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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS ESCOLA BRASILEIRA DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEPARTAMENTO DE ENSINO CURSO DE MESTRADO EM ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA A MODERNIZAÇÂO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA NO CONTEXTO DO ESTADO DISSERTAÇÃO APRESENTADA À ESCOLA BRASILEIRA DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA PARA A OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE EM ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA HUMBERTO F ALCÃO MARTINS Rio de Janeiro, 1995. FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS ESCOLA BRASILEIRA DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DEPARTAMENTO DE ENSINO CURSO DE MESTRADO EM ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA A MODERNIZAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA NO CONTEXTO DO ESTADO E DISSERTAÇÃO DE MESTRADO APRESENTADA POR HUMBERTO FALCÃO MARTINS APROVADA EM 30.08.95 PELA COMISSÃO EXAMINADORA PAULO REIS VIEIRA Doutor em Administração Pública (PhD) ~ÃO Mestre em Administração Pública ~----------_.-.- Martins, Humberto Falcão. A modernização da administração pública brasileira no contexto do estado / Humberto Falcão Martins. - 1995. xiii,206f. Orientador: Paulo Reis Vieira. Dissertação (mestrado) - Escola Brasileira de Administração Pública, Departamento de Ensino. Inclui bibliografia. 1. Modernização administrativa - Brasil. 2. Administração Pública - Brasil. I. Vieira, Paulo Reis. 11. Escola Brasileira de Administração Pública. Departamento de Ensino. III. Título. CDD-353.073. 1ll RESUMO E sta monografia procura contribuir para a sustentação da proposição segundo a qual uma das condições de efetividade da modernização da administração brasileira reside no seu caráter associativo entre racionalidade política e racionalidade administrativa dos sistemas burocráticos estatais. Conforme este argumento, os processos e iniciativas de modernização da administração pública brasileira não podem, sob pena de tomarem-se disfuncionais, concentrar-se em medidas que VIsam a aumentar exclusivamente a racionalidade funcional do sistema administrativo estatal, restritas à aspectos instrumentais. Isto porque o estado, cuja natureza é essencialmente política, requer, para legitimar-se mediante a formulação e implementação de políticas públicas efetivas, uma estrutura administrativa permeável e integrada ao sistema político, ao qual cabe, pela prática democrática, a enunciação dos valores sociais da busca do bem estar. Há uma dialética na modernização político-administrativa do estado segundo a qual o incremento da racionalidade política da burocracia não decorre apenas da modernização política do País, mas depende essencialmente de atributos inerentes ao sistema burocrático. Esta proposição parte do delineamento de um quadro problematizante relativamente aos desafios do estado social contemporâneo, centrado no que se convencionou chamar de crise do estado e crise da administração pública. O delineamento deste quadro parte da elaboração das seguintes assertivas: a legitimidade do estado social, decorrente da efetividade de suas ações, é intimamente dependente da administração pública; a crise do estado se coloca essencialmente como uma crise de eficiência e efetividade do estado, não apenas de seu aparelho; e o equacionamento da crise do estado requer o enunciamento de seus requisitos funcionais enquanto ator social, promotor de transformações. O que se convencionou chamar de crise da administração pública, reporta-se à incapacidade político-administrativa ~ o estado em deliberar e, efetivamente, implementar aquilo que seja definido como certo para o bem-estar dos cidadãos. Em síntese, argumenta-se que a crise da administração pública não é uma crise puramente administrativa; e sua superação está condicionada ao incremento da racionalidade política e administrativa do estado de uma maneira integrada. I t I f J IV A sustentação da proposição em questão segue três linhas de argumentação: uma teórico-interpretativa, uma histórica e outra situacional. A sustentação teórica concentra-se em três pontos. Primeiro, procura delinear um conceito genérico de modernização da administração pública a partir de uma abordagem crítica da modernização, que implica em qualificar os atributos do conceito corrente de modernização -racionalização instrumental, determinismo e transformismo-, segundo os quais a modernização se reduz à absorção de expressões da modernidade alheia. De forma análoga, a modernização da administração pública está impregnada da idéia de absorção de paradigmas daquilo que se apregoa como boa administração pública, ao invés da sua construção segundo requisitos críticos peculiares. O segundo ponto consiste na identificação, no pensamento teórico sobre administração pública, dos três principais paradigmas dominantes de boa administração pública: um ortodoxo, centrado na construção institucional de uma administração pública segundo o molde weberiano clássico; um liberal, desestatizante, desregularizante e centrado numa administração pública mínima sob estreito controle político do mercado; e um empresarial, centrado na adoção de métodos. de gestão e avaliação empresariais em organizações públicas. Constata-se que estes modelos não se baseiam numa visão integrativa entre política e administração: o ortodoxo contrapõe leis a procedimentos administrativos, valores a fatos, políticos a burocratas; o liberal contrapõe política ao estado, este e cidadãos às organizações públicas; e o empresarial contrapõe o mercado às organizações públicas, a gestão eficiente ao estado. O terceiro ponto procura delinear um modelo de boa administração pública que integre política e administração, enunciado a partir de contribuições da crítica meta-teórica às teorias de administração pública e a partir de uma visão integrativa de ação administrativa -especificamente, do modelo da racionalidade tridimensional contraditória, de Clauss Offe. O delineamento de um modelo integrativo entre política e administração permite, ademais, que se explicitem as limitações dos três principais modelos de administração pública presentes na teoria. A sustentação histórica consiste em explicitar, na experiência brasileira, um modelo de modernização da administração pública dissociado do contexto político do estado. Esta afirmação é sustentada pela caracterização de cinco principais momentos da experiência modernizante brasileira. No primeiro período (1808-1930), denominado administração tradicional, busca- v se caracterizar as bases culturais e institucionais sobre as quais o estado e a administração pública brasileiras foram erigidas, qualificando-se suas raízes lusitanas, principalmente com a chegada da corte portuguesa ao Brasil. O segundo período (1930-1945), denominado modernização daspeana, caracteriza a implementação administrativa de um estado moderno no Brasil, mediante a implantação de um padrão de racionalidade funcional na administração pública de uma forma autoritária, alheia à política. O terceiro período (1945-1964), denominado a administração paralela, caracteriza o retomo do domínio do estado às articulações político-partidárias e representa, além do desfalecimento da racionalidade instrumental, a implantação de padrões de irracionalidade política sobre a administração pública. O quarto período (1964-1985), denominado administração para o desenvolvimento, é marcado pelo regime militar, onde se implantou um padrão tecnocrático de racionalidade instrumental na administração pública, avesso à política. O quinto momento (1985-1989), denomina-se a era da desmodernização porque representa, por um lado, a emergência dos efeitos disfuncionais do modelo anterior, e, por outro, a retomada da administração pública pela política segundo padrões disfuncionais. A experiência brasileira de modernização da administração pública revela uma relação disfuncional entre burocracia e democracia. Por outro lado, consolidou uma cultura, um modelo de mudança e uma imagem da boa administração pública instrumentais, restritas à modernização administrativa, dissociadas do contexto político do estado. Este fato contribuiu para acelerar e expandir a disfullcionalidade do sistema administrativo brasileiro e constituiu-se num empecilho à reconstrução de uma administração pública para a democracia. Por fim, a sustentação situacional procura demonstrar que os problemas estruturais que afligem a administração pública brasileira na sua configuração atual não são exclusivamente administrativos, de natureza puramente técnica, mas também reportam-se ao contexto político do estado, que se impõem de maneira defensiva ou impositiva sobre burocracia governamental. Esta abordagem procura problematizar as principais variáveis organizacionais da administração pública federal relativas à burocracia pública e ao sistema político. As variáveis relativas à burocracia agrupam-se em funcionalismo -aspectos quantitativos, garantias do regime jurídico, estrutura de cargos, ingresso, plano de carreira, formação e treinamento, avaliação de desempenho, promoção e mobilidade, e remuneração--, estrutura e recursos organizacionais --estrutura organizacional, informação e informatização, VI gestão de recursos organizacionais e órgão central de administração-- e a aspectos da gestão governamental -presidência da república, planejamento governamental e avaliação e controle. As principais variáveis estruturais do sistema político são sistema representativo, regime federativo e sistema de governo. Estas problematizações possibilitam a identificação da natureza política de disfunções estruturais administrativas e as implicações administrativas de disfunções estruturais políticas. Algumas considerações finais são elaboradas a título de requisitos funcionais do processo de modernização da administração pública brasileira, partindo-se do pressuposto de que a noção de modernização administrativa se revela altamente inadequada para se enunciar problemas e alternativas de superação do impasse criado pelo estágio atual da burocracia governamental brasileira relativamente aos desafios de se construir um estado democrático no Brasil. As iniciativas modernizantes devem visar ao incremento da racionalidade administrativa e da racionalidade política da burocracia pública. A iniciativa de se esboçar tentativamente o contorno conceitual de modelos integrativos é necessária porque a disciplina ainda carece de um esforço sistemático que rearrume as diversas nuanças em tomo de modernização da administração pública de modo que se possa captar sua real dimensão e - alcance conceitual. Por outro lado, conforme se pretendeu demonstrar, reformas administrativas unilaterais, centradas exclusivamente na implantação de padrões de racionalidade instrumental administrativa nas estruturas administrativas de decisão e implementação do estado, têm efeitos efêmeros e limitados. Vil APRESENTAÇÃO Esta monografia representa parte de uma trajetória que, no momento, completa treze anos. Uma rápida história desta trajetória -embora atentando contra a preferível brevidade das apresentações- será útil para a compreensão da minha motivação em escrevê-la, do seu enfoque e das suas limitações. Em março de 1982, na prImelra aula do curso de graduação em Administração na Universidade de Brasília, o professor discursava, complementarmente ao tradicional prólogo inaugural, sobre a perda recente de Alberto Guerreiro Ramos. A desolação de Gilberto Tristão, compartilhada por outros professores, aguçou a minha curiosidade. Mergulhei em suas obras, compartilhei discussões e dúvidas com colegas e professores. Nunca mais me livrei do desassossego de tentar situar criticamente as teorias e experiências no campo da administração pública em contextos mais amplos, quer com relação aos objetos de estudo, quer do ponto de vista epistemológico. Guerreiro Ramos foi um crítico do mundo, arguto, inquietamente interessado na transformação e, talvez por isso, algumas vezes sarcástico com a miséria intelectual humana. Por outro lado, foi um brasileiro que, orgulhoso de suas raízes, acreditava na afirmação do Brasil como País e cultura. Sua contribuição para as ciências sociais foi original, profunda e complexa, tanto pelo que deixou escrito quanto pelo que deixou a escrever -Wilson Pizza me relatou que Guerreiro Ramos lhe confidenciara, pouco antes de falecer, que se sentia, enfim, preparado para começar a escrever sua obra, que até então vinha sendo elaborada mentalmente. Em particular, a contribuição de Guerreiro Ramos para o campo de estudo da administração pública brasileira - principalmente a partir de Administração e Estratégia de Desenvolvimento- é mais que um marco, é um universo em expansão. Rompeu o casulo da tecnicalidade, cuja exclusividade tanto empobrecia quanto restringia os efeitos práticos do conhecimento na área, e ampliou, através da sua perspectiva crítica, a relevância e o alcance da disciplina. Guerreiro Ramos influenciou profundamente minha formação. Devo- lhe a convicção de que a crítica da razão organizacional pública brasileira é ~~ ~~~~-~~ -~---~ V11l essencial para a evolução da nossa sociedade. Esta convicção teria sido, todavia, bastante menos expressiva sem a contribuição da professora Beatriz Wahrlich, que, além de ter-me dado -na qualidade de testemunho vivo da modernização da administração pública brasileira- o privilégio de partilhar incontáveis e exclusivas horas de discussão, legou-me a memória da sua inconfundível amabilidade de ensinar. Ao longo desta trajetória, a crise do Estado brasileiro mostrou suas faces. A crise fiscal foi até recentemente combatida mediante uma enxurrada de planos econômicos que visavam à estabilidade macroeconômica a partir do controle da inflação e das contas públicas. Após inúmeros sobressaltos e seguidos fracassos, a crise fiscal parece estar, agora rumando a um equacionamento racional -se bem que em caráter precário, no âmbito do Plano Real. A crise política teve nuanças de governabilidade, impasses institucionais e deliberações de questionável racionalidade e legitimidade. De uma ou de outra forma, ainda que perdurem alguns impasses e ruídos na governança e na governabilidade, o sistema político se democratizou e amadureceu na última década. Mas, entre as outras facetas da crise do Estado brasileiro, uma ainda carece de ação específica e atenção científica. Trata-se da crise burocrática, a silenciosa e progressiva destruição da capacidade de ação estatal, de formulação e implementação de políticas públicas, aguçada pelos efeitos colaterais dos ajustes fiscais e da redemocratização sobre a burocracia estatal. A crise burocrática tem sido, ademais, sucessivamente mal equacionada, mal resolvida e, conseqüentemente, agravada. Duas percepções se me afiguraram deste quadro de problemas. Uma é a de que a crise do Estado brasileiro não deve ser enunciada, tampouco tentativamente resolvida, a partir de apenas uma de suas facetas, senão mediante uma abordagem integrativa de seus principais pilares: econômico- fiscal, político-institucional e burocrático-administrativo. Com efeito, a sistemática falta desta percepção, evidenciada na prática de políticas de ajuste exclusivamente fiscal ao longo da última década, contribuiu decisivamente tanto para o sucateamento da burocracia pública quanto para o declínio da legitimidade das políticas públicas -em especial da política econômica. Não obstante, o reducionismo economicista presente tanto na percepção quanto no padrão de intervenção de índole tecnocrático-fiscal, direcionados para o curto - -~ IX e médio prazos, contribuiu significativamente para a falência do planejamento governamental brasileiro. A outra percepção consiste em que a crise burocrática do estado não se restringe à administração pública no sentido restrito do seu aparelho, senão ao contexto político-administrativo do estado. Por essas razões, a proposição central desta monografia tem ocupado lugar central nas minhas preocupações como cidadão e na minha produção acadêmica e profissional ao longo deste período. Considero esta contribuição uma parte até o momento executável, de um interesse que aqui não se esgota, apenas procura, dentro de muitas limitações, se aprofundar sistematicamente. Há, portanto, neste intento, restrições sobre as quais caberiam necessários comentários, principalmente relativas ao alcance e ao grau de aprofundamento dos temas aqui abordados. Busquei desenvolver três linhas de sustentação de uma proposição central, mediante a preocupação de relacioná-las à proposição, não de esgotá- las, ao todo ou isoladamente, na sua especificidade -alternativa esta que, embora melhor enquadrada nos preceitos da bula acadêmica, não me pareceu possível, haja vista a amplitude da proposição. Preferi correr o risco de mapear contornos gerais de um fenômeno, do que me aprofundar em um de seus aspectos e obscurecer sua percepção geral. No sentido metodológico, o risco de se perder o todo no aprofundamento da especificidade das partes foi, acredito, maior do que o de se perder o aprofundam(!nto das partes em prol de uma visão de conjunto, de teoria e prática. No conjunto das abordagens que se seguem, há dois sentimentos necessários de ser declarados. O primeiro é uma convicção antifatalista e antideterminista, de que a realidade poderia ser bem melhor, no sentido de que assim será se houver uma melhor ação e entendimento sobre o que se deseja, se houver um melhor aprendizado sobre a natureza dos erros e acertos que afetam a nossa realidade -em particular a realidade da administração pública brasileira. O segundo sentimento é de que o conhecimento deve estar engajado com o aperfeiçoamento humano, na escala social e individual. É nesse sentido que a boa administração pública é enfocada como um ideal, uma utopia, necessária, enquanto tal, ao aprimoramento da vida humana e social. Partilho, neste sentido, da crença segundo a qual a "relevância da pesquisa em administração pública está muito menos na contribuição para o 'avanço da ciência administrativa' do que na obrigação de 'fazer uma diferença para x melhor' na vida dos que serão afetados pelos resultados dos projetos de . . pesqUIsa. " É necessário e justo que fique consignada uma menção de dívida e agradecimento a várias pessoas cujo apoio foi determinante à conclusão desta monografia. Primeiramente, à minha mulher, Jane, e aos meus filhos Pedro, Laura e Marcos, que se privaram da minha presença durante incontáveis horas de convívio familiar, devo o estímulo e a alegria de vida necessários à perseverança. Aos meus colegas da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, devo valorosas críticas e sugestões a fragmentos desta monografia, que foram, em diferentes momentos, por mim apresentados sob a forma de papers relacionados à discussão de problemas nacionais. A Reneé Maia e Marinilda de Almeida, devo a prestimosa colaboração na digitação e revisão de vários trechos desta monografia, bem como na confecção de quadros e tabelas. A Helcio Martins, meu pai, devo a atenta e cuidadosa revisão final do texto. Por fim, mas não menos importante, aos Professores Paulo Reis Vieira e Gilberto Tristão, devo o apoio determinante de mestres e amigos, sem o qual esta monografia jamais teria sido concluída. • Humôerto Falcão Martins Brasília, 28 de maio de 1995 . P. R. Vieira & A. M. Campos, "Em Busca de uma Metodologia de Pesquisa Relevante para a Administração Pública" (Revista de Administração Pública: 14(3): 1 O 1-1 O, jul./set. de 1980). Xl ÍNDICE RESUMO •••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••.••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••• 111 APRESENTAÇÃO •••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••• VII RELAÇÃO DE QUADROS E TABELAS •••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••.••••.•••••••••••••••••••••••••••••••••••••• Xlll I - O ESTADO SOCIAL CONTEMPORÃNEO E A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ••••••••••••••••••••••••••••••••••••• 16 A Evolução para o Estado Social: a Legitimidade como Limite ............................................... 18 A Crise do Estado: Críticas e Contradições ............................................................................... 21 O Estado como Ator e Seus Requisitos Funcionais Básicos ..................................................... 23 A Crise da Administração Pública ............................................................................................. 27 11 - MODERNIZAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: UMA INTERPRETAÇÃO TEÓRiCA •••••••••••••••• 37 Uma Visão Critica da Modernização ..................................................................•.....•..•..•....••..•.•... 39 Modernidade e Racionalidade ................................................................................................... 39 Determinismo Versus Possibilidade .......................................................................................... 45 ).' Autodestruição Inovadora Versus Construção Inovadora ......................................................... 51 Modelos de Administração Pública ............................................................................................... 53 Uma Visão Ortodoxa da Administração Pública ....................................................................... 54 Uma Visão Liberal da Administração Pública .......................................................................... 56 Uma Visão Empresarial da Administração Pública ................................................................... 59 Em Busca da "Boa Administração Pública" ...................•................................•........................... 66 O Modelo da Racionalidade Tridimensional Contraditória ....................................................... 67 Princípios da "Boa Administração Pública" .............................................................................. 74 111 - A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA DE MODERNIZAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLiCA ••••••••••••••••• 81 A Trajetória Modernizante da Administração Pública Brasileira ..........•..•........................••.••..... 83 De 1808 a 1930: a Administração "Tradicional" ...................................................................... 83 De 1930 a 1945: a Modernização "Daspeana" .......................................................................... 89 De 1945 a 1964: o Advento da "Administração Paralela" ........................................................ 95 De 1964 a 1985: "Administração Para o Desenvolvimento" .................................................. 100 De 1985 a 1994: a "Era da Desmodernização" ....................................................................... 108 Xll A Modernização Incompleta: O Modelo Brasileiro de Modernização da Administração Pública .......................................................................................................................................... 115 O Contexto Político do Estado ................................................................................................ 116 O Contexto da Burocracia e sua Implementação ..................................................................... 120 IV - PERFIL CRÍTICO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA ••••••••••••••• 130 O Contexto da Burocracia Pública Brasileira Contemporânea ................................................. 131 Funcionalismo ......................................................................................................................... 132 Aspectos Quantitativos ...................................................................................................... 133 Regime Jurídico ................................................................................................................. 135 Estrutura de Cargos ............................................................................................................ 138 Ingresso .............................................................................................................................. 141 Plano de Carreira ............................................................................................................... 143 Formação e Treinamento ................................................................................................... 143 Avaliação de Desempenho ................................................................................................ 145 Promoção e Mobilidade ..................................................................................................... 146 Remuneração ..................................................................................................................... 146 Estrutura e Recursos Organizacionais ..................................................................................... 148 Estrutura Organizacional ................................................................................................... 149 Informação e Informatização ............................................................................................. 150 Gestão de Recursos Organizacionais ................................................................................. 152 Órgão Central de Administração ....................................................................................... 155 Gestão Governamental ............................................................................................................ 157 Presidência da República ................................................................................................... 158 Planejamento Governamental ............................................................................................ 161 Avaliação e Controle ......................................................................................................... 165 O Contexto PoJ(tico do Estado ......................................................•............................................. : 167 Perfil da Disfuncionalidade ......................................................................................................... 175 V - EM BUSCA DE REQUISITOS FUNCIONAIS DA MODERNIZAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA ••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••• 181 BIBLIOGRAFIA •••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••• 189 Xlll RELAÇÃO DE QUADROS E TABELAS Quadro 1- TEORIA "N" VERSUS TEORIA "P" ......................................................................................... 49 Quadro 11- ORIENTAÇÃO DOS PARADIGMAS DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ......................................... 65 Quadro 1Il- ORIENTAÇÃO DA BOA ADMINISTRAÇio PÚBLICA ................................................................ 66 Quadro IV-CONCEITO DE RACIONALIDADE TRIDIMENSIONAL CONTRADITÓRIA ................................ 68 Quadro V-MODELO INTEGRA T1VO DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ....................................................... 70 Quadro VI- FATORES DE RACIONALIDADE DOS PARADIGMAS DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLiCA .............. 71 Quadro VII- QUANTITATIVO DE PESSOAL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA FEDERAL.. ......................... 133 Quadro VIII - EFETIVO PÚBLICO FEDERAL COMPARADO .................................................................... 134 Quadro XI- ESTABILIDADE ORGANIZACIONAL DE GOVERNOS RECENTES .......................................... 149 Quadro X- PLANEJAMENTO TECNOCRÁ T1CO VERSUS PLANEJAMENTO DEMOCRÁTICO ....................... 164 14 Em memória de Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982) e Beatriz Marques de Souza Wahrlich (1915-1994). 15 "Cada teoria f .. social] digna desse nome precisa responder a duas perguntas: em primeiro lugar, qual a forma desejável de organização da sociedade e do Estado e como podemos demonstrar ser ela 'exeqüível', ou seja, consistente com as nossas hipóteses normativas e efetivas sobre os processos sociais? O problema é definir um modelo consistente ou uma meta de transformação. Em segundo lugar, como chegaremos lá? O problema aqui é identificar as forças dinâmicas e as estratégias que podem trazer a transformação. " Claus Offe "O que confere racionalidade às práticas administrativas não é a sua forma aparente, nem o seu significado intrínseco, mas a função positiva que realizam na estratégia adequada para atingir determinado objetivo concreto, socialmente desejado. " Guerreiro Ramos 16 I o ESTADO SOCIAL CONTEMPORÂNEO E A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA A Evolução para o Estado Social: a Legitimidade como Limite A Crise do Estado: Críticas e Contradições O Estado como Ator e Seus Requisitos Funcionais Básicos A Crise da Administração Pública 17 O objetivo deste primeiro capítulo é desenvolver um quadro geral de problemas, de caráter universal, que inspiraram a proposição central desta monografia. Trata-se de descrever o cenário no qual a administração pública contemporânea se apresenta: o estado social, seus atributos, contradições, críticas, desafios e aspectos críticos que concemem aos sistemas político-administrativos. o estado capitalista democrático contemporâneo proporciona, sua face de estado de direito, garantias e direitos individuais e coletivos e, na sua face de estado social, impõe ações deliberadas no sentido de se atingir, mediante a promoção de políticas públicas efetivas, o bem-estar do cidadão. Independentemente de seu grau de intervenção, o estado contemporâneo necessita, no primeiro sentido, de boas leis; e, no segundo, de boa administração pública. A legitimidade do estado social, decorrente da efetividade de suas ações, é o seu limite. A ação estatal contemporânea é, portanto, intimamente dependente da administração pública, que, neste contexto, se coloca como instrumento e condição de legitimação, não como uma variável dependente de arranjos mais ou menos intervencionistas. Neste contexto, a despeito de posições extremadas em tomo do que se convencionou chamar de crise do estado, que se concentram na busca de soluções polarizadas em tomo de menos estado ou mais estado, a crise do estado se coloca essencialmente como uma crise de eficiência e efetividade não apenas de seu aparelho. Enfocar a crise do estado social contemporâneo, a partir de suas críticas e contradições elementares não implica, em princípio, na discussão sobre menos ou mais estado, senão sobre melhor ou pior estado. Tomando-se como pressuposto de que a legitimidade do estado contemporâneo decorre de sua ação, não de sua inação, tanto na direção do bem-estar quanto das salvaguardas dos direitos e garantias individuais e coletivas, o equacionamento da sua crise requer o enunciado de seus requisitos funcionais enquanto ator social, promotor de transformações sociais. A implementação burocrática do estado ator é o requisito funcional mais essencial. Os sistemas burocráticos públicos cresceram e se diferenciaram pari passu à evolução do estado, de modo a processar soluções para lidar com problemas cada vez mais complexos. Os sistemas burocráticos do estado social 18 capitalista desenvolveram uma notável capacidade de gerar resultados positivos para o bem estar, mas, também, um enorme potencial de gerar crise: de eficiência, de eficácia, de efetividade. O que se convencionou chamar de crise da administração pública, reporta-se, no contexto do que também se convencionou chamar de crise do estado, à incapacidade político- administrativa de deliberação e, efetivamente, implementação daquilo que seja definido como certo para o bem-estar dos cidadãos. A crise da administração pública não é uma crise puramente administrativa, sua superação está condicionada ao incremento da racionalidade política e administrativa do estado de uma maneira integrada. Este é um desafio teórico e prático que deverá orientar a construção, aplicação e análise de modelos de modernização da administração pública. A EVOLUÇÃO PARA O ESTADO SOCIAL: A LEGITIMIDADE COMO LIMITE O estado, enquanto forma instituída de organização política, é uma invenção inacabada. O advento da era moderna, marcada pela transição da renascença ao capitalismo industrial, incorporou significativas mudanças qualitativas ao estado, que até então se restringia ao caráter militar e religioso, imbricado nas conquistas territoriais e na dominação secular medievais. A evolução do estado ao longo da história recente apresenta dois momentos distintos no que concerne ao seu caráter dominante e às formas de integração do seu aparato administrativo à sociedade: o estado moderno, marcado pelo advento do estado de direito, e o estado contemporâneo, caracteristicamente um estado social. O estado moderno, como ordem expressamente política, surgiu como forma de organização centralizada do poder fundado nos princípios da territorialidade da obrigação política e da impessoalidade do comando político, que, originado na Europa no século XIII, se estendeu a todo o mundo civilizado. Sua evolução foi condicionada pela mudança no caráter do poder político, que marcou a transição da europa feudal para a moderna, a partir da ruptura da respublica christiana, caracterizada pela cisão da unidade político- religiosa para uma concepção universalista de república oriunda de Cícero - 19 que consiste no interesse comum a uma lei comum como único direito pelo qual uma comunidade afirma sua justiça. I Esta passagem transforma o estado em projeto racional da humanidade, conferindo novo caráter institucional às relações sociais de poder: sua organização mediante procedimentos técnicos estabelecidos, instituições e administração, para a prevenção e neutralização de conflitos e atingimento de finalidades materiais, que suas forças dominadoras reconhecerem como próprias e impuserem como gerais a todo país. o surgimento do estado de direito foi fortemente influenciado pelos ideais de liberdade política e econômica e de igualdade de participação dos cidadãos, não mais súditos, ideais estes que marcaram o advento da sociedade civil. A legalidade passa a ser o caráter essencial do estado de direito, atributo da sujeição à lei, como forma de manutenção da ordem, não mais baseada na defesa do conflito social e na garantia das liberdades, de forma não subjetiva. O estado de direito, gerenciado pela burguesia, tornaria possível a sobrevivência da sociedade civil, empregando meios cada vez mais sofisticados de organização e controle da ordem constituída dentro da doutrina democrática, como parlamentarismo e partidos de massa. O estado de direito não preconizava, portanto, um forte esquema administrativo, senão nas suas funções legislativas e judiciárias. Desta forma, as relações entre estado e sociedade tinham como canal quase que exclusivo a representatividade política e a infiltração da burguesia no aparelho do estado. O surgimento do estado social atendeu a uma demanda da sociedade civil capitalista e deu-se a partir da instituição de formas democráticas representativas e como percepção e resposta política às necessidades das classes subalternas emergentes. A retomada, por parte do estado e do seu aparelho, de uma função de gestão direta da ordem social, sobretudo da ordem econômica, cujo andamento natural era agora posto em dúvida, tem início em meados do século XIX. O bem-estar voltou a ser o exercício mais prestigioso IVer Nicola Matteucci, "República"; Gustavo Gozzi, "Estado Contemporâneo" e Pierangelo Schiera, "Estado Moderno" in Dicionário de Política, Norberto Bobbio; Nicola Matteucci & Gianfranco Pasquino (Brasília: Universidade de Brasília, 1986), pp. 401, 425 e 1107. 20 da gestão do poder, embora não maIS em função declaradamente fiscal e político-econômica, como nos tempos do estado absoluto, mas devido a uma gradual integração do estado político com a sociedade civil, o que alterou significativamente o estatuto jurídico do estado. Já nas últimas décadas do século XIX, os estados que mais ativamente intervinham no processo de valorização capitalista, como na Alemanha e Inglaterra, implementavam políticas protecionistas, introduziam instrumentos de política monetária e adotavam programas e beneficios sociais, principalmente previdenciários. Nascia o welfare state, que marcaria profundamente o desenvolvimento do capitalismo no mundo ocidental. Ou, conforme pronuncia OFFE: "O Estado social é, historicamente, a combinação resultante de uma série de fatores, cuja composição varia de país a país. O reformismo social-democrático, o socialismo cristão, as elites esclarecidas da política conservadora, da economia e dos grandes sindicatos na indústria eram as forças mais importantes que lutaram por sistemas cada vez mais amplos de seguro social obrigatório, leis de proteção do trabalho, salários mínimos, ampliação de instituições de saúde e de educação e a construção habitacional subvencionada pelo Estado, assim como pelo reconhecimento dos sindicatos como representantes políticos e econômicos legítimos dos trabalhadores. Estes progressos ininterruptos nas sociedades ocidentais foram muitas vezes dramaticamente acelerados no contexto de intensos conflitos sociais e crises, sobretudo sob as condições da guerra e do pós-guerra. As instituições do Estado social, introduzidas dentro das condições da guerra e do pós-guerra, conseguiram se manter como permanentes e depois foram acrescidas de outras inovações, cuja introdução se tomou possível em épocas de bem-estar e economia crescente. É o seu caráter multi-funcional e a sua capacidade de servir, concomitantemente, a múltiplos objetivos, que tomam a organização política do Estado social tão atrativa para uma ampla coligação de forças heterogêneas"? A legitimidade é o principal atributo do estado social, como consenso acerca dos critérios qualitativos que orientam sua intervenção, pautado nos resultados de sua intervenção. No estado social, as premissas da ação são 2c. Offe, Trabalho e Sociedade - Problemas Estruturais e Perspectivas para o futuro da "Sociedade do Trabalho "(Volume 11; Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991), pp. 114-5. 21 resultados concretos na direção do bem-estar, demonstrando sua utilidade social, pela da gestão efetiva de seus recursos. A CRISE DO ESTADO: CRÍTICAS E CONTRADIÇÕES A problemática da relação entre estado e sociedade contemporânea situa-se no questionamento dos limites do estado social, redundando em um enorme leque de críticas e posicionamentos em tomo de questões específicas e gerais da intervenção estatal, ora prevalecendo seus aspectos econômico- fiscais, ora adquirindo matizes político-ideológicos em tomo da gestão da ordem social. Este tratamento tende a reduzir a discussão sobre os limites do estado social em tomo de abordagens sobre menos estado ou mais estado, sem se atentar que o núcleo desta questão não é quantitativo, mas qualitativo. A proporção da coexistência das formas do estado de direito com os conteúdos do estado social tem sido, nas sociedades organizadas, o grande desafio do estado contemporâneo. Por um lado, "os direitos fundamentais representam a tradicional tutela das liberdades burguesas: liberdade pessoal, política e econômica. Constituem um dique contra a intervenção do Estado. Pelo contrário, os direitos sociais representam direito de participação no poder político e na distribuição da riqueza social produzida. A forma do Estado oscila, assim, entre a liberdade e a participação". 3 A crítica conservadora ao estado social, mais facilmente posicionada à direita, insiste em tratá-lo como a doença que pretende curar: sua ação tende a agravar os conflitos da sociedade de mercado, em vez de harmonizá-los, impedindo que as forças do mercado funcionem adequadamente, basicamente devido a duas principais razões. Primeiro, o aparelho do estado social impõe ao capital uma carga de impostos e regulamentos que embotam e cerceiam os investimentos privados. Segundo, seus trabalhadores e sindicatos são beneficiados com direitos e privilégios que contribuem para a baixa produtividade, comparativamente aos padrões do mercado: "Estes efeitos levam à dinâmica do desenvolvimento decrescente e das expectativas crescentes, à 'sobrecarga de pretensões econômicas' (que conhecemos como inflação), assim como à 3E., Forsthoff, "Stato di Diritto in Transformazioni" (Milano: Giufrée,1973) apud G., Gozzi, 1986, op. cit., p. 401. 'sobrecarga de pretensões políticas' ('ingovemabilidade'), e, por conseguinte, um número cada vez menor de expectativas pode ser satisfeito pelos serviços sociais disponíveis. [ ... ] A conclusão importante que se pode tirar desse tipo de análise é que o estado social não é uma fonte isolada e autônoma de bem-estar que põe à disposição do cidadão, como um direito, rendas e serviços; ao contrário, ele próprio é altamente dependente da prosperidade e rentabilidade contínua da economia". 4 22 Por outro lado, a crítica da esquerda fundamenta-se na utilidade do estado social para as classes menos favorecidas e baseia-se em três pontos: o estado social é ineficaz e ineficiente; repressivo; e promove uma falsa ideologia na classe operária. Segundo esta crítica, sua pesada maquinaria redistributiva trabalha apenas no sentido horizontal, dentro da classe dos operários, não no sentido vertical, de maior mobilidade social. Ademais, o estado social não reduz a causa das necessidades e carências -como, por exemplo, a desorganização das cidades pelo mercado capitalista de imóveis, o desgaste da capacidade e da qualificação de trabalho, o desemprego, etc.-, mas apenas compensa parcialmente as conseqüências dessas ocorrências - suprindo serviços de saúde e seguros, subvenções habitacionais, organizações educacionais, auxílio desemprego, etc. Conseqüentemente, a ineficácia do estado social acentua a contínua ameaça de crise financeira, conseqüência, por sua vez, das descontinuidades cíclicas e estruturais do processo de acumulação capitalista.5 Outra fonte de ineficiência, ineficácia e repressão inerentes à estrutura do estado social está nos atributos da burocracia pública, que "absorve mais recursos e presta menos serviços do que outras estruturas democráticas e descentralizadas de política social poderiam fazer. Por isso, a razão da manutenção da forma burocrática de administração de serviços sociais, apesar da sua ineficiência e ineficácia, evidente para um número cada vez maior de observadores, deve estar relacionada com a função de controle social exercida pela burocracia centralizada do Estado social". 6 Em resumo, a crítica da 4c. Offe, 1991, op. cit., pp 117-8. 5/bid ,pp.122-3. 6/bid , p. 124. 23 esquerda alega que o estado social sena antes um melO para estabilizar a sociedade capitalista do que um passo para transfonná-Ia ou transcendê-la. Nenhum dos dois pólos de críticas assume as contradições do estado social capitalista contemporâneo, quer centrando-se em aspectos desta, quer enunciando seus pontos críticos e requisitos funcionais de uma maneira integral, confonne sentencia Offe: "O desagradável segredo do estado social reside em que, apesar do seu efeito sobre a acumulação capitalista poder muito bem tomar-se destrutivo ( como a análise conservadora demonstra tão enfaticamente), a sua eliminação seria evidentemente disruptiva (fato que a crítica conservadora sistematicamente ignora). A contradição consiste em que o capitalismo não pode coexistir com o estado social nem continuar existindo sem ele. [ ... ] Parece que o Estado social, apesar de atacado tanto pela direita quanto pela esquerda, não pode ser facilmente substituído por uma alternativa conservadora ou progressista". 7 Não obstante as discussões sobre a crise do estado social comportarem matizes de natureza diversa -v.g. de caráter político, sociológico, econômico etc.-, importa explorar um caráter específico da crise do estado: o desempenho, que consiste na crise de eficiência e de efetividade do estado social contemporâneo -mais relevante quando se coloca o estado numa perspectiva ativa, de ator social. o ESTADO COMO ATOR E SEUS REQUISITOS FUNCIONAIS BÁSICOS A tendência de enfocar o debate em tomo do estado social a partir da constatação de suas contradições básicas, tem relegado a um segundo plano as discussões ideológicas que se polarizam a respeito de sua crise econômico- fiscal e, por outro, da preocupação não menos pragmática com a efetividade do estado social, enquanto agente de transfonnações sociais. Nesse escopo, a mecânica da ação social do estado contemporâneo é, confonne demonstra Luciano Martins, decorrência de uma das contradições básicas do capitalismo: 7Ibid., pp. 122 e 127. "[ ... ] um Estado que intervém, enquanto ator, [articulando a manutenção] das relações de produção [com as] as relações de reprodução da sociedade, ou seja, ao nível da manutenção da sociedade capitalista e ao nível da passagem de um tipo a outro de sociedade capitalista. Por isso é que a intervenção típica do Estado capitalista é dirigida no sentido de manter artificialmente a forma mercadoria (através do welfare state, subsídios ao capital, reciclagem da força de trabalho, etc.) dos atores sociais que tenham perdido a capacidade de participar da relação de troca. Essa tarefa de estabilizar e universalizar a forma mercadoria --condição para reconciliar os "requisitos constitutivos divergentes" antes mencionados- os autores [Alain Tourraine, Claus Offe e V. Ronge] designam por administrative recommodification. No capitalismo contemporâneo a dificuldade consiste em superar as deficiências do mercado (dada sua fraca capacidade auto corretora) e, simultaneamente, as formas de welfare state utilizadas para tanto (dada a crise fiscal por elas provocada). Daí serem geradas novas formas de contradições internas ao capitalismo avançado. Uma dessas contradições seria que, na medida em que se amplia a ação do Estado para garantir e repor as relações de troca por via política e administrativa, as vastas estruturas burocráticas criadas para realizar essa função tendem a escapar à forma mercadoria.,,8 24 A teoria do estado-ator coloca o estado como um agente de transformações sociais, políticas e econômicas no contexto do capitalismo moderno9. É, nesse sentido, rotulado de neo-weberiano, porque pressupõe a capacidade de responder com efetividade e agilidade às demandas da sociedade civil. Mas a ênfase deste enfoque não se coloca na relação de utilidade funcional entre estado e cidadão-consumidor, senão na capacidade dos governos representativos em liderar, balisar, empreender, e mesmo tutelar processos modernizantes. Este papel fundamenta-se em dois argumentos básicos. Primeiro, o estado, enquanto organização, pode formular objetivos que não são simples reflexos das demandas ou interesses dos grupos SOCIalS, 8L. Martins, Estado Capitalista e Burocracia no Brasil pós-64 (Rio de Janeiro: paz e Terra, 1985), p. 39. O autor parte das elaborações de A. Tourraine, Les Societés Dependantes (Paris: Éditions Duculot), 1977 e C. Offe & V. Ronge, "Notes on the Theory ofthe State" in The New German Critique (Winsconsin, nO 6, fali 1975). 9 Ver P. Evans; D. Rueschemeyer & T. Skocpol (eds.), Bringing the State Back In (Cambridge: Cambridge University Press, 1985). 25 classes ou sociedade. O estado pode desenvolver seus próprios objetivos para o bem-comum, conforme escreve Tollini: "À primeira vista, pode-se ter a falsa impressão de que nesta argumentação o Estado é concebido como um dirigente acima da sociedade. Entretanto, o fato de poder formular objetivos independentes não significa um Estado que se sobrepuje à vontade social, mas, sim, que sirva à sociedade da melhor forma possível. [ ... ] É essencial o entendimento de que essa noção pressupõe que os líderes do Estado possam prosseguir estratégias transformadoras, mesmo contrariando a indiferença ou a resistência de forças sociais politicamente poderosas. Em resumo, a teoria do Estado como ator diverge de outras teorias que vêm o Estado como eterno prisioneiro de conflitos sociais que o impedem de implementar mudanças fi . . d d ,,10 e etIvas na SOCIe a e. O segundo argumento respeita a capacidade do estado em atingir resultados, em formular e implementar políticas públicas efetivas, pressuposto que o habilita a empreender mudanças sociais. "~ teoria coloca como condição precipua para o desenvolvimento das capacidades do Estado a criação da coesão das partes de sua máquina burocrática.,,1I Segundo afirma 101. M. Tollini, "O Estado Ator e o Presidente" (Brasilia: Correio Braziliense, 12.12.94). É oportuno mencionar que os principais modelos utilizados na análise da ação estatal - o pluralista, o elitista (na sua vertente corporativista) e o marxista - apresentam maiores restrições. O modelo pluralista explora o papel do empresariado na formulação de políticas públicas, na qualidade de agentes interessados que mobilizam recursos conforme suas possibilidades para influenciar o governo por meio de diversos canais. Esta abordagem subestima o caráter político-ideológico da formulação de políticas públicas e, ademais, supõe uma ingênua facilidade de acesso de grupos de pressão organizados à setores de governo. O modelo corporativista enfatiza a relação capital-trabalho articulada entre grupos relevantes no meio empresarial e o estado, baseados no papel decisivo dos primeiros para o desempenho da economia, o que contribui para um maior poder de barganha na formulação da política econômica, em particular. Sua principal crítica é a aplicabilidade, baseada na alegação de que o modelo se aplica à constatações eventuais, porque o relacionamento governo-capital seria apenas eventualmente unilateral. O modelo marxista enfoca o Estado como refém dos interesses do capital, em cujas variantes vê o estado quer controlado indiretamente pelo empresariado, quer sujeito à restrições estruturais inerentes ao seu conjunto institucional (de ordem política, administrativa etc.). Ver, a esse respeito, R. L. S. Cardoso, Autonomia do Estado Versus Mobilização dos Atores Sociais - Uma Proposta Teórico-Metodológica para Análise de Políticas Públicas no Brasil (Brasília: Centro de Estudos Estratégicos da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República: Documento de Trabalho nO 20, março de 1995). I I Ibid .. 26 Cardoso, abordagens institucionais 12 são, neste contexto, de maior utilidade para se analisar a política burocrática no cenário do estado social contemporâneo: "[ ... ] O novo institucionalismo [ ... ] incorpora [ ... ] um novo fator: a complexidade das instituições sociais, políticas e econômicas na vida moderna, sua extensão e sua maior importância para a vida coletiva, enfocando, também, o papel das organizações na vida pública. Justifica-se a ênfase nestas organizações não apenas por serem encarregadas da implementação das políticas, mas também por serem os cenários em que essas são decididas e avaliadas. Segundo esta concepção, as organizações governamentais, em última instância, são as responsáveis pela legitimidade das políticas, garantindo-lhes a universalidade e o poder de utilizarem legitimamente a coerção para que sejam efetivadas.,,13 A implementação administrativa do estado-ator no contexto da sociedade capitalista democrática fundamenta-se na concepção de que o próprio processo de desenvolvimento do capitalismo exige uma mudança radical no modo de conceber e colocar a ação administrativa. "Isso significa dizer que a ampliação do papel do estado no desenvolvimento nacional vai exigir uma nova postura administrativa, ou seja, um novo modelo de gestão pública, capaz de colocar as funções organizativas-institucionais num nível ideal, que permita o estabelecimento de uma relação íntima e imediata com os objetivos primeiros e com a sociedade organizada. [ ... ] Essas relações devem 12Conforme afirma R. L. Cardoso, 1995, op. cit.: "as abordagens institucionais proporcionam modelos de análise de políticas públicas que enfocam a importância de padrões estruturados de comportamento que tendem a persistir e que adquirem certa autonomia. Esses padrões, também chamados instituições, afetam o conteúdo das políticas públicas, por estarem estruturados de forma que facilitem, dificultem, ou até mesmo impeçam alguns resultados (outcomes) destas políticas." (p.l0) Ver, a propósito, G. Nordlinger, On the Autonomy of the Democratic State (Cambridge: Havard University Press, 1981); G. O'Donnell, Análise do Autoritarismo Burocrático (São Paulo: Paz e Terra, 1990); J. D. Aberbach, R. D. Putnam & B. A. Rocman, Bureaucrats & Politicians in Western Democracies (Cambridge: Harvard University Press, 1981) e M. M. Atkinson & W. D. Coleman, Strong States and Weak States: Sectoral Policy Networks in Advenced Capitalist Economies (The British Joumal ofPolitical Science, nO 19). 13R. L. Cardoso, 1995, op. cit, p. 10. 27 coexistir num ambiente de 'constante interdependência de escolhas e de resultados' .,,14 A modernização da administração pública adquire uma importância essencial frente ao imperativo de agiornamento do estado social. A consolidação de uma tecnocracia popula/5 sensível, respaldada no aumento da capacidade de julgamento, de decisão e de ação, por meio da instituição de novos métodos de governo, que estimule o estabelecimento de parcerias com capacidade de intervenção, tomou-se um requisito que coloca em risco a própria evolução do estado. Todavia, o que se verifica é que o crescimento burocrático do estado, rápido e qualitativamente complexo, representado por suas múltiplas instituições, mecanismos e orçamentos, não se coaduna, hoje, com as exigências derivadas da crise (que obrigam uma maior intervenção), não lhe proporcionando uma maior capacidade de gestão do desenvolvimento. 16 Uma das alternativas estratégicas para o equacionamento da crise do estado via seu redirecionamento reside na superação da crise da administração pública. A CRISE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA A crise da administração pública tem um duplo sentido: no terreno da praxis, atinge a capacidade dos estados em realizar, em alcançar resultados desejados no sentido do bem comum; no terreno do pensamento, atinge a capacidade dos teóricos da administração pública, espalhados num vasto campo de disciplinas, em refletir sobre as causas, conseqüências e alternativas ao fenômeno que se verifica na prática. 14R. S. Santos & E. M. Ribeiro, "A Administração Política Brasileira" (Revista de Administração Pública: 27(4):102-35, out./dez. de 1993), p. 106. Os autores referem-se ao conceito de Administração Política de Giorgio Pastori in "Administração Pública ", in Dicionário de Política, op. cit., p. 15. 15Para usar a expressão de Alain Tourraine, que remonta ao excessivo amparo governamental à classe média, em detrimento dos socialmente excluídos. A. Tourraine, participação no seminário "O Estado que Queremos - Novas Estruturas, Novas Funções" (Brasília: IPEAlSEPLAN, 1994). 16J. R. Felicissimo & S. C. Albuquerque, "Governo, Administração Pública e Crise" (São Paulo: São Paulo em Perspectiva, 2(1): 19-23, jan./mar. de 1988), p. 21. I -~_. - ------------'" 28 Na dimensão da praxis, a crise da administração pública repousa na concatenação entre meios e fins. É um problema de racionalidade de meios, instrumental ou funcional, e de racionalidade de fins, substantiva ou de valor. A efetividade da ação pública é uma função do emprego de meios apropriados para o alcance de fins desejados, cujo estabelecimento e controle é uma tarefa essencialmente política. Daí, dois componentes disfuncionais referirem-se, mais comumente, à adequação dos meios e à conformação aos fins. O primeiro é tradicionalmente tratado como irracionalidade instrumental e é exclusivamente identificado à crescente incapacidade de os sistemas burocráticos, circunscritos à instrumentalidade, processarem meios apropriados --donde advém a própria noção pejorativa de burocracia relacionada ao atraso, à ineficiência e à ineficácia. O segundo é tradicionalmente tratado como irracionalidade substantiva ou a resistência dos sistemas burocráticos em processarem as finalidades definidas na arena política, quer pela imposição de interesses da própria burocracia enquanto expressão social de poder, quer pelo atendimento aos interesses privados em detrimento do interesse público. O que esta visão recorrente não esclarece é que a crise da administração pública é essencialmente uma crise de racionalidade nas relações político-administrativas do estado, não necessária e isoladamente uma crise administrativa no domínio instrumental da burocracia 'bl' 17 pu lca. A implementação burocrática do estado moderno, segundo um enfoque weberiano, deu-se no domínio preponderante da racionalidade funcional, instrumentalizando premissas de valor definidas fora de seu alcance, na arena política. A burocracia weberiana se caracteriza essencialmente por ser uma instância micro-social fundada exclusivamente na racionalidade funcional, que lida com fatos, não valores e meios, não fins. Os políticos estabelecem valores na arena da barganha política enquanto que os burocratas, em contrapartida, são "agentes neutros" cuja tarefa é executar, com precisão técnica e imparcialidade, as deliberações que emergem daquela barganha. Política 'e administração, fins e meios, valor e fato, são radicalmente separados nesta perspectiva porque os sistemas burocráticos seriam incapazes de processar finalidades e, mesmo se o fossem, tenderiam a sobrepor suas regras I7Ver J. Bendor & T. Moe, "An Alternative Model of Bureaucratic Politics" (American Political Science Review, 1985), 79:755-74. 29 operacionais às finalidades, numa frontal descaracterização da política. 18 "A administração burocrática é aquela forma de organização da ação social (improvável e rica em pre-requisitos) que não pode tematizar suas próprias premissas. É nisso que se baseia também a divisão rígida entre administração e política, prevista no tipo ideal burocrático. [ ... ] A racionalidade burocrática não assegura, e possivelmente contraria, a racionalidade política do sistema nas condições do Estado de bem-estar capitalista". 19 A disfunção estrutural mais comumente atribuída ao contexto da crise da administração pública consiste na inversão dialética da racionalidade burocrática. Primeiro, no sentido de que embora formatada para processar meios, adquiriu uma responsabilidade deliberativa maior que sua capacidade. Segundo, como conseqüência, passou a deliberar segundo sua ótica exclusivamente instrumental, sobrepondo-se à política e à sociedade, na concepção de Schwartzman: "A complexidade crescente dos Estados modernos e o aumento das funções que este Estado desempenha, faz com que seja impossível continuar mantendo a estrita separação, que Weber supunha entre a elaboração das leis e sua execução. Este princípio ainda hoje está presente na totalidade ou quase, dos regimes políticos democráticos. No entanto, é bastante claro que agências governamentais responsáveis por uma série de atos, da política social à política ambiental e econômica, têm que tomar decisões pormenorizadas quase diárias, que têm um-conteúdo político bastante óbvio, na medida em que beneficiam determinados interesses em detrimento de outros. Enquanto isto, os órgãos políticos -os partidos políticos, os legislativos, etc.- dificilmente desenvolvem a competência técnica específica para tomar as decisões políticas que muitas vezes são deles esperados. Isto ocorre pela própria complexidade crescente do processo político, que tende a especializar os partidos e os órgãos legislativos nas questões mais diretamente político-partidárias, ou seja, aquelas que têm repercussões mais diretas e visíveis sobre a distribuição do poder na sociedade. Em outras palavras, a distinção entre o que é técnico, formal ou administrativo, de um lado, e o que é político e 18Ver M. Weber, Economy and Society - An Outline of Interpretative Sociology (Berkeley: University of California Press, 1978), pp. 217-26 e 956-1003. 19 Ver C. Offe, Problemas Estruturais do Estado Capitalista (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984), p. 217. substantivo, por outro, é hoje bastante obscura, e não há indicações de que tenderá a se clarificar no futuro. Isto faz com que a burocracia acrescente à sua tendência natural de defender seus interesses corporativos uma segunda característica: a tendência a querer subtrair dos órgãos políticos a própria competência decisória, em nome de sua maior capacitação técnica".2o 30 No domínio da política representativa democrática, a CrIse da administração pública materializa o embate entre burocracia e política. No processo decisório institucional do estado democrático, o controle político da burocracia pública se manifesta da seguinte forma: cidadãos pressionam legisladores nas eleições e grupos de interesse exercem influência sobre legisladores em nome de interesses; legisladores influenciam a burocracia mediante dotações e restrições orçamentárias e de indicações de ocupantes de cargos de confiança, resultado de acordos políticos; a burocracia afeta os cidadãos pela utilidade de seus produtos, serviços, bens ou regulações, o que significa não só o custo beneficio, mas a adequação qualitativa das características dos produtos às necessidades e direitos dos cidadãos; e o círculo é fechado quando cidadãos ou grupos estabelecem uma ligação entre o apoio a legisladores no que respeita ao posicionamento e grau de intervenção em tomo de questões ou assuntos especificamente tratados na esfera de determinados órgãos burocráticos21 • Nesta arena, o que está em jogo é a influência política sobre a prática burocrática. No entanto, a análise do processo de decisão política conduzida por Lindbloom, dentro do enfoque que denomina de política burocrática, deixa claro que a inversão deste processo não se deve aos atributos estruturais da mecânica democrático-representativa, senão da própria burocracia inserida neste contexto: "O processo decisório político está predominantemente nas mãos da burocracia, deixando uma área pequena para decisão por outros participantes. Embora os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário estabeleçam algumas das políticas mais importantes, é a burocracia que determina a maioria delas, inclusive as mais importantes de todas. A política decorre, especificamente, das interações burocráticas. [ ... ] Tais alianças constituem às vezes um desafio ao controle efetivo das políticas pelo Congresso. 20Simon Schwartzman, "A Abertura Política e a Dignificação da Função Pública" in FUNCEP, O Estado e a Administração Pública (Brasilia: FUNCEP, 1987), pp. 77-8. 21 Ver J. Bendor & T. Moe, 1985, op. cit., pp. 79:755-74. "A maioria dos atos administrativos fazem ou alteram políticas, ao procurar implementá-las. [ ... ] A execução sempre faz ou altera as políticas de algum modo nas mãos dos administradores. Nenhum formulador de políticas pode enunciar completamente essas políticas, e poucos tentariam isso, pois sabem que não é possível elaborar um texto legal, por exemplo, que cubra todas as contingências, todos os casos possíveis. O que os formuladores de políticas fazem é permitir que os responsáveis pela sua administração determinem muitos elementos da concepção que apenas esboçam. A burocracia fica com uma parte maior de autoridade, no processo de decisão política, do que podem ter pretendido os congressistas". "Sempre que os formuladores de políticas especificam (como acontece com freqüência) os vários critérios conflitantes que pretendem aplicar à execução de uma política, o processo decisório político recai de algum modo nas mãos da administração. A multiplicidade de critérios conflitantes é um fenômeno universal na execução de políticas, que aparece também em setores muito afastados da execução comum de políticas nos sistemas democráticos. As condições em que se espera que os administradores implementem as políticas os colocam com muita freqüência na situação de participantes do processo decisório.,,22 31 Nesse contexto, o que Offe denomina "politização da administração" não é o resultado de novos critérios de relevância assimilados e processados pela burocracia pública, conforme um padrão de racionalidade prática e valorativa, mas o resultado de um processo em que a ação estatal típica do estado de direito, condicionada aos seus processos e imperativos racionais- legais, toma-se crescentemente inconfiável, pois sua eficiência e efetividade são colocadas à prova, sem garantias de que sua racionalidade valorativa seja incrementada. 23 A solução deste quadro de inversão é tão intrincada quanto o dilema no qual é tradicionalmente colocado no enfoque weberiano. o fatalismo weberiano consiste em se estabelecer um continuum conceitual entre a inversão da racionalidade da ação burocrática e o processo 22c. E. Lindblom, O Processo de Decisão Política (Brasília: Universidade de Brasília, série Pensamento Político, 1980), pp. 60-2. 23c. Offe, 1984, op. cit., pp. 225-6. 32 de racionalização, de caráter histórico-mundial. Schwatzman e Offe assim o descrevem: "a má-leitura de Weber consiste em considerar que seu 'modelo' de burocracia é uma receita para a organização da máquina burocrática; uma receita que, bem aplicada, geraria a administração científica e técnica que tantos buscam. Na realidade, o que Weber faz é dar as características 'ideais' de uma administração pública que existiria em um contexto social e político bem determinado; ela não é, de nenhuma maneira, a forma mais eficiente e racional de organização social para a realização de determinados fins; e, mais importante, ela não pode existir no vazio, mas requer uma série de condições externas bastante específicas".24 "[Por outro lado, a ... ] dominação burocrática não é, como acreditava Weber, o critério estrutural irreversível de todas as sociedades futuras, mas está vinculada a certas fases históricas e pode ser transcendida, na perspectiva de uma racionalidade sistêmica de nível superior. [ ... Os] esquemas normativos das organizações político-administrativas não podem depender do acaso ou do arbítrio de seus membros, mas precisam estar em harmonia com os imperativos de seu meio social e econômico. Quando isso não é o caso, podemos dizer que as instituições estatais estão seguindo critérios 'irracionais' de racionalidade. Quando uma organização põe em risco o seu vínculo com o meio, costumamos falar de patologias burocráticas, isto é, da não- correspondência entre a estrutura interna e o meio externo, ou simplesmente entre estrutura e função. "Tais situações são frequentemente estudadas pela sociologia das organizações sob a perspectiva teórica e prescritiva de como seria possível o restabelecimento do equilíbrio. Isto poderia ser alcançado através de processos de aprendizado dentro das organizações, ou impostos do exterior mediante reforma da estrutura organizacional. Nessas reflexões, a organização é apresentada como retrógrada e deficitária, exigindo mudanças - uma posição que só pode ser definida com base no pressuposto de que 'em princípio' critérios mais adequados de racionalidade são possíveis e praticáveis, bastando idealizá-los e introduzi-los. Mas justamente essa premissa será abandonada [ ... ]. Pois, é bem possível que o desnível entre o modo de operação interno e as exigências funcionais impostas do exterior à administração do 24S. Schwartzman, 1987, op. cit., p. 67. Estado não se deva à estrutura de uma burocracia retrógrada, e sim à estrutura de um meio sócio-econômico que por um lado fixa a administração estatal em um certo modo de operação, mas que por outro lado exige desse gênero entre o esquema normativo da administração das estruturas, assim definidas. É óbvio que um desnível desse gênero entre o esquema normativo da administração e as exigências funcionais externas não poderia ser superado através de uma reforma administrativa, mas somente através de uma 'reforma' daquelas estruturas do meio que provocam a contradição entre estrutura administrativa e capacidade de desempenho [grifo não original]"?5 33 Portanto, a superação da crise da administração pública não se circunscreve à superação da burocracia enquanto fenômeno social, tampouco à capacidade de mudança exclusivamente no âmbito instrumental da burocracia pública, senão também à sua capacidade de deliberação substantiva, no bojo das relações político-administrativas do estado -baseado no argumento desenvolvido por Guerreiro-Ramos: "É inconcebível no futuro a concretização de uma sociedade destituída de burocracia, entendida esta como sistema de prestar serviços que funciona com alguma coordenação centralizada de atividades e com a vigência de alguma impessoalidade nas relações humanas. Sem burocracia, a vida social seria inorgânica, principalmente numa sociedade de massas. O ideal da liquidação da burocracia não é científico, é ideológico. O que é científico é proceder ao equacionamento dialético da questão. A sociedade de massas impõe a organização de serviços públicos de considerável envergadura, os quais não funcionarão sem burocracia, cuja qualidade, graças ao desenvolvimento tecnológico e social, será tanto mais alta quanto menos alienado for o caráter geral das relações entre autoridades e subordinados, entre os serviços e sua clientela. A grandeza da sociedade futura, a intensidade e o refinamento que, nela terão necessariamente as relações entre os homens, ao contrário de dispensar a burocracia, a requererão mais. mas isso não equivale a dizer que a burocracia, no futuro, permaneça com os caracteres que até agora tem apresentado. [ ... Porque] o que confere racionalidade às práticas administrativas não é a sua forma aparente, nem o seu significado intrínseco, mas a 25c. Offe, 1984, op. cit., pp. 225-6. Ver, também, a propósito da crítica tradicional à burocracia, A. Guerreiro-Ramos, Administração e Contexto Brasileiro (Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1983), pp. 186-202. I função positiva que realizam na estratégia adequada para atingir determinado objetivo concreto, socialmente desejado.,,26 34 A convicção sobre a necessidade de se buscar novos paradigmas no campo das teorias de administração pública decorre não apenas da intensificação das práticas reformistas nos segmentos governamentais em função das restrições fiscais e burocráticas do estado social contemporâneo - que têm ocupado lugar central nas discussões acadêmica e política nos anos 90. Decorre, também, de uma tomada de consciência teórica que vem se sedimentando a partir da crítica epistemológica às ciências sociais, em particular ao campo da administração pública.27 A tendência revisionista das teorias de administração pública tem sucitado o surgimento tanto de abordagens sistematizantes, que buscam levantar e repensar o estado da arte sob novas perspectivas, apontando caminhos e explicitando direcionamentos, quanto tem feito surgir abordagens que se propõem alternativas às 26A. Guerreiro-Ramos, 1983, op. cit., pp. 201 e 205. Alguns autores (dentre eles, Peter Drucker, Alvin Toffler e Frederick Mosher) discutem a decadência da organização burocrática não na perspectiva da superação da burocracia enquanto fenômeno social, mas no sentido da flexibilização de suas características morfológicas. A questão é que as ditas organizações pós-burocráticas não asseguram a liquidação da burocracia enquanto sistema tipicamente instrumental. Ver, a propósito, Frederick Mosher, "The Public Service in the Temporary Society" in Public Administration in a Time ofTurbulence, D. Waldo (Scranton: Chandler Publishers, 1971); F. C. P. Motta & L. C. Bresser-Pereira, Introdução à Organização Burocrática (São Paulo: editora Brasiliense, 1980) e A. Toffler, "Rumo à Civilização da Terceira Onda" (Diálogo, nO 22, vol. 14). 27 Ver V. Ostrom, "Artisanship and Artifact" (Public Administration Review 40:309-17, 1980); P. Sederberg, "Organization and Explanation: New Metaphoresfor Old Problems" (Administration and Society, 16:167-94, 1984); F. Fisher, "Ethical Discourse in Public Administration" (Administration and Society, 15: 5-43, 1983); H. Y. Jung, "Phenomenology as a Critique of Public Affairs Education" (Southern review of Public Administration, 6: 175-87, 1987); R. Denhardt, "In the Shadow of Organization" (Lawrence: Univ. of Kansas Press, 1981) e "Toward a Criticai Theory of Public Administration" (Public Administration Review, 41 :628-35, 1981); J. Forester, "Questioning and Organizing Attention: Toward a Criticai Theory of Planning and Administrative Practice" (Administration and Society, 13: 161-207) e "Bounded Rationality in the Politics of Mudding Through" (Public Administration Review, 44:23-30, 1984); G. Morgan, "Opportunities Arising from Paradigm Diversity" (Administration and Society, 16:306-28, 1984); N. Lonerich Jr., "Contending Paradigms in Public Administration: a Sign of Crisis or Intellectual vitality?" (Administration and Society, 17:307-30, 1985) e O. White, "Improving Prospects for Heterodoxy in Organization Theory: a Review of Sociological Paradigms and Organizational Analysis" (Administration and Society, 15:257-71). 35 enquadradas nas correntes predominantes?8 De uma maneira geral, a trajetória do pensamento no terreno da administração pública tem evoluído no sentido de criar, criticar e aprimorar modelos e princípios de mudança organizacional planejada, nos níveis micro ou macro-organizacional, de um enfoque organizacional para um enfoque político-sociológico, que privilegia como ponto central a tensão entre política e administração.29 Nesta perspectiva, a modernização da administração pública adquire um caráter integrativo entre política e administração. A questão de como dotar os sistemas político- administrativos do estado de maior racionalidade tornou-se um requisito crítico da evolução do estado social contemporâneo. Importa investigar, nesta tendência, elementos conceituais que possibilitem avaliar a limitação dos modelos correntes de modernização da administração pública, bem assim, circunscrever uma abordagem integrativa da administração pública, mais adequada ao contexto político do estado social contemporâneo. A redução deste quadro de problemas à realidade brasileira é ainda mais agravante. Primeiro porque a administração pública brasileira tem uma trajetória modernizante, no sentido de instrumentalizar o estado para ser o indutor do desenvolvimento. Esta trajetória tem sido seguida de recorrentes percalços, dentre os quais a dificil e problemática relação entre democracia e 28Ver M. Frank, Toward a New Public Administration (San Francisco: Chandler, ed. 1971); H. G. Frederickson, New Public Administration (University, Ala.: University of Alabama Press, 1980); C. Bellone, Organization Theory and lhe New Public Administration (Boston: Allyn and Bacon, ed. 1980); A. Guerreiro-Ramos, A Nova Ciência das Organizações. Uma Reconceituação da Riqueza das Nações (Rio de janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1981); Frederick C. Thayer, "Organization Theory as Epistemology" in Organization Theory and lhe New Public Administration, compilado por Carl Bellone (Boston: Allyn and Bacon, 1980); R. P. Hummel, The Bureaucratic Experience (New York: St. Martin's Press, 2°ed., 1982); M. M. Harmon, Action Theory for Public Administration (New York: Longman, 1981); T. L. Cooper, The Responsible Administrator: An Approachto Elhics for the Administrative Role (New York: Kennikat Press, 1982); J. S. Jun, Public Administration Design and Problem Solving (New Y ork: Macmillan, 1986); R. B. Denhardt, Theories of Public Organization (Monterey, Calif.: Brooks/Cole, 1984); F. Fischer, Politics, Values and Public Policy: the Problem of Methodology (Denver: Westview Press, 1980); D. Schuman, Policy, Analysis, Education and Everyday Life: An Empirical Reevaluation of Higher Education in America (Lexington, Mass.: Health, 1982) e D. Waldo, The Enterprise of Public Administration (Novato, Calif.: Chandler and Sharp, 1980). 29Ver Robert Denhardt, "Public Administration Theory - The Stale of the Discipline" in Public Administration - The State of lhe Discipline, N. Lynn & A. Wildavsky (Chatham: Chatham House Publishers Inc., 1990), pp 43-72. 36 racionalidade político-administrativa, bem como o das características próprias do modelo brasileiro de modernização da administração pública - essencialmente um modelo de modernização administrativa-, que contribuiu para o atingimento de um ponto crítico no que concerne à funcionalidade dos atuais sistemas político-administrativos do estado brasileiro. Segundo, porque o somatório de desafios e oportunidades que cabe atualmente ao estado brasileiro explorar, no sentido de liderar parcerias para promover um desenvolvimento mais sustentado e eqüitativo, é altamente incompatível com sua condição operacional, com severas implicações à governabilidade. O redirecionamento do estado brasileiro é essencialmente dependente da modernização da sua administração pública. Na sociedade atual não há estado possível sem administração pública; não há governo possível sem estado. Por outro lado, a racionalidade política dos sistemas burocráticos não decorre, como uma conseqüência natural, da modernização política do estado e da sociedade. A existência de um grau satisfatório de racionalidade política no sistema político estatal não implica, automaticamente, no incremento da racionalidade política dos sistemas burocráticos. Definem, antes, condições de concorrência ou potencialidades sistêmicas, mas a relação de causação não é direta. Isto porque há atributos estruturais nos sistemas burocráticos que o tomam resistentes à racionalidade política do sistema político. Logo, é necessário que os sistemas burocráticos sejam enfocados a partir de sua capacidade em processar a racionalidade política e administrativa do estado, de uma maneira integrativa. , t I f I I 37 II MODERNIZAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: UMA INTERPRETAÇÃO TEÓRICA
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