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O Espelho de Morse e Outros Espelhos - Otávio Velho

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o Espelho de Morse e 
Outros Espelhos�( 
espelho de Pr6spero (Morse: 
1988) é um livro com um es· 
tranho percurso. Até hoje não 
foi publicado na língua e no 
país de origem. Acabou saindo no 
México (1982) e, agora, entre nós. 
Revela·nos um Richard Morse até 
certo ponto nosso desconhecido. Não 
é apenas o Morse brasilianista a que 
já nos acostumáramos, nem o Morse 
dos pseudônimos que com fino humor 
se referia a personagens e situações 
que com ele compartilhávamos. Não 
deixa de ser com uma ponta de ciúme 
que "descobrimos" ter que dividi·lo 
com meio mundo. E com muitos sécu­
los. O livro é generoso não só na ma· 
neira com que nos vê, mas também 
no seu escopo, que obriga a sair da 
rotina intelectual e espiritual c a nos 
enxergarmos num quadro muito mais 
amplo. 10 também provocativo. por· 
que lança novas idéios e desafia·nos a 
rever as nossas. Simon Schwartzman 
Otávio Velho 
• 
(1988), de forma igualmente genero­
sa e aberta, aceitou o desafio. Cabe a 
nós outros, creio. não interromper o 
jogo. Aproveitar a inesperada oportu· 
nidade para estimular o debate num 
momento que por muitos motivos ten· 
de a ser mesquinho, voltado para si 
mesmo e pouco animador. 10 nesse es· 
pírito que é apresentado o presente 
texto, tentando acrescentar mais um 
espelho a essa galeria. 
O diálogo entre Richard Morse e 
Simon Schwartzman de certa forma 
lembrou a piada dos dois amigos que 
acabam brigando porque disputam a 
primazia sobre quem pede desculpas, 
cada um querendo impedir o outro de 
fazê·lo. Morse insiste em que a Ibero 
América é que tem algo a dizer ao 
mundo de hoje e Simon em que te· 
mos é que nos livrar das servidões da 
herança colonial e periférica par. ai· 
cançar a racionalidade e • modemi· 
dade mal ou bem representadas pelas 
"sociedades ocidentais". Este parece 
• Agradeço 80S pürlicipsnlcs do curso T�Ori8 da Ideologia c da Cultura (2,- semes· 
lrt:/88) do Programo de Pós-Gráduação em Antropologia Social do Museu Nacional. da 
UFRJ. durante o quul roram elaboradas ou modificadas muitas das idEias aqui expostas. 
E também a Mariza Peirano. que me levou involuntariamenle a escrever eSle artigo. 
F.�/lIIlm: Hi6/ddemi, Rio d\' h�lro. \lol. 1. n. l, 19119. p. <H-I01. 
o ESPELHO DE MORSE E OUTROS ESPELHOS 95 
ser um jogo de espelhos mais perfeito 
do que nos propõe o próprio Morse. 
" como se o espelho não fosse de 
Próspero, mas como se cada um, per­
guntando ao seu espelho, se alegrasse 
com a existência de alguém mais lin­
do! E nisso é que talvez estejam sen­
do não só generosos, mas o mais au­
têntico, Simon, como uma espécie de 
porta-voz. representando uma ciência 
social modernizadora, ansiosa pela 
busca de soluções para o (nosso) país; 
e Morse. assumindo plenamente o pa­
peI que lhe cai tão bem de represen­
tante do centro decadente, falando 
para o orbe. mas colocando-se num 
plano mais abstrato, onde não cabem 
soluções para um mundo em crise, 
mas apenas mensagens, distância e a 
busca de arranjos cuja precariedade é 
reconhecida. Ao contrário do que su­
gere Simon. não há em Morse ilusões 
assim tão grandes a respeito da pró­
pria (bero América, num mundo acei· 
to como irremediavelmente caótico. 
No fundo, é o esfarrapado pedindo 
ajuda ao roto. 
". aliás. essa diferença de perspec· 
tiva que por vezes faz com que o diá­
logo corra o risco de se tornar de sur· 
dos. O esforço analítico e compreensi­
vo de Morse. Simon passa por alto. 
Vai direto 80S riscos. Preocupa-se 
com as implicações das proposições 
de Morse, de certa forma enfiando a 
carapuça que Morse prepara para os 
cientistas sociais "prátiços". Simon, 
por outro lado, pode legitimamente 
perguntar-se se as colocações de Mor· 
se são assim tão "ingênuas". Afinal. 
a caracterização que faz do caminho 
íbero e do caminho anglo pressupõe 
um estado de inércia do segundo que 
torna bastante desigual, de fato, a 
_ • A • comparaçao COm sua vivaz e organIca 
"dialética da tradição" íbero-católica 
que se desdobra a parti r da escolás­
tica. No que. porém, Simon não se 
deteve é que parecem estar em jogo 
precisamente posições e pré-posições 
extremamente díspares no que diz res­
peito a "teorias da mudança", para 
utilizar uma expressão já muito con­
taminada por conotações valorativas. 
" sobre isso que gostaria de fazer al­
gumas considerações de maneira bre­
ve e certamente incompleta. 
Um ponto central para Morse e que 
orienta a sua comparação é a relação 
com a tradição. " a idéia de um pro­
cesso de transformação apoiado numa 
dialética da tradição. Nisso ele não 
está inteiramente sozinho. Após um 
tempo em que o culto moderno à rup­
tura e ao novo não permitia à maio­
ria dos analistas pensar a mudança -
pelo menos a "grande mudança" -
em outros termos, a evidência dos ra­
tos obrigou-os a admitirem possibili­
dades menos drásticas em termos de 
descontinuidade. Entre nós a obra de 
Barrington Moare jr. As orige/ls so­
eiais da ditadura e da democracia 
( 1966) foi um marco e teve suas res­
sonâncias. E isso mesmo se podendo 
dizer, como s6i acontecer nas ciências 
sociais, que se estava apenas recor­
dando algo que de há muito já era 
sabido. Mas fiel ainda ao espírito da 
modernidade triunfante, I feita essa 
importante ressalva (ver, entre outros. 
Schwartzman, 1975 e Velho, 1976), 
a ruptura continuou a ser privilegia­
da como exemplo mais perfeito e aca­
bado de mudança sintetizado no mito 
da revolução. 
Os tempos mudam e sem dúvida o 
clima de menor otimismo quanto ao 
espírito prometéico faz repensar o 
(des)valor da tradição. No confronto 
com O privilegiamento da ruptura isso 
aparece como o espírito da não-mu­
dança. Mas na verdade essa caracteri­
zação não faz inteira justiça à reto­
mada do argumento. No plano teórico 
e epistemológico isso pode ser ates-
96 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1989/3 
tado, por exemplo, pela sofisticação 
do debate em torno da hermenêutica. 
que é ela mesma redescoberta e revi· 
gorada pelas várias linhas de pensa­
mento que privilegiam a interpretação 
em contraste com outras mais convic­
tas de seu estatuto de cientificidade. 
Morse (sem referência à hermenêu­
lica) aplica esse paradoxalmente "no­
vo" espírito à análise das duas 
"opções" do Grande Desígnio Oci­
dental. Mas agora com os sinais tro­
cados. Eu diria que Simon, por outro 
lado, com todas as nuances mantém­
se basicamente fiel a modernidade 
triunfante na sua vertente liberal. que 
no nosso contexto implica uma ruptu­
ra ainda por se fazer ou completar. 
" esse, parece-me, o foco da divergên­
cia. E a partir daí outras coisas po­
dem se revelar. 
Uma delas é que Morse ainda paga 
um tributo ao espírito da modernida­
de triunfante. Simplesmente porque, 
num certo sentido. não desconfia da 
sua (dela) ideologia. Para a herme­
nêutica. de uma forma talvez mais 
radical. o confronto sequer poderia 
no fundo ser tomado em termos da 
disputa entre tradição e ruplura. O 
ser é interpretante. Não há como, no 
final das comas, fugir disso.2 Mas 
por outro lado, alguma coisa de dife­
rente parece de fato estar colocada. 
Assim, Morse e os demais que têm in­
sistido nisso talvez apontem direta­
mente para algo a que talvez não se 
tenha dado a devida atenção: é que 
estão em jogo diferentes relações com 
a tradição (e, portanto, talvez diferen­
tes hermenêuticas, por assim dizer). 
Haveria então em Morse ao mesmo . - . tempo um sintoma e uma ausenCl8. 
Outros autores, por sua vez, têm re­
pensado a questão da tradição nas 
pr6prias "sociedades ocidentais". 
Com sua ajuda talvez possamos ca­
racterizar essa vàriante da relaçao 
com a tradição, que Morse despreza 
em favor de uma reificação da reiHca­
ção dessa tradição tão vivamente ex­
pressa com a ajuda dos teóricos de 
Frankfurt (basicamente Adorno e 
Horkheimer), mas que absolutiza a 
banalidade até o limite,realmente. da 
caricatura. 
Robert Bellah em seu The broken 
covenant (1975) pode ser um ponto 
de partida. Sobretudo porque, como 
Morse reconhece ao citá-lo ( 1988: 
26/7), estão ambos trabalhando no 
mesmo plano: o dos significados cul­
turais. A diferença está em que para 
pensar a "opção anglo-protestante" de 
Morse, Bellah parte de Calvino e dos 
puritanos, e não da linhagem de Hob­
bes e Locke, como Morse, que nisso 
acompanha a maioria dos cientistas 
políticos. Ao fazê-lo, nao só coloca o 
assunto em outro plano, como também 
põe sob outra perspectiva os teóricos 
e os desenvolvimentos políticos poste­
riores. Fundamentalmente, traz à luz 
a natureza original da noção de pacto 
(coverlan/), como não sendo apenas 
um contrato entre homens, mas o es­
.abelecimento, primordialmente, de 
uma relação pessoal com Deus tendo 
como modelo a aliança do povo eleito 
judeu, no Antigo Testamento. O fato 
de ser "construído", embora lhe retire 
no contraste com a tradição escolás­
tica que privilegia o "natural", uma 
referência externa, não lhe tira a di­
mensão de transcendência. E nem a 
dimensão social, na medida em que 
estão envolvidos indivíduos, mas tam­
bém um povo. 
" a partir desse pressuposto que se 
estabelece a relação entre os homens. 
Em síntese: 
"Boa parte da crítica à sociedade 
americana tem-se baseado na acei­
tação da ideologia racionalista. 
o ESPELHO DE MORSE E OUTROS ESPELHOS 97 
lecnicislo, utilitarista que esbocei 
brevemente, e tem-se preocupado 
em apontar até onde esse modelo 
na verdade não funciona bem: 
que O Estado não é neutro nO que 
diz respeito aos grupos de inte­
resse, que o auto-interesse de al­
guns americanos é muito melhor 
servido que o de outros, e assim 
por diante. A intenção crítica des­
te livro é bem diferente. Espero 
mostrar que o modelo liberal uti­
litarista não foi a concepção moral 
e religiosa fundamental da Améri­
ca, apesar de ela ser receptiva em 
certas direções ao desenvolvimen­
to desse modelo. Essa concepção 
original, que nunca cessou de ser 
operativa, baseava-se numa imagi­
nativa concepção religiosa e mo­
rai da vida que levava em conta 
um escopo muito mais amplo de 
necessidades sociais, éticas. estéti­
cas e religiosas do que aquelas 
com as quais o modelo utilitarista 
pode lidar. Sem argumentar a fa­
vor de um reavivamento literal 
dessa concepção allterior, espero 
mostrar que somente um novo e 
imaginativo contexto religioso, 
moral e social para a ciência e a 
tecnologia fará possível atravessar 
as tormentas que parecem aden­
sar-se sobre nás no final do século 
vinte." (Bel/ah, 1975: xiv) 
Esse pacto, por sua vez, pressupu­
nha uma conversão como forma de 
liberação do cativeiro do pecado.' A 
n
,
atureza do homem, no entanto, se­
na fundamentalmente pecaminosa. e 
por isso não há garantia de manuten­
ção do pacto, a não ser na medida da 
fidelidade do povo a seu Deus. P;ra 
isso é necessário avivar, sempre, essa 
relação; e Bellah mostra a importân­
cia política dos reavivamentos religio­
sos na história americana. Revolução 
e constituição, categorias [undamen-
tais do mito americano, estão em re­
lação de analogia, respectivamente 
com conversão e pacto, noções priorj� 
tariamente religiosas e bíblicas. 
A partir dessa perspectiva, os de­
senvolvimentos políticos posteriores a 
que a maioria dos analistas políticos 
5: at�m ganha'!' um novo enfoque e 
sao VIStos - ainda utilizando catego­
rias originalmente bíblicas e religiosas 
- c�mo d,
esvio, transgressão, dege­
neraçao, ahenação etc. Produto da 
perda dos significados transcenden­
tais ... 
Por detrás dessa perda esteve uma 
�udança drásHca na própria concep­
çao da natureza humana. Da dramáti­
ca tensão calvinista entre o crente e 
o mundo (não facilmente transformá­
vel, ao contrário do que parece julgar 
um weberianismo vulgar, em ideolo­
gia), passou-se ao reino da inocência 
do americano tranqüilo: 
" . . . a ênfase era numa mudança 
da vontade ao illvés de um renas· 
cimento radical, na capacidade do 
homem se reformar ao invés da 
necessidade da morte do seu e um 
novo nascimento em Cristo, Esses 
• ensmamentos transformaram a vi-
são calvinista da natureza peca· 
minosa do homem praticamente 
no seu oposto. Tanto o homem 
quanto O mundo, pelo menos na 
América, são essencialmente ino­
centes. Existem .armadilhas e ten-
-
loções a serem evitadas, mas sâo 
acidentais, e não da essência da 
�ondição humana. E nessa simples 
e harmoniosa visão da existência 
humana o sucesso mundano é evi­
dência clara de virtude moral e 
salvação religiosa. As últimas bar­
reiras culturais à glorificação do 
sucesso nos negócios como a prin­
cipal finalidade do homem esta­
vam praticamenle derrubadas no 
98 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1989/3 
final do século dezenove." (Bel· 
lah, 1975: 75·76) 
Penetrou-se num mundo do "senso 
comum e do simples fato" (p. 76), 
uma "harmonia de idealismo moral e 
.religioso sem tensão", "uma concep­
ção particularmente inocente da vida 
humana", "postas de lado as ambi­
güidades morais mais escuras da vi­
da" (p. 81). 
Que distância de Calvino, para 
quem: 
". .. que o homem, cabalmente 
instruido de que em seu poder 
nada lhe foi deixado de bom, e de 
que de todos os lados cercado está 
da mais miseranda necessidade, 
seja, no entanto, ensinado a aspi­
rar ao bem, de que é carente, e à 
liberdade, de que foi privado, e 
sejal destarte, mais incisivamente 
despertado da inação, do que se 
de suprema virtude se imaginasse 
dotado.' (Calvino, 1985: 15).' 
Trata-se, portanto, de uma verda­
deira inversão. Bellah tende a passar 
por alto as razões disso e a lógica do 
funcionamento desse sistema do pri­
mado da inocência. Quem, no entan­
to, sem ter tido a experiência desse 
fundo original, teve a do contato de 
uma maneira ou de outra com essa 
• 
moral da inocência americana, não 
pode deixar de admirar-se com sua 
força e eficácia. A ponto de para a 
maioria dos nossos cientistas políticos 
continuar a ser - no momento mes­
mo da sua crise - o modelo da vir­
tude secular a ser alcançado. E para 
muitos dos próprios analistas america­
nos - como Richard Sennet (1988) 
- o passado a ser revigorado. 
Outros autores - de perspectivas 
compatibilizável com a de Bellah -
tratam mais a fundo da construção 
dessa ética e dessa visão de mundo, 
bem como de seu funcionamento. Pa­
ra o caso inglês, Edmund Leites 
(1987) realiza um interessante traba­
lho em que mostra a elaboração de 
uma "ética da constância" que subs­
titui a "cultura do temperamento os­
cilante" da Idade Média e, mesmo, dos 
primórdios da Reforma. Heinz-Dieter 
Kittsteiner (1984) realiza trabalho se­
melhante para a Alemanha luterana, 
mostrando a passagem do primado da 
graça para o primado da virtude, que 
tem o seu momento culminante no 
Iluminismo e a autonomização da 
consciência com Kant: 
"Num sentido muito real, o pr6-
prio cidadão tornou-se agora o 
juiz interno que expede dolorosas 
penalidades. Com isso tudo, ele no 
entanto desprendeu-se da graça, a 
dádiva desse ser estranho que ha­
via se imposto a ele. . .. A socie­
dade burguesa foi concebida co­
mo a sociedade dos filhos virtuo­
sos." (Kittsteiner, 1984: 971) 
Ruptu.ra? De certa forma sim. 
Mas uma ruptura que é ao mesmo 
tempo inversão, é suspeita. Ainda 
mais que se dá nos quadros de uma 
lógica cultural que já a prevê, enquan­
to desvio. De qualquer forma, esses 
autores (Leites menos) não parecem 
pensar que o movimento tenha chega­
do ao fim. Como diz Kittsteiner: 
"A hist6ria da graça e da virtude, 
no entanto, não termina com a 
posição kantiana da autonomia 
da consciência. A virtude não po­
dia atingir aquilo que seus parti­
dários esperava/ll - não apenas 
porque novas áreas de sentimen­
tos de culpa irromperam com a 
transferênciado controle para 
dentro da pessoa, mas também 
o ESPELHO DE MORSE E OUTROS ESPELHOS 99 
porque uma nova sociedade bur­
guesa e a moralidade correspon­
dente não emergiram e, em ter­
mos históricos, não podiam ter 
emergido. Com o surgimento e 
expansão do capitalismo, a graça 
novamente teve que ser chamada 
em aurElio." (1984: 971)' 
A descrição da situação atual para 
esses autores não é muito diferente 
da de Morse e os frankfurtianos. Mas 
ao invés de se apelar (como Morse) 
para um outro modelo, apela·se para 
um movimento que é ele mesmo pro. 
prio dessa tradição: o reavivamento, 
o retomo às origens, privilegiando a 
Jante da tradição diante de tradições 
"secundárias". Desse ponto de vista, 
mais do que ruptura o movimento 
pode ser visto também como uma es­
pécie de dialética, porém muito me­
nOs "positivau, arquitetônica e cumu­
lativa do que aquela apresentada por 
Morse para o caso íbero-católico. 
Aliás, Senoet e os frankfurtianos 
(entre outros) também parecem pen­
sar em termos de· um retorno às ori­
gens. Só que a origem - consisten­
temente com a própria lógica da in­
versão - passa a ser 8 tlma ética e 
uma cultura secularizadas. Mas o mo· 
vimento é o mesmo, podendo-se, sigo 
nificativamente, reconhecer a matriz 
original, 7 embora inspire entre a nos· 
sa intelectualidade uma trajetória di· 
ferente - a da busca d. construção 
de uma ética secular, que em geral 
passa por cima da crise dessa ética. 
Outro autor que no reino da dia· 
lética das doutrinas também de certa 
forma aborda as razões desse movi­
mento é J. B. Metz (1969), um teólogo 
(católico) alemão. Ao contrário das 
associações que se tem feito ultima· 
mente entre o cristianismo e o supos· 
to "retorno do sagrado", mostra ca­
ma o (judaico)-cristianismo é indisso-
ciável do próprio processo de secula­
rização, na medida que um Deus pes­
soal e transcendente necessariamente 
dessacraliza o mundo. Apenas, igual­
mente num certo movimento de re­
tomo, mostra também como o atels­
mo seria ao mesmo tempo rebento e 
desvio nessa dialética, posto que de­
saparecida a garantia divina da des­
sacralização do mundo, esse tende de 
novo, por diversas formas e "idola­
trias" assumidas ou não, a ressacrali­
zar-se. O retorno ao Deus pessoal (ao 
pacto?) seria paradoxalmente condi­
ção para o prosseguimento. e culmina­
ção desse movimento. 
Morse, portanto, subestima a rique· 
za de sua própria herança. Para a 
qual, inclusive, mais propriamente 
parece acionável a referência aos ar· 
quétipos por ele feita (p. 162). Resta 
saber se essa riqueza ainda significa 
potencialidade, como pensa Simon. 
Ou se, na medida em que na verdade 
dependa de um movimento tão dra­
mático, tão sem concessões e media­
ções (ao contrário de fbero-católico \, 
tão carismático enfim, de fato não 
haja mais como acioná-lo para sair 
da "jaula de ferro".· Pelo menos a 
critica católica "orgânica" parece jul­
gar que desde que se privilegia a re­
lação individual, as portas estão ine­
vitavelmente abertas para os desen­
volvimentos posteriores já assinala­
dos. E os antropólogos certamente re· 
conhecerão aqui algumas raízes da 
discussão hoje quase que populari7Jl­
da em cert.os meios pela obra de 
Leuis Dumont em torno da oposição 
entre holismo e individualismo (a que 
o próprio Morse parece ter dedicado 
ateoção posteriornleote a O espelho 
de Pr6spero). 
De qualquer forma, para não pen­
sarmos em termos de um estrito cul· 
• 
100 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1989/3 
luralismo, talvez valha a pena imagi­
narmos a ruptura, a dialética da Ira­
dição e o retorno às origens como um 
estoque de possibilidades (a ser mais 
teorizado) aberto a nós todos e com­
binável de variadas formas_ Afinal de 
contas, algumas possibilidades que 
nos parecem particularmente incom· 
patíveis com o mundo moderno tal­
vez só o sejam na medida em que a 
própria imagem do mundo moderno 
seja uma construção dos intelectuais.· 
Notas 
I. Insisto nessa qualificação (triunfante) 
para fugir ao debate sobre se se trata ou 
não da própria modernidade que está em 
questão. 
2. No campo da história isso de certa 
forma foi dramatizado pela rebeldia de 
Theda Skocpol (1979). que buscou, JUSla­
mente, apontar os elementos de continui­
dade que acompanham as grandes revolu-
-
çoes. 
3. Para uma análise do fundo religioso 
por detrás da importante noção de cati· 
veiro no meio rural brasileiro, ver Velho 
(1987). 
4. Em sua versão secular vulgarizada. 
tais noçõcs (desvio. degeneração etc.) ten­
deram a ser identificadas com uma estrei­
teza ideológica moralista incapaz de abar­
car o conjunto dos comportamentos huma· 
nos. Cabe notar. no entanto. que original­
mente tais noções opunham·se ao mal abso­
luto maniquefsta em contraste com o qual 
reconhecia uma rererência inicial "positiva" 
(Ricocur, 1969). 
S. Curioso e sintomático como esse 
mesmo tipo de mudança desperta no histo· 
riador marxista Christopher Hill (entre 
outros) admiração, porque "certos espíritos 
corajosos começavam a indagar como um 
Deus onipotente e beneficente poderia con­
denar a maior parte dos seres humanos a 
uma eternidade de torturas devido à irens­
gressão de um remoto antepassado" (HiII. 
1988: 20). Para uma visão menos banal da 
concepção de pecado original c da questão 
do mal. ver Ricoeur (1969). 
6 . Dentro dessa tradição. Kierkegaard 
realiza uma descrição vívida da disti1lçiio 
(difícil de captar de uma perspectiva redu-
cionista) entre a relação pessoal com Deus 
e a ética em Temor e tremor (1974), a per­
t'ir do episódio do sacrifício de Isaac por 
Abraão (Gen, 22). Já no que diz respeito 
especificamente à graça, uma reflexão não 
menos vrvida foi proporcionada recente­
mente pelo filme dinamnrquês A festa de 
Babette. 
7 . Desse ponto de vista, o uso que Morse 
Caz dos Crankfurtianos é apenas parcial. E 
como na verdade eles fazem a crítica da 
razão instrumental em nome da razão, tam· 
bém nao parece adequado associá-los dire· 
tamente ao irracionalismo, como faz Simon. 
8. A sugestão, evidentemente. é que esse 
movimento corresponde àquele privilegiado 
por Weber do péndulo carisma-racionaliza­
ção. Não deixa, aliás, de ser tentador ima­
ginar os dois clássicos das ciências sociais, 
Durkheim e Weber I como pensadores cujas 
categorias Cundamentais de análise derivam 
desses dois modelos, o primeiro (no caso 
não necessariamente "[bera", mas pelo 
menos associável à escolástica) a partir da 
precedência do social (e da ffsociedade"), 
e o segundo tendo como referência básica 
a ação social significativa dos indivíduos. 
9. Para os criticas de Morse céticos 
quanto às possibilidades da mensagem da 
escolástica nos dias de hoje. talvez valha 
a pena consultar os trabalhos de Henrique 
de Lima Vaz (1986 e 1988, nesse último 
particularmente a conclusão do ensaio sobrl! 
ttica e Direito), que tem feito importante 
rerlexão sobre o tema. onde inclusive deba­
te com alguns dos autores mais significa· 
tivos da ciência política contemporânea. 
Bibliografia 
BELLAH. Robert N. 1975. TIIe broken 
covenarTt: Americmr civil religion in time 
of Irial. New York, The Seabury Press. 
CALVINO. João. 1985. As institutos ou 
Tratado da religião cristã, vol. 11. São 
Paulo, Casa Editora Presbiteriana. 
HILL. Christopher. 1988. O e/pifO de Deus. 
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Otávio Velho t professor do Programa 
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do Museu Nacional da UFRJ e autor do 
livro Capitalismo outorit6rio e compesinalo 
(2.' ed. São Paulo, DireI. 1979). 
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