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23 DEZ ANOS DEPOIS, PASSANDO A LIMPO O PENSADOR DA DESCONSTRUÇÃO 25 A DESCONSTRUÇÃO 30 DERRIDA E A LÍNGUA DO OUTRO 34 [ ENTREVISTA ] PENSAR, TREMER, DESCONSTRUIR 38 ARTE E IMAGEM SOB OS OLHARES DA DESCONSTRUÇÃO 44 AS CIÊNCIAS, A RAZÃO E A DESCONSTRUÇÃO JACQUES DERRIDADOSSIÊ Depois da morte do filósofo Jacques Derrida, em 2004, muitas homenagens ao seu pensamento, à sua obra e à sua figura foram organizadas, es‑critas, publicadas. Entre tantos reconhecimentos – muitos deles não colhidos em vida – coube ao alemão Peter Sloterdijk publicar Derrida, um egípcio. O problema da pirâ‑ mide judia (Estação Liberdade), livro em que a filosofia de Derrida é articulada com sete outros grandes pensadores. Logo nas primeiras linhas, Sloterdijk escreve que Derrida “foi o Hegel do século 20”. Hegel não apenas como o nome próprio de um grande filósofo alemão, mas indicação de culminância, esgotamento e nada mais a ultrapassar. CARLA RODRIGUES Dez anos depois, passando a limpo o pensador da desconstrução D en is D ai lle ux /A g en ce V u/ La ti ns to ck Dez anos depois da morte de Derrida, seus herdeiros, comentadores e leitores estão ainda diante da tarefa de levar adiante um pensamen‑ to que carrega tanto as marcas do auge da filo‑ sofia do século 20 quanto de seu possível fim. Aqui, que não se enganem os críticos. Trata ‑se do fim de um certo tipo de filosofia, não da destruição da experiência filosófica, mas sobre‑ tudo de sua possibilidade de renovação. Este dossiê em torno da obra do filósofo franco ‑argelino – que fez do seu lugar de mar‑ ginal à Europa uma questão filosófica para o eurocentrismo e cujo judaísmo impulsionou sua crítica às origens gregas do pensamento – começa com artigo de Rafael Haddock ‑Lobo no qual apresenta o pensamento da descons‑ trução como “tentativa de empreender um sistema de pensamento sempre aberto, que nunca se enclausura em uma fórmula ou um método, e por essa razão necessita de uma ar‑ quitetura estratégica, para fugir da economia conceitual tradicional da filosofia, que sempre levaria o pensamento de um filósofo a fechar‑ ‑se em torno de seu próprio sistema”. Empreender um sistema de pensamento aber‑ to foi o gesto ético ‑político com o qual Derrida confrontou a tradição filosófica e, sobretudo, pares metafísicos que restavam intocados. É desses pares que fala a filósofa argentina Mónica B. Cragnolini em sua entrevista con‑ cedida a Carla Rodrigues. Para Mónica, é o par humano/animal e todas as suas implica‑ ções ético ‑políticas que ainda interpelam os pesquisadores da obra de Derrida. “Trabalhar nesse ponto de injunção entre o humano e o animal, no trato de pessoas, no que se trata os viventes humanos como animais” é o que Mónica considera tarefa. Como pensadora latino ‑americana, Mónica também observa a importância, no continente, de ler um pensa‑ dor das margens, com o qual se pode questio‑ nar o eurocentrismo e a história da violência colonial, que aqui se singulariza nas políticas de dominação dos indígenas e dos negros. Seguindo no tema da dominação, o artigo de Olgária Mattos mostra como são borradas as fronteiras que pretendem separar o helenis‑ mo do judaísmo. Para isso, ela remonta a um texto de Derrida sobre o filósofo judeu ‑lituano Emmanuel Lévinas e retoma as perguntas: “Nós somos gregos? Nós somos judeus? Mas quem, nós?”. Ao trabalhar numa aproximação entre Derrida e o judaísmo, tanto a partir de sua articulação com Lévinas como a partir de uma ligação com o filósofo judeu ‑alemão Walter Benjamin, Olgária acentua o quanto o pensamento da desconstrução é crítico de um ideal de origem que estaria implícito na vio‑ lência desse “nós”. Desconstrução da origem, da linguagem “própria”, abertura à alteridade, pensamento que a partir da margem interroga a ideia de centro: são heranças de um filósofo cuja aber‑ tura de pensamento foram perturbações da ordem que marcaram sua abordagem descons‑ trutiva, como lembra Alice Serra em artigo sobre as ligações entre Derrida e arte. “O pen‑ samento desconstrutivo não visa puramente a uma inversão, a uma desordem, mas aponta para as fraturas e incongruências já inerentes ao que se apresenta de forma harmônica e so‑ lidificada”, escreve ela. Por esse caminho, Derrida faz da arte “um âmbito privilegiado” que, pontua Alice, “assim como a alteridade, apresenta essa peculiaridade de perturbar sis‑ temas de pensamento, deslocar lugares e hie‑ rarquias, convocar a pensar o que não pode ser apropriado pela filosofia”. Por fim, no confronto permanente com aquilo que não pode ser apropriado, Derrida encontra ‑se com a ciência, suas pretensões de objetividade, tema do artigo de Fernando Fragozo. Aqui, estamos diante de um crítico da tradição de pensamento que entende o co‑ nhecimento racional como “um processo gra‑ dativo que, aos poucos, caminharia na direção de uma totalização unificadora que seria capaz de explicar tudo o que existe: nós, a natureza, a realidade em geral”. É nesse ponto que se pode voltar à comparação com Hegel. Ao des‑ construir qualquer pretensão de explicar tudo o que existe, Derrida se inscreve na história da filosofia do século 20 como o pensador que, ao mesmo tempo, nos põe diante de um esgo‑ tamento – o conhecimento totalizante e ho‑ mogêneo sobre o que quer que seja – e do auge da exigência ético ‑política de inventar novas formas de fazer filosofia. 24 N°195 A desconstrução RAFAEL HADDOCK ‑LOBO Em 1989, em uma palestra de abertura de um grande Colóquio na Cardozo Law School, famosa faculdade de Direito nos EUA, o filósofo franco‑ ‑argelino Jacques Derrida parecia apresentar a fala que se tornaria um de seus mais respei‑ tados livros a fim de responder a alguns de seus críticos, enumerando razões para se re‑ conhecer que seu pensamento, que se conven‑ cionou desde a década de sessenta chamar de Desconstrução, mais do que uma teoria do conhecimento ou uma filosofia da linguagem, sempre teve como sua preocupação central uma postura ética e política. E, desde então, seu pensamento começa a se debruçar insis‑ tentemente sobre temas como a hospitalidade, os imigrantes ilegais, a democracia, o direito, a soberania etc., fazendo inclusive com que alguns de seus comentadores cunhassem o termo “segundo Derrida” ou “Derrida tardio” para se referir a essa suposta “virada ética” de seu pensamento. Mas como poderia ser possí‑ vel aceitar tal ideia de uma “guinada ético‑ ‑política” se o próprio filósofo declarava que seu trabalho foi desde sempre motivado por questões éticas e políticas? Nesse sentido, o que temos que compreender, antes de qualquer análise sobre a obra de Jacques Derrida, é co‑ mo e por que a desconstrução configura desde seu surgimento um gesto ético e político. Na referida palestra, que posteriormente foi publicada sob o título Força de lei: o fundamen‑ to místico da alteridade, a afirmação de Derrida sobre o caráter originariamente ético e político da desconstrução pôde, na época, parecer radi‑ cal ou mesmo apenas estratégico, frente às crí‑ ticas que recebia sobre a impossibilidade de a desconstrução fornecer uma matriz de pensa‑ mento que ajudasse a pensar a ética e a política, sobretudo depois da publicação em 1985 Mais do que uma teoria do conhecimento ou uma filosofia da linguagem, sempre teve como sua preocupação central uma postura ética e política JACQUES DERRIDADOSSIÊ 25N°195 do livro O discurso filosófico da modernidade, de Jürgen Habermas, em que tal crítica aparece explícita a Derrida. Contudo, nesse pequeno livro, em duas ou três páginas, Derrida dedica‑ ‑se a enumerar diversas razões que ajudam a compreender tal gesto desconstrutivo em sua mais íntima inclinação: a preocupação com aalteridade. Desse modo, urge que, primeira‑ mente, se compreenda como tal preocupação com a alteridade já se apresenta em seus pri‑ meiros trabalhos, sobretudo em sua maior obra (Gramatologia), para que, em seguida, se possa perceber como a chamada “virada” de seu pen‑ samento é muito menos uma mudança de ru‑ mo em seu pensamento, mas, mais propria‑ mente, um desdobramento de um movimento que já vinha sendo feito. O ano de 1967 pode ser considerado como a grande estreia do pensamento de Derrida, com a publicação consecutiva de três livros que terão um grande impacto no panorama filosó‑ fico da época: A voz e o fenômeno, Gramatologia e A escritura e a diferença (os três disponíveis em língua portuguesa). Essa tripla publicação, que faz com que os leitores nem ao menos sai‑ bam se há uma “obra primeira” ou original na arquitetura do pensamento derridiano, marca a entrada em cena desse pensamento que se, desde o início, causa uma grande resistência na filosofia, começa por outro lado a ser muito bem recebido por outras áreas de conhecimen‑ to, sobretudo pela psicanálise e pelas letras. E tal resistência da filosofia, que parece, aos olhos de Derrida, sobretudo sintomática, acontece justamente pois seu pensamento busca quebrar barreiras e ultrapassar as fronteiras que pare‑ cem ter se estabelecido tão seguramente ao longo da História da Filosofia. Mas o que seria, então, a Desconstrução? E como essa tentativa de cruzar as margens da O ano de 1967 pode ser considerado a grande estreia do pensamento de Derrida filosofia e a preocupação com a alteridade conciliam ‑se num mesmo gesto? A resposta está presente desde a primeira tentativa de Derrida de apresentar o que seria um esboço de um protossistema de seu pensamento. Isto que, na obra homônima, Derrida chama de “Gramatologia”, ou ciência do rastro, serve como exemplo paradigmático para compre‑ ender as motivações do filósofo franco‑ ‑argelino. “Gramatologia” é a tentativa de empreender um sistema de pensamento sem‑ pre aberto, que nunca se enclausura em uma fórmula ou um método, e por essa razão ne‑ cessita de uma arquitetura estratégica, para fugir da economia conceitual tradicional da filosofia, que sempre levaria o pensamento de um filósofo a fechar ‑se em torno de seu pró‑ prio sistema. É por tal razão que, sabendo que um sistema filosófico sempre se constrói a partir da formulação de conceitos próprios, que funcionam como peças mestras nessa ar‑ quitetônica, Derrida, sem poder abrir mão totalmente de conceitos, direciona suas forças em cunhar o que viria a chamar de “indecidí‑ veis”, ou “quase ‑conceitos”, ou seja, termos que não carregam em si nenhuma definição precisa, definitiva, mas que funcionam, numa cadeia de remetimentos, do mesmo modo co‑ mo funcionariam os conceitos. Para ser mais preciso: conceitos que não conceituam, que não pretendem dar conta de um sentido ou um significado fechado e que, por isso, inau‑ guram uma outra forma de relação entre as palavras e as coisas. 26 N°195 Como exemplo, tomemos o quase ‑conceito “rastro”, o substitutivo derridiano para aquilo que, na teoria da linguagem, chama ‑se “signo”. Se “signo” refere ‑se à coisa e pretende repre‑ sentar o sentido desta em sua presença à cons‑ ciência, ou seja, em termos mais simples, na pura significação do objeto, o conceito de signo sustenta ‑se sobre a ideia de que é garantido à consciência o acesso à realidade das coisas ne‑ las mesmas. No entanto, como veremos logo em seguida, se tal sentido do real, para Derrida, não nos é garantido, a relação de significação aproxima ‑se muito mais, em vez de um acesso às coisas em si mesmas, a uma espécie de ras‑ treamento, como se trilhássemos as pistas de um animal, sem saber nem quando nem se, de fato, ele esteve presente em tal sulcamento da terra, de tal modo apagado pelo tempo que es‑ ses rastros estariam. Nesse sentido, mais do que observar a correção ou a pertinência desse ou daquele signo com relação à coisa, ou, ainda mais, em pensar em que medida o pensamento filosófico pode garantir a adequação dos signos às coisas, a tarefa do filósofo seria a de pensar o real como uma cadeia de rastros, como a in‑ finitude de trilhas e pistas de animais em uma floresta chuvosa, no escuro, sem ao menos ter uma lanterna à mão, tateando de modo incerto e impreciso numa interpretação hiperbólica de tais rastros, uma espécie de aposta sem garan‑ tias, em que cada formulação ou teoria nada mais é que uma espécie de jogo, sem nenhuma certeza senão nossa própria vontade de que nossa aposta seja a correta. Tal ciência do rastro que Derrida rascunha em Gramatologia (que, na verdade, nada mais é que a própria impossibilidade de uma ciência rigorosa, pois o rigor extremo, o mais radical rigor nos obriga a aceitar que o real se apre‑ senta à consciência tão ‑somente como rastro) consiste em uma radicalização de seus estudos sobre a fenomenologia. Nessas interpretações sobre o pensamento de Husserl, que Derrida parece tomar como paradigma da postura e do desejo de todo filósofo, o pensador da Desconstrução observa que há, no próprio movimento filosófico (obviamente com algu‑ mas exceções, e são sobre estas que Derrida se apoiará) um impulso à compreensão, apreen‑ são, análise, categorização, definição etc., e todas essas atitudes sempre partem do princí‑ pio de que a realidade está diante de nós e que há sempre uma maneira correta de traduzir‑ mos suas leis em palavras, de modo preciso e categórico. E esta seria a grande tarefa do filó‑ sofo: encontrar o idioma em que melhor se expressa o real. Entretanto, o rigor de Derrida pretende ir além dessa vulgar concepção de realidade: para o filósofo, o real sempre escapa a qualquer conceitualização, ou seja, nossas palavras, nossos conceitos, pretendem dar conta de algo que é da ordem do escapamento, pois nada nos assegura, nenhuma fórmula ou lei, que a realidade se dá dessa ou daquela ma‑ neira, só nossa própria afirmação de que é assim que ela se apresenta. Por essa razão, Derrida faz sua afirmação controversa de que por detrás de toda teoria sempre há o elemento ficcional, ou seja, nos termos de Gramatologia, que toda teoria é uma construção. Isso não é um problema. O problema começa, justamente, quando cada filósofo acredita que sua construção apresenta a relação mais verdadeira com o real, que Para o filósofo, o real sempre escapa a qualquer conceitualização JACQUES DERRIDADOSSIÊ 27N°195 sua descoberta desvela a relação mais própria e rigorosa com a realidade, criando, assim, um sistema fechado e violento de pensamen‑ to, voltando ‑se contra toda e qualquer possi‑ bilidade de pensamento diferente, excluindo qualquer contradição e acreditando em sua efetividade. E é assim que surge a ideia de desconstrução, um gesto de pensamento que pretende mostrar a violência autoritária de um sistema fechado que se apresenta como única maneira de compreensão do real e não se mostra, de maneira alguma, como mais uma construção na História das Construções (ou fábulas, como diria Nietzsche) que é a História da Filosofia. A questão que surge na estratégia da cons‑ trução de Gramatologia (pois, sim, a Desconstrução também é uma construção, mas que se sabe e se assume como tal), é a seguinte: como, então, fugir a essa pretensão de verdade violenta? A resposta, como se an‑ tecipou, consiste na ideia de apresentar atra‑ vés desses quase ‑conceitos um sistema aberto, que, não se fechando em si mesmo, não pre‑ tenda dar conta do real, ou seja, não esgotar as possibilidades de interpretação do real, pois sempre será possível que se conceba ou‑ tras e outras maneiras de o pensamento relacionar ‑se com a realidade. E, para isso, esses indecidíveis, ou simulacros de conceitos, habitamuma região bem estranha à filosofia, numa proximidade com a literatura que desde a década de sessenta causou estranhamento aos filósofos mais conservadores. Enquanto a filosofia tradicionalmente constrói seu dis‑ curso tentando descrever as coisas enquanto elas mesmas, ou seja, em sua realidade mais autêntica, a desconstrução as descreve “como se” elas se apresentassem dessa ou daquela maneira, herdando e assumindo a estrutura ficcional da literatura como o lugar mais pró‑ prio da enunciação filosófica e, com isso, afas‑ tando o risco de violência e exclusão que, segundo Derrida, sempre se ancora por detrás da pretensão de verdade. A tarefa ético ‑política da desconstrução, então, seria a de desmontar certos discursos filosóficos, a fim de mostrar ou brancos, os es‑ paços, ou lapsos, ou seja, uma infinitude de outros discursos que se escondem por detrás da pretensa unidade de um texto, acreditando que há uma necessidade de se olhar tanto o não ‑dito como aquilo que está expressamente dito em um texto, pois aquilo que está excluído, recalcado, reprimido, violentado em um texto constitui uma peça tão valiosa à análise filosó‑ fica como aquilo que se expressa positivamente. Fica patente, nesse gesto, para além da óbvia herança que Derrida recebe de Nietzsche, quando vê a ficcionalidade das estruturas con‑ ceituais, uma herança da psicanálise, enxergan‑ do por detrás do discurso linear e lógico que a filosofia pretende apresentar. Filosofias marginais, como as de Nietzsche, Blanchot, Bataille e Kierkegaard, literaturas co‑ mo as de Artaud, Jabès e Mallarmé e de uma psicanálise de matriz freudiana (em seu íntimo diálogo silencioso com Lacan), além de sua re‑ lação com a linguística de Saussure e a antropo‑ logia de Lévi ‑Strauss, fazem da desconstrução derridiana um gesto completamente estrangeiro à filosofia, em que ela é obrigada a abandonar seu lugar tradicional e seguro e direcionar ‑se a suas fronteiras, contaminando ‑se assim por A descontrução também é uma construção 28 N°195 seus outros e tornando ‑se, por conseguinte, es‑ tranha a si mesma, outra de si própria. E esse discurso estranho, que não se pretende autêntico nem original, pode ser, na perspectiva de Derrida, talvez o que haja de mais autêntico e original na filosofia, um abandono do lugar de pureza, de autoridade, e a entrada em diálogo com tantos outros discursos, tantas outras pers‑ pectivas – o que, para o filósofo, seria um traço, desde suas primeiras motivações filosóficas, profundamente marcado pela preocupação ética e política com a alteridade. Esse desejo de fazer justiça ao outro é o que faz com que Derrida afirme que a Desconstrução é o que acontece, ela está no mundo, e, nesse sentido, cabe então ao filósofo a tarefa de pensar tais acontecimentos, confi‑ gurando um engajamento radical com a reali‑ dade (tal como entendida por Derrida). É nesse sentido que, mais do que um desconstrutor, ou seja, o sujeito que desconstrói, o filósofo deve ser aquele que pensa as desconstruções, pois as estruturas, os textos, os discursos já se apre‑ sentam a nós carregando no íntimo a própria desconstrução. Como disse certa vez Derrida, a Desconstrução consiste em enxergar a parti‑ ção no coração dos conceitos, pois estes já são desde sempre partidos – e só conseguirá ver tal partição o filósofo que também tiver seu cora‑ ção partido, ou seja, que carregar nele mesmo a marca da interdição e conseguir suportá ‑la. O filósofo, em seu amor pelo mundo, deve su‑ portar estar diante do trauma que é a descons‑ trução do próprio mundo, da precariedade de sentidos e da espectralidade do real, e estar sempre disposto a denunciar toda e qualquer postura autoritária que tente apresentar o mun‑ do em sua plenitude, o real em sua totalidade, espantando assim o assombro originário que é o que inaugura a própria filosofia. É óbvio que a preocupação de Derrida com o que se entenderia por uma “filosofia prática” fica mais aparente quando, a partir do final da década de oitenta, o filósofo começa a tratar dos temas mais propriamente inseridos no debate ético e político. Mas o que interessa aqui sublinhar é que a matriz de seu pensa‑ mento permanece a mesma, como se o filósofo tivesse, em seus primeiros escritos, se dedicado a uma tematização mais teórica (como se exis‑ tisse uma fronteira precisa entre teoria e prá‑ tica), como que a esboçar esse quase ‑sistema, para que, futuramente, para além dos textos teóricos, a desconstrução pudesse se direcionar, também, a textos ou discursos não teóricos (pois é preciso observar que a palavra discurso ou texto, para Derrida, inscreve ‑se muito além do que normalmente entendemos por texto, aproximando ‑se muito mais de uma ideia mais larga de contexto). Assim, a análise de textos que Derrida empreendia nas décadas de sessenta e setenta, ou seja, o pensamento da Desconstrução desses textos, não se diferencia em muito das análises que, a partir da década de oitenta, Derrida vai empreender, como, por exemplo, sobre o onze de setembro, sobre os discursos de Mandela, sobre a Europa etc. Por esse motivo, parece estranho ao pró‑ prio Derrida a ideia de uma “virada ética” em seu pensamento. A divisão em fases de um pensamento filosófico normalmente se dá quando surgem, no discurso do pensador, novos conceitos que mudam estruturalmente um sistema. E isso não ocorre no caso de Derrida, pelo contrário, pois os primeiros tex‑ tos parecem ecoar ao longo das quase cinco décadas de seu pensamento, conferindo ao pensamento da Desconstrução uma surpre‑ endente coerência e demonstrando que Derrida certamente é um dos autores mais brilhantes da História da Filosofia. JACQUES DERRIDADOSSIÊ 29N°195 OLGÁRIA MATOS Derrida e a língua do outro A filosofia é a ciência primeira No ensaio “Violência e Metafísica”, dedicado a um debate com o filósofo Emmanuel Lévinas, Derrida revisita Ulisses, de Joyce, reavendo a questão: “Nós somos gregos? Nós so‑mos judeus? Mas quem, nós? Somos primeiro judeus ou primeiro gregos? Se para um “judeu grego” como Walter Benjamin, o messianismo e, portanto, a ideia de “origem”, é um operador essencial, Derrida é um “grego ‑judeu” para quem a “origem” é objeto da descons‑ trução. Para Derrida, a Filosofia é a “ciência primeira”; para Benjamin, a Teologia. Derrida desconstrói a noção de origem e, com ela, a ideia de Nação, compreendendo ‑a não a partir da política, mas a partir da língua, na diferença (différance) entre Nação política e Nação cultural, desconstrução que interroga a natureza da hierarquia política das Nações e do poder de que seu prestígio é portador. A Desconstrução não é a passagem da estabilidade – garantida pela ideia de centro – para a “modernidade líquida”, mas a apreensão da flexibilidade e do descen‑ tramento. Eis porque a différance não se refere mais ao logos, mas a forças que não se estabilizam em uma identidade. A différance traz consigo o conceito freudiano de Entstellung – de‑ formação e deslocamento, pois a “défiguration” diz respeito a uma incerta territorialização. Diferença e diferenciação, presentes no diferir, no adia‑ mento, envolvem o tempo. É este o percurso derridiano em Fichus, dis‑ curso de recepção do prêmio Adorno em Frankfurt. Referindo ‑se a um sonho de Walter Benjamin, Derrida desenvolve uma segunda Traumdeutung. Sono e vigília associam ‑se em um “transe sonanbúlico”, na partilha incerta entre o sonho e seus restos diurnos, entre a “inércia” do sono e a atividade diurna, entre a consciência sonolenta e a vigília do inconsciente que vela e vigia todos os estados da consciência desperta. 30 N°195 Transe sonambúlico dos insones, esses “es‑ tados segundos” da consciência trazem a marca de uma atividade passiva, o próprio Fichus é a narrativa deslocada deum sonho, que não é do próprio sonhador, mas de um outro que não sonhou esse sonho e que o relata em um limiar conceitual, ultrapassando as convenções do gê‑ nero “interpretação dos sonhos”. Diz Derrida: “neste exato momento, dirigindo ‑me a vocês, de pé, de olhos abertos, prestes a agradecer ‑lhes do fundo do coração, com gestos unheimlich ou espectrais de um sonâmbulo, até mesmo de um assaltante vindo para açambarcar um prêmio que não lhe estava destinado, tudo se passa co‑ mo se eu estivesse sonhando. Até mesmo con‑ fessar: em verdade, lhes digo, ao saudá ‑los com gratidão, penso estar sonhando”. Para considerar esse estado e desenvolver suas análises, Derrida “refigura” palavras, des‑ loca um substantivo ou um adjetivo para um verbo, mas um verbo em sua forma simultane‑ amente ativa e passiva: “eu sonambulo”. Com isso, o filósofo não somente transgride, desestabilizando ‑os, o estado de sono e o estado de vigília, como espectraliza – decompondo ‑os e fantasmando – estados de consciência, so‑ nhando de olhos abertos e dormindo de pé. Se Fichus é um sonho que Derrida herdou de um outro, a questão é saber se quem sonha o sonho é aquele que o sonha ou aquele que o interroga. Questão que se desvia para uma outra, a da diferença entre sonho e realidade. Nas palavras do filósofo: “o sonhador pode falar de seu sonho sem acordar?”. Possíveis respostas, Derrida as encontra no âmbito da filosofia, da literatura e seus afins: o “impera‑ tivo racional da vigília”, “do eu soberano”, pois “o que é a filosofia para o filósofo? O acordar e o despertar”. Mas “a resposta do cineasta, do dramaturgo, do escritor, do músico, do pintor e mesmo do psicanalista” pode ser outra: “não responderiam não, mas sim, talvez, às vezes [...]. Há pois uma lucidez, uma Aufklärung do discurso sonhador sobre o sonho [...]. Hesitando entre o ‘não’ e o ‘sim, às vezes, tal‑ vez’, [acolhe ‑se] os dois”. Benjamin refere ‑se a Adorno e aos “sonhos” que são danificados, mutilados, prejudicados pelo despertar, como se o sonho “fosse mais vigilante que a vigília, o inconsciente mais reflexivo que a consciên‑ cia, a literatura ou as artes mais filosóficas mais críticas, em todo caso, que a filosofia”, como diz Derrida no discurso de Frankfurt. O sonho de Benjamin interrogado por Derrida é a hermenêutica de um sonho que é de um outro, como a língua que não é a sua. E entre os sonhos e os sonhadores, como entre as línguas, estabelecem ‑se alianças, senhas, passagens e “traços”. Esta não ‑ coincidência de uma coisa consigo mesma não significa que ela está fora de si, pois ela é “uma negatividade sem negação”, inscrições sem espessura, ex‑ pressões de um “entre ‑dois”, aparição e desa‑ parecimento em um intervalo incerto entre a ausência de uma presença e a presença de uma ausência. Por isso, Derrida indica os “espec‑ tros”, espectros da desconstrução, da “fanto‑ mologia” (hantologie). “Je suis hanté” é ser Entre os sonhos e os sonhadores, estabelecem‑se alianças, senhas... JACQUES DERRIDADOSSIÊ 31N°195 assediado por algo do passado, por rastros obsessivos cuja arquiescritura são as ambiva‑ lências judaico ‑egípcias de Moisés. A “fantasmologia” diz respeito à não iden‑ tidade de toda identidade, na qual não há o retorno a uma especificidade anterior, mesmo que desejada, pois no mais profundo do que é específico grava ‑se a marca indelével do Outro. Quando Derrida afirma ter uma única língua e que ela não é a sua mas de um Outro, dá se‑ quência, deslocando ‑a, à interpretação de Freud sobre a questão da identidade e da origem. Nesta refiguração da língua encontra ‑se o sentimento “perturbante”, a situação próxima à do pária, no paradoxo da impossível inclusão e da impossível exclusão. Derrida elabora a condição daquele que está à margem, sem uma referência a uma comunidade política. Na se‑ quência da Primeira Guerra Mundial, a queda do Império russo, do Império austro ‑húngaro e do otomano, bem como os reordenamentos políticos do Leste europeu, as leis raciais sob o nazismo e a guerra civil espanhola dissemi‑ naram na Europa uma população de refugia‑ dos como fenômeno de massa contínuo. O apátrida e o refugiado, embora comportem diferenças com respeito a pertencimentos le‑ gais e simbólicos, dizem respeito, nos Estados industrializados, a “residentes não estáveis” e não cidadãos, que não podem nem ser natu‑ ralizados nem repatriados. A relação ao Outro se realiza como “traço”, como “rastro” do Outro em mim, como pre‑ sentificação “espectral” ou “conciliação”, co‑ mo nas línguas. Nas Margens da filosofia trata‑ ‑se da différance que “não é um processo de “propriação” em nenhum sentido da palavra, pois, ao contrário da “propriação” heidegge‑ riana, não há “propriação” que não implique em si mesma a dimensão mais originária ain‑ da da “despropriação”. Por isso, para Derrida, a différance tem os sentidos de diferir, de ser a raiz comum das oposições, de produzir opo‑ sições e desdobramentos da diferença. Assim também nas línguas. No judaísmo, a língua do paraíso, a língua originária anterior a Babel, era o hebraico que, como tal, era uma e una. A multiplicidade das línguas foi, como para Benjamin, sua queda; já para Derrida, a língua anterior a Babel era já múltipla em si mesma. Diferenças que co‑ municam diferenças, a língua da origem é Pentecostes avant ‑la ‑lettre, em que todos fa‑ lavam línguas diversas mas em que todos se entendiam em uma espécie de “tradução simultânea”. Derrida, “grego judeu”, aproxima ‑se do mundo grego. Se, para este, a língua da Idade de Ouro era o grego, ela o era por ra‑ zões diversas do hebraico, pois Atenas pro‑ curava na origem a différance, sua potência alucinatória e surreal, a diversidade dos sentidos, enquanto Jerusalém encontrava na língua do Paraíso uma origem unitária e essencial. Do heteros ao allii, a língua, para Derrida, é mista, “contaminada”, híbrida. Se o “heteros” é o outro do “Um”, em si mes‑ mo inalterado, “allii” são os outros no Mesmo. Se Babel é condenação divina e per‑ da da “língua universal”, agora disponível à tradução, esta dá início à desconstrução da torre como língua universal e à violência: “[Deus] dispersa a filiação genealógica. Ele rompe a linhagem. Impõe e interdita, simul‑ taneamente, a tradução”, diz Derrida em “Torres de Babel”. Necessária e impossível, a tradução diz impropriamente o próprio, Babel significando, justamente,“confusão”. Para Derrida, o “marrano” sem melanco‑ lia, o desenraizamento originário encontra ‑se no interior das próprias línguas, as palavras contendo, como pharmakon, pelo menos duas significações, solidária uma da outra ou das outras, não admitindo qualquer divisão inter‑ na ou externa, uma vez que só se conhece a própria língua se nos relacionamos com ela como língua estrangeira. A ideia de “eleição” e “origem” de uma língua acarreta os particu‑ larismos da “eleição ‑exclusão”. Ao analisar o pensamento de Lévinas, Derrida destaca um sentido peculiar da “elei‑ ção” de Israel como estranhamento absoluto e exemplar de um povo sem terra de origem. Entre a Grécia e Jerusalém, entre Ulisses e A hospitalidade não pede ao outro traduzir‑se em nossas tradições e nossa língua 32 N°195 Abraão a diferença é a que existe entre nostos e êxodos, duas formas de viagem e de partida. Se a primeira vive à luz do retorno a Ítaca, a segunda aspira uma pátria onde não se nasceu e cada passo dado em sua direção não apro‑ xima uma terra, não é uma casa que já per‑ tencia: “a afirmação da verdade nômade”, observa Maurice Blanchot, “distingue o juda‑ ísmo do paganismo [...] O nomadismo é a resposta a uma relação para a qual a posse não basta. Este movimento nômade afirma ‑se não como privação perene de uma sede, mas como um modo autênticodo habitar”. Assim, a questão do que vem de fora e o que é de den‑ tro é sempre algo que provém do estrangeiro, o portador da questão. Neste horizonte, o estrangeiro é o “tercei‑ ro”, alguém que é sempre e apenas um intruso, aquele que “chegou primeiro”, que “nos priva da segurança e faz advir o porvir”. Este “con‑ vidado” ou “visitante inesperado” vem do fu‑ turo, contrariando a noção segundo a qual o que nos acontece é determinado em relação ao passado: “acontecimento inesperado e impre‑ visível de quem chega, em qualquer momento, adiantado ou atrasado, na acronia absoluta, sem ter sido convidado, sem avisar, sem hori‑ zonte de espera”. Apenas aquele que perdeu uma morada, que fez a experiência da “desolação”, da perda de todo pertencimento, pode oferecer a hospi‑ talidade. Esta hospitalidade sem reivindica‑ ções é o sentido da hospitalidade que não faz qualquer referência à soberania: “para uma tal experiência [da hospitalidade], que se deixa atravessar por aquilo que chega e por quem chega, por aquilo que vem e por quem chega, do outro por vir, uma certa renúncia incondi‑ cional à soberania é solicitada a priori”. Esta hospitalidade radical, absoluta, é, simultane‑ amente, inviável e necessária, permite ao outro ser outro, porque acolhe o apelo daquele que está “sem mundo”, aquele que não fala nossa língua. Deve ser recebido, não na lógica da razão de Estado e dos direitos humanos uni‑ versais, não por ser um homem como nós, mas porque ele traz consigo aquilo que nele não se reduz ao gênero e ao cálculo do necessário, tampouco à lógica da doação e da gratidão: “o convite, o acolhimento, o asilo, o alojamento passam [...] pelo dirigir ‑se ao outro.” Mas, “o que sempre está à espreita é o dilema entre a hospitalidade incondicional que vai além do direito, do dever e mesmo da política, por um lado e, por outro, a hospitalidade circunscrita pelo direito e pelo dever”. A hospitalidade não pede ao outro traduzir ‑se em nossas tradições e nossa língua. Assim Derrida pode então dizer “eu só tenho uma língua e ela não é a minha”, e ter iniciado seu discurso em Frankfurt com as palavras: “eu peço desculpas, estou prestes a saudá ‑los em minha língua. A língua será de resto meu tema: a língua do outro, a língua do hóspede, a língua do estrangeiro, até mesmo do imi‑ grante, do emigrado ou do exilado”. Nascido na Argélia, na periferia do Império francês, Derrida, judeu, perde, na França ocupada pe‑ los nazistas na Segunda Guerra, a cidadania francesa. Na condição de estrangeiro sem pá‑ tria, Derrida se vê privado, assim, da língua que não lhe pertence mais. Ao tê ‑la como lín‑ gua estrangeira, pôde dizer amá ‑la e conhecê‑ ‑la, pois só se conhece a própria língua quando a recebemos como língua estrangeira. Discursando em francês, na língua em que encontrou hospitalidade, nessa língua do Outro que é seu ethos, Derrida reconhece um “dom sem restituição, sem apropriação e sem jurisdição”. Ética hiperbólica, para além do “para além”, para além da jurisdição e do di‑ reito, é a política da amizade. JACQUES DERRIDADOSSIÊ 33N°195 A filósofa argentina Mónica B. Cragnolini propõe em relação ao pensamento de Jacques Derrida uma ideia original: ao associá ‑lo à filosofia de Nietzsche, chama aos dois de “pen‑sadores do tremor”. De fato, um dos pontos que une o fi‑ lósofo do martelo ao pensador da desconstrução é o abalo que, cada um a seu modo, produziu no chamado “edifício conceitual da meta‑ física”, expressão sob a qual muitas vezes se pretende estabilizar dois mil e quinhentos anos de história do pensamento grego ‑ocidental. Derrida foi um pensador que, no rastro das aberturas proporcionadas por Nietzsche, teve o cuidado de perceber que essa história não é única nem homogênea. Ao contrário, é marcada por idas e vindas, rupturas, avanços e recuos. No entanto, se há algo em comum que subjaz no percurso da metafísica é a sua fundamentação em um ideal de pre‑ sença – do sujeito, da consciência, do conteúdo, da coisa mesma. Contra essa presença, o tremor percebido por Mónica foi um operador para desestabilizar os pares opositivos que ainda estavam mais ou menos intocados na segunda metade do século 20, quando o pensador franco ‑argelino começa sua trajetória filosófica na França. Hoje, pas‑ sados dez anos de sua morte, Mónica identifica ainda a necessidade de os leitores de Derrida levarem adiante a tarefa de desconstruir o par humano/animal e todas as suas consequências violentas, como argumenta nesta entrevista. Pensar, tremer, desconstruir A filósofa argentina Mónica B. Cragnolini fala sobre a marca derridiana no pensamento contemporâneo CARLA RODRIGUES ENTREVISTA 34 N°195 designado ao outro em seu pensamento. “Resto” é “o que impede a totalização”, o fecho dialético na síntese. O resto não é o que “falta” de uma totalidade, uma vez desconstruída e desmonta‑ da em suas capas conceituais, se não aquele que impede que a totalidade se feche. A restância indica também uma “resistência”: já nos primei‑ ros textos de Derrida aparecia a ideia de que o texto “resiste” à tradução, porque está habitado por um excesso indecidível. Um pensador do resto é, basicamente, um pensador da alterida‑ de, e creio que essa é a marca derridiana no pensamento contemporâneo. A isso soma ‑se que, para Derrida, o animal é o “outro” (não chega a sê ‑lo para Lévinas, por exemplo, já que não tem rosto). Dez anos depois da morte de Derrida - que do meu ponto de vista deixa incompleta a tarefa de pensar a democracia, na sua pro‑ posição de democracia porvir - de que for‑ ma se pode pensar desafios políticos contem‑ porâneos? Afinal, há como rebater a crítica mais frequente de que a desconstrução não teria nada a dizer? MÓNICA B. CRAGNOLINI Creio que a democracia porvir é a figura do político em Derrida, e apresenta ‑se sempre de maneira oscilante co‑ mo “impossibilidade possível”. A democracia porvir é uma promessa, e o filósofo a pensou a partir da ideia de “messianidade sem messia‑ nismo”. A desconstrução mesma é “a experi‑ ência do impossível”, e isso está indicado no caráter aporético da desconstrução. D iv ul g aç ão Muitos autores atribuem a Derrida um momento limite da filosofia do século 20. Penso, por exemplo, em Patrice Maniglier, que considera a publicação de Gramatologia, em 1967, um “verdadeiro momento filosó‑ fico”, ou em Peter Sloterijk, que chama Derrida de “o Hegel do século 20”. Você con‑ sidera o pensamento de Derrida um marco filosófico? Por quê? MÓNICA B. CRAGNOLINI Creio que Derrida é o grande herdeiro de uma ampla linha de pensa‑ mento aberta por Nietzsche, e que basicamente aponta para a desconstrução da ideia de subje‑ tividade. Quando Nietzsche assinala “ele pensa” (Es denkt), começa aí o caminho para pensar não apenas uma desconstrução da metafísica moderna, como também a possibilidade do acontecimento (quer dizer, do outro e “o” ou‑ tro). Derrida se encontra nessa linha de pensa‑ mento, seguindo as possibilidades abertas pela filosofia pela noção de Ereignis (acontecimento) heideggeriana, e assumindo as críticas de Maurice Blanchot e Emmanuel Lévinas sobre os restos de subjetividade na noção de Dasein. Nesse sentido, o pensamento do “outro” me parece fundamental em Derrida, pensamento que já nos primeiros textos se expressava em termos de contaminação, a prótese de origem etc. Interpreto Derrida como um “pensador do resto”, e me parece que precisamente “resto” (reste) é um termo que permite entender tanto o modo de fazer filosofia como o lugar JACQUES DERRIDADOSSIÊ 35N°195 No momento político em que vivemos, você acredita que a proposição da hospitali‑ dade incondicional mostra ‑se mais atual do que nunca? MÓNICA B. CRAGNOLINI Sem dúvida, creio que a hospitalidade incondicional,que foi pensada em um contexto geopolítico da União Europeia e nos problemas que ela significou, tem uma enorme pertinência no momento atual. Devemos pensar continuamente no problema do outro e nas figuras da alteridade por excelência, que são, na minha opinião, o estrangeiro, o imigrante, a mulher, a criança e o animal. É claro que existem leis de hospitalidade condicionada que levam em conta os imigrantes. No entanto, continua‑ mente assistimos a problemas derivados da pre‑ sença de estrangeiros em territórios que os ex‑ pulsam ou submetem à servidão. Também é certo que as crianças foram reconhecidas em seus direitos desde a “Declaração dos Direitos das Crianças” e, no entanto, assistimos diaria‑ mente a episódios de “crianças prisioneiras” de seus pais ou de figuras de autoridades, como professores e polícia. Também é certo que os direitos da mulher têm uma longa história, de mais de um século, no entanto continuamos sendo objeto de violência doméstica, assédio moral, desigualdade no trabalho etc. E ainda é preciso falar dos animais, porque admitimos os direitos das crianças, das mulheres, dos estran‑ geiros e, por isso, nos horrorizamos diante das práticas que violam esses direitos. Mas boa parte da humanidade não se interessa pelo modo co‑ mo são tratados os animais. É necessário pensar uma hospitalidade incondicional com o animal e acredito que essa é a tarefa para o presente e para o futuro próximo. A Derrida atribui ‑se uma grande con‑ tribuição aos estudos pós ‑coloniais. Para nós, latino ‑americanos, fazendo filosofia no hemisfério Sul, em que o pensamento da Desconstrução pode nos ajudar a pensar nu‑ ma geopolítica do conhecimento? MÓNICA B. CRAGNOLINI Acredito que a Desconstrução nos permite pensar muitos as‑ pectos do modo em que nos constituímos como países do Cone Sul, com uma história de colo‑ nialismo que nos vincula com o outro de acordo com determinadas figuras de domínio. Um dos modos desse “eu soberano” do sujeito moderno que a desconstrução denuncia especifica ‑se em nossas terras em termos das políticas de domi‑ nação dos indígenas, do negro etc. Nós somos aqueles que não podem ser “outro” para o colo‑ nizador, que nos pensou em termos de “anima‑ lidade”. As disputas em torno dos habitantes do Novo Mundo terem ou não alma dão conta de que para os colonizadores, estivemos na situação daquele que naturalmente deve ser dominado, o animal. A conquista da América evidencia muitos aspectos do exercício da soberania e do eu autotélico e autodêictico, como diz Derrida. No caso da Argentina, acho que o pensamento derridiano, a partir da noção de fantasma e de políticas de sobrevida, nos permitiu pensar uma questão concreta, que é o tema dos desapareci‑ dos, temos uma figura de memória muito “Devemos pensar continuamente no problema do outro e nas figuras de alteridade por excelência... ENTREVISTA 36 N°195 especial, aquele “nem vivo nem morto”, aquele que, por mais que seu corpo seja encontrado, segue sendo “desaparecido”. Na ditadura civil‑ ‑militar de 1977 ‑1983, trinta mil desapareceram. A noção de “desaparecido” mostra de maneira estranha, o impossível de todo luto e a impossi‑ bilidade do esquecimento, a figura espectral do desaparecido nos confirma a necessidade das políticas de respeito e de cuidado do outro. Por isso, cinzas, luto impossível, fantasma, são no‑ ções derridianas que no caso da Argentina nos permitem pensar também nos aspectos de nossa política atual. As Mães da Praça de Maio e as Avós mantêm a memória das cinzas: os julga‑ mentos dos culpados dos crimes contra a huma‑ nidade, dos crimes da ditadura militar, não “es‑ gotam” a demanda de justiça, porque, como assinala Derrida, a justiça é da ordem do impos‑ sível. A demanda de “aparecimento com vida” (dos familiares dos desaparecidos e de todos os argentinos) mostra que o caráter de uma política impossível, que não se conforma com a aparição dos cadáveres (tarefa levada a cabo pela Equipe de Antropologia Forense), e que nos coloca em um luto impossível, em uma memória das cin‑ zas, do inesquecível. Um dos meus interesses no pensamento de Derrida foi a possibilidade de descons‑ truir alguns pares metafísicos que ainda se mantinham quase intocados, como mascu‑ lino/feminino. Suas críticas ao falogocentris- mo também foram de grande importância aos estudos de gênero. Você acha que os ...que são, na minha opinião, o imigrante, a mulher, a criança e o animal” leitores de Derrida herdam da desconstrução a tarefa de levar adiante a crítica a outros pares metafísicos? MÓNICA B. CRAGNOLINI Acredito que no mo‑ mento atual o par que merece desconstrução e trabalho político é o humano ‑animal. Considero que essa é a tarefa que o filósofo dei‑ xou para a Desconstrução: a tarefa que não pode ser separada do problema político de pen‑ sar melhores condições de vida para todo vi‑ vente. Derrida, no seminário “A besta e o sobe‑ rano”, vincula o tratamento de pessoas ao tratamento dos animais (para serem usados como alimento, roupa, experiências etc.). Considero que ali está a tarefa a se realizar pelos desconstrucionistas: trabalhar nesse ponto de injunção entre o humano e o animal, no trato de pessoas, no que se trata os viventes humanos como animais, para poder entender o que sig‑ nifica o tratamento dos animais. Está “natura‑ lizado” que os animais devem servir às neces‑ sidades humanas, mas o trato de pessoas evidencia algo que é um golpe para a consciên‑ cia dos homens: quando somos tratadas “como animais”. Se os que se alimentam de animais chegarem a perceber isso, acho que é possível pensar uma política de animalidade que leve em conta o vivente animal como um outro, que deve ser respeitado. As transformações do di‑ reito nos próximos anos devem transitar por esse tema do tratamento que damos aos ani‑ mais, para que o “viver junto” na comunidade dos viventes, a que me referi antes, seja possível sem domínio de uns sobre os outros. JACQUES DERRIDADOSSIÊ 37N°195 Derrida menciona um evento autobiográfico que iria marcar a abordagem desconstrutiva. Nos alpendres de sua casa, em sua infância na Argélia, o pedreiro colocara um ladri‑lho invertido ou deslocado. O menino Jacques Derrida demorava ‑se em olhar para esse ladrilho. A Desconstrução – comenta o autor em “Rastro e arquivo, imagem e arte” – “consiste justamente em colocar os ladrilhos do avesso, enfim, a perturbar uma ordem”. Ao perturbar uma estrutura, o pensamento desconstrutivo não visa pu‑ ramente a uma inversão, a uma desordem, mas aponta para as fraturas e incongruências já inerentes ao que se apresenta de forma harmônica e solidificada. A arte torna ‑se assim um âmbito privilegiado para o ALICE SERRA Arte e imagem sob os olhares da desconstrução “A inabilidade lastimável das formas que desmoronam em torno de uma ideia” Vincent Van Gogh, Shoes, 1888 P ur ch as e, T he A nn en b er g F o un d at io n G if t, 1 99 2 38 N°195 pensamento desconstrutivo, na medida em que também lhe é peculiar configurar de ou‑ tros modos uma dada relação de coisas, retirar objetos e materiais de sua funcionalidade co‑ tidiana, instaurar o imprevisto. É mais esse sentido de aproximação do que uma separação estanque ou uma hierarquia entre diferentes domínios – arte e pensamento – o que move os olhares da desconstrução para a arte. A Desconstrução não apreende a arte co‑ mo um objeto dado ou construído pela teoria, tampouco se dirige a obras e artistas com um sistema prévio de conceitos ou com um méto‑ do interpretativo a ser ‑lhes aplicado. Derrida cuida para que a singularidade de cada obra e de cada artista estudado seja preservada em seus textos. As imagens trazidas aos textos não têm por função ilustraros argumentos do au‑ tor, mas atuam em sentido provocativo, reti‑ rando o texto seja de uma posição de autono‑ mia diante da imagem, seja de uma pretensão de incluir a imagem no interior de um sistema teórico. Por sua vez, alguns textos de Derrida desconstroem teorias de outros autores ao in‑ dicar outras instâncias de sentido que teriam sido apagadas em interpretações apresentadas como consistentes. Esses procedimentos pre‑ tendem contribuir para uma preservação do espaço da arte e para uma abertura a diferen‑ tes espaçamentos da arte no mundo. Tal pre‑ servação instaura duas diferenciações princi‑ pais: primeiramente, é a obra de Derrida que se transforma no decurso das leituras e diálo‑ gos que propõe; secundariamente, são as obras lidas pela Desconstrução que se diferenciam para o leitor ou espectador, desprendendo ‑se de interpretações prévias. O primeiro aspecto – as diferenciações trazidas pela arte na obra de Derrida – entende ‑se no sentido de que a Desconstrução não se apropria da arte como um tópico a ser integrado num sistema de filosofia, mas, an‑ tes, deixa ‑se transformar a cada leitura que propõe (sobre uma obra, sobre um artista). Esse efeito já se observa no modo como o pen‑ samento desconstrutivo desloca para si con‑ ceitos dos autores que estuda, como se vê nas leituras de Derrida sobre Levinas, Husserl, Freud, Hegel e outros. Ao serem deslocados de seus sistemas de pensamento prévios, os conceitos mudam de denominação e de abrangência. Eles passam a atuar como quase‑ ‑conceitos, prestando ‑se a outras diferencia‑ ções e a alterações gráficas, quando se faz necessário. Essa apropriação de conceitos e modos de expressão de outros autores é tam‑ bém desapropriadora. Ou seja, aquilo que é apropriado logo se deixa despersonalizar, per‑ dendo sua relação de pertencimento a um sistema de filosofia em que o autor pretendes‑ se controlar a expressão e em que conceitos se subordinassem uns aos outros. De modo si‑ milar, o pensamento desconstrutivo deixa ‑se contaminar pelos modos de configuração e pelas delimitações trazidas pelas obras ou sé‑ ries de obras de arte que estuda. Um bom exemplo, neste caso, é o livro so‑ bre Antonin Artaud, Enlouquecer o subjétil, escrito por Derrida em parceria com as inter‑ venções da artista plástica Lena Bergstein. Para Derrida, não se trata de interpretar ou decodificar os traços de Artaud, quando é o próprio Artaud que afirma, nos rasgos, rabis‑ cos e páginas queimadas, uma impossibilidade de trazer a expressão a um significado e im‑ possibilidade de projetar na página uma ima‑ gem previamente ideada. Derrida cita uma passagem em que o próprio Artaud se refere a um desenho seu como a “inabilidade lastimá‑ vel das formas que desmoronam em torno de uma ideia”. Para Derrida, Artaud denuncia a insuficiência de se pensar linguagem e arte JACQUES DERRIDADOSSIÊ 39N°195 como transposições de significados e formas ideais dados à consciência. Se Artaud não tra‑ balha somente com a palavra que transporta sentido, o livro que se pretende próximo a Artaud traz para suas próprias páginas inscri‑ ções, remissões de Lena Bergstein a rasgos, letras, queimas, rabiscos que se encontravam nos cadernos de Artaud. Ao lado ou abaixo dessas incisões e vazios, o texto de Derrida aparece como uma outra cena, esta alude a Artaud e suas inscrições, mas não de modo descritivo ou analítico. E alude ainda a esse outro olhar, o olhar da artista que descentra do texto o autor. Nessas cenas contíguas e re‑ missões implícitas, o diálogo é apenas possível com um outro que se cala, retira ‑se do âmbito da palavra, mas permanece ao lado e alhures do texto de Derrida. É como se, num lugar ambiguamente situado no texto e à margem do texto, a singularidade da marca e a alteri‑ dade do artista se preservassem. Outro exemplo de diferenciação inscrita pela arte na obra de Derrida são os desenhos de cegos ou alusivos à cegueira, em seu livro Memórias de cego: o autorretrato e outras ru‑ ínas, escrito para uma exposição no museu do Louvre. Ressalte ‑se que foi Derrida quem escolheu o tema para a exposição – a cegueira – e quem fez a primeira seleção das imagens que foram expostas e reproduzidas no livro. Derrida aborda a cegueira como condição de possibilidade daquilo que, na pintura e no desenho, se dá a ver: “possibilidade do visível, esta invisibilidade habitaria o visível”. Para Derrida, não cabe ao pensamento trazer ao visível aquilo que na imagem se conservou obscuro. Como se vê no autorretrato de Henri Fantin ‑Latour que foi reproduzido na capa do livro e longamente comentado por Derrida, o lápis do artista deixou um dos olhos apenas subentendido na parte obscura da imagem, lugar em que estaria o órgão da visão, mas onde a não ‑visibilidade se inscre‑ ve. Esse modo de expressão remete ao proce‑ dimento desconstrutivo análogo, que res‑ guarda uma margem de invisibilidade ou de ambiguidade em seus textos. A desconstru‑ ção nem apaga os aspectos obscuros e as in‑ congruências nem os traz a uma pretensa clareza, mas deixa ‑os ao lado ou nas entreli‑ nhas, como que perturbando o texto e tur‑ vando uma percepção nítida. Assim proce‑ dendo, a desconstrução aproxima ‑se de uma atuação própria à arte. Para Derrida, a arte, assim como a alteridade, apresenta essa pe‑ culiaridade de perturbar sistemas de pensa‑ mento, deslocar lugares e hierarquias, con‑ vocar a pensar o que não pode ser apropriado pela filosofia. Já um segundo plano de diferenciação diz respeito, como mencionado, aos efeitos do pen‑ samento desconstrutivo sobre a obra abordada: ao pretender preservar o espaço da arte, a Desconstrução insiste em desprendê ‑la de en‑ foques parciais e reducionistas, sejam estes de cunho historicista, psicologista ou outros, reconduzindo ‑a a uma diversidade de remis‑ sões de sentido. Esse aspecto se observa, por exemplo, no texto de Derrida acerca da inter‑ pretação de Heidegger sobre os sapatos pinta‑ dos por Van Gogh, publicado no livro A ver‑ dade em pintura. Abrindo seu texto com a pergunta “Não há fantasmas nos quadros de Van Gogh?”, conduz ‑nos Derrida ao tema do espectro. O fantasma ou espectro ronda o vi‑ sível e está presente a cada vez que se projetam significados sobre imagens e percepções. Projeções fantasmáticas ou imaginárias estão assim em toda interpretação sobre obras de arte e não podem ser eliminadas. O perigo, para a desconstrução, é quando a interpretação 40 N°195 Para Derrida, não cabe ao pensamento trazer ao visível aquilo que na imagem se conservou obscuro se fixa à obra ou pretende revelar a verdade da obra. Nesse sentido, na desconstrução da in‑ terpretação sobre os chamados “sapatos de camponeses” de Van Gogh, Derrida lembra, dentre outros aspectos, que o quadro a que se referia Heidegger não possuía título e remetia a uma série de quadros em que Van Gogh pin‑ tou sapatos. Aludindo também metaforica‑ mente ao fato de que os cadarços daqueles sapatos estavam desamarrados, Derrida indi‑ ca a insuficiência de se interpretá ‑los segundo uma tese sobre sua origem e seu pertencimen‑ to. Os sapatos poderiam ser tanto de campo‑ neses, como afirmou Heidegger, quanto sapa‑ tos do próprio Van Gogh quando de sua estadia em Paris, como sustentou o historia‑ dor da arte Meyer Shapiro. Ambas as signifi‑ cações são possíveis, mas não desvelam a ver‑ dade da imagem, inclusive por não considerarem suficientemente diversas outras instâncias (materiais, políticas, econômicas etc.) que interferiram na produção da obra e em suas interpretações. Nesse sentido, Derrida ressalta que seu li‑ vro A verdade em pintura não trata especifica‑ mente das pinceladas, formas e cores, mas enfoca sobretudo o que se passa em torno da pintura: o desenho, as bordas, a moldura, as‑ sim comoespeculações teóricas sobre a pintu‑ ra e a circulação econômica das obras. Embora o autor também se dirija à pintura e ao dese‑ nho num nível discursivo, observa ‑se essa diferença da abordagem desconstrutiva em relação a outros discursos teóricos: enquanto a maioria destes se volta para o significado e o desígnio da obra (aquilo que o artista almeja; aquilo que a obra pretende significar), a des‑ construção se esforça por reconduzir a ima‑ gem para o insignificante, para o traço inscri‑ to. Neste passo, as leituras de Derrida sobre artes visuais conservam nuances que já se Henri Fantin-Latour, Self-portrait, 1859 D iv ul g aç ão JACQUES DERRIDADOSSIÊ 41N°195 encontravam em outras especulações suas so‑ bre a escrita. Em contraponto à metafísica clássica, que sempre teria privilegiado o sen‑ tido ideal e a linguagem falada em detrimento da inscrição gráfica, Derrida pensa a lingua‑ gem como uma rede de traços diferenciais: seja num texto literário ou filosófico, seja nu‑ ma tela ou gravura, o traço inscrito institui diferenças, distingue ‑se dos demais na medida em que se delimita e se relaciona com os de‑ mais, de um modo singular a cada vez. O tra‑ ço inscrito não se subordina ao significado ideal, à palavra falada, à imagem ideada, ele não os representa. Ao poder se expressar de um modo diferente em relação ao que se pre‑ tendia, ele contamina o sentido ideado, po‑ dendo surpreender o sujeito que supunha controlar os modos de expressão. Derrida induz ‑nos assim a pensar que não existe uma verdade da arte, sobretudo, que não existe “uma” verdade. Todavia, há que se lembrar que seu livro que justamente se intitula A verdade em pintura também par‑ te de uma citação de Paul Cézanne que afir‑ ma: “Eu lhes devo a verdade em pintura e eu a lhes direi”. Ao refletir sobre os sentidos dessa promessa de verdade, Derrida reprisa os sentidos de verdade que, em diferentes momentos da tradição filosófica, pretende‑ ram circunscrever a arte – verdade enquanto representação (de um objeto ou cena perce‑ bida); enquanto adequação (a uma ideia ou significado); enquanto manifestação (da ver‑ dade). A partir de algumas desconstruções, Derrida problematiza direta ou indiretamen‑ te com tais noções de verdade. A primeira dessas desconstruções é a já mencionada desconstrução das noções de per‑ tencimento e de origem da arte, como se indi‑ cou no exemplo dos sapatos de Van Gogh. Uma outra desconstrução, também já anunciada, consiste no deslocamento da dicotomia entre ergon (obra) e parergon (aquilo que circunda a obra), sendo que a estética clássica teria privi‑ legiado a obra e ofuscado o parergon. Para Derrida, ao contrário, importa resgatar no in‑ terior da obra as interferências do “fora” e do “em torno”. Citem ‑se, neste caso, as interferên‑ cias provenientes da materialidade da obra e dos contextos, como é o caso dos suportes dos quadros, dos lugares de exposição e instalação, da crítica de arte, do mercado e das implicações políticas da arte. A remissão ao parergon parece assim implicar a necessidade de uma análise infinita da obra; todavia, Derrida aponta tam‑ bém os limites da análise, já que os vínculos e remissões em cada obra não se compõem de elementos simples e não se deixam decompor de modo abstrato, o que se vê propriamente no vínculo entre suporte e superfície. Uma outra desconstrução atinge o privi‑ légio do monumental e das imagens suposta‑ mente representativas, desconstrução que Derrida efetua não através de uma crítica direta, mas de anotações dedicadas ao frag‑ mentário. Isso se vê em suas observações so‑ bre os desenhos de Valerio Adami, bem como em suas anotações dedicadas a uma série de desenhos de Gérard Titus ‑Carmel, ambos os textos publicados em A verdade em pintura. Como se observa no desenho de Benjamin feito por Adami e reproduzido no livro, a fi‑ guração se quebra e se interrompe sob a in‑ terferência de outras cenas e da escrita que se sobrepõe. Por sua vez, a série de cento e vinte 42 N°195 e sete desenhos de Titus ‑Carmel alusivos a uma mesma caixinha de madeira traz a Derrida a questão da relação entre unidade e série, todo e parte. A singularidade de cada desenho aponta para uma quase ‑ontologia dos restos: o resto é o que se perdeu de uma totalidade, o que remete a outros restos con‑ tíguos e sucessivos, mas que resiste a ser res‑ tituído a um todo. Tais desconstruções não conduzem a uma tese sobre a verdade da arte. Elas indicam, an‑ tes, que tal verdade é escorregadia como o quase ‑conceito derridiano da différance. A différance está no modo como a percepção acontece, no modo como se vinculam sentido e imagem, no modo como a linguagem se ma‑ nifesta e se retém: cada imagem, cada palavra, cada qualidade sensível é presente enquanto já se fragmenta, enquanto passa ao não visível, enquanto temporiza ‑se e espaça ‑se, produzin‑ do uma rede de diferenças. A cada presente, novas diferenciações se sobrepõem à rede de diferenças precedentes, as quais só se dão a ler posteriormente e de modo indireto. Assim pensada, a verdade no desenho e na pintura é o que se dá ao olhar e ao mesmo tempo se re‑ tira, aponta para um além da obra a ser pers‑ crutado e para uma origem da obra que não se alcança, mas que se promete no olhar e na mão que segura o lápis – ou o pincel. Numa bela metáfora inscrita por Freud e reinscrita por Derrida, apresenta ‑se o hiato entre a mão que escreve sobre o papel trans‑ parente e a escrita que se retém desse ato: como ocorre naquele antigo brinquedo “blo‑ co mágico”, essa escrita somente se conserva nas camadas situadas abaixo da folha trans‑ parente, ela se conserva lá onde ela não é vi‑ sível. Se ela se deixa ler e traduzir, é apenas de modo indireto e deslocado em relação a sua origem. Pode ‑se dizer que nessa outra metáfora inscrita por Derrida a partir de Fantin ‑Latour, a metáfora do olhar, tem ‑se um paradoxo semelhante: o olhar que foca o percebido e a ideia que se visa na imagem separa ‑se do outro olhar, simultâneo, mas sombreado e cego, na impossibilidade de re‑ ter no papel ou na tela a imagem que o outro olhar contemplou. Mas dessa simultaneidade de olhares, uma outra cena aparece, ora bela e bem ordenada, ora desfocada, ora provoca‑ tiva, ora conturbada: as questões que as cenas da arte colocam à desconstrução deixam‑ ‑se igualmente vislumbrar por um olhar que ao mesmo tempo as contempla e se extravia. Desvios em direção ao que, a partir de um lugar exterior à obra, interferiu na obra, e em direção ao que a obra disseminou para além de si. É preciso desviar, contemplar e desviar, dirá Derrida, porque esse extravio e algumas de suas disseminações já se encontram na‑ quilo que seria a origem da imagem. Ao se‑ guir as pegadas e ao se demorar nos traços da imagem e da escrita, a Desconstrução não recompõe a origem, mas preserva a arte en‑ quanto promessa de origem – origem de sen‑ tido, origem de um mundo. JACQUES DERRIDADOSSIÊ 43N°195 Em geral, quando se fala de ciência, alguns qualificativos pare‑cem se repetir sem que sejam propriamente questionados em seu uso corrente ou seu sentido. Assim, correntemente ouvimos falar de “verdade” científica, “descoberta” científica, de “avan‑ ço” ou de “progresso” da ciência. Em geral, não se questiona muito o que podem significar “verdade”, “descoberta” ou “avanço” nesses casos; em geral, a ciência é pensada como um processo de conhecimento que, em seu progresso, descobre a verdade do mundo que nos cerca, e explica, paulatinamente, a realidade que somos e na qual nos encontramos. Mas será isso mesmo a ciência? A discussão é rica, diversificada e extremamente viva entre os chamados filósofos da ciência. Mas não apenas: pensadores dos mais diversos matizes, assim como cientistasdas mais diversas áreas, se debruçam e se debruçaram sobre a questão: afinal, como pensar a ciência? Jacques Derrida é sem dúvida um desses pensadores que buscou responder à “questão ciência” com acuidade e amplitude, refletindo sobre suas origens, premissas e história, num movimento de questio‑ namento que busca situar a ciência moderna no âmbito dessa herança mais ampla que nos constitui e que se chama “Ocidente”. Não é evi‑ dentemente o único a fazê ‑lo com essa envergadura, claro. Outros grandes pensadores também propuseram – e propõem – respostas para a “questão ciência”, e Derrida sabe, e o diz explicitamente, que é tribu‑ tário dos caminhos abertos por, dentre outros, Husserl e Heidegger, que, antes dele, buscaram entender a ciência a partir de um profundo questionamento da filosofia. O que caracteriza Derrida, contudo, é o fato de aprofundar esses caminhos abertos na direção de um questionamento próprio, FERNANDO FRAGOZO As ciências, a razão e a desconstrução Afinal, como pensar a ciência? 44 N°195 que radicaliza a posição desses pensadores e elabora uma posição de permanente questio‑ namento das grandes narrativas herdadas da filosofia e de sua história, inclusive das narra‑ tivas herdadas desses pensadores que lhe abri‑ ram, por assim dizer, o caminho. Assim, um primeiro ponto que é central na reflexão derridiana acerca da ciência é a constatação de que, quando se fala de “ciên‑ cia”, está ‑se, de fato, diante de um fenômeno que muito dificilmente pode ser apresentado assim, no singular: a ciência. Na verdade, para Derrida (mas não apenas para ele), não faz sentido falar de ciência no singular: a plurali‑ dade das ciências – cada uma com seu objeto específico de estudo, seu estilo, suas premissas, suas instituições, sua comunidade, sua neces‑ sidade e sua história próprias – coloca em questão a própria possibilidade de se falar de ciência, assim, no singular. Ora, o que Derrida constata é que essa ten‑ tativa de trazer essa pluralidade a uma preten‑ sa unidade corresponde mais a uma “ideia” de ciência do que propriamente corresponde ao que de fato se vivencia no âmbito das ciências. Trata ‑se, para Derrida, de uma postulação que não encontra, a princípio, justificativa nem comprovação – postulação “ideal”, segundo a qual a razão em geral, e as ciências aí incluí‑ das, tem uma “vocação” unificadora, totaliza‑ dora e sistemática; vocação essa que seria, como propõe Kant, a sua própria “natureza”. Em outras palavras, o que Derrida constata é que há toda uma tradição de pensamento que pensa o processo de conhecimento racional como um processo gradativo que, aos poucos, caminharia na direção de uma totalização uni‑ ficadora que seria capaz de explicar tudo o que existe: nós, a natureza, a realidade em geral. Mesmo que esse ideal nunca se realize, ele é, contudo, para essa tradição de pensamento, a direção e o fim ideais que guiam (ou deveriam guiar) todos os esforços de conhecimento. Para Derrida, essa tradição é propriamente a filosofia. Nela, como já apontara Heidegger, o que se busca é uma fundamentação concei‑ tual definitiva, certa e inabalável que dê conta racionalmente de tudo o que há. Nesse sentido, para essa tradição, a pluralização das ciências (fenômeno que pode ser observado com cada vez maior intensidade desde o século 19) é, sem dúvida, extremamente desconcertante: o fato de haver racionalidades plurais, heterogê‑ neas, intraduzíveis, não passíveis de analogia, coloca radicalmente em questão o ideal de um conhecimento pleno, unificado e totalizante. Se Derrida está certo, se não há como arti‑ cular as várias ciências em uma unidade, se não há como traduzir as diversas linguagens dos diversos campos científicos umas nas outras, há evidentemente um problema na postulação da unicidade ideal da ciência. Seria então pre‑ ciso repensar essa hipótese “ideal” do conheci‑ mento de modo justamente a liberar as ciências dessa expectativa unificante e respeitar seus objetos, linguagens e procedimentos próprios e diferenciados. Continuar a pensar que as ci‑ ências têm de ser unificadas acaba por forçar as ciências numa direção que pode não ser própria a elas; acaba, em outras palavras, por desvirtuá‑ ‑las. Assim, é em nome dessas racionalidades heterogêneas, de sua especificidade, de seu fu‑ turo e de sua história, que Derrida propõe pôr em questão essa “idealização” do processo de questionamento da realidade, chamando a atenção para o perigo que representa essa con‑ cepção unificante e totalizadora da razão para a possibilidade da existência e do desdobramen‑ to dessa impressionante e rica pluralidade ra‑ cional que são os diversos questionamentos e as diversas instituições científicas. Perigo, por‑ que esse ideal de ciência pode condicionar, di‑ recionar ou mesmo limitar o questionamento científico, dando a ele uma direção prévia, um fim a atingir, uma finalidade pré ‑determinada – em uma palavra, uma “teleologia”. Não faz sentido falar de ciência no singular JACQUES DERRIDADOSSIÊ 45N°195 Se essa idealização unificante e teleológica mais geral do processo de conhecimento tende a condicionar o questionamento científico, a pré ‑ordená ‑lo numa direção específica, não é menos verdade que há outros condicionantes, controles e “teleologismos” mais específicos nos processos de pesquisa que podem inibir ou travar a possibilidade da “descoberta”. O que Derrida tem em mente quando fala desses “teleologismos” específicos, que podem inter‑ ferir no desenrolar de uma ciência particular, é não apenas o perigo de a pesquisa científica se ver perigosamente pautada e guiada por todo tipo de poderes ou instituições políticas, militares, religiosas, tecnológicas, econômicas ou capitalísticas (e daí a importância das uni‑ versidades terem condições de realizarem seus questionamentos sem condicionantes de qual‑ quer espécie), mas também pelas orientações que podem ser constituídas, internamente, no próprio seio de uma comunidade científica específica, em torno do que Thomas Kuhn denominou de “paradigma” e que correspon‑ de, em linhas gerais, a um conjunto de concei‑ tos, definições, procedimentos, práticas, ins‑ trumentos e técnicas que orientam uma configuração determinada de pesquisa e res‑ tringem ou descartam outros modos de ques‑ tionar ou mesmo de definir os objetos daquele âmbito científico específico. Ora, para Derrida, uma descoberta apenas é realmente uma descoberta quando foge dos padrões pré ‑determinados e das projeções es‑ peradas e demanda, por parte dos pesquisa‑ dores, toda uma nova reflexão e reordenação do conhecimento. Nesse sentido, ela é propria‑ mente um “acontecimento”, algo que não pode ser entendido, respondido e avaliado a partir dos parâmetros até então adotados, algo ina‑ propriável por parte dessas narrativas prévias. Se a adoção de um conjunto de conceitos, hipóteses e procedimentos faz parte do modo de procedimento de toda ciência, o fato é que, para Derrida, só há “acontecimento” científi‑ co, só há “invenção” e “descoberta” ali onde surge justamente, a partir das projeções espe‑ radas, o inesperado, e a invenção técnico‑ ‑científica apenas “encontra” o que ela busca ali onde ela não é programada por uma estru‑ tura de espera e antecipação que anula a des‑ coberta ao torná ‑la possível e portanto previ‑ sível. A descoberta científica é, para Derrida, um acontecimento inesperado. Sem dúvida, o próprio movimento interno das ciências pode vir a fazer com que o “acon‑ tecimento” se dê, o imprevisível surja – a his‑ tória ou as histórias das ciências nos contam certamente diversos casos dessas irrupções, dessas perplexidades que demandaram todo um esforço de reconceitualização e elabora‑ ção de hipóteses, na medida em que as “des‑ cobertas” colocaram os conceitose as pressu‑ posições anteriores em questão. Em Gramatologia, Derrida analisa dois desses casos mais detidamente, a saber, a linguística e a gramatologia (ciência da escrita), e se per‑ gunta se os conceitos e hipóteses que guiavam essas ciências não deveriam ser radicalmente revistos diante das enormes descobertas que realizaram – descobertas essas que deveriam não apenas abalar essas pressuposições cien‑ tíficas mas também toda a conceitualidade filosófica que herdamos e que Derrida propõe ‑se justamente a desconstruir. Na verdade, Derrida se pergunta se não é o caso de toda ciência, no seu próprio processo de desenvolvimento, levar paulatinamente ao questionamento das premissas conceituais e hipotéticas que a constitui. O próprio movi‑ mento das ciências pode fazer com que o “acontecimento” se dê – mas isso pode não ser o caso justamente nas situações em que os 46 N°195 diversos “teleologismos” e as interferências das mais diversas ordens condicionam a pesquisa e o questionamento. Nesse sentido, o que Derrida propõe é um trabalho conjunto da “desconstrução”, ou seja, do pensamento que se propõe a constantemente analisar os seus fundamentos e limites, com esses processos específicos a cada ciência, no sentido de assi‑ nalar e denunciar os condicionantes que im‑ peçam a possibilidade da perplexidade e do acontecimento, da descoberta e da invenção, de modo a permitir que o processo de questio‑ namento continue, numa radical reflexividade. A desconstrução é assim definida por Derrida como um “racionalismo incondicional” que nunca renuncia a suspender de modo argu‑ mentado, discutido, racional, todas as condi‑ ções, as hipóteses, as convenções e as pressu‑ posições, a criticar incondicionalmente todas as condicionalidades, a fim de abrir espaço a uma “democracia por vir”. Porque é isso que está em jogo para Derrida nesse radical processo de questiona‑ mento: a possibilidade de uma pluralização de vozes sobre a realidade que tenham, cada uma, validade racional, argumentada, a fim de que o espaço de jogo da democracia sempre se abra mais – e, por isso, a democracia é sempre “por vir”. E isso não quer dizer, para Derrida, que não se adotem hipóteses, que não se propo‑ nham conceitos ou teorias, mas que essas se‑ jam suficiente e permanentemente questiona‑ das, criticadas e, mais importante, não sejam postas em função de condicionamentos que predeterminem o que pode ou não pode ser questionado, pensado e discutido. Sem dúvida, uma tensão aqui se gera entre um pólo propriamente propositivo, condicio‑ nante e instaurador da racionalidade e outro, questionador, crítico e desconstrutor. Ora, para Derrida, a desconstrução não seria ape‑ nas um racionalismo hipercrítico, o polo por assim dizer “negativo” da razão, o âmbito do permanente questionamento das condiciona‑ lidades. Ela seria também uma reflexão racio‑ nal dos próprios limites do pensamento racio‑ nal que visaria justamente ponderar entre essas duas necessidades da razão e do questio‑ namento: a necessidade de estabelecer condi‑ ções e a necessidade de questioná ‑las. Ser ra‑ cional, para Derrida, é justamente realizar essa ponderação, que deve ser feita caso a caso, sem regra fixa previamente dada, sem segurança absoluta, precisando criar em cada caso as suas próprias regras e procedimentos. Assim, num caso bem específico, central e fundamental, a saber, a questão dos “direi‑ tos humanos”, Derrida chama a atenção para a necessidade de pensar tanto a história des‑ se conceito, suas diversas ampliações, e sua importância hoje para o estabelecimento do direito internacional e o respeito à vida hu‑ mana. No entanto, chama também a atenção para a exigência de justiça incondicional que esses conceitos nunca preenchem totalmen‑ te, marcados eles mesmos por pressuposi‑ ções, cálculos, limites e interesses os mais diversos que os mobilizam, tanto o conceito de “direito” quanto o conceito de “humano”. Mais especificamente, nesse ultimo caso, e diante dos questionamentos cada vez mais incisivos de diversas ciências, da biologia à antropologia, é preciso pensar e questionar o que até aqui se entendeu como “vida” e “corpo”, “humano” e “animal”, no que su‑ postamente haveria de definitivo nessas se‑ parações e limites. E isso principalmente diante das inauditas possibilidades que se abrem, por exemplo, com a questão da engenharia genética. Metonímia de todas as urgências que nos interpelam hoje, Uma descoberta apenas é realmente uma descoberta quando foge dos padrões pré‑determinados JACQUES DERRIDADOSSIÊ 47N°195 a questão da clonagem humana mobiliza, se‑ gundo Derrida, o melhor e o pior da razão, o cálculo e o incalculável, os poderes e a impo‑ tência da razão diante das gigantescas per‑ guntas acerca da essência da vida, do nasci‑ mento e da morte, dos direitos da pessoa e do Estado. Para Derrida, o debate atual acerca da clonagem humana apresenta, em geral e esquematicamente, dois campos que se de‑ frontam, sendo ambos marcados por pressu‑ posições fortes e não de todo explicitadas e refletidas, que merecem ambas serem descon‑ truídas. Assim, de um lado os defensores da clonagem, e principalmente da clonagem terapêutica, que defendem a pesquisa sem limites, acenando para as possibilidades de cura mais diversas, mesmo que o risco, por mais calculável que seja, possa abrir as portas para o incalculável. De outro, aqueles que protestam contra essas experiências, cha‑ mando a atenção para a singularidade do humano, o direito de cada ser existir ao seu modo, a dignidade da vida e o perigo de pro‑ gramação militar, industrial ou comercial da vida humana. Ora, nesse caso, Derrida cha‑ ma a atenção para o fato de que ambas as posições partem de conceitos e hipóteses que precisam ser profundamente repensadas, o problema necessitando de uma outra radical elaboração na medida que o que está de fato em jogo nas possibilidades abertas pela en‑ genharia genética é a necessidade de repensar o que somos e o que podemos ser, a questão da vida, do corpo, e a própria definição de “ser humano”. Nesse sentido, diante da necessidade de decidir entre essas posições, é preciso não apenas elaborar de modo profundo o ques‑ tionamento mas também e principalmente separar de modo radical o processo de ques‑ tionamento do processo de tomada de deci‑ são. Isso porque, por mais que o questiona‑ mento se aprofunde, por mais que se conheça aquilo sobre o que se está pesquisando, há sempre um desconhecimento radical que não permite que uma decisão seja inteiramente calculável e programável. A rigor, o que Derrida aponta é que, uma decisão enquanto tal, digna desse nome, é aquela que se dá quando não pode ser programada nem ter suas conseqüências inteiramente previstas. Uma decisão só é decisão quando ela tem de decidir diante do que não se sabe, numa es‑ pécie de salto no escuro que, seja na direção que for, engaja a responsabilidade e assume o risco e o ônus. Se o saber é necessário, se o cálculo é possível, ele o é até certo ponto – quando não se sabe e um caminho tem de ser escolhido, aí existe, para Derrida, a necessi‑ dade da decisão que engaja, direta e radical‑ mente, a responsabilidade. E, por isso, saber e poder, questionamento e decisão devem estar completamente separados. E se o verdadeiro local de um problema da razão hoje é certamente a técnica, com tudo o que ela implica como advento impossível, im‑ previsível e radicalmente outro, é preciso, para pensá ‑la adequadamente, assim como para pensar a razão e a ciência, realizar o que Derrida chama de “descentramento” radical, e que corresponde, de fato, a elaborar um pen‑ samento que não pode ser, ou não pode mais ser, apenas, “um ato filosófico ou científico enquanto tal”. 48 N°195
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