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facebook.com/lacanempdf "NÃO SE APAIXONE!" A MÁSCARA DA FEMINILIDADE CONTEMPORÂNEA L.t.1JA GUIMARÃES (SALVADOR) (leda.guimaraes@uol.com.br) O psicanalista e a subjetividade de sua época Os elementos estruturais da subjetividade de uma época em uma dada cultura detenni nam um enquadramento da realidade, de tal sorte que as proposições que emergem do dis curso vigente adquirem no enquadramento dessa realidade o valor de verdades indiscutíveis, como se fossem apenas a inferência do óbvio, ou até mesmo verdades suporradas em um saber dito científico. Para que a psicanálise não desapareça afogada no fantasma da subjetividade de uma época, Lacan convocou os psicanalistas a assumirem a radicalidade inumana do desejo do analista. Para que ele esteja a altura da sua função é indispensável que ele tome distância da janela da realidade do seu contexto histórico, para que, citando Lacan, ''conheça bem a espiral a que o arrasta sua época na obra contínua de Babel, e que conheça sua função de intérprete na discórdia das línguas"2. Assim, o analista tem por função rasgar o véu das verdades universalizantes, para apontar o que destas supostas verdades são apenas produ tos de línguas autistas, que tiveram a potência ardilosa de iludir nossos ouvidos, nos fazen do tomar proposições que daí advém como andaimes que alcançam o céu das verdades universais, e que embalados pelos encantos destas línguas autistas nos deixamos dom1ir. Lacan determina ele forma fulminante esta função do analista nos dizendo "que antes re nuncie a isso (à psicanálise), quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época"3. Pretendo neste trabalho demonstrar que uma proposição produzida pelo discurso da neu rose histérica, emergente nas condições específicas da nossa comemporaneidade, adquiriu o estatuto ele verdade universalizante na subjetividade de nossa época. Tol proposição infiltrou se no nosso delírio universal como uma evidência elo óbvio, de tal maneira que, inclusive, poderá até mesmo ter adquirido o valor de moeda corrente nos diálogos entre psicanalistas, como uma verdade indiscutível que não necessita de demonstração. Desde ai, estamos diante elo risco de que nós psicanalistas avalizemos o gozo histérico que sustenta esta suposta verda de e, juntamente com esse engano, façamos do ato analítico a trilha certeira para o desapare cimento da psicanálise. Novembro 2005 66 Opção Lacaniana nº 44 O PSICANALISTA NA CIDADE A histeria na contemporaneidade No seminário O osso de uma análise', realizado em Salvador - Bahia, em 1998, Miller encerrou suas elaborações, dentre as quais sua formulação acerca da vivificação de gozo que o significante produz no corpo, proferindo no final deste seminário uma frase que merece ser tomada em toda a sua importância. É uma frase que produziu na audiência uma reação auto mática de risos, certamente pelo desconcerto que ela provoca no enquadramento da nossa realidade, pois esta frase inverte inteiramente a perspectiva para a qual nossa histeria atual nos convoca. Inversão precisa, proferida por Miller, mas feita de forma elegante e gentil, sob o modo encantador de um convite, para que disso alguma coisa pudesse ser escutada. Falando en1 non1e dos homens1 ele nos disse: "senhoras, amem-nos". Miller encerrou assim com este convite quando falava, nas suas últimas reílexões, que "há uma dificuldade contemporânea em relação ao amor e que, pelo seu movimento natu ral, a conquista dos direitos da mulher se traduz por uma dificuldade do lado do amor"5. Nesse momento ele nos recordou que a desvalorização do amor e a conseqüente promoção da fantasia, naturalmente com o seu acento fetichista, são fenômenos que estão principal mente situados do lado macho. Miller então propões que as mulheres ao despertar para os seus direitos nos can1pos jurídico e econón1ico, fizessem esse despertar de uma boa manei ra, não como os homens, não deixando de lado a importância que o amor tem nas relações de parceria. Este convite de Miller guarda aproximações com uma referência freudiana, do texto "O Mal-Estar na Civilização", que consiste numa formulação bastante polêmica, principalmente desde o ponto de vista feminista. Nos diz Freud: ''AI; mulheres representam os interesses da família e da vida sexual. O trabalho de civilização tomou-se cada vez mais um assunto mascu lino1 confrontando os homens com tarefas cada vez mais difíceis e compelindo-os a executa rem sublimações pulsionais de que as mulheres são pouco capazes''. Segundo o meu ponto de vista, o qual pretendo demonstrar neste trabalho, esta citação de Freud tem uma grande pertinência, ainda que tenha sido formulada de maneira imprecisa. A imprecisão se deve ao fato de que não podemos afirmar que as mulheres não são capazes de executarem sublimações, até mesmo porque a grande possibilidade de investimento libidinal nessa vicissitude pulsional já foi demonstrado pelas mulheres, a partir das grandes conquistas que elas já alcançaram na sociedade atual, nos mais diversos campos. Toda a questão é que, ainda assim, com todas as grandes satisfações que as mulheres podem extrair dessas conquis tas, ainda centralizam no amor, no campo da parceria amorosa, a localização da função da exceção para a feminilidade. Se no campo das conquistas sociais, produzidas pelo movimento feminista, temos possibilidades de satisfações que valem para todas, a função da exceção cen traliza-se no campo da parceria amorosa em suas duas vertentes paradoxais: no sonho mais elevado do Ideal inatingível "d'A Mulher" - a única, a especial, a inigualável dentre todas as outras diante do desejo masculino - como também na outra vertente da exceção pela conse qüente queda deste sonho, que se traduz no gozo superegóico da devastação relativa ao sen timento de exclusão. Opção Lacaniana nº 44 67 Novembro 2005 Daí podemos extrair a pertinência da formulação freudiana de que as mulheres salvaguar dam a parceria amorosa, já que nela localizam o seu gozo mais precioso. É também o que costumamos ouvir cotidianamente na clínica através das queixas histéricas: "será que somen te eu, e não ele, terei que lutar sozinha pela nossa relação amorosa'". Por outro lado, os homens tendem a centralizar o gozo superegóico em tomo do impera tivo de um "dever ser" que conduz aos ideais sociais. E em nome destes ideais universalizantes acabam dirigido sua libido para o campo do trabalho e para as relações sociais, resultando desta universalização um gozo numa certa posição de mortificação, pela anulação da singula ridade do seu desejo. Tal mortificação, regulada pela desinteressante rotina obsessiva, acaba impregnando de tédio as relações amorosas. Assim, o convite "senhoras, amem-nos" corresponde a um apelo que Miller faz em nome dos homens: "não nos deixem cadaverizados em nossa armadura obsessiva". A máscara da feminilidade contemporânea A histeria como uma neurose "naturalmente" feminina assenta-se sobre a pergunta "o que é ser mulher"', por isso "naturalmente" uma neurose feminina já que é uma pergunta acerca da identidade feminina, pergunta para a qual não há respostas no campo simbólico. Esta ausência de referências simbólicas está articulada ao mesmo tempo a um gozo feminino que não se enquadra nas medidas fálicas, do qual nada pode ser dito, nem contabilizado. Ainda que Lacan só tenha formulado precisamente esta condição da feminilidade em 1973, no Seminário Mais, Ainda', já encontramos em 1960, nos Escritos, em "Diretrizes para um congresso sobre a sexu alidade feminina", uma formulação de Lacan, que antecipa suas proposições contidas no Mais, Ainda, ao mesmo tempo que faz emergir dessa formulação a função da mascarada: "Na posição de ou-isto-ou-aquilo em que se vê preso o sujeito, entre uma pura ausência e uma pura sensibilidade, não é de surpreender que o narcisismodo desejo se agarre imediata mente ao narcisismo do ego que é seu protótipo'". Desse modo Lacan nos antecipa que: entre ''uma pura ausência" de referências simbólicas e "uma pura sensibilidade" do gozo femi nino, o narcisismo do desejo dirigido a parceria amorosa se agarra in1ediatamente ao narcisismo do ego, erguendo através do imaginário uma máscara que tem por função instituir um sem blante para a feminilidade. Todo o problema é que esta máscara acaba situando o feminino no campo da significa ção fálica, afastando as mulheres do eixo através do qual se poderia trilhar um caminho em direção à função da extimidade - diferentemente da função da exceção - lá do outro lado, lá onde se localiza o horizonte da feminilidade. A função da mascarada e o engodo que ela acaba promovendo para a própria feminilidade é o que Lacan fomrnla de maneira precisa no seu texto ''A significação do falo", dizendo que: "Por mais paradoxal que possa parecer essa formulação, dizemos que é para ser o falo, isto é, o significante do desejo do Outro, que a mulher vai rejeitar uma parcela essencial da feminilidade, nomeadamente todos os seus atributos na mascarada. É pelo que ela não é que ela pretende ser desejada, ao mesmo tempo que amacla"9. Novembro 2005 68 Opção Lacaniana nº 44 O PSICANALISTA NA CIDADE Segundo cada cultura, em cada momento histórico, esta máscara se transmuda, muitas vezes numa velocidade alucinante, assim como as histéricas trocam de roupa e adereços to dos os dias numa corrida vertiginosa atrás de uma Outra mulher, que não é ela mesma. O interessante é que, nos tempos do Outro que não existe, nos tempos das perdas dos signifi cantes mestres, da ausência de traços simbólicos que assegurem identificações que valham para todos, assistimos um fenómeno surpreendente que se ergue sólido e potente em nome de uma nova identidade feminina, mas que em última instância, é a tradução mesma da más cara da feminilidade na contemporaneidade: A mulher multimídia, multi-facetada em suas várias potências, autônoma, independente, capaz, super-super mulher, que se pretende, muitas vezes, ser até mesmo mais potente do que os homens. Esta máscara tem várias faces que podem ser assim enunciadas - mas note mos também que todas esses denominativos se fazem antecedidos pelo artigo definido ''li': A profissional realizada- em suas competências sublimatórias, sejam científicas, anísti cas ou técnicas, de tal sorte que o mundo do trabalho já não mais poderá sobreviver sem as mulheres; A politizada, culta, intelectual - engajada nas lutas em defesa dos direitos dos excluí dos, especialmente dos direitos femininos; A administradora do lar- já não é mais a "dona de casa", ela subiu de posto de comando, e inclusive como provedora economicamente do lar em proporções cada mais alarmantes; A mãe psicopedagogizada- especializada nos saberes "psis" sobre o desenvoh>imento infantil; A malhadora diet - bonita em qualquer idade, e saudável através da contabilização ob sessiva das calorias e nutrientes, A amante liberada- especializada nos receituários de inserção do orgasmo clitoriano no ato sexual. Para esta lisca1 outras faces poclen1 faciln1ente ser acrescentadas1 mas ... e a amante apaixo nada, onde está' a mulher que sonha e morre de amores pelo.seu parceiro' - Não faz parte desta lista, foi exco,nungada. Esta condição peculiar, da manutenção de vários traços identificatórios na histeria con temporânea, já havia sido referida por Slavoj Zizek, mas vale ressaltar aqui neste trabalho a aproximação e a distância que este modo de identificação guarda em relação à identificação "estrelada" dos melancólicos, como Lacan formula em "Lituraterra"W. Assim como os melan cólicos, a manutenção em série de vários traços de identificação, referentes a padrões de conduta social, funciona como uma compensação imaginária para a ausência de significantes ordenadores centrais. Mas, a diferença estrutural entre a máscara da feminilidade contempo rânea e a identificação estrelada na melancolia consiste na referência fálica que a máscara da feminilidade porta em seu centro. Com esta máscara as histéricas querem se fazer o falo para o desejo masculino. Todo o problema é que a máscara da feminilidade contemporânea não produz o efeito esperado de fetichização para o desejo masculino. Seu resultado é um tiro que sai pela culatra. Como denunciam os próprios ditos de mulheres que se nomeiam realiza das, independentes e liberadas: "cadê os homens'", "não se acha homens'"· .. Isso porque, a máscara da feminilidade contemporânea não se ergue como o falo mas, Opção Lacaniana nº 44 69 Novembro 2005 bem precisamente, como uma multiplicação de falos, a própria Cabeça da Medusa que ressur ge do cenário mitológico para o campo da realidade de nossa época. Como formulou Freud no seu texto 'i\ cabeça da Medusa"1 1, todo o pavor que faz o homem ficar petrificado - ou correr léguas do desejo por estas mulheres que portam esta máscara- consiste no fato de que a própria multiplicação do falo é em si mesma um símbolo da castração. Daí o horror, a fuga, ou mesmo o tão famoso desaparecimento do homem no dia seguinte ao primeiro encontro. Por outro lado, começa a emergir em contrapartida à esta máscara da feminilidade contem poránea um novo homem que, como soldado remanescente de uma guerra perdida, não desis tiu da vertente adorável da luta entre os sexos e propõe um terreno de trégua. Esse novo ho mem, que não desistiu dos seus anseios de ser amado pelas mulheres, em lugar de proferir o convite formulado por Miller "senhoras, amem-nos", formula esta súplica pela via do semblante, utilizando tão sabiamente estratégias próprias à histeria. Vestindo uma nova roupagem do ho mem pós moderno faz surgir o homem "metro-sexual", que tenta se feminilizar com os adere ços estéticos propostos pelas histéricas contemporáneas, que fazem desse homem o seu novo brinquedo. E, se deixando assim se fazer de feminilizado, sustenta um apelo ao romantismo. Súplica muda desse homem tão fragilmente dependente do amor de uma mulhec O que resulta nessa nova parceria assim constituída' O que resulta das parcerias amorosas mais estáveis no transcurso do tempo? Parcerias cada vez mais raras. Disso resulta uma nova estrutura do casamento. Retomo aqui como referência uma proposição de Eric Laurent que me parece preciosa extraída da aula de 18 de dezembro de 1996, do curso de Miller O Outro que não existe e seus comi/és de ética12. Aula que ficou inteiramente a cargo de Laurent, onde ele trabalhou o Édipo feminino a partir de bases freudianas, na qual ele assim definiu a nova estrutura do casamento contemporâneo: - a discussão eternizada da relação, ou melhor, a discussão eternizada do abismamento da relação. "Vamos discutir a relação" - proposta proferida pela boca das mulheres, diante da qual os homens tendem a sentir calafrios. Mas, quando eles se deixam convencer por um suposto valor "politicamente correto" desta proposta, acabam subjugados à crença na mulher, crêem nela, o que facilmente tende para um destroço, pois seus calafrios mais íntimos já indicavam a função desta proposta: - "Vamos discutir a relação" nada mais é do uma estratégia para que o homem, através do suposto diálogo, admita suas falhas, se culpe, se retrate, prometa mudar, e depois volte a admitir que falhou novamente, etc ... Em suma, o ponto de mira desta pro posta é um ponto de mira da histeria já bem conhecido no contexto psicanalítico. O ponto de mira é castrar o parceiro, desafiar a sua potência de mestre como porra-voz da verdade. E os destroços no campo da parceria amorosa se intensificam quando o enunciado "vamos discutir a relação" acaba se constituindo, por excelência, como a navalha afiada do sadismo feminista. Mas, por que castrar o parceiro cada vez mais raro? Proponho que a condição da paixãona histeria, definida por Lacan como erotomaníaca13, pode ser formulada a partir da prevalência do gozo feminino. Tal gozo, despertado pelo apaixonamento, tende a expandir-se sem limites numa direção ao infinito, como é próprio ao Novembro 2005 70 Opção l.acaniana nº 44 O PSICANALISTA NA CIDADE seu estatuto. Mas, na medida em que esta dimensão erótica se mantém latente ou mesmo recalcada, a vertente do amor, que se institui como o invólucro de cobertura do gozo femini no, adquire o estatuto de uma exigência insistente, sustentando a demanda incondicional de amor. Desse modo, a excitação erotomaníaca se traduz sob a fom1a de uma exigência de amor:· "me ame 1nals, mais, n1ais ainda ... ". A aceleração do gozo erotomaníaco próprio da paixão na histeria adquire assim facilmente o estatuto de um imperativo, do qual o sujeito não mais detém o controle. O que denuncia que a face mortífera do supereu se infiltra rapidamente neste estado de gozo. Disso resulta que a aceleração de gozo na paixão venha a sustentar o estatuto de um imperativo "Goza", com todo o seu efeito mortificante, fazendo com que a experimentação de gozo no apaixonamento histérico rapidamente venha a transmudar-se de um estado de êxtase para um estado de devastação. Quais as conseqüências desse estado de gozo nas parcerias amorosas' A presença marcante do modo de funcionamento do supereu na histeria. Retomo outra frase de Eric Laurent, desta mesma aula do curso O Outro que não existe" - frase que contém em si mesma uma propo sição fundamental acerca do estatuto do supereu na histeria: ''As mulheres acreditam mais no juiz do que na lei" Com esta formulação marca-se urna distinção radical entre o modo de funcionamento do supereu na histeria e na neurose obsessiva. Os obsessivos acreditam na lei - na lei que faça da sua ação uma regra universal que sino, para todos. Como podemos articular aos comentários que fiz inicialmente, a propósito da citação freudiana extraída do texto "O Mal-Estar na Civiliza ção"15 .. t\.'s histéricas, por outro dado1 acreditan1 n1ais no juiz, não tanto nas leis universais, e por conta disso projetarn in1aginarian1ente no se1nblante do parceiro - seu meio precioso de gozo feminino - a figura obscena e feroz do supereu. Assim, quando as histéricas choram da sua posição de vítin1a diante dos seus parcelros1 dizendo "os homens são uns n1onstros\ ten1os ai a evidência da projeção imaginária paranóica, da severidade do supereu no parceiro erótico. A projeção da severidade do supereu no semblante do parceiro, em sua variação mais tênue, se denuncia no temor constante que sobressalta urna mulher apaixonada, quando ela tende na direção de privilegiar os seus desejos mais íntimos diante do parceiro. Nesse momento sobre vem um temor sob a forma de um· juízo de valor que poderia advir silenciosamente do seu parceiro: "mas ... o que ele vai pensar de mim'"· Um veredicto silencioso instituído pelo juiz que teria o poder de determinar o valor do seu ser de mulher Por esta razão, a estrutura do supereu na histeria acaba mantendo íntimas relações com o desafio histérico, o qual se constitui na vertente feminista da histeria. No desafio histérico o ponto de mira consiste em castrar o parceiro, o pai, o mestre, enfim, todo aquele que se erga como o semblante feroz da figura obscena do supereu. Tui estratégia se mantém assim como um mecanismo de defesa na histeria, bastante privilegiado na contemporaneidade, mas que resulta nun1a guerra sen1 fin1 pois erra essencialn1ente o seu alvo. É portanto preciosa a orientação clínica que Lacan faz ao analista, acerca das estratégias na Opção Lacaniana nº 44 TI Noven1bro 2005 transferência que o analista pode e deve lançar mão quando se trata de uma neurose histérica, principalmente quando um sujeito ainda se mantém muito decidido em sua histeria. Nos diz Lacan, no texto "Subversão do sujeito e a dialética do desejo no inconsciente freudiano": "uma vacilação calculada da 'neutralidade' do analista pode valer, para uma histérica, mais do que todas as interpretações"16. Por que' Para que o analista não venha a se converter na encarnação da figura obscena do supereu para uma histérica, o que seria inteiramente desas troso para os fins psicanalíticos. Desse modo, o analista deve reduzir a potência do Outro que a transferência em sua vertente imaginária tende a fazer consistir Citando Lacan, "o analista deve preservar para o outro a dimensão imaginária de sua não-dominação, de sua imperfeição necessária", e ainda, do "fortalecimento, nele voluntário, de sua insciência" [ . . . ] "de sua igno rância sempre renovada""- 0 interessante é que esta tem sido a estratégia apaziguadora que o novo homem da atua lidade vem utilizado para fazer laço de parceria com as histéricas, para que dessa maneira possa tentar preservar o amor que aí venha a ser nutrido: ele já se apresenta como castrado, destituído de qualquer potência fálica que lembre de perto alguma sombra daquilo que as histéricas feministas definem como machismo. Cultivam, assim, o declínio do viril como modo de fazer apelo ao amor. Certamente não é sem razão que podemos, muim mais do que ler, até mesmo assistir fenomenicamente na contemporaneidade, dois pesos distintos que mantém um certa estabi lidade na balança das parcerias amorosas. De um lado temos a queda vertiginosa da imago paterna, a queda dos significantes mestres identificatórios, o declínio do viril, a inconsistência do Outro como regulador das leis universais. E, do outro lado da balança, o avanço vertigino so do fortalecimemo, potente e sólido, da máscara da feminilidade contemporânea. Temos assim essa nova parceria erótica que se mantém no centro das grandes transformações dos costumes da contemporaneidade: a cabeça da Medusa com seu homem feminilizado. O paradoxo do supereu Destaco agora um ponto essencial relativo à economia de gozo do supereu na histeria aí implicada nesta parceria erótica contemporânea. A navalha afiada do sadismo feminista, que tende a exercer um movimento como uma guilhotina giratória de castração do "machismo", não livrou as mulheres modernas do estatuto do supereu na histeria, muito pelo contrário, pois, efetivamente, a nova máscara da feminilidade só se mantém desde uma íntima articula ção ao imperativo superegóico. A tradução mais explícita deste imperativo superegóico, con forme a enunciação que emerge da boca das próprias histéricas, é: "Não se apaixone'", "seja livre, autônoma, independente, realizada, linda, poderosa, etc . . . , mas 'não se apaixone!"'. Temos, assim, a enunciação explícita de um imperativo que diz não ao gozo pulsional, que exige a renúncia da satisfação pulsional, para que a cara do Ideal d'A Mulher super-potente possa ser supostamente mantido. Mas, se as mulheres na contemporaneidade precisam tanto deste imperativo "Nãó se apaixone!", para manter o seu sonho de potência, é exatan1ente porque este sonho está sempre prestes a ruir. Novembro 2005 72 Opção Lacaniana nº 44 O PSJCANALJSTA NA CIDADE Todo o problema é que o imperativo explícito "Não se apaixone'" já denuncia por si mes mo sua vertente silenciosa paradoxal, para aqueles que mantém seus ouvidos mais atentos. Pois, se as mulheres precisam tanto deste impedimento é exatamente porque elas estão sem pre em vias de cair nas garras da paixão. Num encontro contingencial, diante do objeto olhar voz, em sua dimensão mais real, encrustrado no semblante do parceiro, uma histérica poderá facilmente ser capturada na invasão de uma explosiva sensibilidade que se alastra pelo corpo. O efeito desta invasão do gozo feminino fará com que, neste momento, o olhar e a voz se instituam como porta-vozes do sonho idílico da paixão. Sonho presente nos devaneios secre tos de uma histérica, quando a emergência do gozo feminino faz imperar o impulso de se entregara um homem, de se fazer objeto causa do seu desejo, de se deixar invadir por essa pura sensibilidade, ali onde vigora uma pura ausência de sentido sobre o ser. Mas, diante do encontro com o objeto olhar-voz, indexado no semblante do parceiro, a economia de gozo do supereu poderá ser imediatamente disparada, enxertando no gozo fe minino os efeitos danosos da significação fálica. Diante deste encontro com o objeto olhar voz um imperativo silencioso poderá se infiltrar no gozo feminino e fazer estremecer o ser de mulher - ser de mulher que nesse momento aí se institui pela via do objeto. Este imperativo silencioso, ou talvez subliminar, ou melhor dizendo latente, já que ele pode ser enunciado segundo a lógica fálica, ainda que de forma sigilosa, como quem conta um segredo, pode ser assim formulado: - "se entregue a este homem sem medidas, sem pensar, se deixe invadir por este impulso ao extremo das suas exigências, nem que isto lhe custe a desgraça da sua própria vida - se deixe morrer de paixão". Temos, assim, as duas faces do paradoxo do supereu articuladas à máscara da feminilidade contemporânea. O imperativo "não se apaixone" que eqüivale à presença mesma do seu para doxo latente: "se apaixone - morra de paixão". O imperativo que diz não ao gozo pulsional mantém oculta a sua verdadeira face, na qual a verdadeira de exigência do supereu é exigência de gozo em seu caráter mais mortífero. O engano Uma proposição que pretende dar sustentação lógica ao próprio paradoxo do supereu emerge da fala das histéricas. Trata-se da proposição histérica que anunciei no início desta conferência. Esta proposição acaba fixando o próprio paradoxo do supereu, na medida em que pretende ter o valor de uma verdade universalizante relativa à devastação: 'i\. paixão é uma patologia". Se acreditamos neste enunciado no exercício da clínica psicanalítica, se damos crédito à língua autista da neurose histérica como porta-voz de uma verdade universal, estaremos, nada mais nada menos que fixando, avalizando, fortalecendo, cristalizando, a lógica infernal do paradoxo do supereu. Concordar com as histéricas, confirmando através do ato analítico que a paixão é uma patologia, consiste em fortalecer o gozo devastador mortífero que está fixado na crença nesta proposição. Consiste em afundar a psicanálise no poço mortífero do supereu, deixando que ela seja aspirada pelo silêncio da pulsão de mone. Por isso é importante, para Opção Lacaniana nº 44 73 Novembro 2005 que façamos trepid�r a janela da realidade de nossa época, que nós psicanalistas possamos dizer, em alto e bo� tom, que: A patologia devastadora não é da paixão, é patologia do supereu A paixão, ainda que guarde em si a referência conceituai depathos, não deve ser confundi da com a invasão mortífera do gozo superegóíco. Na paixão amorosa a pulsão de morte injeta erotismo na libido, produzindo um excesso de gozo que faz arder o ser, que nela se institui pela via do objeto. Mas é importante considerar que, para Freud, uma das possibilidades fundamentais para se amansar a pulsão de morte consiste na sua fusão com a libido resultando no erotismo, quer dizer, quando a pulsão de morte passava a ser empregada em favor dos fins da pulsão de vida. Em outras palavras, podemos considerar que no excesso de gozo da paixão amorosa temos uma prevalência do gozo que vivifica o corpo. Diferentemente do gozo exigi do pelo supereu que é essencialmente mortificante. Portanto, o campo da paixão só estende seus limites para o terreno do padecimento, da devastação, quando o imperativo superegóico se infiltra no excesso de gozo que vivifica o corpo produzindo nele seus estragos mortificantes. Qual é a saí$ para a sexualidade feminina? Esta é a pergunta recorrente, desesperada e insistente, quando este tema é proposto deste modo. A resposta mais fácil é que a saída é singular, cada uma terá que inventá-la por si mesma. É uma resposta que, ainda que não seja incorreta, não diz nada acerca desta questão. Mas, se nos inclinamos na direção de um rigor epistêmico no que diz respeito à saída analítica para esta questão, isso não é suficiente. A pergunta formulada por Bernardino Horne nesta jornada1' insiste com toda a sua pertinência: como transformar o gozo mortificante do supereu em gozo vivificante? Considero, portanto, que nós psicanalistas não devemos recuar diante desta questão, retoma da aqui nesta conferência a propósito da paixão na histeria. Afinal, é uma pergunta que remete à operação de final de análise na histeria: como libertar a paixão do julgo mortífero do supereu' Tomo como proposição de base uma resposta de Lacan, uma resposta lacônica, que li uma vez en1 seus textos, ou num sen1inário, que procurei bastante antes de fazer esta conferência, mas que não consegui localizar em sua referência bibliográfica. É uma resposta de Lacan para o impasse da feminilidade que nunca me saiu cabeça, e que só agora me proponho a fundamentáJa. Lacan nos disse, em algum momento, que a saída para a feminilidade seria: em lugar de se perguntar "o que é sef mulher'", o caminho para a feminilidade seria "fazer-se mulher". Fazer-se mulher Temos assim como fundamento básico uma disjunção: perguntar o que é ser mulher// fazerse mulher. Disjunção que sustenta duas posições de gozo radicalmente diferentes em relação à feminilidade. A partír daí, formulo antecipadamente a minha resposta: não há outra via para Novembro 2005 74 Opção Lacaniana nº 44 O PSICANALISTA NA CIDADE "fazer-se mulher" a não ser através da paixão - através do desejo de fazer-se objeto causa do desejo masculino; desejo que só advém, com toda a sua potência quando uma mulher é tomada pela contingência da paixão. Mas, "fazer-se mulher" implica diretamente no consentimento ao impulso pulsional, no consentimento aos fins de satisfação passivos da pulsão. Tui consentimen to só é possível na medida em que os dois campos da lógica da sexuação estejam bem delimita dos na subjetividade de um sujeito: o campo da pergunta //o campo do fazer-se. No campo da pergunta a feminilidade receberá a incidência de uma interpretação que advém da lógica fálica. Tal interpretação resultará num juízo de valor acerca da posição de objeto causa do desejo masculino conforme a série que se segue: castrada, passiva, espancada, degradada, excluída. Assim, no campo do Todo, a pretensão de responder a pergunta "o que é ser mulher'" resultará numa resposta que ditfemme, como nos diz Lacan no Seminário Mais, Ainda", com o jogo homofônico possibilitado pela língua francesa, que significa ao mesmo tempo: dizer a mulher, dizer dela, mas sob o preço de difamá-la. É este o efeito da significação fálica do campo do significante sobre a sexualidade feminina. Toda a questão é que esta interpretação, tão espinhosa e dolorosa para as mulheres e sobre as mulheres, só se mantém num estatuto de verdade não apenas pela incidência pura e simples do significante. É preciso considerar que a significação fálica, produzida pelo significante, só mantém uma fLxação mortificante quando está assentada sobre o lastro de uma economia de gozo. Propo nho que este lastro mortificante corresponde à economia de gozo do supereu. A clínica psicanalítica é uma clínica do supereu Proponho aqui que a clínica psicanalítica enquanto clínica do gozo é uma clínica do supereu. É uma clínica do gozo mortificante do qual o sujeito não consegue se impedir de compulsiva mente repetir, exatamente porque está sujeitado a uma exigência imperativa de gozo, que nada mais é do que a exigência de gozo do supereu. É uma clínica que na neurose histérica tem como ponto de mira a quebra da economia de gozo do supereu infiltrada na paixão amorosa. Para tanto, será preciso que uma entrada em análise, instituída como uma antecipação da saída, promova urna disjunção na posição do sujeito diante do impulso superegóico. Serápreciso que o ato analítico produza um salto no qual o sujeito torne distãncia da sua posição de objeto sujeitado ao imperativo superegóico, para uma posição de sujeito de desejo. Só a partir desta primeira operação de disjunção o sujeito poderá situar-se diante do imperativo "goza" formulan do urna pergunta acerca do gozo masoquista que extrai como objeto sujeitado a esse imperativo. Esta seria a condição primeira para que, num final de análise, a extração da economia de gozo do supereu venha franquear as condições efetivas para fazer prevalecer no campo da paixão uma posição de desejo, não mais a força compulsiva de um imperativo devastador, mas um desejo de fazer-se objeto causa do desejo masculino. Só assim, o jogo erótico dos sem blantes masculino e feminino poderá sair da tragédia, para a comédia divertida do fazer de conta que há relação sexual. Este trabalho é uma transcrição de conferências realizadas en1 Goiânia - GO, e em Recife - PE, na V Jornada anual "A violência do supereu", da Delegação Pernambuco da EBP Opção Lacaniana nº 44 75 Novembro 2005 1Lacan, J .. (1998). Função e campo da fala e da linguagem em psícanálise. ln Escrílos (p. 322). Rio de Janeiro: Zahar. :Lacan.J.,(19%). /dem, ibidem. ;Miller, J. ·A. (1998). O osso de Úma análise (p. 131) Sal1·ador: Agente. 'Míller, J.-A. (1'1)8). ldem, ibidem, (p. 130-131). 1Freud, S., 0974) O mal-estar na cirilização, 0929). Obras completas (p. 124). Rio de Janeiro: lmago. tlacan,J., 09iS). O Seminário, Livro 20. Mais Ainda. Rio de Janeiro: Zahar 'Lacan, J. 0998). Diretrízes para um congresso sobre a se,ualidade feminina. op. cit., (p. 742). tlacan. J. (1998). A signlficação do fa!o, Op. cit. �Lacan. J. (2003) Lituraterra. ln Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar. "Freud. S. (1974). A cabeça da Medusa (1922). Op. cil. 11Miller,J.-A., O Outro que n.ão existe e seus comitês de ética (inédito). HLacan, J. 0998). Diretrizes para Um congresso sobre a se�ualidade feminina. op. dt. ii�liller.J.-A., Op. cit. 1'Freud. S. 0974). O mal- estar na chillzação. Op. cil. 11Lacan, J. (19l)S) Sub1·ersão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano, (p.839). Op. cil. t\acan,J. (1998). Idem, ibidem. i;v Jornada anual, 'A 11io[ência do Supereu"", da Delegação Pernambuco da EBP. 1�Lacan,j.(l97)). Op. cil. Novembro 2005 76 Opção f.acaniana nº 44
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