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A desconsideração da personalidade Jurídica no 
novo CPC
1
 
terça-feira, 31 de março de 2015. 
1. Introdução 
 
Com a recente aprovação do novo CPC, muito se tem debatido acerca das mudanças que o 
novo diploma processualista trará ao contexto jurídico e social quando entrar em vigor. No 
artigo desta quinzena trataremos de um instituto de aplicação diuturna por nossos Tribunais, 
mas que ainda guarda grande relevância nos debates teóricos, visto que o 
novo codex procedimentalizou o instituto da desconsideração da personalidade jurídica. 
 
Cumpre ressaltar que o presente artigo de longe não objetiva esgotar ou exaurir a questão 
diante da riqueza doutrinária e jurisprudencial que a desconsideração guarda em si mesma. O 
escopo aqui é apenas o de ressaltar algumas questões e deixar algum reflexão sobre alguns 
questionamentos relevantes. 
 
2. Da Pessoa Jurídica 
 
Numa análise sociológica, embora toda pessoa natural seja dotada de capacidade jurídica, 
não são a elas somente que o ordenamento confere esse atributo. Muitas vezes sentem os 
homens a vontade ou necessidade de se agremiarem para explorar atividade econômica de 
alta complexidade. No entanto, é da natureza da atividade negocial a existência de riscos, que 
poderiam comprometer seriamente o patrimônio pessoal destes sócios. Isto posto, e 
considerando o fato de que essas atividades carregam em si grande interesse social, o 
ordenamento passa a dispor de um mecanismo que limita a responsabilidade dessas pessoas 
diante da atividade que exploram, que, por meio da conformação de uma pessoa jurídica, 
ficam cobertos por um véu protetivo que, até certo ponto, mitiga esses riscos. 
 
Na dogmática jurídica, a pessoa natural e a pessoa jurídica são coexistentes e 
consubstanciais, tanto que adotamos a teoria afirmativista da realidade técnica da pessoa 
jurídica, conforme art. 45/CC. Diante desse quadro, vigora ainda hoje com certa relativização o 
princípio da autonomia patrimonial, para não confundir a pessoa jurídica com aqueles que a 
compõem. 
 
Percebemos, portanto, que o ordenamento dilata o rol de destinatários aptos a serem 
juridicamente capazes, e faz surgir o instituto da Pessoa Jurídica, que serve justamente a 
conferir personalidade e capacidade a esses grupos de pessoas ou destinações patrimoniais 
que passam a constituir entidades abstratas, ainda que juridicamente únicas, que vão desde 
entes como o Estado, os municípios, até a mais especifica das associações particulares. 
 
O objetivo da personalização de entes com escopos e atividades próprias é obviamente o de 
distinguir a figura da pessoa jurídica daquela dos membros que a compõem, e fazer com que 
possa gerar vínculos jurídicos próprios, o que em última análise implica – como já dito – na 
autonomia patrimonial, de forma que os bens da pessoa jurídica não se confundem com os 
bens dos seus membros e vice-versa. O princípio em questão faz gerar limitação da 
responsabilidade dos sócios, o que em certa medida fomenta o empreendedorismo na 
consecução de finalidades distinta da vontade dos próprios membros. 
 
 
1 Disponível em http://www.migalhas.com.br/Registralhas/98,MI218182,81042-
A+desconsideracao+da+personalidade+Juridica+no+novo+CPC. Acesso em 12/04/2018. 
Dada essa predisposição à abstração e a relevância de sua finalidade econômica, por muitas 
das vezes, a Pessoa Jurídica carrega em si grande potencial lesivo, tanto para os sócios que a 
compõem, tanto àqueles que com ela realizam negócios jurídicos. O ordenamento reconhece 
esse potencial, inclusive quando impõe a observância de diversas condições legais à sua 
formação, e um rígido critério de liceidade de suas atividades.1 
 
Dentre as condições para seu surgimento encontra-se a necessidade de registro público 
(Registro Civil de Pessoa Jurídica; Junta Comercial ou outro órgão com Tribunal Superior 
Eleitoral) do ato constitutivo diante de autoridade competente, conforme o art. 45 do atual 
Código Civil2. Percebe-se que o ordenamento resguarda a si a prerrogativa de conceber a 
existência legal das pessoas jurídicas: é ele que transforma um aglomerado de pessoas em 
um grupo juridicamente autônomo e independente. 
 
Vem mostrando a experiência, no entanto, que o véu da personalidade jurídica desviou-se de 
sua natureza intrínseca, e pode mais servir a ocultar atividades escusas que propriamente a 
viabilizar os casos acima descritos. Tornou-se necessário um instrumento jurídico capaz de 
penetrar este véu, e assim sendo, criou-se o instituto da desconsideração da personalidade 
jurídica.3 
 
3. Da Desconsideração da Personalidade Jurídica 
 
A teoria da desconsideração tem origem na Inglaterra, mas seu desenvolvimento se deu com 
maior grandeza nos Estados Unidos e na Alemanha.4 
 
Percebidos os inconvenientes supramencionados, toma atitude no sentido de coibi-los o direito 
norte-americano, criando a doutrina da disregard of legal entity. Passou-se, mediante seu 
emprego, a desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando verificada, por parte 
de seus dirigentes, prática de ato ilícito, abuso de poder, violação de norma estatutária ou 
infração de disposição legal. 
 
Aplicar o instituto é, portanto, conferir ao juiz a faculdade de negligenciar a doutrina tradicional 
que envolve a conformação da Pessoa Jurídica, e, assim sendo, permitir que os bens dos 
sócios sejam atingidos pelas obrigações por ela contraídas, observadas as devidas 
formalidades legais. 
 
Embora aparentemente simples, este instituto esbarra em diversos conflitos normativos, e sua 
aplicação no Brasil deu-se de forma um tanto quanto instigante, vejamos. 
 
O CC de 1916 concebia a Pessoa Jurídica de maneira mais rígida, como podemos comprovar 
mediante simples leitura de seu art. 205, que versa que não se confunde a pessoa jurídica com 
as pessoas de seus componentes. 
 
A despeito desta peculiaridade, o jurista Rubens Requião, considerado o pioneiro no estudo do 
tema, com sua afamada conferência denominada "Abuso de direito e fraude através da 
personalidade jurídica", deu o primeiro e maior passo em direção à implantação deste 
mecanismo no Brasil. 
 
Após muitos anos de aplicação alicerçada majoritariamente na doutrina inserida por Requião, 
a positivação do instituto em nosso ordenamento deu-se com o Código de Defesa do 
Consumidor (art. 28 da lei 8.078/90). Novas hipóteses de desconsideração surgiram em outros 
diplomas, como o art. 18 da lei antitruste6 e na lei 9.605/98, que versa sobre prejuízos 
ambientais, até que fora finalmente inserido no CC de 2002, de maneira mais ampla e clara, 
em seu art. 507. 
 
Como pode-se perceber, o mecanismo da desconsideração foi consagrado em nossos 
dispositivos legais recentemente, e devido a este fato, nos deparamos com uma jurisprudência 
oscilante no tocante à sua aplicação, o que tornava necessária a inserção deste disposit ivo no 
Novo CPC (lei 13.105/15). 
 
Neste ponto, cumpre ressaltar dois elementos do emprego deste dispositivo que ainda não 
encontravam alicerces estáveis em nossa legislação. O primeiro deles aparece com o intuito 
de reforçar que não se trata de ato arbitrário do juiz, posto que devem ser observadas as 
formalidades legais para seu correto emprego, que serão ratificadas e melhor delimitadas pelo 
novo diploma processual, como veremos em seguida. Em segundo lugar, a aplicação deste 
instituto não constitui, de forma alguma, causa de extinção da pessoa jurídica. Embora se 
esteja penetrando o véu que a envolve, a aplicação deste incidente somente deixa de lado, 
temporariamente, a distinção entre as pessoas dos sócios e a pessoa jurídica que conformam. 
 
A despeito desses princípios de aplicação, no entanto, ainda se vê na prestação jurisdicional 
brasileira o emprego indistinto deste dispositivo, e isso se deve, sobretudo, ao fato de que 
seusalicerces são, ainda, excessivamente casuísticos. Muito embora até existam critérios 
sensíveis à aplicação do instituto, sob a ótica da teoria do abuso da personalidade - tanto no 
desvio de personalidade quanto no desvio patrimonial - tais critérios são ignorados, aplicando-
se por regra a teoria menor mitigada de forma que basta a dificuldade na localização de bens 
para que a execução recaia sobre bens da pessoa natural, o que não parece em muitas 
situações razoável. Não há definição clara e segura de quais são os critérios para que se 
aplique a desconsideração da personalidade jurídica, o que coloca em risco não somente o 
tocante à pessoa jurídica, mas também direitos materiais de pessoas naturais e pode, ainda, 
desestimular a atividade empresarial como um todo. 
 
Reconhecer a autonomia da pessoa jurídica não pode se confundir com tolerância e 
complacência diante de seu uso para fins fraudulentos e ilícitos. Tendo isto em tela, e a fim de 
apaziguar um pouco o uso excessivamente empírico deste mecanismo, o novo CPC pretende 
organizar garantir às partes do processo maior lisura em sua aplicação. 
 
4. O Instituto no novo CPC 
 
O novo diploma processualista contará com um capítulo autônomo para disciplinar a aplicação 
do instituto, qual seja, o capítulo IV do título II, denominado justamente "Do Incidente de 
Desconsideração da Personalidade Jurídica". 
 
A redação que terá o art. 133 do novo CPC8, que tratará desse incidente, deve enterrar de uma 
vez por todas a tese de que o mecanismo jurídico deve ser operado mediante ação autônoma 
na justiça, posto que o texto permite ao juiz, em qualquer processo ou procedimento, aplicar o 
instituto. 
 
Interessante anotarmos, no entanto, que embora refute essa tese, a postura adotada no 
novo codexacaba por aproximar-se dela, a medida que determina a citação do polo passivo do 
incidente, que contará com o prazo regular de 15 dias para se manifestar9. 
 
Essa alteração também exclui a possibilidade de se aplicar a desconsideração da 
personalidade jurídica ex oficio, posto que o incidente procederá com a citação do polo 
passivo, como já dissemos, e será resolvido por intermédio de decisão interlocutória que 
poderá ser desafiada por Agravo de Instrumento10. 
 
Esse conjunto de mudanças processadas no sentido de garantir o contraditório no 
procedimento de desconsideração da personalidade jurídica pode dar a impressão de que o 
novo Código se preocupou em demasia com a segurança patrimonial dos sócios a serem 
executados. 
 
Nesse diapasão, cumpre ressaltar, no entanto, que não há elementos que impeçam o 
magistrado de, no exercício de seu poder geral de cautela, conceder tutela que aproxime a 
aplicação do dispositivo à resolução útil do processo.11 
 
As alterações no tocante à aplicação do mecanismo sobre o qual trata este artigo terão pouco 
efeito em relação a casos em que for concedida tutela de urgência pelo juiz. Suponhamos que, 
durante uma execução, o credor solicite tutela de urgência contra devedores cuja situação 
conforme-se em caso de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica. 
 
Nesse caso, esse credor poderá exigir a constrição dos bens dos devedores? A resposta é 
sim, para garantir a persecução do resultado útil do processo, inalterado, portanto, o regime do 
poder geral de cautela do juiz. 
 
Ao mesmo tempo, foram inseridos dois incisos no referido artigo. O segundo deles nos chama 
a atenção, posto que trata de outra modalidade de desconsideração da personalidade jurídica, 
na qual quem comete ato fraudulento e desviado de sua finalidade é o sócio, e não a 
administração da empresa em si. 
 
Nesse caso, aplica-se o que convencionou-se chamar de desconsideração da personalidade 
jurídica inversa, posto que, neste caso, os bens do sócio são o alvo da execução, e é 
necessário desconsiderar-se a personalidade justamente para que a jurisdição possa atingi-
los. 
 
Já no art. 134, reforça-se o tratamento incidental que é conferido à disregard doctrine no novo 
código processualista, posto que reitera o fato de que sua aplicação "é cabível em todas as 
fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e também na execução 
fundada em título executivo extrajudicial". 
 
O grande temor dos aplicadores está no fato de que hoje o Instituto é aplicado de forma ágil, 
porém em muitas situações de forma desarrazoada. Com a nova sistemática, deverá ganhar 
em razoabilidade, mas poderá perder em agilidade. Será que a aplicação predominantemente 
doutrinaria e casuística não ganhava em celeridade o que se perdia em razoabilidade? Será 
que essa possível perda em celeridade não poderia prejudicar a efetividade do instituto, ao 
contrário do que pretendeu o legislador quando lançou mão das novas regras? 
 
Na prática, sempre pretendemos o melhor dos mundos, ou seja, razoável e efetiva. O que se 
observa, em muitas ocasiões, é que o ritualismo e o procedimentalismo inibem a efetividade. 
Só o tempo dirá. Até o próximo Registralhas! 
 
5. Bibliografia 
BORBA, José Edwaldo Tavares, Direito Societário, 9ª ed., Rio de Janeiro, Renovar, 2004. 
COSTA, Daniel Carnio, Considerações sobre o poder geral de cautela, Revista Científica 
Integrada – Unaerp Campus Guarujá – Ano 1 – Edição 1 – Março/2012 
SILVA, Caio Mario Pereira da, Instituições de Direito Civil, v. I, 20ª ed., Rio de Janeiro, 
Forense, 2004. 
_________ 
1 C. M. P. da SILVA, Instituições de Direito Civil, v. I, 20ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2004, pp. 297-298. 
2 Art. 45: Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no 
respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-
se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo. 
3 C. M. P, da SILVA, Instituições cit. (nota 1 supra), p. 277. 
4 J. E. T. BORBA, Direito Societário, 9ª ed., Rio de Janeiro, Renovar, 2004, p. 33. 
5 Código Civil de 1916, Art. 20, caput: “As pessoas jurídicas tem existência distinta da dos seus membros”. 
6 Lei n. 8.884/94. 
7 Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão 
patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no 
processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens 
particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica. 
8 Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do 
Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo. (Lei nº 13.105/2015) 
9 Art. 135. Instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as 
provas cabíveis no prazo de 15 (quinze) dias. (Lei nº 13.105/2015) 
10 Art. 1.015, IV da Lei 13.105/2015 
11 D. C. COSTA, Considerações sobre o poder geral de cautela, Revista Científica Integrada – Unaerp Campus 
Guarujá – Ano 1 – Edição 1 – Março/2012.