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INTRODUÇÃO À ESCATOLOGIA I FACULDADE TEOLÓGICA NACIONAL APRESENTAÇÃO DO MATERIAL O material aqui presente tem como objetivo introduzir a aprendizagem dos discentes, anexando conteúdos livres no material, para enriquecimento dos mesmos. O conteúdo aqui apresentado possui dados legais, não dispondo, assim, de autor ou autores próprios. FACULDADE TEOLÓGICA NACIONAL INTRODUÇÃO Um estudo preliminar das doutrinas centrais referentes às temáticas da escatologia e o Apocalipse, procurando uma aproximação maior com a base bíblica na elaboração de conceitos em resposta ao contexto evangélico e os tratamentos sistemáticos existentes no mercado evangélico brasileiro. Por questão da influência de interpretações populares do Apocalipse de João na definição de conceitos escatológicos, um breve comentário ao livro está incluído neste estudo. Escatologia é o termo oficial para o estudo destes e relacionados assuntos. O termo vem de duas palavras gregas, eschaton (escaton)significando “último” e logos (logo") significando “palavra”. A combinação dos termos se refere ao estudo das últimas coisas—a morte e os seus assuntos relacionados. A escatologia compreende dois aspectos principais: a escatologia cósmica e a escatologia individual. Pretende-se em primeira instância tratar algumas das questões de referência comunal e cósmica. Por outro lado, pretende-se dar mais ênfase aos aspectos individuais da temática. Neste estudo são os aspectos individuais que serão enfocados, pois são nestes elementos da temática que o indivíduo se vê em necessidade pessoal de estar relacionado devidamente com Deus. A escatologia reúne um apanhado de conceitos que sofreu muita transformação ao longo do trajeto revelacional do povo de Israel. As expectativas escatológicas foram em muito modificadas através do tempo, incluindo o caso de muitas correntes que nem mantinham conceitos propriamente escatológicos. FACULDADE TEOLÓGICA NACIONAL Sumário O PROBLEMAS DA ESCOTALOGIA ......................................................................................................... 4 COSMOLOGIA ANTIGA .......................................................................................................................... 7 ESCATOLOGIA: CONCEITOS ................................................................................................................. 12 ESCATOLOGIA: TEXTOS BÍBLICOS IMPORTANTES ............................................................................... 19 REFERÊNCIA 4 FACULDADE TEOLÓGICA NACIONAL CAPÍTULO 1 O PROBLEMAS DA ESCOTALOGIA Distância Pessoal: Um dos primeiros problemas a serem evitados no estudo de Escatologia, é de manter o assunto muito distante do indivíduo. Pode-se muito facilmente falar da segunda vinda de Cristo usando expressões no sentido de que Jesus pode voltar amanhã, porém não se ouve a necessidade de estar preparado. Em geral pensa-se: “Pode ser que Jesus venha amanhã, mas não é muito provável. Não é preciso dar muita importância ao assunto.” Neste contexto, o estudo da escatologia vem a ser um estudo bem confortável, pois trata-se de algo polêmico, intrigante, ambíguo e muito distante. Por outro lado, a Bíblia parece sempre abrir o assunto assinalando a necessidade de cada um estar preparado. É necessário lembrar que estas “últimas coisas” incluem aspectos que são refletidos no cotidiano. Cristo pode vir dentro do âmbito das nossas vidas, mas as nossas vidas terminarão em menos de oitenta anos mais. Estaremos prontos? Princípios de Interpretação: Outro problema a ser considerado ao estudar assuntos de escatologia (como também qualquer outro tema bíblico) concerne à necessidade de respeitar os princípios de interpretação bíblica. Além de sempre ler os versículos e as passagens dentro de seus respectivos contextos, é necessário lembrar que as passagens de ensino claro sempre tomam precedência no tratamento de um tema. Por exemplo, 1ª João é muito mais claro ao tratar do anticristo do que o livro de Apocalipse. Outro ponto a observar é o tipo de literatura que se está estudando ao tratar um texto. O estilo literário do Apocalipse não é igual a 1ª João e o tratamento dos livros deve respeitar essa diferença. Respeitando Propósito/Intenção: Mais um problema a negociar é a necessidade de ler as passagens bíblicas em relação aos seus propósitos, não em sentido de responder curiosidades pessoais. A Bíblia foi escrita para tratar da necessidade do homem perante Deus, não para ensinar ciência, história, nem futurismo. No final de um estudo, nem todas as perguntas, dúvidas e questionamentos serão respondidos, pois a Bíblia não segue o propósito de responder às curiosidades humanas. Jesus mesmo disse, “Não vos compete 5 FACULDADE TEOLÓGICA NACIONAL saber os sinais e os tempos”. Deus exige do homem uma dependência e confiança sem se propor necessariamente a aplacar todas as dúvidas e preocupações humanas. História: Outro problema a ser evitado está relacionado à história. Berstén e outros fazem distinção entre profecias que se cumpriram e outras que ainda não se cumpriram. O problema que deve ser tratado nesse contexto é o de compreender o que já sucedeu na história para então poder fazer uma melhor declaração entre aquilo que tem e não tem acontecido. Salienta-se aqui a passagem de Mateus 24.1-28 e o contexto da destruição de Jerusalém no ano 70 depois de Cristo. Cosmologia: É necessário compreender como o povo, especialmente os autores bíblicos entendiam o mundo em que viviam. Sua cosmologia implicava na sua terminologia aplicada a conceitos espaciais e geográficos, como também a certas referências escatológicas. Não é lícito forçar o texto bíblico a refletir um conceito cosmológico do século vinte, quando os autores não compartilhavam esse conceito. Vocabulário Especializado: Por outro lado, é indispensável que se trate o vocabulário bíblico conforme o uso dos próprios autores. Certas palavras ou frases eram usadas diferenciadamente da ‘forma atual. O judeu dividia o tempo em duas partes: antes do Messias e depois do Messias. Por “últimos tempos” ou “tempos postreros”, a Bíblia designa a segunda etapa do tempo. Os últimos tempos, então, começaram com Jesus e referenciam o tempo desde aquela época até o final do tempo. Supremacia Bíblica: É sumamente necessário que respeitemos que a palavra final referente a qualquer assunto teológico é a palavra bíblica. Não é lícito dar mais confiança a sonhos, palavras de profecia e visões do que ao próprio texto bíblico. Toda outra fonte deve ser submetida às indicações e às limitações apresentados no tratamento bíblico dos assuntos correspondentes. A Bíblia é a Palavra de Deus e Deus não se contradiz, ainda que a Bíblia exibe um desenvolvimento teológico no processo revelacional. Quando houver conflito entre a mensagem bíblica e a palavra ou evento profético, a dúvida recairá sobre a fonte extra bíblica. Profecia: Biblicamente, a profecia não é um exercício de contra o futuro. Em vez disso, é a proclamação da mensagem de Deus ao povo do dia do profeta. Quando um intérprete procura fazer que textos como Apocalipse falem em predizer eventos do futuro, a tendência é prognosticar eventos do tempo do intérprete. Tal faz que textos como Apocalipse percam todo sentido a seus ouvintes originais10. Ao contrário, a profecia tem quever com a proclamação da mensagem de Deus ao povo de Deus. É essencialmente 6 FACULDADE TEOLÓGICA NACIONAL proclamação, não prognosticação. A palavra profética conforme assim era relevante no seu dia e segue sendo relevante hoje também, pois expressa a mensagem atemporal de Deus à humanidade, uma mensagem a ser aplicada às circunstâncias do tempo de cada ouvinte. Respeitar Limitações: Também é necessário lembrar que existem limitações ao que pode ser conhecido em certas áreas. Atos 1.7 indica que não compete ao ser humano saber e entender a maioria das questões referentes a eventos futuros. Precisa-se aceitar que Deus simplesmente não revela detalhes a respeito de toda curiosidade humana. É necessário ler o texto bíblico reconhecendo o propósito do próprio texto, não jogando por cima do texto um propósito pessoal especulativo sobre o fim do mundo. O que realmente importa saber está exposto de forma clara: “Vigiai, pois não sabeis em que dia vem o vosso Senhor!”. Em consideração às limitações do intérprete bíblico referente a formas divergentes de compreender o mundo (ou seja, divergências entre as formas da antiguidade e as atuais), apresenta-se certas reflexões sobre a forma na qual os autores bíblicos refletiram sobre o mundo. Os textos bíblicos apresentam muito ensino com o uso de expressões que referenciam ou retratam os conceitos cosmológicos do povo e de seus vizinhos. Espera-se que este tratamento possa ajudar a compreender melhor as implicações dos termos usados na Bíblia. 7 FACULDADE TEOLÓGICA NACIONAL CAPÍTULO 2 COSMOLOGIA ANTIGA Em vários casos, será de ajuda na compreensão de um texto saber algo sobre o conceito cosmológico do povo hebreu na época bíblica. Este conceito, embora diferenciado, está relacionado aos conceitos cosmológicos dos povos ao seu redor. É importante conhecê-los especialmente ao lidar com narrativas concernentes à criação, ao dilúvio e tópicos escatológicos que retratam realidades celestiais em terminologias da realidade física conhecida. Evidências deste conceito cosmológico serão encontradas em outras narrativas e textos ao descrever algo do mundo além-túmulo ou aspectos do universo criado por Deus. O conceito hebraico do formato do universo deve ser considerado ao tratar de assuntos tais como a criação. Os hebreus tinham a mesma percepção “científica” do mundo dos outros povos de sua época, porém faziam suas distinções. Em matéria do formato físico-estrutural do universo, tinham muito em comum com os outros povos. O texto bíblico usa termos como “abismo”13, “expansão” (em algumas traduções “firmamento”)14, “janelas dos céus”15 e outros termos que de certo, soam um tanto estranhos no século presente. Estes termos demonstram a forma antiga de se refletir sobre o mundo a sua perspectiva do universo criado por Deus. Pode-se ver que certos assuntos atuais, como a preocupação de encontrar vida em outros planetas, não tem cabimento no texto bíblico pelo simples fato de que estas perguntas baseiam-se em outra cosmologia, muito distinta daquela dos hebreus. O gráfico apresentado ajuda na compreensão da perspectiva “científica” dos hebreus referente ao formato do universo, refletido especialmente em passagens como Gênesis 1-11 e de Jó 38-41, na qual Deus faz perguntas a respeito da criação do universo que Jó não consegue responder. Os elementos comuns entre os hebreus e os outros povos são diferenciados em seus termos representativos e especialmente na sua explicação religiosa. É importante lembrar que mesmo quando o conceito hebraico reflete certas noções tidas em comum com os outros povos, a ênfase das narrativas hebraicas é a de oferecer uma crítica nos pontos em que divergem deles pela revelação de Deus. 8 FACULDADE TEOLÓGICA NACIONAL Este gráfico do conceito hebraico da estrutura do universo limita-se a uma fração mínima da cosmologia científica atual. Pode-se ver como a Bíblia utiliza certa terminologia que se refere ao conceito cosmológico de seus autores17. Pode-se ver no gráfico o título de “firmamento” (ou “expansão”) para o círculo dos céus que separa as águas acima do firmamento da zona que se denomina hoje por atmosfera. Estes termos ajudavam o povo a falar do mundo ao seu redor, mesmo que o seu conceito específico tenha sérios problemas em face da ciência atual. Entender a cosmologia hebraica é de ajuda para compreender as implicações das narrativas que utilizam a terminologia do mesmo conceito. Quando o autor bíblico refere-se às janelas do céu, é bom saber que faz referência ao seu conceito de como a água acima do firmamento chega até a terra em forma de chuva. A cosmologia é uma área da ciência que influi muito em vários aspectos da comunicação humana, pois muitos dos seus conceitos alteram a forma de conceber o que acontece em volta do indivíduo e a sua sociedade. A cosmologia hebraica aparece até no livro de Apocalipse, onde o “‘abismo sem fundo’ está vinculado a ideias concernentes à forma do mundo. A terra era concebida como um disco plano que flutuava em cima da água. O abismo refere-se às profundezas imensuráveis debaixo da terra, para os quais pensava-se existir uma fenda capaz de ser selada”18. Até o Novo Testamento, portanto, sente a influência desta cosmologia. O conceito egípcio era estruturalmente bem parecido com o hebreu, mas representado nas pessoas de seus deuses19. Estes representavam para os egípcios as várias partes do cosmos. Enquanto trata-se na atualidade do mundo fenomenológico como objeto impessoal, “os antigos reagiam a ele como a uma ‘pessoa’”20. Assim, entre os egípcios, a mitologia e apresentação cosmológica defendiam que o panteão de deuses era parte do cosmos em termos físicos e representativos. Assim, o universo é tanto criação de seus deuses, como também os seus deuses compõem as partes do universo. Não parece que houve muita diferenciação entre a obra resultante e o originador da mesma. No antigo conceito cosmológico egípcio, o deus-céu é o céu, o deus-terra é a terra, o deus-Nilo é o Nilo e o deus-ar é o ar. (Portanto, no relato das pragas do Egito21, Deus se revela como maior que os deuses do Egito, não apenas por dominar suas esferas de influência, mas, segundo a forma egípcia de ver as coisas, por dominar os seus próprios deuses!) Essa forma segue alguns aspectos da mitologia babilônica retratadas no seu épico, Enuma Elish, porém é diferenciada em suas próprias expressões. Os relatos 9 FACULDADE TEOLÓGICA NACIONAL mitológicos dos egípcios referentes a este conceito cosmológico divergiam em muito das narrativas que se encontram no livro de Gênesis. Os primeiros relatam lutas e intrigas entre deuses que atuam tais como ou até piores do que os seres humanos. Esses deuses têm muito em comum com os deuses dos gregos, romanos, e babilônicos, porém pouco ou nada com YHWH (hwhy), Senhor de Israel. O conceito babilônico (ou seja, mesopotâmico) do universo é parecido com os conceitos hebraico e egípcio em seus termos estruturais, mesmo que apresentando outro formato que centraliza a montanha no centro da terra23. Esta montanha era muito importante para os babilônicos, refletindo a ideia de que no seu ápice era a morada de seus deuses. O épico Enuma Elish24 amplia a perspectiva narrativa e histórica do conceito babilônico em termos de como o mundo chegou a ser formado. Este épico enfatiza mais o relacionamento com a perspectiva do panteão de deuses egípcios, pois ele relata o assassinato de alguns deuses e a construção das partes do cosmo com a utilização de seus corpos. O mesmo relatodiverge do egípcio em que os deuses usados para essa “construção” já não existem, pois usou-se seus cadáveres na estrutura física do mundo. Bultmann, estudioso do Novo Testamento, referiu-se à cosmovisão expressa no Novo Testamento em termos parecidos com a descrição anterior. A estrutura física resultante desta cosmologia, porém, apresenta-se bem semelhantemente à hebraica. Tem-se também uma reflexão da perspectiva cosmológica do Apóstolo Paulo, ao mencionar um homem que foi levado até “o terceiro céu”26. Esta citação reflete sua visão estrutural do universo. O quadro acima ilustra a cosmologia babilônica27. Nota-se que a perspectiva é a da terra ser uma espécie de ilha, com água na volta por todos os lados. Tal era o conceito geral dos hebreus e seus povos vizinhos28. Um detalhe faltando no quadro é o túnel por debaixo da superfície da terra pelo qual o sol passava cada noite para chegar de novo a seu lugar de nascer. Nota-se nos relatos babilônicos uma série de conflitos, lutas e intrigas. Estas sucedem tanto entre os seus próprios deuses, como também entre os deuses e o caos do universo quando da criação do mundo habitado pelos homens. Desde a perspectiva babilônica, “a criação é realmente nada mais que a vitória sobre os poderes caóticos que ameaçam a vida dos deuses e das pessoas”. 10 FACULDADE TEOLÓGICA NACIONAL Os deuses até conseguem vitória sobre o caos do universo, mas não há uma certeza de vitória entre si, já que existe entre eles uma disposição a intrigas. Também as suas narrativas referentes ao dilúvio revelam este mesmo caráter de incerteza, desconfiança, capricho e intriga. Na cosmologia babilônica pensava-se que a criação do mundo era o resultado da junção dos oceanos de água salgada e de água fresca na pessoa dos deuses, Tiamat e Apsu. Estes nomes servem de igual modo para designar os oceanos referentes31. Foi na junção ou união destes deuses que a terra seca se formou. O formato do mundo, portanto, era concebido de modo essencialmente igual, trocando o estilo e especificidade da atuação e identificação dos personagens divinos associados à criação. Assim, as mitologias narradas por estes outros povos divergem muito das narrativas hebraicas do Gênesis. No texto bíblico encontra-se conflito, mas este conflito é procedente do homem, não dos céus entre um panteão de deuses. Em Gênesis, Deus cria a partir de uma decisão de sua livre e soberana vontade e até domina o “caos” ao começar sua obra criativa. A descrição do restante deste primeiro relato da criação mostra como Deus operou para impor ordem ao caos que já lhe obedecia e lhe serviu de base para o restante de sua criação. O narrador continua mostrando ainda a soberania divina sobre o caos na descrição do dilúvio, apresentando o conceito de YHWH ser muito acima do conceito dos outros povos referentes a seus deuses. O conceito estrutural da forma do universo, então, era mantido basicamente em comum com os outros povos ao seu redor, porém as considerações teológicas que os hebreus mantiveram referente a essas estruturas físicas é algo completamente diferente. Como participavam dos conceitos cosmológicos dos seus vizinhos, a sua ciência geofísica e geográfica era muito diferente daquela aceita no século vinte. Estas diferenças devem ser levadas em consideração para uma melhor compreensão de textos tão antigos. Mesmo com as diferenças enormes entre conceitos da estrutura do universo de hoje e dos povos do mundo antigo, as considerações teológicas destes que apresentam conceitos divergentes são aplicáveis aos dias de hoje, sem qualquer necessidade de alteração. O texto bem pode falar com um linguajar geográfico ao considerar a vida além do túmulo, sem alterar o significado do ensino teológico da expressão. Hoje ainda se fala com o mesmo tipo de linguagem sobre o viver com Deus “nos céus”, mesmo que se saiba que Deus não mora num lugar fixo acima das núvens. Ainda se faz referência a um inferno que se localizaria abaixo da crosta da terra, mesmo que não 11 FACULDADE TEOLÓGICA NACIONAL mais se pense no inferno como uma habitação debaixo da superfície da terra. Estas formas de expressão remontam a cosmologias bem diferentes da atual. O problema maior para o intérprete é descobrir a intenção teológica do texto, não considerar a validade científica do pensamento do povo e do autor. Não se deve cometer o mesmo tipo de erro que a igreja enfrentou na época de Galileu Galilei, opondo-se a novos posicionamentos científicos para “proteger” os vínculos que se haviam construído entre questões de fé e conceitos científicos. Aceitando o propósito bíblico básico como sendo teológico, recorre-se à Bíblia para embasamento de questões de fé e prática, não de conceituações intelectuais referentes ao mundo criado por Deus. A Bíblia interessa-se mesmo em explicar Quem” criou, não o método, nem o formato da criação. As narrativas bíblicas pretendem demonstrar a identidade de YHWH em relação e contraste com o homem, não pretendem ensinar ciência. O importante das narrativas, então, não é uma veracidade detalhada de suas considerações científicas e descritivas do universo, mas o seu ensino referente a YHWH e Seus desígnios para a humanidade. É interessante lembrar que as narrativas não contam toda a história da interação de YHWH com o Seu povo. Como o autor do Evangelho de João coloca, há muitas coisas que poderiam ter sido escritas referente aos acontecimentos históricos entre Deus e o seu povo, mas estas foram escritas com propósito específico. Assim como o Evangelho de João foi escrito para suscitar a fé real, também é este o propósito das narrativas bíblicas em geral—“para que, crendo, tenhais vida em seu nome”. 12 FACULDADE TEOLÓGICA NACIONAL CAPÍTULO 3 ESCATOLOGIA: CONCEITOS Antes de tratar com o ensino bíblico mais abrangente nos tópicos a seguir, se tomará uma breve olhada a alguns parâmetros básicos para o estudo dos seguintes termos. Mais será discutido nestes assuntos ao tratar passagens essenciais nos tópicos respectivos. “Reinar de Deus”: No estudo da eclesiologia foi revisto algo da importância do conceito do Reino de Deus. Como o conceito é também de muita importância na escatologia, será tratado aqui de forma mais dirigida às temáticas escatológicas. Para a escatologia, a categoria principal na Bíblia é o Reino de Deus, seu “governo em ação”41. Em razão disto, usaremos a frase o “reinar de Deus”42 em lugar do costumeiro “Reino de Deus”. Jesus declarou que esse reinar já se fazia real dentro dos parâmetros da historia43. Mesmo que muitos tratem o reinar de Deus com uma característica futura, o reinar não somente se acerca no ministério de Jesus. Vem a uma expressão mais plena numa data futura”44. Esta data pode ser entendida como o evento de pentecostes, entre outras opções. Nos evangelhos sinópticos, Jesus é apresentado não somente a iminência, mas a própria chegada do reinar de Deus. Logo, não deve ser concebido apenas em termos da vida após a morte, pois reflete o reinar de Deus na vida do cristão no “aqui e agora”. O Reinar de Deus é uma temática especial dos evangelhos sinópticos, principalmente em Mateus. Aqui se encontra a terceira parte das referências neo testamentárias ao Reinar de Deus (ou Reino dos Céus)46. Na reflexão de Mateus encontramos um sentido de urgência ao aproximar o reinar de Deus, o arrependimento sendo a categoria mais ressaltada para a preparação do indivíduo. Muitas vezes a palavra de Jesus refere-se à crise centralizada no ingresso ao reinar de Deus48, como nos capítulos 13 a 16 de Lucas. No ensino deJesus, nada tem valor ao ser comparado com o reinar de Deus. Jesus convocava à renúncia de todo laço que impediria o indivíduo de seguir o seu exemplo de submissão total a Deus, o que o levou à cruz. 13 FACULDADE TEOLÓGICA NACIONAL É comum certa confusão referente ao Reinar de Deus, especialmente em termos de seu tempo. Como já tem sido visto, Jesus trata o reinar de Deus em tempo presente. Simultaneamente, Jesus trata o reinar em tempo futuro. A ênfase é na realidade presente, mesmo que seja mais comum tratar a temática em expectativa futura. Mateus 12.28 e Lucas 11.20 indicam que o reino pregado por Jesus fez mais que acercar-se. Já tinha chegado. Mesmo que não tenha sido completamente realizado, estava presente e ativo em meio do ministério de Jesus e na vida da igreja51. Enquanto Brooks ainda trata do reinar de Deus como algo que chegava, Jesus falou com de seus discípulos como vivenciando o reinar de Deus em meio das suas vidas terrestres. Entre tanto ao reino de Deus era uma realidade presente na pregação de Jesus. Não havia razão para esperar algum evento futuro. O tratamento bíblico do reinar de Deus após o ministério de Jesus visa menos futuridade do que recebe durante o seu ministério sobre a terra. Ao mesmo tempo, permanece a expectativa de um complemento à realidade do reino já inaugurada nas vidas dos crentes. Tal expectativa, porém, encontra a sua expressão na base do que Jesus já tem realizado. “A confissão cristã não é apenas que Cristo virá ao final da história, mas que Cristo já veio; não apenas que a salvação espera o crente no futuro escatológico, mas que a salvação já é experimentada, numa forma antecipatória, porém real, no aqui e agora, no meio de problemas e não apenas ao seu fim…. Molda-se o presente não apenas pelo passado, mas também pelo futuro de Deus”. O Novo Testamento geralmente caracteriza o reinar de Deus como a ação divina em reinar naqueles que se colocam debaixo da autoridade de Deus en Cristo Jesus53. O ingresso ao reino é agora, não num porvir. No momento em que se abre a vida para depender de Deus completamente, há ingresso no seu reinar. Em termos políticos, esse reinar “não é deste mundo”, porém não há necessidade de pensar que seja apenas um conceito futurístico. Céu: Ao tratar com o reinar de Deus, deve-se salientar alguns aspectos da temática do céu, por questão de ser complemento do ensino referente ao reinar de Deus—o reinar de Deus após a morte física. Os termos bíblicos para céu, mymc (hebreo: che-ma-yim) e ouranovs (grego: u- ra-nos) são usados na Bíblia com três sentidos básicos: referindo-se 1—à estrutura física 14 FACULDADE TEOLÓGICA NACIONAL do universo (o firmamento na cosmologia hebrea), 2—à morada de Deus, e 3—a Deus como um sinónimo55. Olhando para Lucas 15.18, pode-se ver claramente que esta referência é feita especificamente a Deus56, não àquela expansão estrutural acima das nuvens, pois o filho havia pecado contra Deus, não contra uma localidade. Pode-se ver que o reino do qual Jesus ensina em Mateus 5.3 e em Lucas 6.20 é o mesmo. Logo, o chamado “reino de Deus” e o “reino dos céus”, são expressamente a mesma coisa. Entre o uso do termo como morada de Deus e sinônimo de Deus, existe um relacionamento que nos interessa em referência à temática do reinar de Deus. Há um vínculo entre o estar sob o reinar de Deus e estar na Sua presença. Essa presença com Deus é elemento essencial da temática de “céu”, como também do reinar de Deus. Tanto no céu e no reinado de Deus, é a imediacidade da presença divina a sua característica que dá sentido à experiência. A Bíblia, especialmente o Antigo Testamento, também usa o termo “descanso” para tratar considerações referentes à vida no céu, mesmo que tenha conotações presentes. Neste sentido, o descanso não é uma pausa do esforço laboral. É mais o receber e desfrutar algo de grande importancia58. Quando falamos em descanso em sentido celestial é necessário lembrar deste aspecto do emprego deste termo. Segunda Vinda/Parúsia: Muitas vezes falamos da Segunda Vinda de Jesus ou seu retorno, mas essas não são as formas pelas quais Jesus se referia ao conceito. O termo bíblico para a chamada segunda vinda é a palavra grega parousia (parousia), com o sentido de aparecimento. É designação de Jesus ser revelado em glória. Inerente a este conceito existe um reconhecimento claro, global da identidade e do retorno de Jesus. Alguns tem compreendido a Jesus ter falado de sua morte como trazendo o reino escatológico de Deus60. Tal expectação é que neste aparecimento, todos entrarão no reinado de Deus—a esperança messiânica tão esperada afinal cumprida. Deve-se notar que as expectativas messiânicas originais englobavam duas realidades como uma. A chegada do Messias e a inauguração do reinado messiânico eram vistas como um só evento. No ministério de Jesus, elas parecem tornar-se em duas realidades diferentes. Jesus também introduz uma terceira realidade na mistura, conforme falamos de uma realidade futura desse reinado de Deus ainda antecipada. Quer seja além da tumba, o na terra, essa realidade de uma concretização mais plena do reinado final de Deus chegou a ser um terceiro elemento da esperança messiânica. Os judeus entendiam 15 FACULDADE TEOLÓGICA NACIONAL esta realidade como a realidade básica do reino messiânico. Os escritores do Novo Testamento parecem reformular esta realidade como uma concretização celestial esperando a realidade vivida além da tumba. Fim do Mundo/Últimos Dias: É valioso lembrar que o uso de frases como “o fim do mundo” e “os últimos dias” nem sempre referem-se à destruição do mundo físico. Os judeus dividiam o tempo em duas partes—antes e depois do messias. Logo, com o dia de Pentecostes em Atos 2, já se pode falar destes últimos tempos, conforme Paulo, em 1a Coríntios 10.11. Em conjunto com estas frases, encontra-se em certas passagens a frase “última hora”. Esta refere-se de forma parecida, se não igual, ao conceito últimos dias. Pode ao mesmo tempo espelhar uma compreensão de ser um tempo imediatamente antes da vinda de Jesus em glória, porém tal compreensão deve ser vista no contexto dos quase dois mil anos após estes textos terem sido escritos, sem que Jesus tenha vindo em sua glória. Autores bíblicos de textos como Apocalipse e 1a João esperavam que Jesus voltasse a qualquer minuto, porém estavam errados nos seus cálculos. Tal fato deve servir de alerta àquele que busca definir o quando da parousia e o fim do mundo—ninguém sabe. Ressurreição e Juízo: Os conceitos de ressurreição e juízo estão ligados de pelo menos duas formas: a ligação de sequência temporal dos conceitos e o seu tratamento bíblico por via de duas perspectivas distintas. A ligação temporal é produto de uma das perspectivas que trata a ressurreição como o evento que introduz o julgamento. As duas perspectivas bíblicas divergentes sobre os conceitos visam a duas ênfases primárias das temáticas, o individual e o universal. Desde a perspectiva individual, os autores bíblicos tratam de enfatizar que cada indivíduo passa pela ressurreição e o julgamento na hora de sua morte. Essa perspectiva realça tanto a experiência individual como a instantaneidade da experiência. A perspectiva universal normalmente trata o evento de ressurreição ou julgamento como um evento compartilhado de forma simultânea entre todos da raça humana de todos os tempos. Poder-se-ia designar as perspectivas como pontilhar sequencial (olhando a história como uma série de pontos individuais) e aorista sumária (olhando desde o futuro para trás sem diferenciar questões temporais), descrevendo os mesmosacontecimentos de perspectivas diferentes. Por outro lado, pode-se interpretar o aspecto pontilhar 16 FACULDADE TEOLÓGICA NACIONAL sequencial como sendo a experiência normativa, passando para o aorista sumário num final cósmico cataclismático. Assim, Hebreus 9.27 trata da perspectiva pontilhar sequencial: cada um morre e segue para o seu julgamento. Mateus 25 trata de forma aorista sumária: virá o dia de prestar contas, e todos os servos aparecerão perante o Senhor para serem julgados. Paulo parece vincular as duas perspectivas em Tessalonicenses: não chegaremos antes dos que dormiram primeiro, mas os encontraremos na região celestial. Não há necessidade de cogitar um estado intermediário como alguns têm feito. Lucas 16 parece ensinar que o juízo é imediato na hora da morte64, enquanto João 5 denota o juízo como tendo ocorrido mesmo antes da morte do indivíduo. Inferno: Como o conceito “céu” tem vínculo estreito com o estar presente com Deus, o conceito inferno vincula-se diretamente ao oposto. Várias figuras são usadas para descrever essa realidade, mas o essencial é de estar completamente desvinculado de Deus para sempre. Há passagens que tratam o inferno como ardendo em fogo, enquanto outras passagens descrevem com o ranger de dentes, refletindo um frio interminável. Lembra- se que são figuras para descrever uma realidade que não se reduz à linguagem humana. Outras formas descritivas também são usadas, como de ser deixado do lado de fora da festa nupcial ou banquete. Qualquer que seja o detalhe, é um estado consciente de separação de Deus. Os comentários de Paulo em Romanos 10.6-7 claramente demostram que ele entende céu e inferno como lugares físicos. Ele indica que o céu é um lugar físico acima da terra, o inferno como a habitação física dos mortos abaixo da superfície da terra. A descrição física, entretanto, não é tão importante como o seu carácter de estar separado de Deus. Um lembrete deve ser feito que o conceito de inferno foi revelado num processo de várias etapas. Eclesiastes desconhece qualquer vida após a morte. 1ª Samuel 28.13-14 descreve a Samuel subindo desde o mundo subterrâneo. Este texto reflete uma compreensão que ambos os justos e injustos existem num estado nebuloso após a morte no mundo subterrâneo do Seol. Isaías 26.19 já fala de uma ressurreição dos fiéis. “Vida da Era”: Nossas traduções usam a frase “vida eterna” para a frase grega zwhn aiwnion (zo-ín ei-o-ni-on). Enquanto “vida eterna” é uma tradução válida, não é necessariamente 17 FACULDADE TEOLÓGICA NACIONAL a mais correta. A frase é literalmente “vida da era”. Refere-se àquela vida que pertence à era por vir—a eternidade. Mateus, Marcos e Lucas utilizam a frase em lábios dos judeus, mas somente en duas instancias como pronunciada por Jesus. Em geral, Jesus fala da vida no reinado de Deus, em vez desta “vida da era do porvir”. Enfrentando perguntas sobre entrar à “vida da era”, Jesus responde referente ao entrar ao reinado de Deus. Viver baixo o reinado de Deus é a característica essencial a essa vida. Sua duração não é tão importante, nem é a preocupação sobre o reinado messiânico futuro. O reinar de Deus é uma realidade presente. A submissão à vontade de Deus é seu enfoque primário, senão completo. O Evangelho de João está repleto da frase “vida da era”. João abre com referência a Jesus como o Criador da vida quem vem a dar vida com Deus a todos que a recebam. A vezes João simplesmente usa o termo “vida” em referência a esta vida especial da era porvir. João é cauteloso, entretanto, para classificar esta vida como uma realidade presente, em vez de uma experiência que devemos aguardar. João 3 a 7 usa a frase “vida da era” no mesmo sentido que os outros evangelistas usam a frase “o reinar de Deus”. Em João 17:2-3 Jesus define a qualidade desta vida como conhecer ao único Deus refletido no envio de Jesus Cristo. Ao todo, a discussão do evangelho não pretende enfatizar a duração desta vida, nem os seus aspectos futuros. É uma qualidade presente de vida que pode durar por toda a eternidade. “Ira de Deus”: Muitos gostam de falar da ira de Deus como uma categoria essencial ao carácter divino. Muito se tem pregado sobre a necessidade de escapar da ira e a vingança divina, mas a Bíblia não está tão repleta dessa categoria como alguns querem dizer. Encontramos um retrato em Mateus 3.7-10 e Lucas 3.7-9 da necessidade de escapar da ira e do julgamento de Deus. Este tema já foi tratado em Jonas, como em outros textos do Antigo Testamento. À vez, tratam mais da necessidade de uma mudança no ser humano que um aspecto irado do carácter de Deus. Conforme Romanos 1.16-32, a ira de Deus consiste mais do que nada em deixar que alguém trilhe o caminho que escolhe. Aquele que não quer nada com Deus, Deus o deixa seguir a sua vida aparte de Deus. Gênesis 3-4 pinta um quadro de Deus atuando em misericórdia e provisão pela humanidade que cai nas tramas do pecado. Deus tece roupas para a humanidade y providencia para Caim uma marca da sua proteção frente à vingança alheia. Miquéias 6- 18 FACULDADE TEOLÓGICA NACIONAL 7 pinta um quadro demostrando que ao mesmo tempo Deus que age em juízo está pronto para tratar com misericórdia. Como em 2ª Crônicas 7, Deus prefere misericórdia e perdão, usando o julgamento como um recurso para chamar a humanidade para uma reconciliação. O seu desejo central não é o castigo, mas o perdão, a misericórdia e a reconciliação. João 3 indica que o amor de Deus é o ser atributo central, não um desejo irado para vingança e retribuição. 1ª Timóteo 2.4, 2ª Timóteo 1.18, 4.8 e Tito 2.11-14 falam também do desejo divino para reconciliar a todos. Ao tratar com a ideia da ira divina, deve-se temperar o conceito com a misericórdia, amor e o perdão de Deus, temas que a Bíblia trata com uma atenção muito mais ardente. 19 FACULDADE TEOLÓGICA NACIONAL CAPÍTULO 4 ESCATOLOGIA: TEXTOS BÍBLICOS IMPORTANTES Passa-se agora a tratar alguns textos chaves para a compreensão das temáticas da escatologia. As passagens a seguir não são todas as passagens relevantes, mas são as mais centrais para tratar essas temáticas. 1ª Coríntios 3.10-4.5: “Aquele que constrói banalmente a igreja de Deus sofrerá a perda de recompensas especiais que Deus tem preparado para serviço bem prestado. Sua salvação não está envolvida. Ela é um presente da graça de Deus, recebido pela fé. No entanto, tal salvação teria sido de muito mais agrado se houvesse resultado em boas obras, em materiais dignos, contribuindo para a construção da igreja de Deus”. Por contrastar ouro, prata e mármore com madeira, palha e joio, Paulo fala de “um palácio por um lado, e uma barraca de lodo por outro”68, segundo os materiais em uso comum na época. Os materiais dignos para a construção sobrevivem ao fogo mencionado. Se Cristo for o alicerce, a estrutura erguida por cima deveria ser digna da qualidade do seu fundamento. Não se deve construir de qualquer maneira, mas com qualidade69. Em algum ponto o material utilizado na construção será visto e provado. Não há como escapar desta prestação de contas a Deus71, pois nesta menção do fogo é feita em conjunto a menção do “Dia” —uma referência escatológica—essa junção refletindo o dia de juízo escatológico. Nestes termos, a igreja primitiva ouvia uma mensagem de boas novas pelo interesse e a autoridade de Deus exercida sobre o que se passava entre o seu povo ou sua igreja72. O interesse de Deus está presente na sua igreja e no labor desse seu campo.Esse interesse virá a ser revelado de forma mais efetiva no juízo ao qual Paulo aqui se refere. No entanto, muitos trabalham no campo, mas haverá um prestar de contas. Esta prestação aqui referida não está necessariamente vinculada com a salvação, mas com a recompensa do justo fiel. Ao contrário de outras passagens bíblicas, esta figura do juízo aqui não é a questão da separação entre os fiéis e os infiéis. Em vez disso, é um retrato de uma vida 20 FACULDADE TEOLÓGICA NACIONAL desperdiçada. Os aqui julgados têm sido infrutíferos, entregando resultados tão míngues sobre o alicerce de Jesus Cristo que os resultados das suas vidas parecem desaparecer numa fumaça. Não existe nada de valor para mostrar por seus esforços, seja almas acercadas ao evangelho de Cristo, enriquecidos no carácter dos evangelhos ou crescimento na graça de Deus73. A preocupação básica aqui é que para Deus a qualidade do investimento que cada qual faz no desenvolvimento do reinar de Deus importa, e Deus tem exigências sobre os nossos esforços e investimentos no engrandecer do reinado de Cristo. Quando Paulo trata a questão do corpo do cristão como templo, ele emprega o termo não;" (naós), que designa mais precisamente o próprio santuário, do que o templo como um todo. O uso aqui pode designar a parte interna do templo, o santuário, onde se visualizava a mera presença de Deus. Um santuário era visto como uma manifestação visível da presença do deus ali cultuado76, neste caso, YHWH (hwhy). Era visto como uma representação terrestre da sala do trono celestial. Como tal, era designado como um lugar apropriado para invocar a presença de Deus. É neste contexto que Paulo retrata a vivência interna do “Sopro de Deus” no cristão, como parte desse templo. Vale ressaltar que o termo pneu`ma (pneuma) é usado nos parâmetros do termo hebraico jwr (ruach), o qual designa não apenas o conceito de espírito, mas o próprio fôlego. A intimidade da vivência interna do pneu`ma tou` qeou` (sopro de Deus) assemelha-se ao respirar do homem no seu viver diário. Paulo assim ressalta a importância e a proximidade do corpo como sendo a “nave” do templo de YHWH, onde Deus vive e reina. O conceito de “o dia” é especificamente uma referência judicial80. Nesse dia, o juiz seria Deus, não algum ser humano que usaria de parcialidade no seu juízo. Este juiz julgaria conforme os reais méritos, não por alguma perspectiva falha ou parcial81. Este julgamento, portanto, é motivo de alegria para Paulo, pois o seu julgamento e o seu futuro está nas mãos de Deus, não dos homens. Deve-se lembrar que Paulo termina num ponto positivo, mostrando que o prestar contas ao Senhor deveria ser um motivo de alegria para o cristão. Esta passagem de 1a Coríntios, revela que o julgamento vindouro é mais do que uma simples separação entre os fiéis e os infiéis. Remonta também a alguma diferenciação entre a qualidade do investimento de cada cristão na construção da igreja, ou seja, no reino de Deus. Nesta diferenciação, não existe motivo de se gloriar por haver 21 FACULDADE TEOLÓGICA NACIONAL em qualquer caso “merecido” a salvação, mas parece ser um ensino coerente com a passagem de Mateus 25.14-30, onde aos servos fiéis são dados novas responsabilidades, ou seja, oportunidades de continuar o seu serviço a Deus. O reinar de Deus continua, e o cristão ainda permanece como servo ou mordomo do Senhor do reino. Lucas 14.1-16.31: A parábola de Lázaro e o homem rico é uma das passagens mais marcantes referente ao estado do ser humano após a morte. Aqui se evoca imagens bem ilustrativas de recompensa e juízo. É interessante notar que Jesus referiu esta parábola aos fariseus e não aos saduceus. Os saduceus não pensavam existir uma vida além-túmulo no sentido de céu e inferno, apoiando-se aos conceitos mais tradicionais do judaísmo do Seol como o lugar de todos os mortos, sem diferenciação. Esta parábola, como todo o texto maior desde o capítulo quatorze, parece estar bem dirigida aos fariseus, os quais tinham expectativas messiânicas e escatológicas bem desenvolvidas. Este ensino, portanto, tem uma audiência específica. Parece que o tratamento do reino dado por Jesus para os saduceus haveria tomado uma ótica e ênfase diferente. Tem sido comentado que Jesus parece colocar mais ênfase no ensino referente ao inferno do que propriamente no ensino referente ao céu. Deve-se lembrar, porém, que o inferno não é o contraponto ou oposto do céu, mas do reino. Nestes termos, o ensino de Jesus é bem dirigido à inclusão dos saduceus. O reino já chegou e começa no aqui e agora. Esta vida no reino é a “vida das eternidades”, o qual começa aqui e continua para sempre. Como a vida do reino é deixar que Deus reine no indivíduo e no corpo, o céu é a continuação do reinar de Deus, mesmo após a morte. A morte não interfere no reino, apenas modifica a esfera de sua atuação. O ser humano continua após a morte no seu relacionamento com Deus, seja como for o mesmo—na intimidade do reinar de Deus ou na eterna separação de Deus, o inferno. O termo “Hades” (adh") é a expressão grega utilizada na Septuaginta83 para traduzir o termo hebraico, lwav (Seol), este designando o lugar de continuidade nebulosa dos mortos84. No Antigo Testamento, o termo mais significativo para referir-se ao mundo dos mortos é esse termo, “Seol, uma palavra de origem incerta, porém usada 65 vezes no Antigo Testamento”85. O conceito do Seol sofreu muitas modificações ao longo do processo revelatório de Deus com o povo de Israel. Eclesiastes nem compreende qualquer vida além do túmulo, enquanto por outro lado vários textos começam a sugerir imagens dessa 22 FACULDADE TEOLÓGICA NACIONAL existência ou continuidade. Quando inicialmente surge o conceito de uma vida além- túmulo, concebe-se em geral um lugar de silêncio86. O termo essencial é Seol, porém outros termos são empregados para expressar esse conceito. Abadon (@wdba) por si significa destruição, mas é usado no Antigo Testamento também em referência ao Seol, o reino dos mortos88. Mesmo assim, o significado é impreciso por causa de termos que são muitas vezes vinculados ao seu contexto, gerando a ideia de lugar daqueles que dormem, conforme as sombras dos mortos que se acordam um pouco para receber o rei da Babilônia89. Em Jó 26.6 e 28.22, o Abadon é a personificação do lugar de destruição, ou seja, dos mortos90. O tehom (μwht— profundezas, ou abismo) e o deserto são também símbolos, para os hebreus, referentes ao lugar dos mortos. Moody coloca a passagem de Isaías 14.9-15 como sendo a descrição mais vívida do conceito do Seol. Ao ler a seguinte passagem, deve-se lembrar o gráfico do conceito hebraico do universo: “O Seol desde o profundo se turbou por ti, para sair ao teu encontro na tua vinda; ele despertou por ti os mortos, todos os que eram príncipes da terra, e fez levantar dos seus tronos todos os que eram reis das nações. Estes todos responderão, e te dirão: Tu também estás fraco como nós, e te tornaste semelhante a nós. Está derrubada até o Seol a tua pompa, o som dos teus alaúdes; os bichinhos debaixo de ti se estendem e os bichos te cobrem. Como caíste do céu, ó estrela da manhã, filha da alva! Como foste lançado por terra tu que prostravas as nações! E tu dizias no teu coração: Eu subirei ao céu; acima das estrelas de Deus exaltarei o meu trono; e no monte da congregação me assentarei, nas extremidades do norte; subirei acima das alturas das nuvens, e serei semelhante ao Altíssimo. Contudo levado serás ao Seol, ao mais profundo abismo.” “O contraste temor e o desespero do Seol é um contraste marcado com a esperança jubilosa da ressurreição.Tal é o contraste presentado Apocalipse de Isaías (24- 27). Isaías 26.14 diz com respeito aos ímpios: ‘Os falecidos não tornarão a viver; os mortos não ressuscitarão; por isso os visitaste e destruíste, e fizeste perecer toda a sua memória’. No mesmo capítulo aparece a primeira referência clara à ressurreição da vida. Dos justos declara-se (v. 19): ‘Os teus mortos viverão, os seus corpos ressuscitarão; despertai e exultai, vós que habitais no pó; porque o teu orvalho é orvalho de luz, e sobre a terra das sombras fá-lo-ás cair’. A ressurreição dos mortos depende do poder e da 23 FACULDADE TEOLÓGICA NACIONAL realidade de Deus e o relacionamento correto do homem para com Deus”95. Em Apocalipse 20.14-15, a morte e o Hades são jogados em conjunto no lago de fogo. Seu poder sobre o ser humano é aniquilado, mostrando em concordância com outras passagens que até “o Seol fica sob o domínio de Deus”. Ao retratar o nosso conceito de inferno com o emprego de termos como Seol e Hades, deve-se lembrar as limitações do conceito expresso com esses termos por suas conotações geofísicas. Lembrando o conceito hebraico do formato físico do mundo, o Seol era o mundo subterrâneo ou parte dele. Com o complemento do ensino de Jesus e o emprego de outras metáforas para o inferno, vale lembrar que a verdade do ensino não está ligada ao espaço físico, mas à sua realidade relacional. “O inferno não é tanto um lugar de tormento físico, como é a horrível solidão de uma separação total e completa do Senhor”. Para tratar bem a parábola de Lázaro e o homem rico, é necessário ver alguns assuntos do contexto maior desde o início de Lucas 14. Em geral, uma parábola é dirigida a alguém para evocar uma resposta. Assim, é necessário compreender do contexto a quem a parábola estava sendo dirigida e com que motivo foi empregada por Jesus. Também algumas questões clarificativas devem ser colocadas de antemão. Esta parábola vem ao final de uma série de críticas que Jesus dirige às práticas farisaicas do dia, as quais são tratadas como um todo em Lucas 16:19-31. Aqui encontra- se as críticas de negligenciar aos pobres, reclamar direitos próprios, fazer bem aos que podem reembolsar, falta de praticar abnegação e infidelidade às exigências da Lei em relação ao próximo. Todo o ensino de Jesus nos últimos 3 capítulos está resumido nesta parábola. O contexto maior começa fazendo uma diferenciação entre a ótica ou prática dos fariseus e a forma de vida do reino que Jesus pregava. Desde pelo menos o capítulo 14, Jesus vem lançando uma série de críticas aos religiosos do seu dia. Com esta crítica, Jesus vem enfatizando o tipo de vida do reinar de Deus—a “vida das eternidades” —pelo seu caráter ou sua qualidade. No gráfico a seguir, pode-se ver algo da crítica colocada por Jesus em oposição aos líderes religiosos dos judeus do seu tempo. Como tem sido comentado em outra parte, a crítica de Jesus tem como alvo aqueles confiados demais do seu lugar à mesa no banquete escatológico. Em vez destes, aqueles que realmente chegam são os cegos, pobres e coxos. Aqueles presumidos pela sociedade estar presentes estão ausentes, dado as suas preocupações com outros assuntos. 24 FACULDADE TEOLÓGICA NACIONAL João 3.16-21; 5.5-25: João lança que o homem “já está julgado”, mas Jesus veio para o livrar da condenação. “E o julgamento é este, que os homens amaram mais as trevas do que a luz, pois a suas obras eram más”. O julgamento e a condenação já estavam realizados e atuantes na humanidade, como também são até hoje. Não havia de se esperar a chegada de um dia de juízo, mas apenas a efetivação da sentença. No período antes da morte do indivíduo, porém, existe a possibilidade de ser inocentado por Cristo. Em outras passagens trata-se de um juízo vindouro, mas aqui de outra perspectiva, a qual trata o julgamento como fato já no passado. Esta temática será repetida em 5.24-25. Em João 5.5-14, Jesus vincula a cura do paralítico com questões de fé e pecado. Jesus não curou a todos, mas curou a este. Logo, a cura deste paralítico vincula-se com o ensino de Jesus referente ao morto ambulante. Já há condenação e juízo, o homem apenas está aguardando cumprir a sentença, mas existe a possibilidade de ser inocentado, mesmo que já tenha sido julgado culpado. Essa não é a única perspectiva bíblica sobre o julgamento, mas deve ser vista como corretiva a um conceito dogmático demais referente ao procedimento específico além-túmulo da realidade. A implicação desta passagem é que a figura popular do juízo é precisamente uma figura. Não é tanto um evento de acordo com a teologia popular. Enquanto prestar contas a Deus é uma realidade, a nossa definição de uma cena de corte é uma figura que simplesmente aponta à realidade do juízo divino. Mais propriamente, o que se espera é a sentença de Deus, pois o juízo já é realidade. Mateus 23.29-24.44: O capítulo 23 de Mateus fornece a base segundo a qual se pode compreender as palavras de Jesus no capítulo 24. Pela pergunta dos discípulos em Mateus 24.3, é óbvio que eles pensavam que as três coisas (destruição de Jerusalém, parousia de Jesus e fim do mundo) aconteceriam juntas. Guerras, fomes e terremotos citados por Jesus em Mateus 24 eram sinais comumente associados com a aproximação do “fim” na literatura apocalíptica judaica da época. Jesus diz que estas coisas não são sinais de nada! Diz que acontecerão, mas os discípulos não devem preocupar-se até verem a abominação desoladora predita por Joel. Muitos interpretam esta passagem como uma coletânea de ensinos dados por Jesus, não sendo necessariamente tão homogênea. Há, no entanto, uma lógica de 25 FACULDADE TEOLÓGICA NACIONAL argumentação que indicaria um discurso direto e coerente, mantendo em vista as expectativas apocalípticas do dia e as três perguntas a serem respondidas por Jesus. Mateus 24.29-31 reflete a linguagem apocalíptica de Isaías 13.10, 34.4; e Ageu 2.6109, como também de Joel 2.10, e da expressão de um comentário livre sobre Daniel 7.8-27, 8.9-26, 9.24-27, e 11.21-12.13110. “O termo eleitos em Mateus 24 deve ser compreendido de acordo com o seu uso em outras partes das Escrituras, em que significa ‘crentes’”. Mounce coloca em questão a referência do capítulo 24.3-31 à destruição de Jerusalém, considerando que a linguagem de vários versículos trata da parousia de Cristo. Mesmo assim, todos os sinais a serem vistos são enganosos, pois não remontam ao fim, a não ser o fim de Jerusalém. Os versículos 29-31 tratam da parousia de Jesus. Ao mesmo tempo, esse tratamento é dado a fim de esclarecer a questão de que os falsos cristos são exatamente isso—falsos. O enfoque da passagem não chega a tratar a parousia, mas faz referência em sentido de um excursus. Assim Mateus 24.23-28 trata a questão dos falsos cristos, mesmo que o versículo 27 especificamente menciona a parousia de Jesus. O tema é que os falsos cristos estavam para surgir. Para classificá-los como falsos, Mateus 24.27 explica que a parousia será um evento universalmente visível e reconhecível. Propõe-se a seguinte divisão temática para a passagem: 23.1-39 Censura aos escribas e fariseus 23.37-24.2 Jesus fala sobre a destruição de Jerusalém e do templo 24.3 Perguntas dos discípulos 24.4-28 Resposta: Destruição de Jerusalém e do templo Os judeus haviam parado de oferecer sacrifícios a YHWH (hwhy) em favor do Imperador, assim rompendo o trato que tinham com Roma. Esse trato foi a forma encontrada para apaziguar as relações deles com Roma: os judeus sacrificavam em prol do império, o que os preservava da necessidade de sacrificar aos deuses romanos e à imagem do imperador.Buscando a resolução do impasse dos judeus nos anos finais da década de 60, no ano 70 Tito entrou em Jerusalém para fazer o sacrifício mandatório, em resposta ao rompimento do acerto com Roma. O templo foi queimado por completo em reação por parte dos judeus ao procedimento Romano em oferecer sacrifício a César sobre o altar do Templo. Em consequência da revolta, toda Jerusalém foi destruída. A destruição deu-se tão 26 FACULDADE TEOLÓGICA NACIONAL completamente que entre os anos 302 e 312, o governador Romano da Palestina nem havia ouvido falar de Jerusalém. Conforme Josefo descreve o caso, não era intenção de Roma destruir Jerusalém, mas tornou-se realidade em consequência da reação judaica em oposição ao sacrifício feito sobre o altar. “[Os romanos] tiveram durante todo o tempo da guerra grande misericórdia do pobre povo, ao qual era proibido fazer o que quisesse por aqueles [judeus] tumultuadores e sediciosos… por não [querer] destruir a cidade [de Jerusalém], somente para que os que eram autores de tal grande guerra tivessem tempo para se arrependerem”. O império enfrentava guerras e dificuldades de todos os lados por volta da época da destruição de Jerusalém. A introdução descritiva histórica de Tácito é bem ilustrativa: “Começo a obra de escrever sobre uma época que é rica em tragédias, sangrenta por causa de batalhas, dilacerada por revoltas”. Houve terremotos na Ásia nos anos 60. A morte de Nero em 68 foi seguida por um período de muita instabilidade, mais guerras e até três imperadores num período de dois anos. Josefo declarou que “o universo estava cheio de discórdias depois da morte de Nero; havia muitos que, por ocasião dos tempos e de tão grandes revoltas, pretendiam agarrar para si o império; e os exércitos todos, pela esperança de maior lucro desejavam tumultuar tudo”. Nas palavras de Jesus, não existe sinal nenhum referente ao fim do mundo nem da parousia. Jesus mesmo diz aqui o que Paulo repete em 1ª Tessalonicenses, e João em Apocalipse 16.15, que ele virá como o ladrão inesperado durante a noite. Jesus diz propriamente que nem ele sabe quando será essa vinda. Como, então, poderia ele dar um sinal da vinda cujo tempo desconhecia? O mais perto que Jesus chega a declarar um sinal do fim na sua declaração é que o evangelho será pregado em todo o mundo. Muito se tem feito da frase aqui relatada, bem como em Marcos. Alguns comentários estão em ordem, entretanto, para manter as palavras de Jesus no contexto dentro do qual os seus discípulos as compreenderam. “…Durante os séculos que precederam ao advento de Jesus, houve um número cada vez maior de judeus que viviam fora da Palestina”126, o que se chama de Diáspora ou Dispersão. “…Já no século primeiro as colônias judaicas em Roma e em Alexandria eram numerosíssimas. Em quase todas as cidades do Mediterrâneo oriental havia pelo menos uma sinagoga”. Logo, em Atos 2, é apresentado que o evangelho foi pregado a todas as nações (etnias—e[qnh) no dia de Pentecostes, entendendo que estes judeus 27 FACULDADE TEOLÓGICA NACIONAL espalhados levaram o evangelho de volta para as suas cidades, dispersos por todo o mundo conhecido. Mateus 25.14-46: A apresentação aqui do juízo não deve ser vista como uma figura completa de todo aspecto da salvação, pois tem como objetivo ressaltar a evidência de que o ser humano será julgado. Não se deve pensar aqui em dinheiro, mas em potencial a ser aplicado sob o reinar de Deus. Alguns interpretam a passagem para dizer que a salvação é merecida pelas obras, mas deve-se lembrar a implicação aqui de que todos somos servos de Deus. Nesse contexto, Jesus descreve a realidade da diferença de atitudes entre fiéis e infiéis. Graça é tão importante em Mateus, como em qualquer outro texto neo testamentário. Mesmo assim, deve-se lembrar que todos são vistos aqui como servos de Deus—uns são fiéis, outros são infiéis. Tal como na parábola dos lavradores maus, todos eram servos, mesmo aqueles que foram depostos dos seus cargos. Não vem ao caso tratar a forma de alcançar a salvação, muito menos salvação mediante obras, mas, como Jesus já designara no final de capítulo 24, o infiel mostra-se infiel por suas ações, enquanto o fiel pratica fidelidade. As ações revelam o caráter da pessoa e a qualidade do seu relacionamento com Deus. A segunda parábola aqui reflete outra vez conceitos de Mateus 16.27, onde cada qual recebe juízo ou recompensa de acordo com a sua atuação no reino. O ministério das ovelhas obviamente não é uma ação com fins de alcançar mérito, pois não se percebe o mérito de suas ações. É simplesmente uma forma natural de viver o evangelho de Cristo. Interessante no tratamento da parábola dos talentos, é que o talento era uma medida de peso, equivalente a uns vinte quilos. Provavelmente refere-se a prata ou ouro, mas a designação não é específica nesse sentido. Se fosse um talento de ouro, o preço de mercado atual colocaria o talento no valor de mais ou menos 3.100 salários mínimos mensais. Ao que fora fiel com os cinco talentos, no entanto, é designado como tendo sido fiel em pouco (15.500 salários, o que seria em 2002 uns R$3,1 milhões, dobrado em R$6,2 milhões)—agora este será colocado sobre muito! Aqueles dez talentos não são de muito valor, mas o Senhor colocará este servo fiel sobre muito mais—o suficiente para que ele veja a insignificância do primeiro encargo. Uma implicação desta parábola é de que o céu não é uma “aposentadoria legal”, como no conceito de muitos. É a oportunidade de continuar a servir ao Senhor de forma ainda mais significativa. Em nenhuma instância 28 FACULDADE TEOLÓGICA NACIONAL essa vivência é para aqueles que não querem servir—é para aqueles que querem ser úteis no reino de Deus e que tem mostrado tal por meio de serviço prestado. 1ª João 2.18-4.6: “É a última hora”. Para João, não existe nenhum intervalo antes dessa última hora chegar. Ela já estava presente para ele no primeiro século. O judeu dividia o tempo em duas etapas—antes e depois do Messias. Logo, após a ressurreição de Jesus os cristãos já presenciavam os últimos tempos ou a última hora— essa segunda etapa do tempo. Jesus modificou a expectativa judaica, pois não estabeleceu um reino político, mas já começara o seu reinar nos cristãos do primeiro século. Agora o cristão anela uma terceira etapa de tempo, marcado pela vinda em glória (parousia) de Jesus. O Anti-Cristo já está presente—na época de João! Realmente, o texto trata de “anti-cristos”, ou seja, muitos que atuam em luta contra Cristo. Não se trata aqui de um anti-cristo singular, mas de muitos anti-cristos, já na época do próprio João. Conseqüentemente, a sua descrição do tempo em termos de ser a última hora já entrou em vigor há quase dois mil anos atrás. Já é a última hora, como vem sendo desde o primeiro século. Quer dizer, já vivemos na época após a vinda do Cristo, esperando a sua vinda em glória. Ao tratar o seu concepto do anticristo, João cria um elo em toda a passagem entre o ser inimigo de Deus, praticar o pecado e faltar em amar ao próximo. Para João, os gnósticos eram anticristos por não amarem o próximo de acordo com o mandamento de Jesus. Aqui não existe nenhuma definição de um personagem em particular, mas uma atitude de viver em conta dos princípios do amor de Jesus Cristo e o evangelho de Deus. Contrariar os princípios do evangelho é viver em conta de Cristo, colocando-se nessa categoria de anticristo. João afirma que não há mistério escondido para os fiéis, pois o evangelho já fora pregado a eles. Essa declaração contradiz diretamente os ensinos gnósticos prevalentes já no primeiro século.Tal grupo ensinava a necessidade de aceitar uma doutrina escondida e especial, e que a salvação era através de um correto conhecimento da doutrina escondida. João responde que não há novidade, mas apenas a mensagem gloriosa do evangelho eterno de Jesus Cristo. Não há segredos a serem descobertos, mas uma mensagem aberta para todos que quiserem assumir o compromisso com Cristo. Logo, em termos escatológicos, também não há ensinos secretos a serem decifrados. A mensagem do 29 FACULDADE TEOLÓGICA NACIONAL evangelho é clara—ninguém sabe quando Jesus virá em glória, mas é verdade que virá. Ninguém pode discernir os tempos, predizendo os eventos futuros escatológicos, mas pode-se saber do próprio evangelho as verdades referentes àqueles eventos. Não compete ao cristão conhecer os detalhes, mas compete a ele conhecer o Salvador e obedecê-lo em fidelidade. 1ª Tessalonicenses 4.13-5.11; 2ª Tessalonicenses 2.1-3.5: O termo “dormir” é comumente usado como um eufemismo para morte, sendo este o uso aqui135. Deve-se tomar cuidado para respeitar esse uso do termo. 1ª Reis 2.10 diz que Davi dormiu com os seus pais e foi sepultado, 1ª Reis 11.43 diz que Salomão dormiu com os seus pais e foi sepultado. De 1ª Reis a 2ª Crônicas, existem 36 ocorrências deste uso do termo dormir. Atos 7.60 diz que Estevão adormeceu, mas 8.1 diz que Saulo consentia na sua morte! É também neste emprego do termo que Jesus o usa em João 11.11-14, mesmo que os próprios discípulos não tivessem compreendido de início. Aqui em 1a Tessalonicenses 4.13-14, Paulo contrapõe a esperança do cristão em contraste à falta de esperança no mundo pagão. Para o cristão e o judeu havia esperança de ressurreição, mas então não havia entre os pagãos136. Aqueles que estavam "em Cristo" antes de suas mortes, continuam "em Cristo" após a mesma. Deve-se lembrar que a expectativa da ressurreição na Bíblia era muitas vezes uma ressurreição física. Muitos pensavam num retorno a esta terra ou, como indica Apocalipsis 21, uma nova terra de alguma forma semelhante a esta. Ao encontrar-se com Cristo nas nuvens, Paulo aparentemente esperava baixar com Cristo de forma semelhante a Atos 1:11. As especulações cristãs referentes à vida no céu tem sofrido um choque em decorrência da nossa apreciação científica de que não haver nenhum lugar físico acima das nuvens onde Deus mora. Não temos uma boa apreciação da nova metafísica necessária para compreender a realidade celestial. Somente sabemos dizer que Deus nos espera e viveremos com Cristo eternamente ao outro lado da morte, sem que preocupações metafísicas ou geográficas interfiram na discussão. Paulo faz referência ao “homem de perdição” aqui, a única vez na Bíblia que se usa a frase. É semelhante ao uso do termo “anticristo” nas epístolas de João e Apocalipse. Paulo escreve antes da destruição de Jerusalém, e a maior parte dos comentários aqui parece referir ao evento da desolação do templo. Nesse sentido, um poderia identificar 30 FACULDADE TEOLÓGICA NACIONAL esse “homem de perdição” com Cesar, trabalhando por meio de Tito y outros para introduzir a sua imagem ao templo de Iavé. A intenção de Paulo era lembrar aos crentes da esperança do evangelho. Esta esperança era para eles mesmos, assim como para oferecê-los consolo referente àqueles quem morreram como crentes. Fomos resgatados da ira para viver como agentes do reinado de Deus na terra. Agora antecipamos a realidade futura do reinado de Deus ao outro lado da morte, assim como alguma expressão mais plena quando da parousia de Jesus. 31 FACULDADE TEOLÓGICA NACIONAL REFERÊNCIAS Christopher B. Harbin
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