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Dossie Cult Derrida

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DEZ ANOS DEPOIS, 
PASSANDO A LIMPO O 
PENSADOR DA 
DESCONSTRUÇÃO
25
A DESCONSTRUÇÃO
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DERRIDA E A LÍNGUA 
DO OUTRO
34
[ ENTREVISTA ]
PENSAR, TREMER, 
DESCONSTRUIR
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ARTE E IMAGEM SOB 
OS OLHARES DA 
DESCONSTRUÇÃO
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AS CIÊNCIAS, A RAZÃO 
E A DESCONSTRUÇÃO
JACQUES DERRIDADOSSIÊ
Depois da morte do filósofo Jacques Derrida, em 2004, muitas homenagens ao seu pensamento, à sua obra e à sua figura foram organizadas, es‑critas, publicadas. Entre tantos reconhecimentos 
– muitos deles não colhidos em vida – coube ao alemão Peter 
Sloterdijk publicar Derrida, um egípcio. O problema da pirâ‑
mide judia (Estação Liberdade), livro em que a filosofia de 
Derrida é articulada com sete outros grandes pensadores. 
Logo nas primeiras linhas, Sloterdijk escreve que Derrida “foi 
o Hegel do século 20”. Hegel não apenas como o nome próprio 
de um grande filósofo alemão, mas indicação de culminância, 
esgotamento e nada mais a ultrapassar.
CARLA RODRIGUES
Dez anos depois, 
passando a limpo 
o pensador da 
desconstrução 
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Dez anos depois da morte de Derrida, seus 
herdeiros, comentadores e leitores estão ainda 
diante da tarefa de levar adiante um pensamen‑
to que carrega tanto as marcas do auge da filo‑
sofia do século 20 quanto de seu possível fim. 
Aqui, que não se enganem os críticos. Trata ‑se 
do fim de um certo tipo de filosofia, não da 
destruição da experiência filosófica, mas sobre‑
tudo de sua possibilidade de renovação. 
Este dossiê em torno da obra do filósofo 
franco ‑argelino – que fez do seu lugar de mar‑
ginal à Europa uma questão filosófica para o 
eurocentrismo e cujo judaísmo impulsionou 
sua crítica às origens gregas do pensamento 
– começa com artigo de Rafael Haddock ‑Lobo 
no qual apresenta o pensamento da descons‑
trução como “tentativa de empreender um 
sistema de pensamento sempre aberto, que 
nunca se enclausura em uma fórmula ou um 
método, e por essa razão necessita de uma ar‑
quitetura estratégica, para fugir da economia 
conceitual tradicional da filosofia, que sempre 
levaria o pensamento de um filósofo a fechar‑
‑se em torno de seu próprio sistema”. 
Empreender um sistema de pensamento aber‑
to foi o gesto ético ‑político com o qual Derrida 
confrontou a tradição filosófica e, sobretudo, 
pares metafísicos que restavam intocados.
É desses pares que fala a filósofa argentina 
Mónica B. Cragnolini em sua entrevista con‑
cedida a Carla Rodrigues. Para Mónica, é o 
par humano/animal e todas as suas implica‑
ções ético ‑políticas que ainda interpelam os 
pesquisadores da obra de Derrida. “Trabalhar 
nesse ponto de injunção entre o humano e o 
animal, no trato de pessoas, no que se trata os 
viventes humanos como animais” é o que 
Mónica considera tarefa. Como pensadora 
latino ‑americana, Mónica também observa a 
importância, no continente, de ler um pensa‑
dor das margens, com o qual se pode questio‑
nar o eurocentrismo e a história da violência 
colonial, que aqui se singulariza nas políticas 
de dominação dos indígenas e dos negros.
Seguindo no tema da dominação, o artigo 
de Olgária Mattos mostra como são borradas 
as fronteiras que pretendem separar o helenis‑
mo do judaísmo. Para isso, ela remonta a um 
texto de Derrida sobre o filósofo judeu ‑lituano 
Emmanuel Lévinas e retoma as perguntas: 
“Nós somos gregos? Nós somos judeus? Mas 
quem, nós?”. Ao trabalhar numa aproximação 
entre Derrida e o judaísmo, tanto a partir de 
sua articulação com Lévinas como a partir de 
uma ligação com o filósofo judeu ‑alemão 
Walter Benjamin, Olgária acentua o quanto o 
pensamento da desconstrução é crítico de um 
ideal de origem que estaria implícito na vio‑
lência desse “nós”. 
Desconstrução da origem, da linguagem 
“própria”, abertura à alteridade, pensamento 
que a partir da margem interroga a ideia de 
centro: são heranças de um filósofo cuja aber‑
tura de pensamento foram perturbações da 
ordem que marcaram sua abordagem descons‑
trutiva, como lembra Alice Serra em artigo 
sobre as ligações entre Derrida e arte. “O pen‑
samento desconstrutivo não visa puramente 
a uma inversão, a uma desordem, mas aponta 
para as fraturas e incongruências já inerentes 
ao que se apresenta de forma harmônica e so‑
lidificada”, escreve ela. Por esse caminho, 
Derrida faz da arte “um âmbito privilegiado” 
que, pontua Alice, “assim como a alteridade, 
apresenta essa peculiaridade de perturbar sis‑
temas de pensamento, deslocar lugares e hie‑
rarquias, convocar a pensar o que não pode 
ser apropriado pela filosofia”. 
Por fim, no confronto permanente com 
aquilo que não pode ser apropriado, Derrida 
encontra ‑se com a ciência, suas pretensões de 
objetividade, tema do artigo de Fernando 
Fragozo. Aqui, estamos diante de um crítico 
da tradição de pensamento que entende o co‑
nhecimento racional como “um processo gra‑
dativo que, aos poucos, caminharia na direção 
de uma totalização unificadora que seria capaz 
de explicar tudo o que existe: nós, a natureza, 
a realidade em geral”. É nesse ponto que se 
pode voltar à comparação com Hegel. Ao des‑
construir qualquer pretensão de explicar tudo 
o que existe, Derrida se inscreve na história 
da filosofia do século 20 como o pensador que, 
ao mesmo tempo, nos põe diante de um esgo‑
tamento – o conhecimento totalizante e ho‑
mogêneo sobre o que quer que seja – e do auge 
da exigência ético ‑política de inventar novas 
formas de fazer filosofia. 
24 N°195
A desconstrução
RAFAEL HADDOCK ‑LOBO
Em 1989, em uma palestra de abertura de um grande Colóquio na Cardozo Law School, famosa faculdade de Direito nos EUA, o filósofo franco‑
‑argelino Jacques Derrida parecia apresentar 
a fala que se tornaria um de seus mais respei‑
tados livros a fim de responder a alguns de 
seus críticos, enumerando razões para se re‑
conhecer que seu pensamento, que se conven‑
cionou desde a década de sessenta chamar de 
Desconstrução, mais do que uma teoria do 
conhecimento ou uma filosofia da linguagem, 
sempre teve como sua preocupação central 
uma postura ética e política. E, desde então, 
seu pensamento começa a se debruçar insis‑
tentemente sobre temas como a hospitalidade, 
os imigrantes ilegais, a democracia, o direito, 
a soberania etc., fazendo inclusive com que 
alguns de seus comentadores cunhassem o 
termo “segundo Derrida” ou “Derrida tardio” 
para se referir a essa suposta “virada ética” de 
seu pensamento. Mas como poderia ser possí‑
vel aceitar tal ideia de uma “guinada ético‑
‑política” se o próprio filósofo declarava que 
seu trabalho foi desde sempre motivado por 
questões éticas e políticas? Nesse sentido, o que 
temos que compreender, antes de qualquer 
análise sobre a obra de Jacques Derrida, é co‑
mo e por que a desconstrução configura desde 
seu surgimento um gesto ético e político.
Na referida palestra, que posteriormente foi 
publicada sob o título Força de lei: o fundamen‑
to místico da alteridade, a afirmação de Derrida 
sobre o caráter originariamente ético e político 
da desconstrução pôde, na época, parecer radi‑
cal ou mesmo apenas estratégico, frente às crí‑
ticas que recebia sobre a impossibilidade de a 
desconstrução fornecer uma matriz de pensa‑
mento que ajudasse a pensar a ética e a política, 
sobretudo depois da publicação em 1985 
Mais do que uma teoria do conhecimento ou uma 
filosofia da linguagem, sempre teve como sua 
preocupação central uma postura ética e política
JACQUES DERRIDADOSSIÊ
25N°195
do livro O discurso filosófico da modernidade, 
de Jürgen Habermas, em que tal crítica aparece 
explícita a Derrida. Contudo, nesse pequeno 
livro, em duas ou três páginas, Derrida dedica‑
‑se a enumerar diversas razões que ajudam a 
compreender tal gesto desconstrutivo em sua 
mais íntima inclinação: a preocupação com aalteridade. Desse modo, urge que, primeira‑
mente, se compreenda como tal preocupação 
com a alteridade já se apresenta em seus pri‑
meiros trabalhos, sobretudo em sua maior obra 
(Gramatologia), para que, em seguida, se possa 
perceber como a chamada “virada” de seu pen‑
samento é muito menos uma mudança de ru‑
mo em seu pensamento, mas, mais propria‑
mente, um desdobramento de um movimento 
que já vinha sendo feito.
O ano de 1967 pode ser considerado como 
a grande estreia do pensamento de Derrida, 
com a publicação consecutiva de três livros que 
terão um grande impacto no panorama filosó‑
fico da época: A voz e o fenômeno, Gramatologia 
e A escritura e a diferença (os três disponíveis 
em língua portuguesa). Essa tripla publicação, 
que faz com que os leitores nem ao menos sai‑
bam se há uma “obra primeira” ou original na 
arquitetura do pensamento derridiano, marca 
a entrada em cena desse pensamento que se, 
desde o início, causa uma grande resistência na 
filosofia, começa por outro lado a ser muito 
bem recebido por outras áreas de conhecimen‑
to, sobretudo pela psicanálise e pelas letras. E 
tal resistência da filosofia, que parece, aos olhos 
de Derrida, sobretudo sintomática, acontece 
justamente pois seu pensamento busca quebrar 
barreiras e ultrapassar as fronteiras que pare‑
cem ter se estabelecido tão seguramente ao 
longo da História da Filosofia.
Mas o que seria, então, a Desconstrução? 
E como essa tentativa de cruzar as margens da 
O ano de 1967 pode ser 
considerado a grande estreia 
do pensamento de Derrida
filosofia e a preocupação com a alteridade 
conciliam ‑se num mesmo gesto? A resposta 
está presente desde a primeira tentativa de 
Derrida de apresentar o que seria um esboço 
de um protossistema de seu pensamento. Isto 
que, na obra homônima, Derrida chama de 
“Gramatologia”, ou ciência do rastro, serve 
como exemplo paradigmático para compre‑
ender as motivações do filósofo franco‑
‑argelino. “Gramatologia” é a tentativa de 
empreender um sistema de pensamento sem‑
pre aberto, que nunca se enclausura em uma 
fórmula ou um método, e por essa razão ne‑
cessita de uma arquitetura estratégica, para 
fugir da economia conceitual tradicional da 
filosofia, que sempre levaria o pensamento de 
um filósofo a fechar ‑se em torno de seu pró‑
prio sistema. É por tal razão que, sabendo que 
um sistema filosófico sempre se constrói a 
partir da formulação de conceitos próprios, 
que funcionam como peças mestras nessa ar‑
quitetônica, Derrida, sem poder abrir mão 
totalmente de conceitos, direciona suas forças 
em cunhar o que viria a chamar de “indecidí‑
veis”, ou “quase ‑conceitos”, ou seja, termos 
que não carregam em si nenhuma definição 
precisa, definitiva, mas que funcionam, numa 
cadeia de remetimentos, do mesmo modo co‑
mo funcionariam os conceitos. Para ser mais 
preciso: conceitos que não conceituam, que 
não pretendem dar conta de um sentido ou 
um significado fechado e que, por isso, inau‑
guram uma outra forma de relação entre as 
palavras e as coisas.
26 N°195
Como exemplo, tomemos o quase ‑conceito 
“rastro”, o substitutivo derridiano para aquilo 
que, na teoria da linguagem, chama ‑se “signo”. 
Se “signo” refere ‑se à coisa e pretende repre‑
sentar o sentido desta em sua presença à cons‑
ciência, ou seja, em termos mais simples, na 
pura significação do objeto, o conceito de signo 
sustenta ‑se sobre a ideia de que é garantido à 
consciência o acesso à realidade das coisas ne‑
las mesmas. No entanto, como veremos logo 
em seguida, se tal sentido do real, para Derrida, 
não nos é garantido, a relação de significação 
aproxima ‑se muito mais, em vez de um acesso 
às coisas em si mesmas, a uma espécie de ras‑
treamento, como se trilhássemos as pistas de 
um animal, sem saber nem quando nem se, de 
fato, ele esteve presente em tal sulcamento da 
terra, de tal modo apagado pelo tempo que es‑
ses rastros estariam. Nesse sentido, mais do 
que observar a correção ou a pertinência desse 
ou daquele signo com relação à coisa, ou, ainda 
mais, em pensar em que medida o pensamento 
filosófico pode garantir a adequação dos signos 
às coisas, a tarefa do filósofo seria a de pensar 
o real como uma cadeia de rastros, como a in‑
finitude de trilhas e pistas de animais em uma 
floresta chuvosa, no escuro, sem ao menos ter 
uma lanterna à mão, tateando de modo incerto 
e impreciso numa interpretação hiperbólica de 
tais rastros, uma espécie de aposta sem garan‑
tias, em que cada formulação ou teoria nada 
mais é que uma espécie de jogo, sem nenhuma 
certeza senão nossa própria vontade de que 
nossa aposta seja a correta. 
Tal ciência do rastro que Derrida rascunha 
em Gramatologia (que, na verdade, nada mais 
é que a própria impossibilidade de uma ciência 
rigorosa, pois o rigor extremo, o mais radical 
rigor nos obriga a aceitar que o real se apre‑
senta à consciência tão ‑somente como rastro) 
consiste em uma radicalização de seus estudos 
sobre a fenomenologia. Nessas interpretações 
sobre o pensamento de Husserl, que Derrida 
parece tomar como paradigma da postura e 
do desejo de todo filósofo, o pensador da 
Desconstrução observa que há, no próprio 
movimento filosófico (obviamente com algu‑
mas exceções, e são sobre estas que Derrida se 
apoiará) um impulso à compreensão, apreen‑
são, análise, categorização, definição etc., e 
todas essas atitudes sempre partem do princí‑
pio de que a realidade está diante de nós e que 
há sempre uma maneira correta de traduzir‑
mos suas leis em palavras, de modo preciso e 
categórico. E esta seria a grande tarefa do filó‑
sofo: encontrar o idioma em que melhor se 
expressa o real. Entretanto, o rigor de Derrida 
pretende ir além dessa vulgar concepção de 
realidade: para o filósofo, o real sempre escapa 
a qualquer conceitualização, ou seja, nossas 
palavras, nossos conceitos, pretendem dar 
conta de algo que é da ordem do escapamento, 
pois nada nos assegura, nenhuma fórmula ou 
lei, que a realidade se dá dessa ou daquela ma‑
neira, só nossa própria afirmação de que é 
assim que ela se apresenta. 
Por essa razão, Derrida faz sua afirmação 
controversa de que por detrás de toda teoria 
sempre há o elemento ficcional, ou seja, nos 
termos de Gramatologia, que toda teoria é 
uma construção. Isso não é um problema. O 
problema começa, justamente, quando cada 
filósofo acredita que sua construção apresenta 
a relação mais verdadeira com o real, que 
Para o filósofo, o real 
sempre escapa a qualquer 
conceitualização
JACQUES DERRIDADOSSIÊ
27N°195
sua descoberta desvela a relação mais própria 
e rigorosa com a realidade, criando, assim, 
um sistema fechado e violento de pensamen‑
to, voltando ‑se contra toda e qualquer possi‑
bilidade de pensamento diferente, excluindo 
qualquer contradição e acreditando em sua 
efetividade. E é assim que surge a ideia de 
desconstrução, um gesto de pensamento que 
pretende mostrar a violência autoritária de 
um sistema fechado que se apresenta como 
única maneira de compreensão do real e não 
se mostra, de maneira alguma, como mais 
uma construção na História das Construções 
(ou fábulas, como diria Nietzsche) que é a 
História da Filosofia.
A questão que surge na estratégia da cons‑
trução de Gramatologia (pois, sim, a 
Desconstrução também é uma construção, 
mas que se sabe e se assume como tal), é a 
seguinte: como, então, fugir a essa pretensão 
de verdade violenta? A resposta, como se an‑
tecipou, consiste na ideia de apresentar atra‑
vés desses quase ‑conceitos um sistema aberto, 
que, não se fechando em si mesmo, não pre‑
tenda dar conta do real, ou seja, não esgotar 
as possibilidades de interpretação do real, 
pois sempre será possível que se conceba ou‑
tras e outras maneiras de o pensamento 
relacionar ‑se com a realidade. E, para isso, 
esses indecidíveis, ou simulacros de conceitos, 
habitamuma região bem estranha à filosofia, 
numa proximidade com a literatura que desde 
a década de sessenta causou estranhamento 
aos filósofos mais conservadores. Enquanto a 
filosofia tradicionalmente constrói seu dis‑
curso tentando descrever as coisas enquanto 
elas mesmas, ou seja, em sua realidade mais 
autêntica, a desconstrução as descreve “como 
se” elas se apresentassem dessa ou daquela 
maneira, herdando e assumindo a estrutura 
ficcional da literatura como o lugar mais pró‑
prio da enunciação filosófica e, com isso, afas‑
tando o risco de violência e exclusão que, 
segundo Derrida, sempre se ancora por detrás 
da pretensão de verdade.
A tarefa ético ‑política da desconstrução, 
então, seria a de desmontar certos discursos 
filosóficos, a fim de mostrar ou brancos, os es‑
paços, ou lapsos, ou seja, uma infinitude de 
outros discursos que se escondem por detrás 
da pretensa unidade de um texto, acreditando 
que há uma necessidade de se olhar tanto o 
não ‑dito como aquilo que está expressamente 
dito em um texto, pois aquilo que está excluído, 
recalcado, reprimido, violentado em um texto 
constitui uma peça tão valiosa à análise filosó‑
fica como aquilo que se expressa positivamente. 
Fica patente, nesse gesto, para além da óbvia 
herança que Derrida recebe de Nietzsche, 
quando vê a ficcionalidade das estruturas con‑
ceituais, uma herança da psicanálise, enxergan‑
do por detrás do discurso linear e lógico que a 
filosofia pretende apresentar.
Filosofias marginais, como as de Nietzsche, 
Blanchot, Bataille e Kierkegaard, literaturas co‑
mo as de Artaud, Jabès e Mallarmé e de uma 
psicanálise de matriz freudiana (em seu íntimo 
diálogo silencioso com Lacan), além de sua re‑
lação com a linguística de Saussure e a antropo‑
logia de Lévi ‑Strauss, fazem da desconstrução 
derridiana um gesto completamente estrangeiro 
à filosofia, em que ela é obrigada a abandonar 
seu lugar tradicional e seguro e direcionar ‑se a 
suas fronteiras, contaminando ‑se assim por 
A descontrução também 
é uma construção
28 N°195
seus outros e tornando ‑se, por conseguinte, es‑
tranha a si mesma, outra de si própria. E esse 
discurso estranho, que não se pretende autêntico 
nem original, pode ser, na perspectiva de 
Derrida, talvez o que haja de mais autêntico e 
original na filosofia, um abandono do lugar de 
pureza, de autoridade, e a entrada em diálogo 
com tantos outros discursos, tantas outras pers‑
pectivas – o que, para o filósofo, seria um traço, 
desde suas primeiras motivações filosóficas, 
profundamente marcado pela preocupação ética 
e política com a alteridade.
Esse desejo de fazer justiça ao outro é o 
que faz com que Derrida afirme que a 
Desconstrução é o que acontece, ela está no 
mundo, e, nesse sentido, cabe então ao filósofo 
a tarefa de pensar tais acontecimentos, confi‑
gurando um engajamento radical com a reali‑
dade (tal como entendida por Derrida). É nesse 
sentido que, mais do que um desconstrutor, ou 
seja, o sujeito que desconstrói, o filósofo deve 
ser aquele que pensa as desconstruções, pois as 
estruturas, os textos, os discursos já se apre‑
sentam a nós carregando no íntimo a própria 
desconstrução. Como disse certa vez Derrida, 
a Desconstrução consiste em enxergar a parti‑
ção no coração dos conceitos, pois estes já são 
desde sempre partidos – e só conseguirá ver tal 
partição o filósofo que também tiver seu cora‑
ção partido, ou seja, que carregar nele mesmo 
a marca da interdição e conseguir suportá ‑la. 
O filósofo, em seu amor pelo mundo, deve su‑
portar estar diante do trauma que é a descons‑
trução do próprio mundo, da precariedade de 
sentidos e da espectralidade do real, e estar 
sempre disposto a denunciar toda e qualquer 
postura autoritária que tente apresentar o mun‑
do em sua plenitude, o real em sua totalidade, 
espantando assim o assombro originário que 
é o que inaugura a própria filosofia.
É óbvio que a preocupação de Derrida com 
o que se entenderia por uma “filosofia prática” 
fica mais aparente quando, a partir do final da 
década de oitenta, o filósofo começa a tratar 
dos temas mais propriamente inseridos no 
debate ético e político. Mas o que interessa 
aqui sublinhar é que a matriz de seu pensa‑
mento permanece a mesma, como se o filósofo 
tivesse, em seus primeiros escritos, se dedicado 
a uma tematização mais teórica (como se exis‑
tisse uma fronteira precisa entre teoria e prá‑
tica), como que a esboçar esse quase ‑sistema, 
para que, futuramente, para além dos textos 
teóricos, a desconstrução pudesse se 
direcionar, também, a textos ou discursos não 
teóricos (pois é preciso observar que a palavra 
discurso ou texto, para Derrida, inscreve ‑se 
muito além do que normalmente entendemos 
por texto, aproximando ‑se muito mais de uma 
ideia mais larga de contexto). Assim, a análise 
de textos que Derrida empreendia nas décadas 
de sessenta e setenta, ou seja, o pensamento da 
Desconstrução desses textos, não se diferencia 
em muito das análises que, a partir da década 
de oitenta, Derrida vai empreender, como, por 
exemplo, sobre o onze de setembro, sobre os 
discursos de Mandela, sobre a Europa etc.
Por esse motivo, parece estranho ao pró‑
prio Derrida a ideia de uma “virada ética” em 
seu pensamento. A divisão em fases de um 
pensamento filosófico normalmente se dá 
quando surgem, no discurso do pensador, 
novos conceitos que mudam estruturalmente 
um sistema. E isso não ocorre no caso de 
Derrida, pelo contrário, pois os primeiros tex‑
tos parecem ecoar ao longo das quase cinco 
décadas de seu pensamento, conferindo ao 
pensamento da Desconstrução uma surpre‑
endente coerência e demonstrando que 
Derrida certamente é um dos autores mais 
brilhantes da História da Filosofia. 
JACQUES DERRIDADOSSIÊ
29N°195
OLGÁRIA MATOS 
Derrida e a língua 
do outro
A filosofia é a ciência primeira
No ensaio “Violência e Metafísica”, dedicado a um debate com o filósofo Emmanuel Lévinas, Derrida revisita Ulisses, de Joyce, reavendo a questão: “Nós somos gregos? Nós so‑mos judeus? Mas quem, nós? Somos primeiro judeus ou 
primeiro gregos? Se para um “judeu grego” como Walter Benjamin, o 
messianismo e, portanto, a ideia de “origem”, é um operador essencial, 
Derrida é um “grego ‑judeu” para quem a “origem” é objeto da descons‑
trução. Para Derrida, a Filosofia é a “ciência primeira”; para Benjamin, 
a Teologia. Derrida desconstrói a noção de origem e, com ela, a ideia 
de Nação, compreendendo ‑a não a partir da política, mas a partir da 
língua, na diferença (différance) entre Nação política e Nação cultural, 
desconstrução que interroga a natureza da hierarquia política das 
Nações e do poder de que seu prestígio é portador. A Desconstrução 
não é a passagem da estabilidade – garantida pela ideia de centro – para 
a “modernidade líquida”, mas a apreensão da flexibilidade e do descen‑
tramento. Eis porque a différance não se refere mais ao logos, mas a 
forças que não se estabilizam em uma identidade. 
A différance traz consigo o conceito freudiano de Entstellung – de‑
formação e deslocamento, pois a “défiguration” diz respeito a uma incerta 
territorialização. Diferença e diferenciação, presentes no diferir, no adia‑
mento, envolvem o tempo. É este o percurso derridiano em Fichus, dis‑
curso de recepção do prêmio Adorno em Frankfurt. Referindo ‑se a um 
sonho de Walter Benjamin, Derrida desenvolve uma segunda 
Traumdeutung. Sono e vigília associam ‑se em um “transe sonanbúlico”, 
na partilha incerta entre o sonho e seus restos diurnos, entre a “inércia” 
do sono e a atividade diurna, entre a consciência sonolenta e a vigília do 
inconsciente que vela e vigia todos os estados da consciência desperta. 
30 N°195
Transe sonambúlico dos insones, esses “es‑
tados segundos” da consciência trazem a marca 
de uma atividade passiva, o próprio Fichus é a 
narrativa deslocada deum sonho, que não é do 
próprio sonhador, mas de um outro que não 
sonhou esse sonho e que o relata em um limiar 
conceitual, ultrapassando as convenções do gê‑
nero “interpretação dos sonhos”. Diz Derrida: 
“neste exato momento, dirigindo ‑me a vocês, 
de pé, de olhos abertos, prestes a agradecer ‑lhes 
do fundo do coração, com gestos unheimlich ou 
espectrais de um sonâmbulo, até mesmo de um 
assaltante vindo para açambarcar um prêmio 
que não lhe estava destinado, tudo se passa co‑
mo se eu estivesse sonhando. Até mesmo con‑
fessar: em verdade, lhes digo, ao saudá ‑los com 
gratidão, penso estar sonhando”. 
Para considerar esse estado e desenvolver 
suas análises, Derrida “refigura” palavras, des‑
loca um substantivo ou um adjetivo para um 
verbo, mas um verbo em sua forma simultane‑
amente ativa e passiva: “eu sonambulo”. Com 
isso, o filósofo não somente transgride, 
desestabilizando ‑os, o estado de sono e o estado 
de vigília, como espectraliza – decompondo ‑os 
e fantasmando – estados de consciência, so‑
nhando de olhos abertos e dormindo de pé.
Se Fichus é um sonho que Derrida herdou 
de um outro, a questão é saber se quem sonha 
o sonho é aquele que o sonha ou aquele que o 
interroga. Questão que se desvia para uma 
outra, a da diferença entre sonho e realidade. 
Nas palavras do filósofo: “o sonhador pode 
falar de seu sonho sem acordar?”. Possíveis 
respostas, Derrida as encontra no âmbito da 
filosofia, da literatura e seus afins: o “impera‑
tivo racional da vigília”, “do eu soberano”, pois 
“o que é a filosofia para o filósofo? O acordar 
e o despertar”. Mas “a resposta do cineasta, do 
dramaturgo, do escritor, do músico, do pintor 
e mesmo do psicanalista” pode ser outra: “não 
responderiam não, mas sim, talvez, às vezes 
[...]. Há pois uma lucidez, uma Aufklärung do 
discurso sonhador sobre o sonho [...]. 
Hesitando entre o ‘não’ e o ‘sim, às vezes, tal‑
vez’, [acolhe ‑se] os dois”. Benjamin refere ‑se a 
Adorno e aos “sonhos” que são danificados, 
mutilados, prejudicados pelo despertar, como 
se o sonho “fosse mais vigilante que a vigília, 
o inconsciente mais reflexivo que a consciên‑
cia, a literatura ou as artes mais filosóficas 
mais críticas, em todo caso, que a filosofia”, 
como diz Derrida no discurso de Frankfurt.
O sonho de Benjamin interrogado por 
Derrida é a hermenêutica de um sonho que é 
de um outro, como a língua que não é a sua. E 
entre os sonhos e os sonhadores, como entre 
as línguas, estabelecem ‑se alianças, senhas, 
passagens e “traços”. Esta não ‑ coincidência 
de uma coisa consigo mesma não significa que 
ela está fora de si, pois ela é “uma negatividade 
sem negação”, inscrições sem espessura, ex‑
pressões de um “entre ‑dois”, aparição e desa‑
parecimento em um intervalo incerto entre a 
ausência de uma presença e a presença de uma 
ausência. Por isso, Derrida indica os “espec‑
tros”, espectros da desconstrução, da “fanto‑
mologia” (hantologie). “Je suis hanté” é ser 
Entre os sonhos e os sonhadores, 
estabelecem‑se alianças, senhas...
JACQUES DERRIDADOSSIÊ
31N°195
assediado por algo do passado, por rastros 
obsessivos cuja arquiescritura são as ambiva‑
lências judaico ‑egípcias de Moisés.
A “fantasmologia” diz respeito à não iden‑
tidade de toda identidade, na qual não há o 
retorno a uma especificidade anterior, mesmo 
que desejada, pois no mais profundo do que é 
específico grava ‑se a marca indelével do Outro. 
Quando Derrida afirma ter uma única língua 
e que ela não é a sua mas de um Outro, dá se‑
quência, deslocando ‑a, à interpretação de Freud 
sobre a questão da identidade e da origem.
Nesta refiguração da língua encontra ‑se o 
sentimento “perturbante”, a situação próxima 
à do pária, no paradoxo da impossível inclusão 
e da impossível exclusão. Derrida elabora a 
condição daquele que está à margem, sem uma 
referência a uma comunidade política. Na se‑
quência da Primeira Guerra Mundial, a queda 
do Império russo, do Império austro ‑húngaro 
e do otomano, bem como os reordenamentos 
políticos do Leste europeu, as leis raciais sob 
o nazismo e a guerra civil espanhola dissemi‑
naram na Europa uma população de refugia‑
dos como fenômeno de massa contínuo. O 
apátrida e o refugiado, embora comportem 
diferenças com respeito a pertencimentos le‑
gais e simbólicos, dizem respeito, nos Estados 
industrializados, a “residentes não estáveis” e 
não cidadãos, que não podem nem ser natu‑
ralizados nem repatriados. 
A relação ao Outro se realiza como “traço”, 
como “rastro” do Outro em mim, como pre‑
sentificação “espectral” ou “conciliação”, co‑
mo nas línguas. Nas Margens da filosofia trata‑
‑se da différance que “não é um processo de 
“propriação” em nenhum sentido da palavra, 
pois, ao contrário da “propriação” heidegge‑
riana, não há “propriação” que não implique 
em si mesma a dimensão mais originária ain‑
da da “despropriação”. Por isso, para Derrida, 
a différance tem os sentidos de diferir, de ser a 
raiz comum das oposições, de produzir opo‑
sições e desdobramentos da diferença. Assim 
também nas línguas. 
No judaísmo, a língua do paraíso, a língua 
originária anterior a Babel, era o hebraico que, 
como tal, era uma e una. A multiplicidade das 
línguas foi, como para Benjamin, sua queda; 
já para Derrida, a língua anterior a Babel era 
já múltipla em si mesma. Diferenças que co‑
municam diferenças, a língua da origem é 
Pentecostes avant ‑la ‑lettre, em que todos fa‑
lavam línguas diversas mas em que todos se 
entendiam em uma espécie de “tradução 
simultânea”. 
 Derrida, “grego judeu”, aproxima ‑se do 
mundo grego. Se, para este, a língua da 
Idade de Ouro era o grego, ela o era por ra‑
zões diversas do hebraico, pois Atenas pro‑
curava na origem a différance, sua potência 
alucinatória e surreal, a diversidade dos 
sentidos, enquanto Jerusalém encontrava na 
língua do Paraíso uma origem unitária e 
essencial. Do heteros ao allii, a língua, para 
Derrida, é mista, “contaminada”, híbrida. 
Se o “heteros” é o outro do “Um”, em si mes‑
mo inalterado, “allii” são os outros no 
Mesmo. Se Babel é condenação divina e per‑
da da “língua universal”, agora disponível à 
tradução, esta dá início à desconstrução da 
torre como língua universal e à violência: 
“[Deus] dispersa a filiação genealógica. Ele 
rompe a linhagem. Impõe e interdita, simul‑
taneamente, a tradução”, diz Derrida em 
“Torres de Babel”. Necessária e impossível, 
a tradução diz impropriamente o próprio, 
Babel significando, justamente,“confusão”.
Para Derrida, o “marrano” sem melanco‑
lia, o desenraizamento originário encontra ‑se 
no interior das próprias línguas, as palavras 
contendo, como pharmakon, pelo menos duas 
significações, solidária uma da outra ou das 
outras, não admitindo qualquer divisão inter‑
na ou externa, uma vez que só se conhece a 
própria língua se nos relacionamos com ela 
como língua estrangeira. A ideia de “eleição” 
e “origem” de uma língua acarreta os particu‑
larismos da “eleição ‑exclusão”. 
Ao analisar o pensamento de Lévinas, 
Derrida destaca um sentido peculiar da “elei‑
ção” de Israel como estranhamento absoluto 
e exemplar de um povo sem terra de origem. 
Entre a Grécia e Jerusalém, entre Ulisses e 
A hospitalidade não pede ao outro traduzir‑se 
em nossas tradições e nossa língua
32 N°195
Abraão a diferença é a que existe entre nostos 
e êxodos, duas formas de viagem e de partida. 
Se a primeira vive à luz do retorno a Ítaca, a 
segunda aspira uma pátria onde não se nasceu 
e cada passo dado em sua direção não apro‑
xima uma terra, não é uma casa que já per‑
tencia: “a afirmação da verdade nômade”, 
observa Maurice Blanchot, “distingue o juda‑
ísmo do paganismo [...] O nomadismo é a 
resposta a uma relação para a qual a posse não 
basta. Este movimento nômade afirma ‑se não 
como privação perene de uma sede, mas como 
um modo autênticodo habitar”. Assim, a 
questão do que vem de fora e o que é de den‑
tro é sempre algo que provém do estrangeiro, 
o portador da questão. 
Neste horizonte, o estrangeiro é o “tercei‑
ro”, alguém que é sempre e apenas um intruso, 
aquele que “chegou primeiro”, que “nos priva 
da segurança e faz advir o porvir”. Este “con‑
vidado” ou “visitante inesperado” vem do fu‑
turo, contrariando a noção segundo a qual o 
que nos acontece é determinado em relação ao 
passado: “acontecimento inesperado e impre‑
visível de quem chega, em qualquer momento, 
adiantado ou atrasado, na acronia absoluta, 
sem ter sido convidado, sem avisar, sem hori‑
zonte de espera”. 
Apenas aquele que perdeu uma morada, 
que fez a experiência da “desolação”, da perda 
de todo pertencimento, pode oferecer a hospi‑
talidade. Esta hospitalidade sem reivindica‑
ções é o sentido da hospitalidade que não faz 
qualquer referência à soberania: “para uma tal 
experiência [da hospitalidade], que se deixa 
atravessar por aquilo que chega e por quem 
chega, por aquilo que vem e por quem chega, 
do outro por vir, uma certa renúncia incondi‑
cional à soberania é solicitada a priori”. Esta 
hospitalidade radical, absoluta, é, simultane‑
amente, inviável e necessária, permite ao outro 
ser outro, porque acolhe o apelo daquele que 
está “sem mundo”, aquele que não fala nossa 
língua. Deve ser recebido, não na lógica da 
razão de Estado e dos direitos humanos uni‑
versais, não por ser um homem como nós, mas 
porque ele traz consigo aquilo que nele não se 
reduz ao gênero e ao cálculo do necessário, 
tampouco à lógica da doação e da gratidão: “o 
convite, o acolhimento, o asilo, o alojamento 
passam [...] pelo dirigir ‑se ao outro.” Mas, “o 
que sempre está à espreita é o dilema entre a 
hospitalidade incondicional que vai além do 
direito, do dever e mesmo da política, por um 
lado e, por outro, a hospitalidade circunscrita 
pelo direito e pelo dever”.
A hospitalidade não pede ao outro 
traduzir ‑se em nossas tradições e nossa língua. 
Assim Derrida pode então dizer “eu só tenho 
uma língua e ela não é a minha”, e ter iniciado 
seu discurso em Frankfurt com as palavras: 
“eu peço desculpas, estou prestes a saudá ‑los 
em minha língua. A língua será de resto meu 
tema: a língua do outro, a língua do hóspede, 
a língua do estrangeiro, até mesmo do imi‑
grante, do emigrado ou do exilado”. Nascido 
na Argélia, na periferia do Império francês, 
Derrida, judeu, perde, na França ocupada pe‑
los nazistas na Segunda Guerra, a cidadania 
francesa. Na condição de estrangeiro sem pá‑
tria, Derrida se vê privado, assim, da língua 
que não lhe pertence mais. Ao tê ‑la como lín‑
gua estrangeira, pôde dizer amá ‑la e conhecê‑
‑la, pois só se conhece a própria língua quando 
a recebemos como língua estrangeira. 
Discursando em francês, na língua em que 
encontrou hospitalidade, nessa língua do 
Outro que é seu ethos, Derrida reconhece um 
“dom sem restituição, sem apropriação e sem 
jurisdição”. Ética hiperbólica, para além do 
“para além”, para além da jurisdição e do di‑
reito, é a política da amizade. 
JACQUES DERRIDADOSSIÊ
33N°195
A filósofa argentina Mónica B. Cragnolini propõe em relação ao pensamento de Jacques Derrida uma ideia original: ao associá ‑lo à filosofia de Nietzsche, chama aos dois de “pen‑sadores do tremor”. De fato, um dos pontos que une o fi‑
lósofo do martelo ao pensador da desconstrução é o abalo que, cada 
um a seu modo, produziu no chamado “edifício conceitual da meta‑
física”, expressão sob a qual muitas vezes se pretende estabilizar dois 
mil e quinhentos anos de história do pensamento grego ‑ocidental. 
Derrida foi um pensador que, no rastro das aberturas proporcionadas 
por Nietzsche, teve o cuidado de perceber que essa história não é única 
nem homogênea. Ao contrário, é marcada por idas e vindas, rupturas, 
avanços e recuos. No entanto, se há algo em comum que subjaz no 
percurso da metafísica é a sua fundamentação em um ideal de pre‑
sença – do sujeito, da consciência, do conteúdo, da coisa mesma. 
Contra essa presença, o tremor percebido por Mónica foi um operador 
para desestabilizar os pares opositivos que ainda estavam mais ou 
menos intocados na segunda metade do século 20, quando o pensador 
franco ‑argelino começa sua trajetória filosófica na França. Hoje, pas‑
sados dez anos de sua morte, Mónica identifica ainda a necessidade 
de os leitores de Derrida levarem adiante a tarefa de desconstruir o 
par humano/animal e todas as suas consequências violentas, como 
argumenta nesta entrevista.
Pensar, tremer, 
desconstruir
A filósofa argentina Mónica B. Cragnolini 
fala sobre a marca derridiana no 
pensamento contemporâneo
CARLA RODRIGUES
ENTREVISTA
34 N°195
designado ao outro em seu pensamento. “Resto” 
é “o que impede a totalização”, o fecho dialético 
na síntese. O resto não é o que “falta” de uma 
totalidade, uma vez desconstruída e desmonta‑
da em suas capas conceituais, se não aquele que 
impede que a totalidade se feche. A restância 
indica também uma “resistência”: já nos primei‑
ros textos de Derrida aparecia a ideia de que o 
texto “resiste” à tradução, porque está habitado 
por um excesso indecidível. Um pensador do 
resto é, basicamente, um pensador da alterida‑
de, e creio que essa é a marca derridiana no 
pensamento contemporâneo. A isso soma ‑se 
que, para Derrida, o animal é o “outro” (não 
chega a sê ‑lo para Lévinas, por exemplo, já que 
não tem rosto).
 Dez anos depois da morte de Derrida - 
que do meu ponto de vista deixa incompleta 
a tarefa de pensar a democracia, na sua pro‑
posição de democracia porvir - de que for‑
ma se pode pensar desafios políticos contem‑
porâneos? Afinal, há como rebater a crítica 
mais frequente de que a desconstrução não 
teria nada a dizer?
MÓNICA B. CRAGNOLINI Creio que a democracia 
porvir é a figura do político em Derrida, e 
apresenta ‑se sempre de maneira oscilante co‑
mo “impossibilidade possível”. A democracia 
porvir é uma promessa, e o filósofo a pensou a 
partir da ideia de “messianidade sem messia‑
nismo”. A desconstrução mesma é “a experi‑
ência do impossível”, e isso está indicado no 
caráter aporético da desconstrução.
D
iv
ul
g
aç
ão
 Muitos autores atribuem a Derrida um 
momento limite da filosofia do século 20. 
Penso, por exemplo, em Patrice Maniglier, 
que considera a publicação de Gramatologia, 
em 1967, um “verdadeiro momento filosó‑
fico”, ou em Peter Sloterijk, que chama 
Derrida de “o Hegel do século 20”. Você con‑
sidera o pensamento de Derrida um marco 
filosófico? Por quê?
MÓNICA B. CRAGNOLINI Creio que Derrida é o 
grande herdeiro de uma ampla linha de pensa‑
mento aberta por Nietzsche, e que basicamente 
aponta para a desconstrução da ideia de subje‑
tividade. Quando Nietzsche assinala “ele pensa” 
(Es denkt), começa aí o caminho para pensar 
não apenas uma desconstrução da metafísica 
moderna, como também a possibilidade do 
acontecimento (quer dizer, do outro e “o” ou‑
tro). Derrida se encontra nessa linha de pensa‑
mento, seguindo as possibilidades abertas pela 
filosofia pela noção de Ereignis (acontecimento) 
heideggeriana, e assumindo as críticas de 
Maurice Blanchot e Emmanuel Lévinas sobre 
os restos de subjetividade na noção de Dasein. 
Nesse sentido, o pensamento do “outro” me 
parece fundamental em Derrida, pensamento 
que já nos primeiros textos se expressava em 
termos de contaminação, a prótese de origem 
etc. Interpreto Derrida como um “pensador do 
resto”, e me parece que precisamente “resto” 
(reste) é um termo que permite entender tanto 
o modo de fazer filosofia como o lugar 
JACQUES DERRIDADOSSIÊ
35N°195
 No momento político em que vivemos, 
você acredita que a proposição da hospitali‑
dade incondicional mostra ‑se mais atual do 
que nunca? 
MÓNICA B. CRAGNOLINI Sem dúvida, creio que 
a hospitalidade incondicional,que foi pensada 
em um contexto geopolítico da União Europeia 
e nos problemas que ela significou, tem uma 
enorme pertinência no momento atual. Devemos 
pensar continuamente no problema do outro e 
nas figuras da alteridade por excelência, que são, 
na minha opinião, o estrangeiro, o imigrante, a 
mulher, a criança e o animal. É claro que existem 
leis de hospitalidade condicionada que levam 
em conta os imigrantes. No entanto, continua‑
mente assistimos a problemas derivados da pre‑
sença de estrangeiros em territórios que os ex‑
pulsam ou submetem à servidão. Também é 
certo que as crianças foram reconhecidas em 
seus direitos desde a “Declaração dos Direitos 
das Crianças” e, no entanto, assistimos diaria‑
mente a episódios de “crianças prisioneiras” de 
seus pais ou de figuras de autoridades, como 
professores e polícia. Também é certo que os 
direitos da mulher têm uma longa história, de 
mais de um século, no entanto continuamos 
sendo objeto de violência doméstica, assédio 
moral, desigualdade no trabalho etc. E ainda é 
preciso falar dos animais, porque admitimos os 
direitos das crianças, das mulheres, dos estran‑
geiros e, por isso, nos horrorizamos diante das 
práticas que violam esses direitos. Mas boa parte 
da humanidade não se interessa pelo modo co‑
mo são tratados os animais. É necessário pensar 
uma hospitalidade incondicional com o animal 
e acredito que essa é a tarefa para o presente e 
para o futuro próximo.
 A Derrida atribui ‑se uma grande con‑
tribuição aos estudos pós ‑coloniais. Para 
nós, latino ‑americanos, fazendo filosofia no 
hemisfério Sul, em que o pensamento da 
Desconstrução pode nos ajudar a pensar nu‑
ma geopolítica do conhecimento?
MÓNICA B. CRAGNOLINI Acredito que a 
Desconstrução nos permite pensar muitos as‑
pectos do modo em que nos constituímos como 
países do Cone Sul, com uma história de colo‑
nialismo que nos vincula com o outro de acordo 
com determinadas figuras de domínio. Um dos 
modos desse “eu soberano” do sujeito moderno 
que a desconstrução denuncia especifica ‑se em 
nossas terras em termos das políticas de domi‑
nação dos indígenas, do negro etc. Nós somos 
aqueles que não podem ser “outro” para o colo‑
nizador, que nos pensou em termos de “anima‑
lidade”. As disputas em torno dos habitantes do 
Novo Mundo terem ou não alma dão conta de 
que para os colonizadores, estivemos na situação 
daquele que naturalmente deve ser dominado, 
o animal. A conquista da América evidencia 
muitos aspectos do exercício da soberania e do 
eu autotélico e autodêictico, como diz Derrida. 
No caso da Argentina, acho que o pensamento 
derridiano, a partir da noção de fantasma e de 
políticas de sobrevida, nos permitiu pensar uma 
questão concreta, que é o tema dos desapareci‑
dos, temos uma figura de memória muito 
“Devemos pensar continuamente no problema do outro 
e nas figuras de alteridade por excelência...
ENTREVISTA
36 N°195
especial, aquele “nem vivo nem morto”, aquele 
que, por mais que seu corpo seja encontrado, 
segue sendo “desaparecido”. Na ditadura civil‑
‑militar de 1977 ‑1983, trinta mil desapareceram. 
A noção de “desaparecido” mostra de maneira 
estranha, o impossível de todo luto e a impossi‑
bilidade do esquecimento, a figura espectral do 
desaparecido nos confirma a necessidade das 
políticas de respeito e de cuidado do outro. Por 
isso, cinzas, luto impossível, fantasma, são no‑
ções derridianas que no caso da Argentina nos 
permitem pensar também nos aspectos de nossa 
política atual. As Mães da Praça de Maio e as 
Avós mantêm a memória das cinzas: os julga‑
mentos dos culpados dos crimes contra a huma‑
nidade, dos crimes da ditadura militar, não “es‑
gotam” a demanda de justiça, porque, como 
assinala Derrida, a justiça é da ordem do impos‑
sível. A demanda de “aparecimento com vida” 
(dos familiares dos desaparecidos e de todos os 
argentinos) mostra que o caráter de uma política 
impossível, que não se conforma com a aparição 
dos cadáveres (tarefa levada a cabo pela Equipe 
de Antropologia Forense), e que nos coloca em 
um luto impossível, em uma memória das cin‑
zas, do inesquecível.
 Um dos meus interesses no pensamento 
de Derrida foi a possibilidade de descons‑
truir alguns pares metafísicos que ainda se 
mantinham quase intocados, como mascu‑
lino/feminino. Suas críticas ao falogocentris-
mo também foram de grande importância 
aos estudos de gênero. Você acha que os 
...que são, na minha opinião, o imigrante, 
a mulher, a criança e o animal”
leitores de Derrida herdam da desconstrução 
a tarefa de levar adiante a crítica a outros 
pares metafísicos?
MÓNICA B. CRAGNOLINI Acredito que no mo‑
mento atual o par que merece desconstrução e 
trabalho político é o humano ‑animal. 
Considero que essa é a tarefa que o filósofo dei‑
xou para a Desconstrução: a tarefa que não 
pode ser separada do problema político de pen‑
sar melhores condições de vida para todo vi‑
vente. Derrida, no seminário “A besta e o sobe‑
rano”, vincula o tratamento de pessoas ao 
tratamento dos animais (para serem usados 
como alimento, roupa, experiências etc.). 
Considero que ali está a tarefa a se realizar pelos 
desconstrucionistas: trabalhar nesse ponto de 
injunção entre o humano e o animal, no trato 
de pessoas, no que se trata os viventes humanos 
como animais, para poder entender o que sig‑
nifica o tratamento dos animais. Está “natura‑
lizado” que os animais devem servir às neces‑
sidades humanas, mas o trato de pessoas 
evidencia algo que é um golpe para a consciên‑
cia dos homens: quando somos tratadas “como 
animais”. Se os que se alimentam de animais 
chegarem a perceber isso, acho que é possível 
pensar uma política de animalidade que leve 
em conta o vivente animal como um outro, que 
deve ser respeitado. As transformações do di‑
reito nos próximos anos devem transitar por 
esse tema do tratamento que damos aos ani‑
mais, para que o “viver junto” na comunidade 
dos viventes, a que me referi antes, seja possível 
sem domínio de uns sobre os outros. 
JACQUES DERRIDADOSSIÊ
37N°195
Derrida menciona um evento autobiográfico que iria marcar a abordagem desconstrutiva. Nos alpendres de sua casa, em sua infância na Argélia, o pedreiro colocara um ladri‑lho invertido ou deslocado. O menino Jacques Derrida 
demorava ‑se em olhar para esse ladrilho. A Desconstrução – comenta 
o autor em “Rastro e arquivo, imagem e arte” – “consiste justamente 
em colocar os ladrilhos do avesso, enfim, a perturbar uma ordem”. Ao 
perturbar uma estrutura, o pensamento desconstrutivo não visa pu‑
ramente a uma inversão, a uma desordem, mas aponta para as fraturas 
e incongruências já inerentes ao que se apresenta de forma harmônica 
e solidificada. A arte torna ‑se assim um âmbito privilegiado para o 
ALICE SERRA
Arte e imagem sob os 
olhares da desconstrução
“A inabilidade lastimável das formas que 
desmoronam em torno de uma ideia”
Vincent Van Gogh, Shoes, 1888
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38 N°195
pensamento desconstrutivo, na medida em 
que também lhe é peculiar configurar de ou‑
tros modos uma dada relação de coisas, retirar 
objetos e materiais de sua funcionalidade co‑
tidiana, instaurar o imprevisto. É mais esse 
sentido de aproximação do que uma separação 
estanque ou uma hierarquia entre diferentes 
domínios – arte e pensamento – o que move 
os olhares da desconstrução para a arte. 
A Desconstrução não apreende a arte co‑
mo um objeto dado ou construído pela teoria, 
tampouco se dirige a obras e artistas com um 
sistema prévio de conceitos ou com um méto‑
do interpretativo a ser ‑lhes aplicado. Derrida 
cuida para que a singularidade de cada obra e 
de cada artista estudado seja preservada em 
seus textos. As imagens trazidas aos textos não 
têm por função ilustraros argumentos do au‑
tor, mas atuam em sentido provocativo, reti‑
rando o texto seja de uma posição de autono‑
mia diante da imagem, seja de uma pretensão 
de incluir a imagem no interior de um sistema 
teórico. Por sua vez, alguns textos de Derrida 
desconstroem teorias de outros autores ao in‑
dicar outras instâncias de sentido que teriam 
sido apagadas em interpretações apresentadas 
como consistentes. Esses procedimentos pre‑
tendem contribuir para uma preservação do 
espaço da arte e para uma abertura a diferen‑
tes espaçamentos da arte no mundo. Tal pre‑
servação instaura duas diferenciações princi‑
pais: primeiramente, é a obra de Derrida que 
se transforma no decurso das leituras e diálo‑
gos que propõe; secundariamente, são as obras 
lidas pela Desconstrução que se diferenciam 
para o leitor ou espectador, desprendendo ‑se 
de interpretações prévias. 
O primeiro aspecto – as diferenciações 
trazidas pela arte na obra de Derrida – 
entende ‑se no sentido de que a Desconstrução 
não se apropria da arte como um tópico a ser 
integrado num sistema de filosofia, mas, an‑
tes, deixa ‑se transformar a cada leitura que 
propõe (sobre uma obra, sobre um artista). 
Esse efeito já se observa no modo como o pen‑
samento desconstrutivo desloca para si con‑
ceitos dos autores que estuda, como se vê nas 
leituras de Derrida sobre Levinas, Husserl, 
Freud, Hegel e outros. Ao serem deslocados 
de seus sistemas de pensamento prévios, os 
conceitos mudam de denominação e de 
abrangência. Eles passam a atuar como quase‑
‑conceitos, prestando ‑se a outras diferencia‑
ções e a alterações gráficas, quando se faz 
necessário. Essa apropriação de conceitos e 
modos de expressão de outros autores é tam‑
bém desapropriadora. Ou seja, aquilo que é 
apropriado logo se deixa despersonalizar, per‑
dendo sua relação de pertencimento a um 
sistema de filosofia em que o autor pretendes‑
se controlar a expressão e em que conceitos se 
subordinassem uns aos outros. De modo si‑
milar, o pensamento desconstrutivo deixa ‑se 
contaminar pelos modos de configuração e 
pelas delimitações trazidas pelas obras ou sé‑
ries de obras de arte que estuda. 
Um bom exemplo, neste caso, é o livro so‑
bre Antonin Artaud, Enlouquecer o subjétil, 
escrito por Derrida em parceria com as inter‑
venções da artista plástica Lena Bergstein. 
Para Derrida, não se trata de interpretar ou 
decodificar os traços de Artaud, quando é o 
próprio Artaud que afirma, nos rasgos, rabis‑
cos e páginas queimadas, uma impossibilidade 
de trazer a expressão a um significado e im‑
possibilidade de projetar na página uma ima‑
gem previamente ideada. Derrida cita uma 
passagem em que o próprio Artaud se refere a 
um desenho seu como a “inabilidade lastimá‑
vel das formas que desmoronam em torno de 
uma ideia”. Para Derrida, Artaud denuncia a 
insuficiência de se pensar linguagem e arte 
JACQUES DERRIDADOSSIÊ
39N°195
como transposições de significados e formas 
ideais dados à consciência. Se Artaud não tra‑
balha somente com a palavra que transporta 
sentido, o livro que se pretende próximo a 
Artaud traz para suas próprias páginas inscri‑
ções, remissões de Lena Bergstein a rasgos, 
letras, queimas, rabiscos que se encontravam 
nos cadernos de Artaud. Ao lado ou abaixo 
dessas incisões e vazios, o texto de Derrida 
aparece como uma outra cena, esta alude a 
Artaud e suas inscrições, mas não de modo 
descritivo ou analítico. E alude ainda a esse 
outro olhar, o olhar da artista que descentra 
do texto o autor. Nessas cenas contíguas e re‑
missões implícitas, o diálogo é apenas possível 
com um outro que se cala, retira ‑se do âmbito 
da palavra, mas permanece ao lado e alhures 
do texto de Derrida. É como se, num lugar 
ambiguamente situado no texto e à margem 
do texto, a singularidade da marca e a alteri‑
dade do artista se preservassem. 
Outro exemplo de diferenciação inscrita 
pela arte na obra de Derrida são os desenhos 
de cegos ou alusivos à cegueira, em seu livro 
Memórias de cego: o autorretrato e outras ru‑
ínas, escrito para uma exposição no museu 
do Louvre. Ressalte ‑se que foi Derrida quem 
escolheu o tema para a exposição – a cegueira 
– e quem fez a primeira seleção das imagens 
que foram expostas e reproduzidas no livro. 
Derrida aborda a cegueira como condição de 
possibilidade daquilo que, na pintura e no 
desenho, se dá a ver: “possibilidade do visível, 
esta invisibilidade habitaria o visível”. Para 
Derrida, não cabe ao pensamento trazer ao 
visível aquilo que na imagem se conservou 
obscuro. Como se vê no autorretrato de Henri 
Fantin ‑Latour que foi reproduzido na capa 
do livro e longamente comentado por 
Derrida, o lápis do artista deixou um dos 
olhos apenas subentendido na parte obscura 
da imagem, lugar em que estaria o órgão da 
visão, mas onde a não ‑visibilidade se inscre‑
ve. Esse modo de expressão remete ao proce‑
dimento desconstrutivo análogo, que res‑
guarda uma margem de invisibilidade ou de 
ambiguidade em seus textos. A desconstru‑
ção nem apaga os aspectos obscuros e as in‑
congruências nem os traz a uma pretensa 
clareza, mas deixa ‑os ao lado ou nas entreli‑
nhas, como que perturbando o texto e tur‑
vando uma percepção nítida. Assim proce‑
dendo, a desconstrução aproxima ‑se de uma 
atuação própria à arte. Para Derrida, a arte, 
assim como a alteridade, apresenta essa pe‑
culiaridade de perturbar sistemas de pensa‑
mento, deslocar lugares e hierarquias, con‑
vocar a pensar o que não pode ser apropriado 
pela filosofia.
Já um segundo plano de diferenciação diz 
respeito, como mencionado, aos efeitos do pen‑
samento desconstrutivo sobre a obra abordada: 
ao pretender preservar o espaço da arte, a 
Desconstrução insiste em desprendê ‑la de en‑
foques parciais e reducionistas, sejam estes de 
cunho historicista, psicologista ou outros, 
reconduzindo ‑a a uma diversidade de remis‑
sões de sentido. Esse aspecto se observa, por 
exemplo, no texto de Derrida acerca da inter‑
pretação de Heidegger sobre os sapatos pinta‑
dos por Van Gogh, publicado no livro A ver‑
dade em pintura. Abrindo seu texto com a 
pergunta “Não há fantasmas nos quadros de 
Van Gogh?”, conduz ‑nos Derrida ao tema do 
espectro. O fantasma ou espectro ronda o vi‑
sível e está presente a cada vez que se projetam 
significados sobre imagens e percepções. 
Projeções fantasmáticas ou imaginárias estão 
assim em toda interpretação sobre obras de 
arte e não podem ser eliminadas. O perigo, 
para a desconstrução, é quando a interpretação 
40 N°195
Para Derrida, não cabe ao pensamento trazer ao visível 
aquilo que na imagem se conservou obscuro
se fixa à obra ou pretende revelar a verdade da 
obra. Nesse sentido, na desconstrução da in‑
terpretação sobre os chamados “sapatos de 
camponeses” de Van Gogh, Derrida lembra, 
dentre outros aspectos, que o quadro a que se 
referia Heidegger não possuía título e remetia 
a uma série de quadros em que Van Gogh pin‑
tou sapatos. Aludindo também metaforica‑
mente ao fato de que os cadarços daqueles 
sapatos estavam desamarrados, Derrida indi‑
ca a insuficiência de se interpretá ‑los segundo 
uma tese sobre sua origem e seu pertencimen‑
to. Os sapatos poderiam ser tanto de campo‑
neses, como afirmou Heidegger, quanto sapa‑
tos do próprio Van Gogh quando de sua 
estadia em Paris, como sustentou o historia‑
dor da arte Meyer Shapiro. Ambas as signifi‑
cações são possíveis, mas não desvelam a ver‑
dade da imagem, inclusive por não 
considerarem suficientemente diversas outras 
instâncias (materiais, políticas, econômicas 
etc.) que interferiram na produção da obra e 
em suas interpretações. 
Nesse sentido, Derrida ressalta que seu li‑
vro A verdade em pintura não trata especifica‑
mente das pinceladas, formas e cores, mas 
enfoca sobretudo o que se passa em torno da 
pintura: o desenho, as bordas, a moldura, as‑
sim comoespeculações teóricas sobre a pintu‑
ra e a circulação econômica das obras. Embora 
o autor também se dirija à pintura e ao dese‑
nho num nível discursivo, observa ‑se essa 
diferença da abordagem desconstrutiva em 
relação a outros discursos teóricos: enquanto 
a maioria destes se volta para o significado e o 
desígnio da obra (aquilo que o artista almeja; 
aquilo que a obra pretende significar), a des‑
construção se esforça por reconduzir a ima‑
gem para o insignificante, para o traço inscri‑
to. Neste passo, as leituras de Derrida sobre 
artes visuais conservam nuances que já se 
Henri Fantin-Latour, Self-portrait, 1859
D
iv
ul
g
aç
ão
JACQUES DERRIDADOSSIÊ
41N°195
encontravam em outras especulações suas so‑
bre a escrita. Em contraponto à metafísica 
clássica, que sempre teria privilegiado o sen‑
tido ideal e a linguagem falada em detrimento 
da inscrição gráfica, Derrida pensa a lingua‑
gem como uma rede de traços diferenciais: 
seja num texto literário ou filosófico, seja nu‑
ma tela ou gravura, o traço inscrito institui 
diferenças, distingue ‑se dos demais na medida 
em que se delimita e se relaciona com os de‑
mais, de um modo singular a cada vez. O tra‑
ço inscrito não se subordina ao significado 
ideal, à palavra falada, à imagem ideada, ele 
não os representa. Ao poder se expressar de 
um modo diferente em relação ao que se pre‑
tendia, ele contamina o sentido ideado, po‑
dendo surpreender o sujeito que supunha 
controlar os modos de expressão.
Derrida induz ‑nos assim a pensar que 
não existe uma verdade da arte, sobretudo, 
que não existe “uma” verdade. Todavia, há 
que se lembrar que seu livro que justamente 
se intitula A verdade em pintura também par‑
te de uma citação de Paul Cézanne que afir‑
ma: “Eu lhes devo a verdade em pintura e eu 
a lhes direi”. Ao refletir sobre os sentidos 
dessa promessa de verdade, Derrida reprisa 
os sentidos de verdade que, em diferentes 
momentos da tradição filosófica, pretende‑
ram circunscrever a arte – verdade enquanto 
representação (de um objeto ou cena perce‑
bida); enquanto adequação (a uma ideia ou 
significado); enquanto manifestação (da ver‑
dade). A partir de algumas desconstruções, 
Derrida problematiza direta ou indiretamen‑
te com tais noções de verdade. 
A primeira dessas desconstruções é a já 
mencionada desconstrução das noções de per‑
tencimento e de origem da arte, como se indi‑
cou no exemplo dos sapatos de Van Gogh. Uma 
outra desconstrução, também já anunciada, 
consiste no deslocamento da dicotomia entre 
ergon (obra) e parergon (aquilo que circunda a 
obra), sendo que a estética clássica teria privi‑
legiado a obra e ofuscado o parergon. Para 
Derrida, ao contrário, importa resgatar no in‑
terior da obra as interferências do “fora” e do 
“em torno”. Citem ‑se, neste caso, as interferên‑
cias provenientes da materialidade da obra e 
dos contextos, como é o caso dos suportes dos 
quadros, dos lugares de exposição e instalação, 
da crítica de arte, do mercado e das implicações 
políticas da arte. A remissão ao parergon parece 
assim implicar a necessidade de uma análise 
infinita da obra; todavia, Derrida aponta tam‑
bém os limites da análise, já que os vínculos e 
remissões em cada obra não se compõem de 
elementos simples e não se deixam decompor 
de modo abstrato, o que se vê propriamente no 
vínculo entre suporte e superfície. 
Uma outra desconstrução atinge o privi‑
légio do monumental e das imagens suposta‑
mente representativas, desconstrução que 
Derrida efetua não através de uma crítica 
direta, mas de anotações dedicadas ao frag‑
mentário. Isso se vê em suas observações so‑
bre os desenhos de Valerio Adami, bem como 
em suas anotações dedicadas a uma série de 
desenhos de Gérard Titus ‑Carmel, ambos os 
textos publicados em A verdade em pintura. 
Como se observa no desenho de Benjamin 
feito por Adami e reproduzido no livro, a fi‑
guração se quebra e se interrompe sob a in‑
terferência de outras cenas e da escrita que se 
sobrepõe. Por sua vez, a série de cento e vinte 
42 N°195
e sete desenhos de Titus ‑Carmel alusivos a 
uma mesma caixinha de madeira traz a 
Derrida a questão da relação entre unidade e 
série, todo e parte. A singularidade de cada 
desenho aponta para uma quase ‑ontologia 
dos restos: o resto é o que se perdeu de uma 
totalidade, o que remete a outros restos con‑
tíguos e sucessivos, mas que resiste a ser res‑
tituído a um todo. 
Tais desconstruções não conduzem a uma 
tese sobre a verdade da arte. Elas indicam, an‑
tes, que tal verdade é escorregadia como o 
quase ‑conceito derridiano da différance. A 
différance está no modo como a percepção 
acontece, no modo como se vinculam sentido 
e imagem, no modo como a linguagem se ma‑
nifesta e se retém: cada imagem, cada palavra, 
cada qualidade sensível é presente enquanto já 
se fragmenta, enquanto passa ao não visível, 
enquanto temporiza ‑se e espaça ‑se, produzin‑
do uma rede de diferenças. A cada presente, 
novas diferenciações se sobrepõem à rede de 
diferenças precedentes, as quais só se dão a ler 
posteriormente e de modo indireto. Assim 
pensada, a verdade no desenho e na pintura é 
o que se dá ao olhar e ao mesmo tempo se re‑
tira, aponta para um além da obra a ser pers‑
crutado e para uma origem da obra que não se 
alcança, mas que se promete no olhar e na mão 
que segura o lápis – ou o pincel. 
Numa bela metáfora inscrita por Freud e 
reinscrita por Derrida, apresenta ‑se o hiato 
entre a mão que escreve sobre o papel trans‑
parente e a escrita que se retém desse ato: 
como ocorre naquele antigo brinquedo “blo‑
co mágico”, essa escrita somente se conserva 
nas camadas situadas abaixo da folha trans‑
parente, ela se conserva lá onde ela não é vi‑
sível. Se ela se deixa ler e traduzir, é apenas 
de modo indireto e deslocado em relação a 
sua origem. Pode ‑se dizer que nessa outra 
metáfora inscrita por Derrida a partir de 
Fantin ‑Latour, a metáfora do olhar, tem ‑se 
um paradoxo semelhante: o olhar que foca o 
percebido e a ideia que se visa na imagem 
separa ‑se do outro olhar, simultâneo, mas 
sombreado e cego, na impossibilidade de re‑
ter no papel ou na tela a imagem que o outro 
olhar contemplou. Mas dessa simultaneidade 
de olhares, uma outra cena aparece, ora bela 
e bem ordenada, ora desfocada, ora provoca‑
tiva, ora conturbada: as questões que as cenas 
da arte colocam à desconstrução deixam‑
‑se igualmente vislumbrar por um olhar que 
ao mesmo tempo as contempla e se extravia. 
Desvios em direção ao que, a partir de um 
lugar exterior à obra, interferiu na obra, e em 
direção ao que a obra disseminou para além 
de si. É preciso desviar, contemplar e desviar, 
dirá Derrida, porque esse extravio e algumas 
de suas disseminações já se encontram na‑
quilo que seria a origem da imagem. Ao se‑
guir as pegadas e ao se demorar nos traços da 
imagem e da escrita, a Desconstrução não 
recompõe a origem, mas preserva a arte en‑
quanto promessa de origem – origem de sen‑
tido, origem de um mundo. 
JACQUES DERRIDADOSSIÊ
43N°195
Em geral, quando se fala de ciência, alguns qualificativos pare‑cem se repetir sem que sejam propriamente questionados em seu uso corrente ou seu sentido. Assim, correntemente ouvimos falar de “verdade” científica, “descoberta” científica, de “avan‑
ço” ou de “progresso” da ciência. Em geral, não se questiona muito o que 
podem significar “verdade”, “descoberta” ou “avanço” nesses casos; em 
geral, a ciência é pensada como um processo de conhecimento que, em 
seu progresso, descobre a verdade do mundo que nos cerca, e explica, 
paulatinamente, a realidade que somos e na qual nos encontramos. 
Mas será isso mesmo a ciência? A discussão é rica, diversificada e 
extremamente viva entre os chamados filósofos da ciência. Mas não 
apenas: pensadores dos mais diversos matizes, assim como cientistasdas mais diversas áreas, se debruçam e se debruçaram sobre a questão: 
afinal, como pensar a ciência?
Jacques Derrida é sem dúvida um desses pensadores que buscou 
responder à “questão ciência” com acuidade e amplitude, refletindo 
sobre suas origens, premissas e história, num movimento de questio‑
namento que busca situar a ciência moderna no âmbito dessa herança 
mais ampla que nos constitui e que se chama “Ocidente”. Não é evi‑
dentemente o único a fazê ‑lo com essa envergadura, claro. Outros 
grandes pensadores também propuseram – e propõem – respostas para 
a “questão ciência”, e Derrida sabe, e o diz explicitamente, que é tribu‑
tário dos caminhos abertos por, dentre outros, Husserl e Heidegger, 
que, antes dele, buscaram entender a ciência a partir de um profundo 
questionamento da filosofia.
O que caracteriza Derrida, contudo, é o fato de aprofundar esses 
caminhos abertos na direção de um questionamento próprio, 
FERNANDO FRAGOZO 
As ciências, a razão 
e a desconstrução
Afinal, como pensar a ciência?
44 N°195
que radicaliza a posição desses pensadores e 
elabora uma posição de permanente questio‑
namento das grandes narrativas herdadas da 
filosofia e de sua história, inclusive das narra‑
tivas herdadas desses pensadores que lhe abri‑
ram, por assim dizer, o caminho. 
Assim, um primeiro ponto que é central 
na reflexão derridiana acerca da ciência é a 
constatação de que, quando se fala de “ciên‑
cia”, está ‑se, de fato, diante de um fenômeno 
que muito dificilmente pode ser apresentado 
assim, no singular: a ciência. Na verdade, para 
Derrida (mas não apenas para ele), não faz 
sentido falar de ciência no singular: a plurali‑
dade das ciências – cada uma com seu objeto 
específico de estudo, seu estilo, suas premissas, 
suas instituições, sua comunidade, sua neces‑
sidade e sua história próprias – coloca em 
questão a própria possibilidade de se falar de 
ciência, assim, no singular. 
Ora, o que Derrida constata é que essa ten‑
tativa de trazer essa pluralidade a uma preten‑
sa unidade corresponde mais a uma “ideia” de 
ciência do que propriamente corresponde ao 
que de fato se vivencia no âmbito das ciências. 
Trata ‑se, para Derrida, de uma postulação que 
não encontra, a princípio, justificativa nem 
comprovação – postulação “ideal”, segundo a 
qual a razão em geral, e as ciências aí incluí‑
das, tem uma “vocação” unificadora, totaliza‑
dora e sistemática; vocação essa que seria, 
como propõe Kant, a sua própria “natureza”. 
Em outras palavras, o que Derrida constata 
é que há toda uma tradição de pensamento que 
pensa o processo de conhecimento racional 
como um processo gradativo que, aos poucos, 
caminharia na direção de uma totalização uni‑
ficadora que seria capaz de explicar tudo o que 
existe: nós, a natureza, a realidade em geral. 
Mesmo que esse ideal nunca se realize, ele é, 
contudo, para essa tradição de pensamento, a 
direção e o fim ideais que guiam (ou deveriam 
guiar) todos os esforços de conhecimento.
Para Derrida, essa tradição é propriamente 
a filosofia. Nela, como já apontara Heidegger, 
o que se busca é uma fundamentação concei‑
tual definitiva, certa e inabalável que dê conta 
racionalmente de tudo o que há. Nesse sentido, 
para essa tradição, a pluralização das ciências 
(fenômeno que pode ser observado com cada 
vez maior intensidade desde o século 19) é, 
sem dúvida, extremamente desconcertante: o 
fato de haver racionalidades plurais, heterogê‑
neas, intraduzíveis, não passíveis de analogia, 
coloca radicalmente em questão o ideal de um 
conhecimento pleno, unificado e totalizante.
Se Derrida está certo, se não há como arti‑
cular as várias ciências em uma unidade, se não 
há como traduzir as diversas linguagens dos 
diversos campos científicos umas nas outras, 
há evidentemente um problema na postulação 
da unicidade ideal da ciência. Seria então pre‑
ciso repensar essa hipótese “ideal” do conheci‑
mento de modo justamente a liberar as ciências 
dessa expectativa unificante e respeitar seus 
objetos, linguagens e procedimentos próprios 
e diferenciados. Continuar a pensar que as ci‑
ências têm de ser unificadas acaba por forçar as 
ciências numa direção que pode não ser própria 
a elas; acaba, em outras palavras, por desvirtuá‑
‑las. Assim, é em nome dessas racionalidades 
heterogêneas, de sua especificidade, de seu fu‑
turo e de sua história, que Derrida propõe pôr 
em questão essa “idealização” do processo de 
questionamento da realidade, chamando a 
atenção para o perigo que representa essa con‑
cepção unificante e totalizadora da razão para 
a possibilidade da existência e do desdobramen‑
to dessa impressionante e rica pluralidade ra‑
cional que são os diversos questionamentos e 
as diversas instituições científicas. Perigo, por‑
que esse ideal de ciência pode condicionar, di‑
recionar ou mesmo limitar o questionamento 
científico, dando a ele uma direção prévia, um 
fim a atingir, uma finalidade pré ‑determinada 
– em uma palavra, uma “teleologia”.
Não faz sentido falar de ciência 
no singular
JACQUES DERRIDADOSSIÊ
45N°195
Se essa idealização unificante e teleológica 
mais geral do processo de conhecimento tende 
a condicionar o questionamento científico, a 
pré ‑ordená ‑lo numa direção específica, não é 
menos verdade que há outros condicionantes, 
controles e “teleologismos” mais específicos 
nos processos de pesquisa que podem inibir 
ou travar a possibilidade da “descoberta”. O 
que Derrida tem em mente quando fala desses 
“teleologismos” específicos, que podem inter‑
ferir no desenrolar de uma ciência particular, 
é não apenas o perigo de a pesquisa científica 
se ver perigosamente pautada e guiada por 
todo tipo de poderes ou instituições políticas, 
militares, religiosas, tecnológicas, econômicas 
ou capitalísticas (e daí a importância das uni‑
versidades terem condições de realizarem seus 
questionamentos sem condicionantes de qual‑
quer espécie), mas também pelas orientações 
que podem ser constituídas, internamente, no 
próprio seio de uma comunidade científica 
específica, em torno do que Thomas Kuhn 
denominou de “paradigma” e que correspon‑
de, em linhas gerais, a um conjunto de concei‑
tos, definições, procedimentos, práticas, ins‑
trumentos e técnicas que orientam uma 
configuração determinada de pesquisa e res‑
tringem ou descartam outros modos de ques‑
tionar ou mesmo de definir os objetos daquele 
âmbito científico específico.
Ora, para Derrida, uma descoberta apenas 
é realmente uma descoberta quando foge dos 
padrões pré ‑determinados e das projeções es‑
peradas e demanda, por parte dos pesquisa‑
dores, toda uma nova reflexão e reordenação 
do conhecimento. Nesse sentido, ela é propria‑
mente um “acontecimento”, algo que não pode 
ser entendido, respondido e avaliado a partir 
dos parâmetros até então adotados, algo ina‑
propriável por parte dessas narrativas prévias. 
Se a adoção de um conjunto de conceitos, 
hipóteses e procedimentos faz parte do modo 
de procedimento de toda ciência, o fato é que, 
para Derrida, só há “acontecimento” científi‑
co, só há “invenção” e “descoberta” ali onde 
surge justamente, a partir das projeções espe‑
radas, o inesperado, e a invenção técnico‑
‑científica apenas “encontra” o que ela busca 
ali onde ela não é programada por uma estru‑
tura de espera e antecipação que anula a des‑
coberta ao torná ‑la possível e portanto previ‑
sível. A descoberta científica é, para Derrida, 
um acontecimento inesperado.
Sem dúvida, o próprio movimento interno 
das ciências pode vir a fazer com que o “acon‑
tecimento” se dê, o imprevisível surja – a his‑
tória ou as histórias das ciências nos contam 
certamente diversos casos dessas irrupções, 
dessas perplexidades que demandaram todo 
um esforço de reconceitualização e elabora‑
ção de hipóteses, na medida em que as “des‑
cobertas” colocaram os conceitose as pressu‑
posições anteriores em questão. Em 
Gramatologia, Derrida analisa dois desses 
casos mais detidamente, a saber, a linguística 
e a gramatologia (ciência da escrita), e se per‑
gunta se os conceitos e hipóteses que guiavam 
essas ciências não deveriam ser radicalmente 
revistos diante das enormes descobertas que 
realizaram – descobertas essas que deveriam 
não apenas abalar essas pressuposições cien‑
tíficas mas também toda a conceitualidade 
filosófica que herdamos e que Derrida 
propõe ‑se justamente a desconstruir. 
Na verdade, Derrida se pergunta se não é 
o caso de toda ciência, no seu próprio processo 
de desenvolvimento, levar paulatinamente ao 
questionamento das premissas conceituais e 
hipotéticas que a constitui. O próprio movi‑
mento das ciências pode fazer com que o 
“acontecimento” se dê – mas isso pode não ser 
o caso justamente nas situações em que os 
46 N°195
diversos “teleologismos” e as interferências das 
mais diversas ordens condicionam a pesquisa 
e o questionamento. Nesse sentido, o que 
Derrida propõe é um trabalho conjunto da 
“desconstrução”, ou seja, do pensamento que 
se propõe a constantemente analisar os seus 
fundamentos e limites, com esses processos 
específicos a cada ciência, no sentido de assi‑
nalar e denunciar os condicionantes que im‑
peçam a possibilidade da perplexidade e do 
acontecimento, da descoberta e da invenção, 
de modo a permitir que o processo de questio‑
namento continue, numa radical reflexividade. 
A desconstrução é assim definida por Derrida 
como um “racionalismo incondicional” que 
nunca renuncia a suspender de modo argu‑
mentado, discutido, racional, todas as condi‑
ções, as hipóteses, as convenções e as pressu‑
posições, a criticar incondicionalmente todas 
as condicionalidades, a fim de abrir espaço a 
uma “democracia por vir”.
Porque é isso que está em jogo para 
Derrida nesse radical processo de questiona‑
mento: a possibilidade de uma pluralização de 
vozes sobre a realidade que tenham, cada uma, 
validade racional, argumentada, a fim de que 
o espaço de jogo da democracia sempre se abra 
mais – e, por isso, a democracia é sempre “por 
vir”. E isso não quer dizer, para Derrida, que 
não se adotem hipóteses, que não se propo‑
nham conceitos ou teorias, mas que essas se‑
jam suficiente e permanentemente questiona‑
das, criticadas e, mais importante, não sejam 
postas em função de condicionamentos que 
predeterminem o que pode ou não pode ser 
questionado, pensado e discutido.
Sem dúvida, uma tensão aqui se gera entre 
um pólo propriamente propositivo, condicio‑
nante e instaurador da racionalidade e outro, 
questionador, crítico e desconstrutor. Ora, 
para Derrida, a desconstrução não seria ape‑
nas um racionalismo hipercrítico, o polo por 
assim dizer “negativo” da razão, o âmbito do 
permanente questionamento das condiciona‑
lidades. Ela seria também uma reflexão racio‑
nal dos próprios limites do pensamento racio‑
nal que visaria justamente ponderar entre 
essas duas necessidades da razão e do questio‑
namento: a necessidade de estabelecer condi‑
ções e a necessidade de questioná ‑las. Ser ra‑
cional, para Derrida, é justamente realizar essa 
ponderação, que deve ser feita caso a caso, sem 
regra fixa previamente dada, sem segurança 
absoluta, precisando criar em cada caso as suas 
próprias regras e procedimentos.
Assim, num caso bem específico, central 
e fundamental, a saber, a questão dos “direi‑
tos humanos”, Derrida chama a atenção para 
a necessidade de pensar tanto a história des‑
se conceito, suas diversas ampliações, e sua 
importância hoje para o estabelecimento do 
direito internacional e o respeito à vida hu‑
mana. No entanto, chama também a atenção 
para a exigência de justiça incondicional que 
esses conceitos nunca preenchem totalmen‑
te, marcados eles mesmos por pressuposi‑
ções, cálculos, limites e interesses os mais 
diversos que os mobilizam, tanto o conceito 
de “direito” quanto o conceito de “humano”. 
Mais especificamente, nesse ultimo caso, e 
diante dos questionamentos cada vez mais 
incisivos de diversas ciências, da biologia à 
antropologia, é preciso pensar e questionar 
o que até aqui se entendeu como “vida” e 
“corpo”, “humano” e “animal”, no que su‑
postamente haveria de definitivo nessas se‑
parações e limites. 
E isso principalmente diante das inauditas 
possibilidades que se abrem, por exemplo, com 
a questão da engenharia genética. Metonímia 
de todas as urgências que nos interpelam hoje, 
Uma descoberta apenas é 
realmente uma descoberta 
quando foge dos padrões 
pré‑determinados
JACQUES DERRIDADOSSIÊ
47N°195
a questão da clonagem humana mobiliza, se‑
gundo Derrida, o melhor e o pior da razão, o 
cálculo e o incalculável, os poderes e a impo‑
tência da razão diante das gigantescas per‑
guntas acerca da essência da vida, do nasci‑
mento e da morte, dos direitos da pessoa e do 
Estado. Para Derrida, o debate atual acerca 
da clonagem humana apresenta, em geral e 
esquematicamente, dois campos que se de‑
frontam, sendo ambos marcados por pressu‑
posições fortes e não de todo explicitadas e 
refletidas, que merecem ambas serem descon‑
truídas. Assim, de um lado os defensores da 
clonagem, e principalmente da clonagem 
terapêutica, que defendem a pesquisa sem 
limites, acenando para as possibilidades de 
cura mais diversas, mesmo que o risco, por 
mais calculável que seja, possa abrir as portas 
para o incalculável. De outro, aqueles que 
protestam contra essas experiências, cha‑
mando a atenção para a singularidade do 
humano, o direito de cada ser existir ao seu 
modo, a dignidade da vida e o perigo de pro‑
gramação militar, industrial ou comercial da 
vida humana. Ora, nesse caso, Derrida cha‑
ma a atenção para o fato de que ambas as 
posições partem de conceitos e hipóteses que 
precisam ser profundamente repensadas, o 
problema necessitando de uma outra radical 
elaboração na medida que o que está de fato 
em jogo nas possibilidades abertas pela en‑
genharia genética é a necessidade de repensar 
o que somos e o que podemos ser, a questão 
da vida, do corpo, e a própria definição de 
“ser humano”. 
Nesse sentido, diante da necessidade de 
decidir entre essas posições, é preciso não 
apenas elaborar de modo profundo o ques‑
tionamento mas também e principalmente 
separar de modo radical o processo de ques‑
tionamento do processo de tomada de deci‑
são. Isso porque, por mais que o questiona‑
mento se aprofunde, por mais que se conheça 
aquilo sobre o que se está pesquisando, há 
sempre um desconhecimento radical que não 
permite que uma decisão seja inteiramente 
calculável e programável. A rigor, o que 
Derrida aponta é que, uma decisão enquanto 
tal, digna desse nome, é aquela que se dá 
quando não pode ser programada nem ter 
suas conseqüências inteiramente previstas. 
Uma decisão só é decisão quando ela tem de 
decidir diante do que não se sabe, numa es‑
pécie de salto no escuro que, seja na direção 
que for, engaja a responsabilidade e assume 
o risco e o ônus. Se o saber é necessário, se o 
cálculo é possível, ele o é até certo ponto – 
quando não se sabe e um caminho tem de ser 
escolhido, aí existe, para Derrida, a necessi‑
dade da decisão que engaja, direta e radical‑
mente, a responsabilidade. E, por isso, saber 
e poder, questionamento e decisão devem 
estar completamente separados.
E se o verdadeiro local de um problema da 
razão hoje é certamente a técnica, com tudo o 
que ela implica como advento impossível, im‑
previsível e radicalmente outro, é preciso, para 
pensá ‑la adequadamente, assim como para 
pensar a razão e a ciência, realizar o que 
Derrida chama de “descentramento” radical, 
e que corresponde, de fato, a elaborar um pen‑
samento que não pode ser, ou não pode mais 
ser, apenas, “um ato filosófico ou científico 
enquanto tal”. 
48 N°195

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