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CONFIANÇA1 Tradução parcial de Flavio Williges (Departamento de Filosofia/UFSM) A confiança é importante, mas é também perigosa. É importante, pois nos permite criar relações com pessoas e confiar nelas- no amor, dando conselhos, no reparo de problemas hidráulicos ou naquilo que precisarmos - especialmente quando sabemos que nenhuma força exterior nos obriga a dar tais coisas. Mas confiança também envolve o risco de descobrir que as pessoas em que confiamos poderão não se superar por nós, pois, se houvesse alguma garantia que elas poderiam se superar, então não teríamos nenhuma necessidade de confiar nelas. Assim, a confiança também é perigosa. O que nós arriscamos ao confiar é a perda das coisas que nós confiamos aos outros, incluindo, talvez, nosso amor-próprio que poderá ser abalado pela traição da confiança. Dado que a confiança é arriscada, a questão de quando ela está assegurada (warranted) é de especial relevância. Nesse contexto, ‘assegurada/garantida’ significa justificada ou bem-fundada (onde confiança bem-fundada mira eficazmente a pessoa confiável). Se a confiança é garantida nesses sentidos, então o perigo da mesma ou é minimizado, como ocorre com a confiança justificada, ou eliminado inteiramente, como ocorre com a confiança bem-fundada. Deixando o perigo da confiança de lado, alguém poderia perguntar se a confiança é garantida no sentido de ser plausível. A confiança não pode ser garantida em uma situação particular, pois isso simplesmente não é plausível: as condições necessárias para isso não existem, como ocorre quando as pessoas sentem somente pessimismo umas em relação às outras. Esse verbete sobre confiança está estruturado como uma resposta à questão geral acerca de quando ou como a confiança é assegurada, onde ‘assegurada/garantida’ será amplamente entendido de modo a incluir ‘justificado’, ‘bem-fundado’, e ‘plausível’. 1 Verbete escrito por Carolyn McLeod para a Stanford Enciclopedia of Philosophy. A referência para citação é a seguinte: McLeod, Carolyn, "Trust", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2015 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = <http://plato.stanford.edu/archives/fall2015/entries/trust/> Uma resposta filosófica completa para essa questão deve explorar as várias dimensões filosóficas da confiança, incluindo a natureza conceitual da confiança e da confiabilidade, a epistemologia da confiança, o valor da confiança, e o tipo de atitude que é confiar. A fim de ilustrar como cada um desses aspectos é relevante, observe que a confiança está assegurada como, i. Plausível, novamente, apenas se as condições requeridas para a confiança existem (por exemplo, otimismo acerca da habilidade de outrem). Saber o que são essas condições requer entender a natureza da confiança. ii. bem-fundada, apenas se o alvo da confiança é confiável, o que faz a natureza da confiabilidade importante na determinação de quando a confiança é assegurada. iii. justificada, às vezes quando o alvo da confiança não é, de fato, confiável, o que sugere que a epistemologia da confiança é relevante. iv. justificada, frequentemente por que algum valor emergirá da confiança ou por que é valiosa em relação a algo ou em si mesma. Assim, o valor da confiança é importante. v. Plausivel, apenas quando é possível a alguém desenvolver confiança, dadas as suas circunstâncias (do agente) e o tipo de atitude mental que é a confiança. Por exemplo, a confiança não pode ser o tipo de atitude que alguém pode querer ter para si mesmo sem qualquer evidência da confiabilidade de uma pessoa. Esse ensaio explora essas diferentes questões filosóficas acerca da confiança. Ele também lida predominantemente com a confiança interpessoal, que eu considero o paradigma dominante da confiança. Ainda que alguns filósofos escrevam sobre a confiança que não é interpessoal, incluindo ‘confiança institucional’ (isto é, confiança nas instituições; ver, por exemplo, Potter 2002, Govier 1997, Townley e Garfield 2013) a confiança no governo (Hardin 2002) ou na inteligência artificial (que pode ser apenas semelhante à pessoa; ver, por exemplo, Coeckelbergh 2012, Taddeo e Floridi 2011) e ‘auto-confiança’ (Govier 1993, Leherer 1997, Foley 2001, McLeod 2002, Goering 2009, Jones 2012b, Potter 2013) muitos concordariam que essas formas de ‘confiança’ são coerentes apenas se elas partilham importantes características (isso é, podem ser modeladas a partir) da confiança interpessoal. Portanto, eu assumo que o paradigma dominante é o interpessoal. ____________________________________________________________ ________________ 1. A Natureza da Confiança e da Confiabilidade A confiança é uma atitude que temos em relação a pessoas que nós esperamos que sejam confiáveis, onde a confiabilidade é uma propriedade, não uma atitude. A confiança e a confiabilidade são, portanto, inteiramente distintas, embora, idealmente, aqueles em quem confiamos possam ser confiáveis e aqueles que são confiáveis possam ser alvos de confiança (trusted). Para garantir a confiança (isto é, plausível) em um relacionamento, os envolvidos nesse relacionamento devem ter atitudes mútuas que permitem a confiança. Contudo, para garantir a confiança (isto é, bem- fundada), ambos envolvidos devem ser confiáveis. Confiar requer que possamos, (1) ser vulneráveis aos outros (vulnerável à traição em particular); (2) pensar bem de outros, pelo menos em certos domínios; e (3) ser otimista que eles serão ou pelo menos poderão ser competentes em certos aspectos. Cada uma dessas condições para a confiança é relativamente controversa. Há, entretanto, uma condição ulterior que é controversa: que aquele que confia (trustor) seja otimista quanto ao alvo da confiança (trustee) poder ter um certo tipo de motivo para agir. As controvérsias giram em torno do último critério, pois não está claro qual tipo de motivo, caso haja algum, esperamos das pessoas que confiamos. Do mesmo modo, não é claro qual tipo de motivo, caso haja algum, uma pessoa confiável deve ter. Condições claras para a confiabilidade são que a pessoa seja competente e esteja comprometida a fazer o que a ele ou ele foi confiado. Mas essa pessoa pode também ter que se comprometer em certo aspecto ou por uma certa razão (por exemplo, ele ou ela se preocupam com o confiador (truster)). Essa seção explica essas várias condições para a confiança e confiabilidade e foca, em particular, na controvérsia em torno da condição sobre os motivos. Um critério importante para a confiança é que o confiador possa aceitar algum nível de risco ou de vulnerabilidade (Becker 1996). Minimamente, o que essa pessoa arrisca ou está em condição de vulnerabilidade é a falha do alvo da confiança (trustee) em fazer o que ele ou ela precisa que a pessoa faça. O confiador pode tentar reduzir esse risco monitorando ou impondo certas coerções no comportamento do alvo da confiança; ainda depois de um certo limiar talvez, por mais que ele ou ela monitore e coaja, ele ou ela confiarão menos nesta pessoa. A confiança é relevante “antes que se possa monitorar as ações dos ....outros” (Dasgupta, 1988, 51) ou quando por respeito aos outros recusa-se a monitorá-los. Deve- se ficar satisfeito com ele por ter algum poder discricionário ou liberdade (Baier 1986; Dasgupta 1988). Portanto, não se pode rejeitar a possibilidade de ser vulnerável. Uma condição associada à confiança é o potencial de traição (e, como será notado abaixo, a condição correspondente para a confiabilidade é o poder de trair). Annete Baier escreveu que “a confiança pode ser traída ou, pelo menos, acabar, mas não ser desapontada” (1986, 235). Em sua visão, o desapontamento é a resposta apropriada quando alguém simplesmente depende(relied on) de alguém para fazer algo, mas não confia nele ou nela para fazê-lo. Enquanto pessoas que monitoram e constrangem o comportamento de outras pessoas e não lhes permitem provar sua confiabilidade podem depender dos outros, elas não podem confiar nelas. Pois, embora sua dependência (reliance) possa vir a ser desapontada, ela não pode ser traída. Considere alguém que confia em objetos inanimados, tais como despertadores; quando eles quebram, não nos sentimos traídos, embora possamos ficar desapontados. A dependência sem a possibilidade de traição não é confiança. Assim, pessoas que confiam em outras de um modo tal que torna a traição impossível não confiam nas outras. (Para conhecer uma abordagem que resiste a essa visão, ver O’Neill 2012, p.307). As pessoas não confiam e não podem confiar em outras, caso suspeitem facilmente umas das outras (Govier 1997, 6). Se se assume o pior sobre alguém – “ela está atrasada por que ela não respeita meus sentimentos”, ou “eu aposto que ele está falando de mim pelas minhas costas”- então desconfia-se, ao contrário de confiar na pessoa. Paradigmaticamente, a confiança envolve sentir otimismo e não pessimismo quanto ao alvo da confiança (trustee) ser capaz de fazer algo por nós (ou para outros talvez), que é, em parte, o que nos torna vulneráveis à confiança. Como Karen Jones escreve, tal otimismo “restringe as inferências que faremos sobre as ações prováveis de outros. Confiar assim expõe-nos ao dano, pois dá surgimento à interpretação seletiva, o que significa que podemos ser enganados, que a verdade pode passar despercebida, como se fosse, diante de nossos olhos” (Jones, 1996, 12). Alguns - incluindo Jones em seus últimos trabalhos sobre confiança- argumentaram que o otimismo do confiador (trustor) esta presente em exemplos típicos de confiança, mas não em todas as instâncias (Jones 2004, McGeer 2008, Walker 2006 citado por McGeer). Tal otimismo está ausente, por exemplo, em casos de “confiança terapêutica” (Horsburgh 1960). Para ilustrar esse tipo de confiança, considere os pais que “confiam aos seus filhos a casa ou o carro da família, crendo que seus rebentos poderão abusar de sua confiança, mas esperando que tal confiança dispare, no momento adequado, um comportamento mais responsável e correspondente à confiança” (McGeer 241, sua ênfase, ver também Pettit 1995). A alegação de Jones e outros é que tal confiança envolve a atitude normativa que o alvo da confiança deve fazer o que alguém confia que ele ou ela faça, em vez do otimismo que ele ou ela fará. A confiança terapêutica é inusual nesse aspecto e noutros (o que ficará evidente posteriormente nesse verbete). O resto dessa seção trata com formas de confiança e confiabilidade mais usuais. Não ser otimista sobre a competência das pessoas também torna a confiança impossível. Sem confiar que as pessoas manifestarão alguma competência, não podemos confiar nelas. Nós usualmente confiamos em pessoas para fazerem certas coisas- por exemplo, cuidar de nossos filhos, nos orientar, ou serem honestas conosco- mas nós não podemos fazê-lo se pensamos que elas não demonstraram nenhuma habilidade relevante (incluindo habilidades morais de saber o que significa ser honesto ou cuidar, Jones 1996, 7; McLeod 2002, 19). Raramente, talvez nunca, confiamos nas pessoas completamente (isto é, A simplesmente confia em B). Em vez disso, “a confiança é geralmente uma relação tripartite: A confia em B para X” (Hardin, 2002, p. 9). 2 Ter confiança num relacionamento, portanto, não exige assumir que a outra pessoa será competente em cada aspecto. O otimismo sobre a competência da pessoa em pelo menos uma área é essencial. 2 Descrições da confiança como uma relação envolvendo três partes podem variar. Por exemplo, Baier descreve a relação como “A confia em B quanto ao item valorizado C” (1986); em outros palavras, A confia em B com C. Para objeções ao modelo de Baier, ver Jones 1996, 10, 17-19). Interessantemente, em “Trust and Terror”, Karen Jones objeta à análise das três posições da confiança por falhar ao descrever um tipo básico de confiança que o terror frequentemente destrói: o que Jones chama de “confiança basal” (2004). Quando confiamos em pessoas, somos otimistas não apenas que elas serão competentes para fazer o que confiamos a elas fazer, mas também que elas se comprometerão ao fazê-lo. Pode-se falar sobre esse compromisso ou em termos do que o confiador (trustor) espera do confiado (trustee) ou como uma condição para confiabilidade (e o mesmo é verdadeiro, naturalmente, da condição de competência). Para o benefício da simplicidade e para focar em algo nessa seção sobre a confiabilidade e não simplesmente sobre a confiança, eu farei referência ao compromisso na maioria das vezes como uma condição para a confiabilidade. Embora tanto a competência e os elementos motivacionais da confiabilidade sejam cruciais, a natureza exata da última não é clara. Para alguns filósofos, importa apenas que o alvo da confiança (trustee) seja comprometido. O ponto central da confiabilidade em sua visão diz respeito ao compromisso contínuo do alvo da confiança, e, em particular, sob quais circunstâncias, caso haja, pode-se esperar tal compromisso de outra pessoa (ver, por exemplo, Hardin, 2002, 28). Por contraste, para outros filósofos, um compromisso contínuo de outra pessoa não é suficiente para a confiabilidade; de acordo com eles, as origens do compromisso importam, mas não exatamente sua existência ou a duração. O problema central da confiabilidade para esses filósofos não é precisamente se, mas também como o alvo da confiança (trustee) é motivado a agir. Em suas abordagens, alguns motivos são simplesmente incompatíveis com a confiabilidade. Para determinar qual a concepção correta, nós precisamos considerar diferentes motivos possíveis que poderiam estar na base do comportamento confiável. Alguns filósofos acreditam que a confiabilidade pode ser “compelida através de normas” ou, mais geralmente, por força de coerções sociais (Hardin, 2002, p. 53; ver também O’Neill 2002, Dasgupta, 1988). Em um esforço para ser confiável, as pessoas podem sujeitar-se às coerções sociais, como alguém faz quando publicamente declara sua intenção de perder peso, colocando a si mesmo em risco de censura pública se falhar. Alternativamente, o confiador em um relacionamento pode introduzir coerções a fim de exigir que o alvo da confiança assine um contrato, por exemplo. A coerção imposta pode ser a motivação primária para ser confiável. Isso pode compelir ao compromisso contínuo fundado no auto- interesse. Chamem a essa visão da confiabilidade de “visão do contrato social”. Muitos filósofos concordariam que a visão do contrato social é apenas uma descrição parcial do que poderia motivar a confiabilidade. Embora coerções sociais possam apoiar a confiabilidade, elas não podem explicar inteiramente a confiabilidade. Pois se pudessem, então o seguinte tipo de pessoa poderia ser confiável: um empregador sexista que trata empregadas mulheres bem apenas por que acredita que ele poderia enfrentar sanções legais se não o fizesse (Potter 2002, 5). Muitos poderiam argumentar que embora esse comportamento da pessoa seja previsível e confiável, não é confiável em um sentido genuíno. Esses teóricos podem distinguir entre a mera confiabilidade da confiabilidade que tem como base o fato que as pessoas sabem ou consideramos que ser confiável é ter o poder de trair, enquanto que pessoas que sabemos ou consideramos meramente confiáveis (reliable) podem apenas nos desapontar (Holton 1994). As empregadas mulheres podem saber que seu empregador trata-as bem só por que teme alguma sanção social. Nesse caso, ele não poderia traí-las, embora pudesse desapontá-las.E se isso fosse verdadeiro, ele não seria confiável para elas. Uma alternativa para a visão do contrato social é a visão de acordo com a qual as pessoas confiáveis são motivadas por seus próprios interesses a manter a relação que elas têm com o seu confiador (trustor), o qual, por sua vez, encoraja-nas a encapsular os interesses dessa pessoa em seus próprios interesses. Russell Hardin defende essa visão do “interesse encapsulado”(2002). Contudo, ela também é problemática. Para ver por que, considere como ela aplica-se ao empregador sexista. Ele não está motivado por algum interesse em manter seu relacionamento com as empregadas mulheres: se ele pudesse demiti-las ou mesmo evitar contratá-las, então ele o faria. Ele não é, portanto, confiável. Imagine, no entanto, que ele tem um interesse em manter essas relações e, em função disso, ele trata as mulheres bem, ainda que seu interesse resulte de um desejo de mantê-las próximas, principalmente por que assim ele poderia imaginar-se fazendo sexo com elas. (Portanto, ele permanece um empregador sexista). Para satisfazer esse interesse, ele poderia ter que encapsular o seu interesse em manter a continuidade da relação. E isto poderia fazê-lo confiável na descrição de Hardin. Mas ele é confiável? A resposta é realmente “não”, se a mulher tem um interesse em ser bem tratada de um modo que não seja meramente superficial. Meu ponto aqui é que ser motivado pelo desejo de manter uma relação (a motivação central de uma pessoa confiável na visão dos interesses encapsulados) pode não envolver adotar todos os interesses do confiador que poderiam realmente torná-lo confiável para essa pessoa. Feitas as contas, assim como na visão do contrato social, a visão dos interesses encapsulados descreve apenas a dependência (reliability) e não a confiabilidade (trustworthiness). A visão do contrato social e a visão dos interesses encapsulados são ambas exemplos do que Karen Jones chama de “visões de avaliação de risco” acerca da confiança ou confiabilidade (1999,68). De acordo com elas, as pessoas confiam em outras sempre que elas assumem que o risco de confiar nos outros é baixo- pois está no auto-interesse desses pessoas agir desse modo- e assim elas confiam nelas. O auto-interesse determina a confiabilidade nessas descrições. Teorias de avaliação de risco em geral são populares entre teóricos da decisão racional e nas teorias do contrato social que presumem que as pessoas são naturalmente auto-interessadas. Um tipo diferente de visão é aquela que Jones chama de uma descrição da confiabilidade “fundada na vontade”, que admite a confiabilidade apenas onde o alvo da confiança (trustee) é motivado por boa vontade (Jones 1999, 68). Essa visão origina-se no trabalho de Anette Baier e na influência que exerceu, mesmo fora da filosofia moral (por exemplo, na bioética e no direito, especialmente na lei fiduciária; ver, por exemplo, Pellegrino e Thomasma 1993, O’Neill 2002, e Fox-Decent 2005). De acordo com esta concepção, um alvo de confiança que é realmente confiável pode fazer coisas motivado por boa vontade em relação ao confiador, para o qual ou para quem o alvo da confiança é digno de confiança ou para ambos. Embora proponentes da visão de avaliação de risco poderiam provavelmente achar a visão da boa vontade muito restrita -realmente nós podemos confiar em pessoas sem presumir sua boa vontade- ela parece imune às críticas que aplicam-se aquelas concepções. Para resumir essas críticas: essas explicações, diferentemente da explicação que apela para a boa vontade, falham no que diz respeito à demanda que a pessoa confiável importe-se sobretudo com o confiador ou se importe com aquilo que ele ou ela valorizam. Como vimos, tal manifestação de preocupação e cuidado parece ser central para uma descrição completa da confiabilidade. A razão particular pela qual o cuidado é fundamental é que ele nos permite distinguir entre confiança e mera dependência (reliance). Eu tenho dito que os dois diferem, supostamente, por que apenas o primeiro pode ser traído. Mas por que isso é verdadeiro? Por que a confiança pode ser traída, embora a mera relação de dependência somente pode levar a algum tipo de desapontamento? A resposta que Baier dá é que a traição é a resposta apropriada para alguém em que se confia para agir a partir da boa vontade, em oposição a má vontade, egoísmo ou o costume resultante da indiferença (1986. 234-5). Aqueles que dizem que confiar podem envolver fiar-se (reliying on) nas pessoas para agir a partir de algum desses motivos não podem distinguir a confiança da dependência (reliance). Exemplos são os teóricos da avaliação de risco que, novamente, fazem da confiabilidade uma questão de auto-interesse. Embora o auto-interesse como motivo seja compatível com a boa vontade em relação aos outros, é também compatível com a má vontade e o egoísmo. A questão é como pode a confiabilidade ser diferente da mera dependência (reliance) se a confiança pode visar qualquer uma dessas atitudes? Embora seja útil para distinguir a confiabilidade da dependência, ou confiança da dependência, a descrição baseada na vontade de Baier não é perfeita, contudo. Críticas feitas a ela que sugerem que a boa vontade não é nem necessária e nem suficiente para a confiabilidade. Não é necessário, alguns dizem, por que nós podemos confiar nas outras pessoas sem presumir que elas tenham boa vontade. De fato, “frequentemente nos sentimos satisfeitos em confiar sem saber muito sobre a psicologia daquele em quem se confia, supondo meramente que eles têm traços psicológicos suficientes para dar conta do que se espera” (Jones, 2004, 4, citando Blackburn 1998). Essa objeção implica que a confiança pode estar assentada em diferentes tipos de motivos, o que é o caso da concepção da avaliação de risco da confiança, mas não acerca da abordagem baseada na vontade de Baier. Embora essas concepções sejam problemáticas, as explicações que partem da avaliação de risco têm seus méritos. Por exemplo, elas ajudam a explicar nossas tendências em confiar que pessoas estranhas serão moralmente decentes em relação a nós, o que presumivelmente pode ocorrer sem assumir que estranhos sintam boa vontade em relação a nós. Pode-se dar sentido à confiança em estranhos sem adotar a visão da avaliação de risco, contudo, ou, em outros termos, sem assumir que o auto- interesse pode ser motivo da confiabilidade do estranho. Dentre os motivos que podem estar na base da confiabilidade na ausência da boa vontade figuram o motivo de dar suporte aos compromissos morais, preencher uma obrigação moral ou aderir a uma norma social. Por exemplo, eu posso confiar na decência de um estranho simplesmente presumindo que ele está comprometido com a decência comum. Em última instância, o que eu estou presumindo sobre o estranho é sua integridade moral, que alguns dizem que é o motivo relevante para relações confiáveis (McLeod 2002, 21-27). Outros igualmente identificam esse motivo com uma obrigação moral e dizem que ele é atribuído ao alvo da confiança pelo próprio ato de confiar nele ou nela (Nickel 2007; e para uma descrição similar, ver Cohen e Dienhart 2013). Deixando de lado a preocupação que tais visões “moralizam” a confiança impropriamente, Amy Mullin argumenta que pessoas confiáveis são realmente motivadas por um tipo de compromisso que não pode ser moral: um compromisso com uma norma social particular (2005, 316). Assim como ser desnecessário, a boa vontade não pode ser suficiente para a confiabilidade por três razões. Em primeiro lugar, alguém que tenta manipular “você”- um manipulador da sua confiança (Baier 1986)- pode “confiar em sua boa vontade sem confiar em você” (Hoton 1994, 65). Portanto, Zac Cogley afirma que a confiança envolve a crença não simplesmente que alvos de confiançapossam manifestar boa vontade, mas que eles devem-na a nós (2012). Em segundo lugar, fazer a confiabilidade repousar unicamente na boa vontade não consegue explicar a confiança que não é bem-vinda. Quando as pessoas não recebem bem sua confiança, elas não estão fazendo objeções ao seu otimismo acerca da sua boa vontade (quem poderia objetar a isso?), mas apenas ao fato que você está contando com elas. Assim, o otimismo acerca da boa vontade é insuficiente e, de acordo com Karen Jones, precisa ser casado com a expectativa que o alvo da confiança é “favoravelmente movido pelo pensamento que (você está) contando com ele (1996, 9). Em terceiro lugar, você pode esperar que pessoas sejam confiavelmente benevolentes em relação a você sem confiar nelas (Jonas 1996, 10). Você pode pensar que sua benevolência não está estruturada pelos tipos de valores que, para você, são essenciais à confiabilidade. (4). Disso se segue que alguma expectativa sobre valores compartilhados ou normas pode ser uma elemento importante da confiança (Lahno 2001, McLeod 2002, Mullin 2005, Smith 2008). Outras críticas às caracterizações da confiança baseadas na vontade dizem respeito a como iremos interpretar a “boa vontade”. Em boa parte da discussão acima, ela é estritamente concebida de modo a envolver um sentimento amigável ou um apreço pessoal. Contudo, Jones nos convida, em seu primeiro trabalho, a entender a boa vontade de um modo tal que ela poderia estar fundada na benevolência, retidão ou algo similar, ou em um sentimento amigável (1996, 7). Em seu artigo posterior, contudo, ela se preocupa que ao definir a boa vontade assim tão amplamente nós “podemos torná-la um saco de gatos sem sentido que meramente informa a presença de algum motivo positivo e um motivo que pode ou não estar realmente direcionado ao confiador” (2012, 67). Se essa alegação for correta, e um entendimento estrito da boa vontade for realmente um fator limitador, então as teorias baseadas na vontade encontram-se diante de sérios problemas. Para recapitular o tópico dos motivos, embora as teorias baseadas na vontade sejam influentes, elas estão ainda abertas a um conjunto de críticas substantivas. Os filósofos que estão menos interessados em distinguir a confiabilidade da dependência (reliability) rejeitam tais descrições, tendo como base o fato de serem muito restritas. Por contraste, aqueles que pensam que essa distinção é importante seguem Baier e identificam o motivo relevante como sendo a boa vontade (por exemplo Potter 2020); ou combinam a confiança na boa vontade com certas expectativas (Cogley 2012); ou abandonam a exigência da boa vontade inteiramente e substituem- na por outra, tal como a integridade moral ou obrigação moral. Em accréscimo a isso, a literatura disponível revela algum debate justamente em torno de como entenderemos a “boa vontade”. Claramente a maioria das concepções discutidas até aqui descrevem a confiabilidade como uma relação entre um alvo de confiança (trustee) e alguma atitude, compromisso ou condição estruturadora (como, por exemplo, uma coerção social). De acordo com uma posição diferente, encontrada no trabalho de Richard Holton (1994), as condições que dão surgimento à confiabilidade não residem no relacionamento do alvo da confiança com seus ou suas atitudes, compromissos, etc, mas, em vez disso, na perspectiva que o confiador (trustor) assume em relação ao alvo da confiança (trustee). Holton argumenta que essa perspectiva (uma perspectiva participante, Strawson 1974) envolve a prontidão da parte do confiador para se sentir traído. Embora essa visão tenha recebido atenção positiva (por exemplo Hieronymi 2008, McGeer 2008), alguns acham-na insatisfatória, pois ela não explica obviamente o que pode justificar uma reação à traição, em vez do mero desapontamento, quando alguém não consegue honrar a confiança de alguém (ver Nickel 2007, 318). Por contraste, outros dizem que a perspectiva participante não faz “o trabalho de distinguir” em alguns casos, tal como ocorre quando um filho confia em sua mãe simplesmente por que ele sabe que ela o ama, e, assim, uma teoria da perspectiva participante da confiança está sujeita a contra-exemplos (Simpson 2012, 553). Contudo, alguns expandiram a teoria de Holton de um modo que minimiza pelo menos algumas das crítica a ela. Margaret Urban Walker explica que ao assumir uma perspectiva participante em relação aos outros, nós damos suporte à sua responsabilidade (2006, 79). Assim, não esperamos que ajam simplesmente como assumimos que farão, mas como eles deveriam. Em outras palavras, nós temos expectativas normativas em vez de meramente preditivas acerca deles. Walker acredita que toda confiança, na base- não só a confiança terapêutica- envolve ter expectativas normativas (e Jones, em seu ultimo trabalho, concorda, 2012ª). Se isto estiver correto, então ser confiável é vivenciar essas expectativas e falhar ao fazê-lo pode resultar em traição. Isto é como uma teoria da perspectiva participante pode explicar como a confiança pode ser traída. Uma última concepção sobre a confiabilidade estabelece que ela é uma virtude. Considere, primeiro, por que as descrições baseadas na vontade não capturam essa visão. Alguém pode mostrar boa vontade em relação a outro e ser confiável dentro do escopo de seu relacionamento (pense num réu confesso com sua mãe) sem ser alguém que nós descreveríamos como confiável (Potter 2002). Às vezes, pensamos a confiabilidade como um traço de caráter que as pessoas virtuosas possuem. Nancy Nyquist Potter faz menção a tal traço como “confiabilidade completa” e distingue-o da “confiabilidade específica”: a confiabilidade que é específica a certas relações (25). Para ser inteiramente confiável, alguém deve ter a disposição a ser confiável em relação a alguém. Chamem isso de descrição da “virtude”. Pode soar estranho insistir que a confiabilidade é uma virtude ou, em outras palavras, uma disposição moral a ser confiável (Potter 2202, 25, Hardin 2002, 32). Qual disposição exatamente ela supostamente é? É uma disposição normalmente a honrar a confiança da pessoa? Seria estranho, dado que a confiança pode não ser desejada se a confiança em questão for imoral (por exemplo, considerar alguém confiável para esconder um assassinato) ou se ela mal-interpreta a natureza da relação de alguém com a pessoa confiada (por exemplo, ser considerado confiável como amigo por mera familiaridade). Talvez a confiabilidade seja, em vez disso, uma disposição a responder à confiança de modo apropriado, conforme quem “estiver na relação” com o confiador e dadas outras virtudes que se possui ou se deve possuir (por exemplo, justiça e compaixão) (Potter, 25). Essa é essencialmente a visão de Potter sobre a confiabilidade. Modelando a confiabilidade na concepção aristotélica da virtude, ela define uma pessoa confiável como “aquela que pode ser considerada, como uma questão do tipo de pessoa que ela ou ele é, como alguém que tomaria conta daquelas coisas que outros lhes confiam e (seguindo a doutrina do meio) cujos modos de cuidar não são nem excessivos e nem deficientes” (sua grifo 16)3. A crítica recente à descrição da virtude vem de Karen Jones (2012ª). Como ela expica, se ser confiável for uma virtude, então ser inconfiável seria um vício, mas isso não pode ser correto, por nós nunca somos exigidos a exibir um vício, ainda que se possa exigir que as pessoas não sejam confiáveis (84). Um exemplo disso é quando somos considerados por duas pessoas diferentes para fazer duas coisas incompatíveis e ser confiável a um exige que não sejamos confiáveis a outro (83). Para defender sua teoria da virtude, Potter poderia ter que insistir que, em tal situação, ou alguém está simplesmente sendo forçado a desapontar alguém, em vez de ser considerado não-confiável,ou que esse tipo de confiabilidade em questão seja especifico e não característico da confiabilidade completa. Mas antes de disputar com a teoria da virtude, por que não simplesmente endossar a concepção magra da confiabilidade (isto é, a confiabilidade especifica), de acordo com a qual X é confiável para mim só no caso em que eu possa confiar em X? Duas coisas podem ser ditas. Primeiro, a concepção robusta- isto é, da confiabilidade como uma virtude- não pretende deslocar a concepção magra. Nós podemos e nos referimos a algumas pessoas como confiáveis no sentido específico ou magro e outros como confiáveis em um sentido mais completo ou robusto. Segundo, alguém poderia argumentar que a concepção robusta explica melhor do que a magra por que as pessoas inteiramente confiáveis são tão dependentes quanto são. Isso está entranhado em seu caráter. Portanto, elas devem ter um compromisso contínuo, e melhor ainda, seu compromisso deve vir de uma fonte que seja compatível com a confiabilidade (isto e, a virtude em oposição ao mero auto-interesse). Uma descrição da confiabilidade que inclui a idéia que a confiabilidade é uma virtude pode parecer ideal apenas se se pensa que a gênese do compromisso da pessoa confiável é importante. Se se pensa que isto importa apenas se – não como- o confiador pode ser motivado a agir, então se pode assumir que as coerções sociais e o auto-interesse podem fazer 3 À medida que ela vê a confiabilidade como uma disposição moral, os filósofos modelaram noutra teorias além daquela de Aristóteles, incluindo a teoria moral de Kant e o consequencialismo (ver, por exemplo, Hardin 2002, 36-40). o trabalho tão bem quanto uma disposição moral. Tal controvérsia explica por que descrições filosóficas da confiabilidade divergem uma de outra na questão do que poderia motivar uma pessoa confiável (por exemplo, coerções sociais, interesses, boa vontade, disposição moral) 4. Não surpreende, então, que uma divergência similar ocorra nas descrições da confiança, como aquelas descrições que giram em torno do tipo de motivação que procuramos de pessoas que confiamos. O trabalho recente acerca da confiança tem tomado uma ou mais dos seguintes caminhos ao tratar com a controvérsia sobre motivos: 1) têm sido dadas descrições “genealógicas” da confiança ou confiabilidade, que envolvem perguntar por que temos esses conceitos, dadas os tipos de seres que somos (por exemplo, sociais, reflexivos, ver Jones 2012ª, Simpson 2012). Por exemplo, Jones argumenta que os conceitos existem essencialmente por causa da necessidade que temos de sermos capazes de contar uns com os outros; e pode mesmo exigir que assinalemos essa disposição aos outros. 2) Alguns filósofos adotaram uma visão pluralista, de acordo com a qual existem formas diferentes de confiança ou confiabiildade, em vez de uma simples variante ou conceito deles (por exemplo, Simpson 2012). E 3) alguns tem investigado a natureza da traição intimamente como um aspecto para ganhar mais clareza acerca do que é a confiança, em particular suas dimensões normativas (O’Neill, 2012, Cogley 2012, Hardin 2011). Este último desenvolvimento é particularmente bem-vindo, dado quão pouco trabalho filosófico tem sido feito sobre a traição. A controvérsia sobre motivo ainda persiste, contudo. Felizmente, a despeito dela, há coisa que nós podemos dizer com certeza sobre a confiança, que são relevantes para decidir quando ela está assegurada. O confiador deve ser capaz de aceitar que por confiar, ele ou ela torna-se vulnerável, usualmente à traição. O confiado deve ser competente e comprometido a fazer o que o confiador espera dele ou dela e pode ser comprometido de um modo particular. Por fim, em casos paradigmáticos de confiança, pelo menos 4 Pontos de convergência entre teorias filosóficas da confiabilidade tem a ver com assumções que elas fazem sobre a finluência de normas sociais e convencões em quem pode ser confiável. Filósofos tendem a concordar que se a sociedade é estruturada de tal modo que é difícil para as pessoas serem confiáveis, as pessoas seram provvavelmente menos nesse aspecto. Filósofos feministas em geral concordam que em sociedades opressivas, as pessoas oprimidas são esteriotipadas como não-confiáveis, tornando difícil em muitos contextos a essas pessoas serem confiáveis (por que elas raramente são confiadas) ou a serem reconhecidas como confiáveis (ver, por exemplo Friedman 2004, 228, Webb 1992, 390, Daukas 2006). o confiador deve ter otimismo quanto ao confiado ser realmente competente e comprometido.
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