas se- 20 21 curitários das sociedades desenvolvidas” (MOTA, 1995, p. 142). Contudo, trata-se de uma incorporação tardia e em uma con- juntura marcada por reformas que argu- mentam a necessidade da adequação da seguridade social brasileira às exigências do ajuste neoliberal (OLIVEIRA, 2003). Diante disso, a seguridade social con- quistada em 1988 parece já nascer con- denada ao fracasso, pela total ausência de condições objetivas para a sua efeti- vação. O fracasso ou não, no entanto, não está dado à priori. Conforme Mota (1995, p. 143) o exercício dos direitos sociais “é sempre condicionado por processos so- ciais reais e que não estão subordinados aos estatutos legais, mas às relações de força entre as classes”. Assim, é preciso considerar que as con- quistas legais significam apenas um pas- so em direção a sua efetivação. Isto exige, dos que não acreditam no fim da história, a capacidade de desvendar o momento pre- sente e “ousar remar contra a corrente”, sem perder de vista a natureza estrutural das situaçõesde pobreza e indigência da maioria da população brasileira. Nesta perspectiva é que se coloca a pertinência do debate acerca de “mínimos sociais” explicitada no texto da LOAS, so- bretudo no sentido de contrapor esta no- ção às ideias neoliberais que defendem a redução da responsabilidade pública com as desigualdades sociais. Contra a opção neoliberal por mercan- tilizar serviços sociais que são direitos constitucionais, Vieira (1998, p. 19) argu- menta que “países desenvolvidos asse- guram mínimos sociais porque sabem que esta é uma forma de conter o processo de aprofundamento da miséria. A miséria não gera consciência e solidariedade, mas gera mais miséria, irracionalismo, violên- cia e individualismo exacerbado. Ela não cria consciência da miséria, e sim miséria da consciência.” No entendimento de Sposati (1997, p. 10), a noção de mínimos sociais não é antagônica ao suposto neoliberal da se- letividade e focalismo. Mas é sem dúvida alguma ao princípio liberal que entende o enfrentamento dos riscos (sociais e eco- nômicos) como de responsabilidade in- dividual e não social (...). Propor mínimos sociais é estabelecer o patamar de co- bertura de riscos e de garantias que uma sociedade quer garantir a todos os seus cidadãos. Trata-se de definir o padrão so- cietário de civilidade. Neste sentido ele é universal e incompatível com a seletivida- de ou focalismo. Para Sposati (1997, P. 13-15), “esta- belecer mínimos sociais é mais que um ato jurídico ou um ato formal, pois exige a constituição de um outro estatuto de responsabilidade pública e social”. A as- sistência social e a proposição de mínimos sociais não se coloca numa concepção “mi- nimalista” fundada no limiar da sobrevi- vência, mas numa concepção de mínimos sociais que a considera “ampla e cidadã” e que se fundamenta num “padrão básico de inclusão”. Esta perspectiva supõe as seguintes garantias: sobrevivência bioló- gica, condições de poder trabalhar, quali- dade de vida, desenvolvimento humano e atendimento às necessidades humanas. Mas, a assistência social como política fundamentada em um padrão básico de inclusão, não foi realmente a existente no Brasil da era que iniciou o neoliberalismo. Transcorridos nove anos de aprovação da LOAS, ela ainda não se constituiu como po- lítica de seguridade social. Sua execução 22 23 foi marcada por ações “sobrepostas, pul- verizadas, descontínuas, assistemáticas e sem impacto ou efetividade”, focalizadas na população mais vulnerável e marcada pelo paralelismo com outras ações do go- verno federal, como: o programa Comuni- dade Solidária, o Fundo de Combate à Po- breza (Yazbek e Gomes, 2001, p. 3-5), os programas que integram o Plano Plurianu- al (2000-2003 ) e o Projeto Alvorada. A afirmativa de Yazbek e Gomes pode ser comprovada quando observa-se que nos últimos 15 anos a política de assistên- cia social foi substituída por um conjunto de ações que, no discurso oficial apare- cem como “inovação social” no trato da política social, a partir da adoção dos prin- cípios da focalização, descentralização e parcerias. Contudo, o que caracterizou a sua efetivação foi o reduzido grau de responsabilidade do Estado no enfrenta- mento à pobreza. Na realidade, trata-se de uma inovação extremamente conservadora que não só repôs as velhas características das políti- cas sociais no Brasil (fragmentação, desar- ticulação, descontinuidade, clientelismo, etc.) como as aprofundou, acrescentando novos elementos como a focalização, que mascara a pobreza realmente existente, efetiva o corte de recursos, privilegia pro- gramas assistencialistas, emergenciais e descontínuos. Na inovação conservadora, a descen- tralização não é tomada como estraté- gia de transferência do poder decisório. O município continuou sendo, no Brasil, a esfera mais destituída de poder e de re- cursos. Erundina fala com propriedade sobre o assunto (1996, p. 13), mesmo tendo con- quistado uma certa autonomia política na Constituição de 1988, “não foi assegura- do aos municípios autonomia econômica, financeira e poder real para promover o desenvolvimento local”. Para isto, seria necessário, por exemplo, que aos muni- cípios fosse destinada uma maior fatia de recursos, dentro do conjunto da arrecada- ção da União. A autora cita alguns dados compara- tivos da nossa realidade com a de países do primeiro mundo, que são reveladores do caráter da descentralização que aqui se desenvolve: “em países como a Suécia, 72% da receita pública fica com os muni- cípios (...) no Japão, Estados Unidos e em países da Europa esse percentual osci- la entre 40% a 60%. No Brasil, apenas a partir de 1988 os municípios passaram a deter uma fatia de 15% da receita públi- ca; antes era de 5% a 6%” (idem) (OLIVEI- RA, 2003). 3.2 Críticas às prioridades da política social brasileira – uma política pró-idoso e anticriança Camargo (2004) assinala que os progra- mas sociais brasileiros têm um viés pró- -idoso e outro anticriança, o que os torna pouco eficientes no sentido de diminuir a desigualdade da renda e a pobreza no país e resume que o resultado desta estrutura de gastos sociais criou um mecanismo de reprodução da pobreza ao longo do tem- po. Achamos interessante os dois extre- 2-Os programas considerados de interesse da Assistência Social que integram o Plano Plurianual 2000-2003 do Governo Fernando Henrique Cardoso são os seguintes: Atenção à Pessoa Portadora de Deficiência, Valorização e Saúde do Idoso, Atenção à criança de 0 a 6 anos, Erradicação do Trabalho Infantil, Centros de Juventude e a Cesta de Alimentos. 2 22 23 mos colocados pelo autor e resolvemos expor aqui seu pensamento para análise e reflexão, pois parece bem pertinente suas explicações e justificativas. Para esse autor, as políticas sociais acontecem em função dos objetivos que se pretende alcançar, podendo ser para contrabalancear a desigualdade na dis- tribuição de renda que leva a extremos de riqueza e pobreza, como pode ser criar uma rede de proteção social para todos os cidadãos do país, fazendo com que, dian- te de imprevistos como desemprego, aci- dentes no trabalho, doença, etc., ou em face de situações previsíveis, mas que os cidadãos, por alguma razão, não conse- guiram antecipar adequadamente, como a perda da capacidade de trabalho, devido à idade avançada, pouco investimento em capital humano, etc., consigam manter um padrão de vida mínimo adequado à sua so- brevivência. Uma terceira possibilidade, seria con- siderar objetivo dos programas sociais a manutenção do padrão de vida de todos os cidadãos, diante de situações imprevis- tas ou previsíveis, mas não devidamente antecipadas, em um nível o mais próximo possível daquele vigente antes que tais situações se manifestassem. Continuando o pensamento do autor, a escolha da alternativa de programa de- penderá de vários fatores, dentre eles: - volume de recursos; - definição de prioridades, o que de- pende das condições e dos indicadores sociais vigentes em cada país e em cada momento; - geração de incentivos. O volume de recursos disponível para a implementação dos programas sociais de- fine os limites de atuação do Estado. À medida que se passa da primeira para a terceira alternativa, amplia-se o grau de abrangência dos programas e, como re- sultado, o volume de recursos necessário aumenta rapidamente. Por exemplo, se o sistema educacional público deve ter como objetivo o atendimento gratuito de todos os cidadãos em todos os níveis de ensino, os gastos serão muito maiores do que se estiver concentrado apenas no en- sino fundamental. Como os recursos são escassos, a defi- nição do grau de abrangência dos progra- mas sociais está diretamente relacionada à definição de prioridadespor parte do Estado. Dado o volume de recursos, quanto mais universal for o sistema, menor será, em termos relativos, a parcela de recursos destinada aos grupos mais pobres da po- pulação. No limite (terceira alternativa), a dis- tribuição dos recursos dos programas sociais estaria apenas replicando e vali- dando a distribuição da renda gerada pelo funcionamento do mercado (na verdade, esta proposição não é totalmente verda- deira, pois o resultado de mercado não é independente da estrutura dos progra- mas sociais). Da mesma forma, dado o volume de re- cursos, quanto mais abrangentes forem os programas, menor a parte dos mesmos que pode ser destinada a cada programa individualmente. Como resultado, o ajuste acaba ocor- rendo na qualidade do serviço prestado à população. Como os grupos de renda mais elevada, ao contrário daqueles de ren- da mais baixa, têm a opção de pagar pela prestação dos serviços no setor privado, a queda de qualidade acaba sendo uma 24 25 forma perversa de focalizar os programas sociais para os pobres. Portanto, a relação entre volume de re- cursos disponíveis e abrangência dos pro- gramas sociais é de fundamental impor- tância. Quanto maior esta relação, maior é a probabilidade de que os ajustes ocorram através da redução da qualidade dos ser- viços prestados à população, o que gera uma forma perversa de focalização para os membros mais pobres da sociedade. Neste caso, não apenas o objetivo de abrangência deixa de ser alcançado, pois os ricos acabam deslocando suas deman- das para o setor privado, mas também os mais pobres têm um atendimento de bai- xa qualidade. Em outras palavras, quanto menor a re- lação entre disponibilidade de recursos e abrangência dos programas, menor a pro- babilidade de que os objetivos dos mes- mos sejam devidamente atingidos. O terceiro aspecto destacado anterior- mente trata dos incentivos gerados pelos programas sociais. Existem diferentes in- centivos, dependendo da estrutura des- tes programas, que precisam ser conside- rados para evitar distorções que acabam tornando os programas menos efetivos e gerando ineficiências na alocação de re- cursos. Um exemplo bastante estudado na literatura são os incentivos criados por um sistema de seguro-desemprego ex- cessivamente benevolente. Se um traba- lhador, ao ficar desempregado, recebe um benefício cujo valor é próximo de seu sa- lário por um período muito prolongado de tempo, cria-se um incentivo para que este trabalhador reduza a intensidade de bus- ca de um novo emprego. Como resultado, a taxa de desemprego tende a aumentar. Qualquer programa social gera incen- tivos. Ao prover assistência universal e gratuita à saúde, o programa estará ge- rando um incentivo para que as pesso- as utilizem mais o sistema. A questão é como desenhar os programas de tal for- ma a gerar os incentivos corretos, para que sejam sustentáveis do ponto de vista fiscal, induzam a comportamentos consi- derados adequados pela sociedade e não provoquem ineficiência na alocação de recursos. Portanto, a preocupação com o desenho dos programas é tão importante quanto a sua própria existência. Infelizmente não há espaço para colo- carmos toda a pesquisa de Camargo, por- tanto, sugerimos a leitura integral do seu artigo. De todo modo, eis as conclusões de suas análises que nos levam a entender o que chamou de política pró-idoso e anti- criança. Do total de recursos gastos pelo gover- no federal com programas sociais, 60% se destinam ao pagamento de aposenta- dorias e pensões. Isto representa 12% do PIB do país, o que é o dobro do que a média dos países que têm proporção de idosos na população similar à do Brasil (5,85%) gasta com porcentagem de seus respecti- vos PIB. Por outro lado, 65% destes recur- sos são apropriados pelos 40% mais ricos da população. No outro extremo, o Estado brasileiro gasta pouco com educação, e uma parte substancial desta despesa é apropriada pelos 40% mais ricos. Concretamente, apenas 3,6% do PIB do país, em 2000, eram gastos com educação fundamental, enquanto 29,6% da população brasileira tinha, naquele ano, entre 0 e 14 anos de idade. O resultado desta estrutura de gastos sociais criou um mecanismo de reprodu- 24 25 ção da pobreza ao longo do tempo. Uma parcela substancial das crianças brasileiras vive em famílias pobres (50%). Destas crianças, mais de 80% não com- pletam o ensino fundamental, ou seja, não possuem oito anos de estudos, ou porque não têm condições de fazê-lo, por preci- sar entrar no mercado de trabalho muito cedo, ou porque as escolas públicas a que têm acesso são de tão baixa qualidade que são incapazes de mantê-las. Como conse- quência, 40% das crianças brasileiras, ao se tornarem adultas, terão menos de oito anos de estudos. Dificilmente consegui- rão um trabalho decente. Serão os pobres do futuro. A proposta do programa bolsa-escola tem por objetivo exatamente criar os in- centivos corretos para quebrar este círcu- lo de reprodução da pobreza. Entretanto, como um terço das receitas do governo são destinadas ao pagamento de aposen- tadorias e pensões, sobram poucos recur- sos para o financiamento de programas como o bolsa-escola. Reduzir os gastos públicos com apo- sentadorias e pensões, como proporção do PIB, é uma condição essencial para que recursos possam ser redirecionados para melhorar o capital humano das crianças das famílias pobres brasileiras e, com isto, reduzir a pobreza no futuro. 26 27 UNIDADE 4 - A seguridade social 26 A Seguridade Social está prevista no capítulo II do título VIII (Da Ordem Social) da Constituição Federal, mais precisa- mente nos artigos 194 até 204. O próprio texto constitucional concei- tuou no art. 194 a seguridade social como sendo um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da socie- dade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assis- tência social. Este mesmo conceito está reproduzi- do no art. 1º da Lei n. 8.212, de 24 de julho de 1991 que dispôs sobre a organização da seguridade social e instituiu o plano de custeio, além de outras providências. Trata-se, na verdade, como consagrado desde a Constituição Federal de 1934, de direitos sociais como prestações positivas por parte do Estado, com o fim de esta- belecer condições mínimas de vida digna para todos os seres humanos. São os di- reitos fundamentais de segunda geração, distribuídos em três áreas; a saúde, a pre- vidência social e a assistência social. O art. 5º da Lei 8.212, de 24 de julho de 1991 dispõe que as ações destas três áreas serão organizadas em Sistema Na- cional de Seguridade Social, consistindo, este sistema, na disposição das diferen- tes partes de uma ciência numa ordem onde elas se sustentam mutuamente, vi- sando o bem estar e a justiça sociais. A Assistência Social e a Saúde são des- tinadas à coletividade em geral, indepen- dentemente de contribuições específicas e, a Previdência Social destina-se apenas aos indivíduos que contribuem mensal- mente para o Sistema Geral de Previdên- cia Social, e em razão deste fato somente os contribuintes e seus dependentes são destinatários dos benefícios e serviços na forma de contraprestação das contribui- ções vertidas aos cofres da Previdência Social. Vê-se da disposição que a Seguridade Social pode ser conceituada de maneira abrangente e universal, destinada a to- dos que dela necessitam, como técnica de proteção social; como informa o jurista Moacyr Velloso Cardoso de Oliveira (cita- do por Reis, 1988) que assim o faz: Conjunto de medidas adotadas pelo Estado, por meios de organizações próprias ou subvencionadas, desti- nadas a prover as necessidades vi- tais da população do país, nos even-tos básicos previsíveis e em outras eventualidades, variáveis segundo 26 2727 as condições nacionais, que podem verificar-se na vida de cada um, por meio de um sistema integrado de se- guro social e de prestação de servi- ços sociais, de cuja administração e custeio participam direta ou indire- tamente, os próprios segurados ou a população mesma, as empresas e o Estado. 4.1 Assistência social A assistência social é mais uma forma de proteção ao indivíduo na sociedade. Tem previsão legal na Constituição Fede- ral nos art.s 203 e 204 e, apesar de não trazer sua definição, fornece vários ele- mentos para tanto, como: ser um conjunto de atividades particulares e estatais dire- cionadas para o atendimento dos hipos- suficientes, consistindo os bens ofereci- dos em pequenos benefícios em dinheiro, assistência à saúde, fornecimento de ali- mentos e outras pequenas prestações. Não só complementa os serviços da Previ- dência Social, como a amplia, em razão da natureza da clientela e das necessidades providas. A assistência social tem por objetivo proteger a família, a maternidade, a in- fância, a adolescência e a velhice; promo- ver a integração ao mercado de trabalho, a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência, e a promoção de sua integração à vida comunitária, bem como do pagamento de benefício de pres- tação continuada às pessoas portadoras de deficiência ou a idosos que não possam manter sua própria subsistência ou de tê- -la provida por sua família. Está regulamentada pela Lei Orgâni- ca da Assistência Social (Lei nº 8.742 de 7 de dezembro de 1993), e amparada por outros institutos de direito como o Esta- tuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990); a Legis- lação de apoio às pessoas portadoras de deficiência (Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989); a legislação que institui a Políti- ca Nacional do Idoso (Lei nº 8.842, de 04 de janeiro de 1994), e o Programa da Co- munidade Solidária (Lei nº 9.649, de 27 de maio de 1999), dentre outros. A Assistência Social tem como princí- pios informativos a gratuidade da pres- tação e basicamente a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice, bem como aos deficientes e a reintegração ao mercado de trabalho da- queles que necessitarem. Note-se que a diferença primordial en- tre as atividades da saúde e da assistência social, é que esta tem um espectro menor, ou seja, a saúde tem o caráter de univer- salidade mais amplo do que o previsto para a assistência social. Logo, a assistência social visa garantir meios de subsistência às pessoas que não tenham condições de suprir o próprio sus- tento, dando especial atenção às crianças, velhos e deficientes, independentemente de contribuição à seguridade social. A mais autêntica forma de assistência social é a prevista no art. 203, V da Cons- tituição Federal, onde fica garantido o va- lor de um salário mínimo mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não ter meios de prover a pró- pria subsistência, ou tê-la provida por sua família (CORRÊA, 1999). 28 29 4.2 Saúde Este instrumento constitucional da se- guridade social está previsto nos artigos 196 ao 200 da Carta Magna, valendo res- saltar que se trata de normas programáti- cas, e nem todas auto-aplicáveis, todavia são dispositivos com elevados propósitos e bem intencionados, deixando ao legis- lador ordinário o condão de fixar medidas para que o Estado e a iniciativa privada coordenem uma sistematização do siste- ma nacional de saúde que se adapte aos anseios sociais exprimidos pelo legislador constituinte; o que foi feito com a edição da Lei Orgânica de Saúde (Lei n. 8.080 de 19 de setembro de 1990) e a que disciplina os planos privados de assistência à saúde (Lei n. 9.656 de 03 de julho de 1998). A Constituição Federal não fornece uma definição de Saúde enquanto prestação social, neste caso suprida pela definição de Pedro Abdalla (s.d citado por Corrêa, 1999), deve ser entendida “no sentido de massa e em razão de custos, de comple- xidade e de sofisticação, uma atribuição fundamental do Estado, sobretudo nos países subdesenvolvidos ou em fase de desenvolvimento”. De maneira genérica, são vários os prin- cípios informadores da Saúde, tais quais o acesso universal e igualitário, tendo to- dos direito à saúde; provimento das ações e serviços por meio de rede regionaliza- da e hierarquizada, integrados em siste- ma único; descentralização, com direção única em cada esfera de governo; aten- dimento integral, com prioridade para as atividades preventivas; participação da comunidade na gestão, fiscalização e acompanhamento das ações e serviços de saúde; e ainda, a participação da iniciativa privada na assistência a saúde. Quanto aos recursos, o sistema de saú- de será financiado pela seguridade social, pela União, Estados, Distrito Federal e Mu- nicípios, além de outras fontes, de acordo com o disposto no parágrafo único do art. 198 da Constituição Federal; todavia a ini- ciativa privada poderá ajudar na assistên- cia a saúde como atividade suplementar. Em se tratando de entidade privada sem fins lucrativos, poderá haver auxílio ou subvenção do Poder Público para es- sas entidades; do contrário, tratando-se de instituições privadas que tenham fins lucrativos, a estas não poderão ser desti- nados recursos públicos para auxílios ou subvenções nos termos do art. 199, § 3º da Constituição Federal. Por disposição constitucional, devem ser observadas várias diretrizes da inter- venção estatal no sistema nacional de saúde, elencadas no art. 200 e incisos, como a de controlar e fiscalizar procedi- mentos, produtos e substâncias do inte- resse para a saúde, e participar da pro- dução de medicamentos, equipamentos imunobiológicos, homoderivados e outros insumos; executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como da saúde do trabalhador; ordenar a forma- ção de recursos humanos na área de saú- de; participar da formação da política e da execução das ações de saneamento bási- co; incrementar em sua área de atuação o desenvolvimento científico e tecnológico; fiscalizar e inspecionar alimentos, com- preendido o controle de seu valor nutri- cional, bem como bebidas e águas para o consumo humano; participar do controle e fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e pro- 28 29 dutos psicoativos, tóxicos e radioativos; e por fim, colaborar na proteção do meio ambiente, compreendido o ambiente de trabalho. 4.3 Previdência Social Embora a preocupação do homem sem- pre esteve voltada para a criação de re- gras e técnicas de proteção social, visan- do a reparação de danos que vulnerem os indivíduos de uma mesma coletividade, bem como à prestação de assistência aos necessitados; seja por contribuições de seus membros por organização de mutua- lismo, seja por intervenção do Estado; foi na Alemanha, somente no ano de 1883, que surgiu o primeiro sistema de seguro social. De fato, até o século XIX, as nor- mas de assistência eram esparsas, não compondo um sistema efetivamente co- ordenado. Em 17 de novembro de 1881, Otto Von Bismark materializou a ideia da criação de um direito de previdência social, apresen- tando o projeto de seguro, que fez nascer, na Alemanha, diversas leis que regula- mentavam situações contingenciais de enfermidade, acidentes do trabalho, inva- lidez; criando o sistema do seguro operá- rio no mesmo ano. Após este período, outros países segui- ram as ideias da Alemanha e criaram legis- lações semelhantes, como a França em 1898, que aprovou a lei de acidentes do trabalho, e a Inglaterra em 1907, que re- gulamentou regras de proteção à velhice e acidentes do trabalho.
Compartilhar