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Leitura de Imagem Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof. Ms. Miguel Luiz Ambrizzi Revisão Textual: Prof. Ms. Luciano Vieira Francisco Estudo de Caso – A Arte • Introdução • Análise Positivista • Análise Formalista • Análise Historicista • Análise Iconológica • Análise Sociológica • Análise Gestáltica • Análise Fenomenológica • Análise Estruturalista · Nesta Unidade aprenderemos um pouco mais sobre um importante tema: Estudo de caso – a arte, mais especificamente estudaremos as abordagens do Positivismo, do Historicismo, da Fenomenologia, da Sociologia, do Estruturalismo, da Gestalt, da Iconologia e do Formalismo. Nesta oportunidade essas abordagens serão analisadas de forma mais aplicada, por meio de exercícios de leitura de obras de arte produzidas por diferentes artistas, em contextos históricos, estilísticos, técnicos e conceituais distintos. OBJETIVO DE APRENDIZADO Nesta Unidade abordaremos oito análises de imagens a partir das metodologias teóricas da leitura e compreensão de figuras estudadas nas unidades anteriores. O principal objetivo aqui é que você compreenda, por meio desses exemplos de análises de obras de arte, como cada metodologia contribui para o estudo analítico das obras que foram produzidas em distintos contextos. É muito importante que você não se esqueça de acessar o link Materiais didáticos, onde encontrará o conteúdo e as atividades propostas para esta Unidade. Desta forma, você terá um ótimo desempenho em seus estudos e ampliará seus conhecimentos sobre as teorias e metodologias de análise, interpretação e compreensão das imagens e da arte. ORIENTAÇÕES Estudo de Caso – A Arte UNIDADE Contextualização Nesta Unidade estudaremos diferentes abordagens metodológicas de análise e leitura de obras de arte. Um autor importante, entre os que investigam a leitura de imagens, é Alberto Manguel. Desde o início desta Disciplina discorremos sobre a leitura de imagens, portanto, há aqui alguns questionamentos de Manguel (2003, p. 21) para complementar tal reflexão: “Qualquer imagem pode ser lida? Qualquer imagem admite tradução em uma linguagem compreensível, revelando ao espectador aquilo que podemos chamar de Narrativa?”Ex pl or Alberto Manguel (2003, p. 27) ainda complementa que só podemos ver: [...] as coisas para as quais já possuímos imagens identificáveis, acionando ao entrar em contato com uma imagem, outras imagens que temos à disposição em nosso arquivo de imagens, formado por elementos ligados a uma iconografia mundial, mas também por diferentes circunstâncias sociais, culturais, individuais. Ao acionar o vocabulário para interpretar uma imagem, as narrativas constroem-se por meio de outras narrativas, como conseqüência deste conhecimento técnico e histórico. Após estudarmos diferentes metodologias de leitura de imagens, foi possível percebermos o quanto tais métodos contribuem para nossa alfabetização visual, enquanto estudantes de arte e como futuramente essas poderão contribuir em nossa atuação artística e pedagógica. Assim, nesta Unidade estudaremos diferentes metodologias de imagem através de oito estudos de caso. No entanto, sugere-se que para iniciarmos nossos estudos, você leia um texto que apresenta um estudo comparativo específico de leitura de imagens a partir de três representações da paisagem por meio da Iconologia, com base em autores como Panofsky e Gombrich, já estudados em unidades anteriores. O texto intitulado “O simbólico na paisagem através da leitura de imagens”, de Letícia Castilhos Coelho e disponível no link abaixo, traz a proposta de utilização da leitura de imagens como instrumento para a interpretação e a construção de narrativas a partir de representações da paisagem de Porto Alegre, RS. Coelho considera a imagem como fonte para o trabalho de reconstrução da história e dos processos de transformação da cidade, defendendo que somos conduzidos a um campo do conhecimento que trata das criações e produções humanas, valorizando os registros deixados pelo homem como uma experiência sensível do mundo, podendo se oferecer à leitura e permitindo a apreensão de seus significados. Disponível em: http://goo.gl/BlvXNb Ex pl or 6 7 Assim, esse texto trará grandes contribuições para seus estudos, pois considera as imagens enquanto expressões de sensibilidades que remetem ao mundo do imaginário, da cultura e do conjunto de significações tecidas acerca do mundo. Na página 22 de seu artigo, Coelho ainda afirma que [...] a partir da interpretação de traços e registros de uma determinada cultura, acionamos uma estrutura espaço-temporal que somada ao referencial teórico do investigador permite que se elaborem tramas em um trabalho de construção capaz de produzir sentido, como em um puzzle. Aos poucos, as peças se articulam, oferecem diferentes combinações e revelam explicações que permitem uma leitura do espaço em diferentes tempos. O texto contribuirá na revisão de conteúdos aqui já estudados, tais como conceitos e noções importantes para abordar a temática da imagem. Em um primeiro momento, há uma apresentação sobre o que é a imagem e qual a importância do olhar e do espectador nesse processo de mediação entre o ser humano e as figuras. Em seguida, é elaborada uma possibilidade metodológica para ser experimentada na leitura de paisagens com a intenção de aplicar as construções teóricas precedentes. Dessa forma, a autora desenvolve algumas reflexões a respeito de como a leitura de imagens pode servir de suporte para a compreensão de processos urbanos em uma trama construída a partir dos registros humanos. Entre as diferentes metodologias para a leitura de imagens, Coelho traça um paralelo entre as propostas elaboradas por Erwin Panofsky e Ernst Gombrich, guardando suas particularidades, procura-se estabelecer uma possibilidade metodológica com etapas que partem da descrição detalhada até uma interpretação mais aprofundada. 7 UNIDADE Introdução Nesta Unidade veremos como algumas das abordagens metodológicas podem ser aplicadas em um estudo mais concreto de obras de arte de diferentes períodos históricos, estilos, técnicas e artistas distintos. Serão apresentadas oito análises de obras a partir das seguintes metodologias: Positivismo, Formalismo, Historicismo, Iconologia, Sociologia, Gestalt, Fenomenologia e Estruturalismo, todas abordadas durante as unidades anteriores. Análise Positivista Figura 1 – Mario de Andrade I (1921-1922), Anita Malfatti. Técnica: óleo sobre tela (51x41 cm). Coleção particular, SP. Fonte:https://obrasanitamalfatti.files.wordpress.com Ênfase Formal Ênfase na mancha cromática e ausência de contornos definidos por linhas. Embora claramente pictórica, essa pintura não busca uma representação realista do retratado. Há uma ênfase nos ângulos do rosto, como podemos notar na triangulação do nariz, nos volumes das bochechas, nas linhas angulares das sobrancelhas e na simplificação dos volumes da roupa. 8 9 Plano Versus Profundidade Como não há uma busca por uma representação realista, a profundidade está presente nos volumes do rosto, mas os planos do fundo se confundem, não permitindo separá-los em diversas camadas. Há dois planos, o fundo e o retratado. História Concreta Produzida em meados do século XX, o retrato do poeta Mário de Andrade evidencia as influências que teve na sua formação por meio do contato com o expressionismo – ao viver na Alemanha (1910) – e com o modernismo – em sua passagem pelos Estados Unidos. Anita Malfatti e o poeta Mário de Andrade foram muito próximos e sua amizade ficou registrada em correspondências trocadas ao longo da década de 1920. Ambos se interessavam pela deformação, pelo deslocamento, pela irracionalidade e pelo ponto de vista selvagem da civilização.Juntos, participaram do Grupo dos Cinco, integrado por Malfatti, Mario de Andrade, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade e Menotti del Picchia. No ano de produção da obra aqui reproduzida, a artista participou da Semana de Arte Moderna. Unidade A composição se estrutura em torno de um único motivo, ao qual se subordinam os vários elementos de cores, manchas e formas ao fundo. Claramente os elementos formam a figura de Mário de Andrade e associam a essa as cores pouco usuais, mas de paleta bastante conhecida da autora, como o emprego de cores complementares na aplicação dos volumes do rosto. Iluminação A luz incide apenas para construir a volumetria do retratado. Não há uma simulação de luz natural que agregue à interpretação do quadro. Claramente estamos diante de uma impressão da autora, uma representação da maneira como via o amigo Mário de Andrade. Importante! Você sabia que a artista Anita Malfatti foi duramente criticada pelo escritor Monteiro Lobato num artigo intitulado “Paranóia ou Mistifi cação?” a respeito da exposição individual da artista no ano de 1917? Essa crítica teve grande repercussão e tornou- se um dos motivos que estimularam os jovens artistas modernistas a organizarem a Semana de Arte Moderna de 1922. Para saber mais, indicamos a leitura do texto “A propósito da Exposição Malfatti, Edição Revisitada”, de autoria de Lúcia de Fátima do Vale, publicado na Revista Urutágua. Disponível no link: http://www.urutagua.uem.br/007/07vale.pdf Você Sabia? 9 UNIDADE Análise Formalista Figura 2 – Vaso chinês, Dinastia Yuan. Fabricado em Long- Tsiüan, Chekiang. Alguns atribuem esse tipo de vaso aos Song. Atualmente está na coleção Baur, em Genebra. Fonte: Viñuales (1993). Tipo de cerâmica: porcelana, céladon – verde pálido monocromo e polido – com manchas ferruginosas de cor marrom pardo e acabamentos avermelhado- amarelados, dispostos de forma irregular. A esse tipo de céladon os japoneses chamaram tobi-seiji – seiji é céladon em japonês. Em chinês se diz ts’ing-pai. O nome céladon foi dado na Europa aos ts’ing-pai chinos quando esses foram conhecidos no Ocidente, por ser o nome do pastor da novela Astreé, de Honoré d’Urfe (1610-1627), que levava listras verdes de cor aproximada a essas porcelanas chinesas. Durante um tempo anterior também foi chamado na Europa de martabani, pela Costa da Índia, onde havia grande comércio dessas porcelanas. As duas coisas mais importantes que temos que buscar em uma cerâmica chinesa são a massa e a forma. Quanto à massa, trata-se de uma porcelana peculiar de Long-Tsiüan, um dos lugares que fabricaram a melhor porcelana, inclusive muito superior à fábrica de Chin-te-Chen, dos Ming, que nunca alcançou o trato perfeito durante os tempos dos Song e, sobretudo, dos Yuán. Essa peça Yuán tem todas as características de uma porcelana dura, com suas magníficas incitações de suavidade, de textura e delicadeza não superadas e que esse vaso mostra claramente, ajudado pela coloração monocromática em verde pálido, salpicado por umas manchas ferruginosas que tiram a monotonia da cor e comunicam uma sensação de vida, de algo orgânico que se compõe perfeitamente com a suavidade do céladon. Os jogos de luz sobre a porcelana estão peneirados e potenciados por outra parte, tanto pelo céladon, como pelas manchas que servem de contraste ou pontos de referência às matizações da luz, que se notam na fotografia, inclusive. Tal matéria ou carne tão esplendidamente tratada pelo artista chinês, pelo ponto de vista técnico, cobra todo seu significado na forma representativa. O vaso se divide em quatro partes claramente identificáveis. Em primeiro lugar, a base que está projetada como uma coroa ou anel circular de 1,5 cm de altura e 7 cm de diâmetro em sua parte mais larga, pois é ligeiramente côncava, isto é, o perfil da altura é côncavo. Por sua vez, adorna-se com dois pequenos lábios que limitam o 10 11 anel por baixo e por cima. O lábio superior tem a importante missão de introduzir o corpo e dissimular um pouco a inflexão do corpo para a base, aparecendo como um anel adjacente para que o vaso não seja totalmente curvo pelo fundo e possa sustentar-se em pé, e isto sem tirar nem impedir a forte tendência das linhas do corpo a fechar-se em esfera. No que diz respeito ao corpo esférico, esse tem 14 cm de diâmetro máximo, que passa justo pela metade do corpo, pois a inflexão que dá entrada ao gargalo está a 14 cm da base, o que supõe medidas perfeitas de esfera. Entretanto, a impressão não é esférica, já que o corpo não se fecha, mas inicia uma carenagem suave e aberta para dar passo à inflexão, a qual introduzirá o gargalo, o que lhe faz tomar a forma de uma gota, ainda mais marcada porque o gargalo se estreita gradualmente até alcançar um diâmetro mínimo de 2,5 cm para depois abrir-se até 5,25 cm – medida da abertura –, o que supõe uma curva muito mais aberta no sentido contrário à do corpo. Temos, portanto, o perfil do corpo e o gargalo como um “S”, como um arabesco, mais fechado na parte de baixo que na parte de cima, o que contribui para a forma de gota, de modo que comunica leveza a todo o perfil, dissimulando perfeitamente a esfericidade do corpo, que ganha estilo e graciosidade. Consegue-se, assim, um conjunto de elegantes proporções, realçadas ainda pela boca na forma de buzina que, em seu conjunto, mede 6,9 cm de diâmetro, isto é, um pouco menos que a base. A forma de buzina arremata perfeitamente o conjunto e impede fechar-se à curva do gargalo, contudo, segue sua direção; contrasta com a base, que agora ganha em estabilidade por comparação, e serve com a mesma para delimitar por norte e sul o corpo e o gargalo, elementos que formam uma unidade elástica. Por outra parte, a forma de buzina não interrompe a normal abertura do gargalo, mas a termina organicamente com sugestões florais, ao que contribuem igualmente as manchas ferruginosas nas bordas. A prosaica semelhança com uma buzina se converte, assim, em clara aproximação ao reino vegetal, e o vaso, em seu conjunto, imita a corola e o cálice abertos – interpretados geometricamente – de uma flor que vem realçada pela matéria e cor do céladon, tão carnosa, tão lisa, tão suave, que nos sugere certamente uma transposição ao reino vegetal, vivo, fresco e dinâmico. Reúnem-se, dessa maneira, uma série de elementos que integram o conjunto, que comunicam o aspecto a esse vaso, que superam, assim, cada um dos quais, integrando-os em uma unidade potencial muito forte. Temos o dinamismo controlado pelas formas geométricas, a harmonia e a contraposição das partes que se organizam em um conjunto vivo, a carnosidade da matéria e sua decoração colorista, características que ressaltam as possibilidades da porcelana, a matéria dirigida para uma forma dinâmica e esbelta, as proporções de tamanho, volume e densidade que sugerem crescimentos naturais, sem esforços, sem imposições ao desenvolvimento vegetal tão magnificamente realizado. Todos esses elementos na obra se comunicam ao conjunto em uma variedade de sugestões, de sonhos, de simbolismos sensuais, da mesma forma que nos transmitem o espírito do povo chinês, ao mesmo tempo tão sensual e recatado, tão gozoso do natural e o racional, tão amoroso com o concreto e tão imaginativo do abstrato-simbólico. 11 UNIDADE Análise Historicista Figura 3 – O homem desesperado – autorretrato (1844-1845), Gustave Courbet. Técnica: óleo sobre tela. Fonte: Wikimedia Commons Identificação da Obra A obra é um autorretrato do pintor, à época com cerca de 25 anos de idade. Sua inovação já começa por adotar o formato horizontalizado, fugindo do usual quadro vertical empregado em retratos. Pertence ao início do realismo francês. O Lugar para o Qual Foi Realizada Pintada na França por volta de 1840, a obra não traz emsi inovações técnicas, mas sim conceituais. É reflexo da mudança de pensamento ocorrida naquela época, onde o movimento realista propôs que só a realidade deve ser a inspiração confiável. Radicado na França, o pintor Gustave Courbet é conhecido por seu realismo social e por, em seu tempo, apresentar à sociedade francesa obras que chocaram pela abordagem de temas pouco trabalhados até então: pobres camponeses, executando sua árdua labuta diária, nada heroica e sem nenhum tipo de subterfúgio ou tentativa de amenizar o aspecto maltrapilho desses novos heróis: a população trabalhadora. Esses temas não eram empregados na arte, eram mais comuns assuntos voltados aos grandes personagens históricos neoclássicos, ou às musas românticas idealizadas. 12 13 Estabelecimento de Cronologias “A pintura é uma arte essencialmente concreta, e não pode existir senão nas representações das coisas reais e existentes”. Assim, Gustave Courbet define a pintura, em um momento onde os artistas, influenciados pelos avanços das Ciências, tendiam a rechaçar os ideais românticos amplamente utilizados pela geração anterior. A Ciência, em pleno desenvolvimento, mais do que nunca rebatia toda e qualquer teoria subjetiva e motivações irracionais que pudessem aparecer. Era a época do surgimento das teorias evolucionistas de Darwin, do positivismo, da dialética hegeliana e do socialismo marxista. O realismo, movimento onde podemos encaixar a obra acima, surgiu em torno dessa aura e se opôs tanto aos ideais românticos quanto aos neoclassicistas, exaltando a realidade. A importância primordial de Courbet pode ser verificada pelo fato de ter sido ele a pintar o quadro que vai assinalar a transição para o que conhecemos hoje como arte moderna. Apesar das inúmeras expressões isoladas que surgiram mais ou menos na mesma época, é a tela “O Atelier do Pintor”, que vai assinalar de forma mais acabada, uma renovação expressiva da pintura em diversos sentidos. [...] Courbet era também um conhecido agitador político e defensor do socialismo, fato que o tornou adorado pelos inimigos do império e detestado por seus partidários. Atacado ruidosamente pelos membros da corte de Luis Napoleão, Courbet nunca fugiu ao desafio que lhe foi imposto. Criou uma obra complexa, de estilo sempre variável, nunca se escondendo por trás de uma fórmula ou método específico de pintar. Tornou- se assim o mais qualificado representante, defensor e propagandista do realismo francês, que acima de tudo era uma postura moral perante a vida. A obra foi criada em um momento histórico, quando várias relações estavam se redesenhando: entre o artista e a representação, entre o mundo e a Ciência, entre o real e o imaginário. O artista optava por um realismo social, trazendo como temática as cenas do cotidiano retratadas por um viés visceral, uma crueza que chocou a sociedade de sua época. Interpretações Gerais De acordo com Vanessa Beatriz Bortulucce (2008, p. 88), o fato da obra ser um autorretrato diz muito sobre o próprio artista. Para essa autora, no autorretrato [...] reside uma série de elementos para refletirmos acerca de como o artista mostra-se para o mundo. Este fazer a si mesmo constrói um sistema de valores onde a auto-representação do pintor manifesta sua auto-afirmação diante do público e diante de sua própria arte. Esta auto-representação pode vir acompanhada de um tom desesperador, provocatório, sereno, piedoso. De todas as formas, ela é, como a arte, uma construção e uma visão de mundo: não pode ser vista de maneira isolada, apartada da poética do artista e de suas relações com o seu meio social. Assim, consideramos o auto-retrato como o gênero que na pintura expressa de uma forma peculiar a relação entre o artista e a sociedade na qual, ele está inserido. 13 UNIDADE Esta auto-representação do pintor significa o desejo em construir uma identidade particular que parte de como este enxerga sua participação em um ambiente social e cultural específico. Ao examinarmos com mais cuidado a obra exposta, vemos que há uma proximidade com a iluminação barroca, onde o alto contraste empresta dramaticidade ao quadro, dando ênfase ao que está em primeiro plano. O olhar fixo e assustado do retratado pode nos levar a diversas interpretações. O que o aflige? Diante do que ele é retratado? Fazendo uma conexão com o movimento realista, é preciso lembrar que esse movimento se referia à temática realista – opondo-se ao idealismo dos movimentos do romantismo e classicista – e não há uma busca por imitar a realidade pela técnica pictórica. Assim, imaginamos que, ao se retratar, o pintor estivesse mais interessado em despertar questionamentos sobre seu estado de espírito do que sobre a fidelidade da representação. Por sua vez, isso deixa o observador livre para apreender a obra como sua bagagem permite, despertando em si sentimentos que variarão de acordo com a sua perspectiva subjetiva. Análise Iconológica Figura 4 – A Virgem de diadema azul (1500-1520), Rafael Sanzio. Fonte: Wikimedia Commons 14 15 Nível Pré-Iconográfi co A descrição pré-iconográfica deve ser apoiada em dois pontos: nossa experiência e o estilo. Com nossa experiência observamos o retrato de uma mulher vestida com certo luxo e uma espécie de coroa-tiara, sentada em um prado com dois meninos, um está nu, recostado em tecidos e almofadas, ao que direciona o olhar, destapando o rosto coberto com um véu transparente, enquanto abraça carinhosamente o outro com o braço esquerdo, atraindo-o para perto de si. Este outro menino seminu, vestido com uma espécie de pelagem, tem uma longa vara terminada em cruz na parte superior. Os personagens estão envoltos por uma paisagem naturalista, com ruínas e restos de arquiteturas do tipo clássico, que podemos definir pelos arcos, pilares, molduras etc. Ao longe, entre brumas, aparece uma cidade. Pelo estilo da representação pictórica, podemos observar que: » A anatomia humana foi tratada com perfeição; » As roupas e vestido foram tratados com domínio da pintura, revelando os relevos e volumes; » A perspectiva central, o esfumato, a composição em triângulo, o equilíbrio entre as figuras, a paisagem, os elementos naturalistas – árvores, prado, flores – e as arquiteturas clássicas nos demonstram que estamos na presença de uma obra do estilo renascentista. Seu autor conseguiu dominar perfeitamente a anatomia, a perspectiva, a composição, o esfumato, isto é, características produzidas entre o final do século XV ou princípio do século XVI. Apesar do equilíbrio compositivo, aparecem alguns detalhes de afetação, pelo que se pode suspeitar, que não sejam de Rafael, ao menos inteiramente, mas pode ser de algum discípulo seu. Nível Iconográfi co No segundo estágio da análise iconológica, temos o nível iconográfico que foca no tema, necessitando buscar dados sobre o mesmo. Assim, podemos saber que se trata da Virgem com o Menino Jesus e São João Batista. A cidade deve ser Florença. O tema da Virgem com o Menino Jesus e São João é um motivo utilizado profusamente no Renascimento, mas que vem desde os tempos da Deesis bizantina e românica – representação do Cristo Pantocrator ao lado da Virgem Maria e de São João Batista –, ainda que variada notavelmente – ali aparece Cristo na Cruz, a Virgem e João Batista ao lado. A variação se deve a que o motivo quer ser portador de um significado distinto ao da Deesis, isto é, agora não é o Cristo Sofredor, mas a Virgem é a que ocupa o centro do quadro, ainda que, com seu olhar, conduza-nos ao Menino Jesus, centro fundamental, mas tratado com um espírito humanista, com certo luxo, repousado, pacífico, amável e cheio de ternura um tanto afetada e enjoativa. 15 UNIDADE Figura 5 – Deesis, Monastério Santa Catarina, Sinai (séc. XII). Fonte: Wikimedia Commons Pretende-se,pois, variar o tom para valores mais humanistas, mais parecidos com uma cena de família acomodada e sem um forte apelo religioso especial. O “estilo” da Virgem central, hierática, com o Menino Jesus no colo foi dando lugar, por sucessivas degradações – mudanças de postura no Menino, na mesma Mãe, nos olhares em sua direção na entrada de pequenas perspectivas, ou de outros personagens e acompanhantes –, ao tipo aqui representado, com um cenário convencional, bucólico, clássico, naturalista e com um domínio da perspectiva, cujo centro não é a simbolização religiosa do assunto, mas que essa é apenas um motivo – restos de tradições cristãs impostas mais pelo costume ou mera legalidade doutrinal – para enquadrar todo o mundo religioso dentro dos parâmetros da medida e da visão humana, com um ponto de vista centralizado, que agora parte do homem-espectador – e não do Cristo Pantocrator ou da teothocos expectantes. 16 17 Nível Iconológico O nível iconológico é o que se debruça pela ideia simbólica, no princípio que subjaz toda a obra, o sentido dos fenômenos – todos, não apenas o assunto – e dos significados. Com base no nível anterior e conseguindo maior documentação da vida no Renascimento, da organização social, religiosa, política, comparando os tipos anteriores de Virgem, podemos observar diferenças fundamentais, na verdade, que já notamos. Isso significa uma grande variação de tom que se deve a uma ideia principal, a uma “forma simbólica” nova e distinta que nos fará encher de significação o conteúdo que nos apresenta. Neste ponto é mais difícil a análise, pois necessitamos de uma bagagem maior de conhecimentos de todo tipo, mas poderíamos adiantar uma ideia que subjaz a essa composição e que nós acreditamos ver na decomposição do espaço sagrado no qual se moviam, ou melhor, que criavam as figuras da Virgem e do Menino – bizantinas, românicas, góticas. Esse espaço que se vai perdendo – através das composições românicas e mais ainda nas góticas – até chegar à criação de um espaço humano – por meio da perspectiva central, do equilíbrio compositivo, da cor, da luz etc. – com a ideia fundamental de mostrar que o homem é agora o centro do Universo, a medida de todas as coisas – a mesma humanização e trivialização da Deesis assim o confirma –, apropriando- se, criando e distribuindo uma categoria de percepção e de conhecimento tão importante como o “espaço”, a sua imagem e semelhança. 17 UNIDADE Análise Sociológica Figura 6 – A Liberdade guiando o povo (1830), Eugene Delacroix. Técnica: óleo sobre tela. Fonte: Wikimedia Commons Descrição Sumária dos Elementos Linguísticos: Temáticos, Técnicos, Formais Gênero artístico: pintura, óleo sobre tela » Reconhecimento do tema: histórico comemorativo, ilustrando a Revolução Francesa sob a interpretação romântica de Eugene Delacroix. Traz ao centro a figura de uma mulher desnuda, simbolizando a Liberdade, empunhando a bandeira francesa e guiando o povo. Ladeada pela representação do proletariado e também da burguesia. Técnicos » Materiais: tinta à óleo; » Suporte: tela em linho; » Técnicas: pintura à óleo. 18 19 Formais » Espacialidade: identifica-se três planos. A figura da Liberdade, mais ao centro, melhor iluminada, a base de corpos caídos mergulhados nas sombras contém também em segundo plano duas figuras em destaque. O que parece ser uma criança de arma em punho, com trajes mais simples, e à esquerda, um homem “bem vestido” empunhando um mosquete. Por fim, temos o céu azul e branco; » Tipo de composição: triangular, com elementos mais representativos da obra centralizados, formando no centro da peça um triângulo de cores mais intensas. A liberdade ocupa o vértice da pirâmide e sua baioneta se alinha com a arma empunhada pela criança à direita, formando a base do triângulo; » Classes de iluminação: iluminação convencional, acentuando o contraste e utilizando sombras de forma expressiva; » Estrutura da obra: evidencia-se o triunfo da liberdade sobre a guerra e sua capacidade de encaminhar o povo à vitória. Relação desses Elementos com Outras Linguagens Anteriores ou Posteriores Os elementos contidos na obra ajudam a representar um momento pelo viés do romantismo, onde heróis são necessários, onde os ideais se sobrepõem aos fatos mais cotidianos. Embora inovando no tratamento da temática, o romantismo ainda se firmava em princípios clássicos de pintura e de composição. Há uma valorização do simbolismo, já que por buscar um contexto cuja idealização eleva as personagens e dá um ar de teatralidade ao fato, é preciso recorrer ao extraquadro, a aquilo que o observador já conhece e pode ser evocado pela peça. Sua relação com a realidade está na encenação da batalha que, mesmo idealizada, é de fácil assimilação pelo observador. Armas em punho, corpos amontoados e a Liberdade guiando o povo, esse que a segue para além desse cenário. Conexões entre o Tema e o Meio. Vinculação Sócio-Histórica De forma idealizada – como é comum ao romantismo –, a obra retrata o início da Revolução Francesa, quando o Rei Carlos X tentou abolir a liberdade de impressa e dissolver a recém-eleita assembleia, dando início à Revolução. Delacroix buscava retratar esse processo onde, levados à Guerra Civil, o povo francês encontrava seu caminho e fundava uma nova nação firmada nos princípios de igualdade, liberdade e fraternidade. Representada como uma deusa clássica, mas ao contrário do que se supõe de uma deusa, a Liberdade não flutua no campo de batalha, integra-se ao qual, suja-se. Está com os seios à mostra para evocar a condição que lhe nomina, liberdade. 19 UNIDADE Análise das Conexões entre Significado e Meio Histórico Fica evidente a intenção do artista de idealizar o processo de tomada do poder ocorrido na Revolução Francesa. Sua obra busca construir uma aura de bem maior, de fim justificando o meio, de fim da opressão. Há ainda uma mensagem de igualdade imanente, colocando a Liberdade – representada próxima de uma deusa clássica – e o povo que é guiado pela qual. Seu papel de liderança não a impede de se sujar, de passar pelo campo de batalha e de sofrer o que vem desse. Os corpos retratados são da guarda do antigo regime, que sucumbiu diante da força do povo e do poder da Liberdade. Análise Gestáltica Figura 7 – A morte da Virgem (1461), Andrea Mantegna. Técnica: têmpera sobre madeira (54x42 cm). Fonte: Wikimedia Commons 20 21 Equilíbrio O equilíbrio dessa obra é do mais puro geometrismo. Só há horizontais – a cama, a saliência da janela, as muralhas e o povo, as árvores e o horizonte, três barcos e as nuvens, os ladrilhos –, verticais – todos os apóstolos, menos um, os pilares que enquadram a janela e seus batentes, os candelabros e as velas, mais as perpendiculares dos ladrilhos e os pés da cama – e algumas diagonais – um apóstolo, o cais do porto, algumas coroas de apóstolos, uma no sentido contrário à diagonal fundamental, e um barco. O equilibro é rigoroso. Forma Disposição elementar: a imagem está repartida por igual à esquerda, centro e direita. Tudo está enquadrado em um marco dentro de outro marco mais amplo – a janela e a paisagem dentro da habitação. As anatomias estão cuidadas, os rostos formalmente bem elaborados, a perspectiva claramente centralizada, os grotescos sabiamente realizados com sobriedade clássica etc. O formalismo da cena é evidente, convencional, como em um enterro litúrgico. Desenvolvimento Faz-se eco da anedota tradicional. Não inventa nada e não introduz nada novo, salvo o mar ou a lagoa reconhecível de Mântua. O tema parece ser um ofício de qualquer defunto, sem mais emoção nem particularidade, salvo nas auréolas de santidade que nos sugerem se tratar de um grupo especial de homens, os apóstolos reunidos em torno da Virgem.Espaço Há, ao menos, quatro ou cinco espaços diferentes. Os ladrilhos que recalcam a perspectiva; os apóstolos primeiros dos lados; o apóstolo em diagonal e a Virgem Defunta; os apóstolos posteriores junto à janela que se destacam sobre o vão; o mar ilustrado em profundidade pela diagonal do cais; as casas e a paisagem; o céu com as nuvens. O conjunto está dividido em duas partes fundamentais: o de dentro e o de fora, reforçando a absoluta seriedade e, até certo ponto, indiferença do acontecimento. Iluminação Há uma luz geral que ilumina a estância. Outra ilumina a paisagem e outra distinta que ilumina alguns objetos do interior, como a face frontal do batente e pilares da esquerda. Não existe contraste muito intenso e, assim, a luz não tem um papel preponderante, salvo a impressão de entardecer – a morte – que parece indicar-se. 21 UNIDADE Cor As cores estão em perfeito equilíbrio geométrico. Temos cores frias ao fundo e cores quentes mais à frente. Há um verte, entre aveludado e fluorescente – São João – na esquerda, que vem contrastar o peso da direita. O apóstolo em diagonal que nos induziria a caminharmos para a paisagem por paralelismo com o cais está tocado de verde e vermelho com tal intensidade que impede toda fuga. Assim, pois, as cores nos levam ao motivo principal da anedota. Inclusive os batentes atraem o olhar e o conduz para a cama da Virgem, por sua cor laranja forte ou marfim amarelado. A cor também divide o quadro com a luz de dentro e de fora. Movimento Há um domínio do estático mais absoluto, inclusive em alguns pequenos gestos de movimento, como o do apóstolo em diagonal que manuseia um incensário. É um rito onde permanecem indiferentes as figuras, a habitação, a paisagem, as nuvens. O apóstolo terminará de incensar e tudo voltará à quietude mais elementar. A seriedade da morte. Tensão A tensão dessa obra está dentro do sentido. A corda não se rompe. As diagonais ressaltam uma pequena relação nesse espírito interior tenso, que quase não se nota, salvo para os que conhecem o assunto. Formalmente não há nenhuma tensão. Expressão A expressão é dura, difícil. Não foi definida pelos rostos, nem pelas figuras em posição séria, nem por outros traços formais, mas pelo conjunto de todos os valores da estrutura, ou melhor, da composição. Esta, a situação, o alinhamento, a verticalidade, a cor, a geometria, o assunto, a janela como um olhar ao exterior indiferente e tenso de geometrias e de luzes de entardecer etc., todas, em si, não são nada nem dizem nada de particular; poderiam pertencer a outros quadros. Mas em conjunto, expressam seriamente a anedota: a transição da Virgem, motivo religioso que passa para a categoria arquetípica da morte serena – por essas relações de estrutura e forma –, aceita, indiferente, grandiosa e cotidiana como de todo e qualquer mortal. Aqui reside – e mais que nas caras pomposas, as roupagens rígidas, as auréolas de santidade enrugadas (como diria d’Ors) – a estúpida imobilidade da lagoa – como diria Kandinsky –, a desnaturalização da natureza – nuvens, mar, céu, árvores, a geometrização das linhas etc. –, aqui reside a força expressiva da composição. A percepção humana capta no fundo algo desagradável. A maioria dos espectadores passa diante quase sem olhar, como se tratara de algo muito racional. A morte merece outro trato mais trágico e, porém, a morte diária nos suscita mais emoções que as necessárias. 22 23 Análise Fenomenológica Figura 8 – Pictures of garbage (2008-2011). Técnica: escultura seguida de fotografia. Fonte: tirochedeleon.com Plano Terrestre – A Matéria O Material A imagem que é capturada pela lente da câmera é uma composição de fragmentos. São diversos objetos, todos encontrados no lixo. O Sensível Por ser uma organização de diversos fragmentos, o material da obra em si perde lugar no registro fotográfico. A fotografia nos apresenta uma unidade, os volumes construídos pelo jogo de luz e sombra. Plano Cósmico - A Forma Fatores Representativos » Espaciais: utilizando uma composição bastante tradicional, onde forma-se um triângulo que tem a mãe em seu vértice e as duas crianças na base, associa-se a imagem à ideia de equilíbrio axial. Esse amontoado em contraste com o chão limpo faz com que reconheçamos na moldura uma textura e uma certa maciez no que representa a pele da mãe e das crianças. 23 UNIDADE » Temporais: ao investigar a história da imagem, seu processo – fotografia capturada pelo artista, projetada em larga escala e remontada com peças vindas do lixão e novamente o registro fotográfico –, vemos que esse evoca a clássica imagem da mãe ladeada por seus filhos. Mesmo sendo um registro contemporâneo, a composição apela para aquilo que a história da arte já consagrou como a representação da mãe, de ar quase santificado, cercada por sua prole. Fatores Significativos » Miméticos: as texturas e relevos do material que forma a imagem são “apagados” e dão lugar a uma volumetria típica da representação pictórica. Não interessa o material de fato, mas sim a ilusão de ótica que esse proporciona, a contribuição que traz para que a representação imite o real. Fatores Expressivos Ao retratar a mãe com um manto, podemos reconhecer no artista a intenção da santificação da figura feminina. Essa personagem que carrega a criança, que dela cuida está fixada na cultura cristã como uma associação direta à Virgem Maria e, assim, coloca a mãe, a mulher em um pedestal onde é capturada sob essa única perspectiva, a da maternidade. Fatores Sugestivos O material, o contexto, a imagem em si. Há um claro contraste entre a singeleza e o ar angelical da composição e os materiais utilizados para formá-la. Ao lixo e seus dejetos só associamos o putrefato e o descartado, oposto ao que vinculamos às mães e à infância. Compreenda melhor as relações entre a Fenomenologia e a Semiótica no processo artístico através da leitura do texto “Da Fenomenologia À Semiótica: A Obra De Arte Em Processo”, de autoria de Lauro José Maia Marques, publicado na revista Cognitio, da USP. Neste texto o autor faz uma reflexão sobre a obra de arte, baseada na filosofia de Charles Sanders Peirce. Parte da perspectiva fenomenológica de como o artista, visando produzir um efeito estético, avaliaria sua obra. Esta seria a ocasião em que, em algum momento do processo criativo, o artista se colocaria como o espectador de sua própria obra, e julgaria se a qualidade que pretende imprimir à totalidade das partes foi atingida. É a mente do artista que interessa na discussão deste texto, ou melhor, são os traços da ação de uma natureza mental – e, portanto, comum, tanto àquele que produz, quanto ao público que aprecia uma obra de arte. Ex pl or Fonte: http://revistas.pucsp.br/index.php/cognitio/article/view/5414/3865 24 25 Análise Estruturalista Figura 9 – El mantel blanco (1917), Georges Braque. Fonte: digitalpix.com Regra de Imanência Segundo esta regra, temos que nos centrar no objeto. Vemos que aqui Braque tenta matar o objeto em si, centrando-se em sua forma pura e extraindo a necessidade de que seja assim. Aí estão a jarra, os limões, a faca, o guardanapo, a toalha, a mesa e as paredes, segundo sua forma, diríamos, essencial; sem fazer relações literárias, psicológicas, metafísicas, ideológicas etc., são puramente ônticas – que se relacionam com os objetos do mundo. Essa onticidade leva, evidentemente, um encanto em si mesma, que não passa despercebido ao espectador. Regra de Pertinência Aqui teremos que expressar as conotações sistemáticas e sintagmáticas. Por exemplo, sistema: faca-jarra-prato-guardanapo, como componentes de uma natureza-morta. Paredes, mesa assentada em algum lugar (base) = sistema espacial. Sintagma – faca-limões-jarra-guardanapo em cima da mesa queestá em uma habitação com paredes que imitam mármore e madeira. Como se relacionam o sistema e o sintagma? Mediante um método racional, quase cartesiano, reflexivo ao máximo, que situa os objetos em seu lugar e os relaciona admiravelmente entre si, sem se entravar, sem “se sobrepor”; evidenciando totalmente com uma claridade meridiana na qual radica, para nós, a impressionante e expressiva exposição dos mesmos, sozinhos e em conjunto. 25 UNIDADE Regra de Comutação Evidentemente, essa natureza-morta tem uma leitura muito clara e sensível da esquerda para a direita e de baixo para cima. Se fosse alterada – a escuridão da esquerda para a direita; a toalha branca e o guardanapo ao outro lado; a mesa e sua cor acima e as paredes marmorizadas abaixo etc. –, estaríamos na presença de outra obra, resolvida de outro modo e, sem dúvida, sem tanta racionalidade compositiva. Tais denotações nos fazem compreender que essa disposição pertence à estrutura da obra e que nesse caso concreto supõe a um acerto indubitável do bom trabalho de Braque. Regra de Compatibilidade Esta regra é evidente nesse caso. O sistema espacial e o sistema natureza- morta pertencem a duas séries diferentes em profundidade entre si. Por essa razão, estão sintagmaticamente associados, criando entre os dois um plus de natureza-morta – o espaço contribui – e um plus de espaço – os objetos da natureza-morta contribuem ao mesmo. Regra de Integração Todas as partes de um sistema devem integrar-se em uma unidade superior que as somam. Em concreto, podemos observar “uma preciosa harmonia de estruturas” nessa obra. Composta semelhante a um mosaico, nenhuma faz referência particular a nada que não esteja integrado no conjunto. O todo é quem dá “todo” o sentido às partes. Diacronia-Sincronia O cubismo é o modelo da época, o estandarte, o estabelecido nesse tempo, mas Braque se situa um pouco marginalizado por sua força reflexiva – que procede do cubismo, mas que o pintor leva a termos pessoais –, por sua metodologia cartesiana, por seu caráter emotivo que flui de todo o quadro – aspecto que lhe faz transpassar o tempo –, a época cubista e revelar-nos hoje e sempre o testemunho de estruturas universais que subjazem aos simples objetos representados e a “forma” de estar representados. Função Expressiva Aqui a situamos em uma qualidade que notamos instantaneamente, ao somente olharmos a obra. Vemos a perfeição, a obra bem-feita, que se apresenta como uma profunda honestidade do emissor, nesse caso, o pintor. 26 27 Função Conotativa Acentua a mensagem e o faz efetivamente sobre o receptor. O espectador nota imediatamente a honestidade, a claridade compositiva e a perfeita proporção, produzindo uma emoção, uma satisfação íntima, harmônica, relaxante. Função Poética Dentro da análise estrutural, essa função nos aparece como a mais difícil, pois onde radica o que Dorfles chama epiestrutura, o que outros denominam sugestão, inefabilidade, ou simplesmente criatividade, gênio, inspiração etc. – por dizer com nomes tradicionais. Na realidade, é o que faz que a jarra, os limões, a mesa, o guardanapo etc., não sejam simplesmente isso, senão algo mais. E pensamos que essa função poética reside basicamente em todo o anterior que foi dito e em tudo o que segue, isto é, parece-nos que aqui é onde está o ponto mais importante: a síntese que pretende o estruturalismo depois de sua análise exaustiva, ou quase exaustiva, e que resume em seu aforismo “o todo é maior que a soma das partes”. Esse plus é evidente existir e nessa obra está, para nós, claríssimo; mas a interrogação que fazemos é precisamente essa: de onde vem, como se explica, por que resulta esse plus, esse “interesse” gratuito, “poético”, em uma palavra? Função Empática O pathos, o dramático, o que mantém o interesse, o contato entre o emissor e o receptor, são normalmente pequenos detalhes – como nesse caso – ou em toda a expressividade da obra. Aqui podemos eleger a faca, os limões como empáticos, mas também o conjunto construtivo, a satisfação pela composição que se traduz praticamente em um encontro, encaixe ou, como queira chamá-lo, que instintivamente repercute no observador. Função Referencial As referências diretas são claras nessa pintura. A faca, a jarra, os limões etc., referem-se a uma mesa simples, sóbria e forte; a um espaço delimitado por uma jarra nem cheia e nem vazia; isto é, neutra; por uma mesa pesada sobre um solo imaginado; por um habitáculo pequeno em aparência, quase como um mostruário, que fizera conexões com uma vida pobre, mas digna, enfática, mas sensível, simples, mas delicada – toalha branca, faca limpa, guardanapo anel etc. Essas referências nos parecem que não são simbólicas, mas “diretas”, não ocultam nenhum enigma e, por isso mesmo, são referências “modernas”, atuais. 27 UNIDADE Função Metalinguística Braque quer dizer mais do que disse nessa natureza-morta? Suponhamos que sim – mas sem simbolismos. Cada objeto em si considerado não tem nenhuma importância. Qualquer desenhista mediano poderia fazer algo melhor. Tal impressão e “primitivismo”, de falta de “maestria”, de capacidade geral para realizar algo semelhante ou parecido nos dá a chave metalinguística dessa obra. Na realidade, tecnicamente, uma natureza-morta similar pode ser feita por qualquer pessoa depois de ter visto essa pintura. A função metalinguística dessa obra consiste na insuportável contradição entre algo que se quer figurar como possível e algo que aparece como real. Braque desfaz toda teoria literária sobre a natureza-morta. O cubismo não permite literatura sobre a obra plástica, uma vez que possua sua linguagem própria, as demais linguagens sobram. Síntese Pareceria que em uma metodologia estruturalista não deveríamos chagar a uma síntese, mas não podemos por menos, pois temos uma frase do próprio Braque, que nos diz: “Não se imita o que se cria”. Esta nos dá base para abrir, pelo menos, uma questão: existe aqui uma criação posta que não há imitação? – a imitação objetual está ao alcance de qualquer desenhista ou principiante. É então o conjunto das funções e das regras respeitadas que examinamos uma por uma, o que faz esse quadro sem pretensões vaidosas, uma obra mestra da criatividade humana; uma obra de reflexão, uma obra de um homem que recria as coisas, que as dota de um significado que só se pode entender dentro da própria obra – sistemática e sintagmaticamente. Aqui está seu mérito e aqui pode estar sua convicção, se houvesse: o espectador tem a palavra. Chegamos ao fim de mais uma Unidade desta Disciplina. Espera-se que tais leituras e análises de obras de arte de diversos períodos históricos, de técnicas e estilos totalmente diferentes entre si sejam produtivas, enriquecedoras e que possam ter ampliado seu repertório teórico acerca do estudo da arte. 28 29 Material Complementar Material Complementar Livros MANGUEL, A. Leer imágenes. Madrid: Alianza Editorial, 2003. Sites MARQUES, Lauro José Maia. Da Fenomenologia À Semiótica: A Obra De Arte Em Processo. In: Revista Cognitio - Centro de Estudos do Pragmatismo – Programa de Estudos Pós- Graduados em Filosofia Pontifícia Universidade Católica de São Paulo [Número 1 - 2004]. Disponível em: http://goo.gl/3en7Mz Leitura BORTULUCCE, V. B. O artista e o seu meio social: considerações acerca da pintura auto-retrato com cigarro de Edvard Munch. In: ENCONTRO DE HISTÓRIA DA ARTE, 4., 2008, Campinas, SP. Atas... Campinas, SP: IFCH/Unicamp, 2008. Disponível em: http://goo.gl/HqZcxl COELHO, L. C. O simbólico na paisagem através da leitura de imagens. In: Grupo de Pesquisa Identidade e Território. [Porto Alegre, RS]: UFRGS, [2011]. Disponível em: http://goo.gl/BlvXNb 29 UNIDADE Referências ALA-HARJA, M.; HELGASON, S. Em direção às melhorespráticas de avaliação. Revista do Serviço Público, Brasília, v. 51, n. 4, p. 5-59, out./dez. 2000. BECKER, D.; EDMUNDO, K. O direito à saúde: sonho de liberdade. In: Influir em políticas públicas e provocar mudanças sociais: experiências a partir da sociedade civil brasileira. GHANEM, E. (Org). São Paulo: Ashoka: Avina: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007. CHIAVENATO, I. Introdução à teoria geral da administração. 5. ed. São Paulo: Makron Books, 1997. 30
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