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agosto/98 - CULT 1 43 Criaçªo Seis poemas do escritor Ruy Proença 36 Fortuna Crítica 2 No segundo ensaio da sØrie, o crítico Ivan Teixeira analisa o formalismo russo 03 Notas 04 Entrevista O escritor Teixeira Coelho fala de As fœrias da mente, seu novo romance 14 Turismo LiterÆrio A Sªo Petersburgo do poeta Josif Bródski REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURA Teixeira Coelho diante do prØdio do MAC, museu do qual Ø diretor 10 Biblioteca ImaginÆria Joªo Alexandre Barbosa reflete sobre a obra do escritor Italo Calvino 13 Na Ponta da Língua O professor Pasquale flagra um ato falho premonitório de Dunga, o capitªo da seleçªo 18 Capa/Entrevista Haroldo de Campos fala sobre Crisantempo, livro e CD lançados pela Perspectiva 28 Capa/Ensaio O crítico J. Guinsburg disseca a relaçªo de Haroldo de Campos com o teatro 34 Leituras CULT Confira os destaques entre os lançamentos do mercado editorial 35 Memória em Revista Uma crônica de Gustavo Barroso publicada em 1931 no livro Mulheres de Paris 40 História Livros de viagem resgata os relatos sobre o Brasil do sØculo XIX 46 Literatura Francesa Sai no Brasil a obra completa de LautrØamont 48 Homenagem Nelson de Oliveira escreve sobre o escritor Campos de Carvalho, morto este ano 53 DossiŒ Biografia e livro de ensaios literÆrios renova leitura da obra de Albert Camus O escritor argelino Albert Camus Oswaldo JosØ dos Santos/AgŒncia USP 64 Do Leitor O recado dos leitores de CULT R ep ro du çª o O poeta Haroldo de Campos Ju an Es te ve s CULT - agosto/982 Diretor Paulo Lemos Gerente-geral Silvana De Angelo Editor Manuel da Costa Pinto Editor de arte Maurício Domingues Redator Bruno Zeni Diagramaçªo e arte Adriano Montanholi RogØrio Richard JosØ Henrique Fontelles Fabiana Fernandes Eduardo Martim do Nascimento Produçªo editorial Antonio Carlos De Angelo Danielle Biancardini Revisªo Izabel Moraes Baio Colunistas ClÆudio Giordano Joªo Alexandre Barbosa Pasquale Cipro Neto Colaboradores Aurora Fornoni Bernardini Claudia Cavalcanti Ivan Teixeira J. Guinsburg Marcello Rollemberg Nelson de Oliveira Ruy Proença Capa Foto de Juan Esteves Produçªo grÆfica JosØ Vicente De Angelo Fotolitos Bureau Bandeirantes Circulaçªo e assinaturas MÆrcia Monteiro CordÆs Dept. financeiro Regiane Mandarino Dept. comercial/Sªo Paulo Idelcio D. Patricio (diretor) Jorge Rangel Exalta de Camargo Dias Jefferson Motta Mendes ValØria Silva Elieuza P. Campos Dept. comercial/Rio de Janeiro Milla de Souza (Triunvirato Comunicaçªo, rua MØxico, 31-D, Gr. 1403, tel. 021/533-3121) Distribuiçªo em bancas AREVISTA Distribuiçªo e ComØrcio Ltda. (r. Dona Ester Nogueira, 283, Campinas, SP, CEP 13073-040, tel. e fax: 019/242-8342) ISSN 1414-7076 Jornalista responsÆvel Manuel da Costa Pinto MTB 27445 CULT Revista Brasileira de Literatura Ø uma publicaçªo mensal da Lemos Editorial e GrÆficos Ltda. Rua Rui Barbosa, 70, Bela Vista Sªo Paulo, SP, CEP 01326-010 tel./fax: (011) 251-4300 e-mail: lemospl@netpoint.com.br REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURA NÚMERO 13 - AGOSTO DE 1998 Poucos países tŒm o privilØgio de ter uma personalidade como Haroldo de Campos. Escritor que renovou a poesia nos anos 50 (com o movimento concretista), ensaísta que modificou o cânone tradicional da literatura brasileira (relendo, a partir da poesia do presente, linhagens estØticas es- quecidas no passado), tradutor com aguda consciŒn- cia da consciŒncia lingüística da literatura (e que por isso faz de cada texto traduzido uma recri- açªo capilar dos recursos poØticos do original), editor de uma reputada coleçªo (a sØrie Signos, da Perspectiva) enfim, Haroldo de Campos Ø uma espØcie de intelectual e artista poliØ- drico, cuja voragem criativa vai da prosa à poesia, da reflexªo abstrata à presença fí- sica que marca a vida cultural brasileira e internacional com happenings, decla- maçıes pœblicas e conferŒncias. Por isso, a publicaçªo de um livro como Crisantem- po vai bem alØm de mero evento edito- rial. Trata-se, na verdade, de uma espØcie de observatório sígnico que vai do lírico ao teórico dentro do registro poØtico; que registra reminiscŒncias pessoais, encon- tros, experiŒncias de viagem, aprendi- zados lingüísticos, leituras; que traduz dife- rentes tradiçıes literÆrias propondo tØcni- cas de recriaçªo e de reimaginaçªo tudo isso atualizado numa concreçªo de lingua- gem, como Haroldo de Campos diz na entrevista publicada nesta ediçªo da CULT. Em Crisantempo, podemos entrever o próprio futuro do livro, que assim nªo sucumbe à fragmentaçªo das linguagens, mas unifica a superfície caótica da realidade numa ordem superior a ordem das palavras. Em Crisantempo, enfim, estamos diante da- quela multiplicidade que o escritor italiano Italo Cal- vino, num dos textos de Seis propostas para o próximo milŒnio, considerava como um dos valores literÆrios a serem cultivados a partir do sØculo que se aproxima sØculo que certa- mente terÆ em Haroldo de Campos uma de suas referŒncias mÆximas. AO L E I TOR Manuel da Costa Pinto agosto/98 - CULT 3 ASSINATURAS DISQUE CULT 0800.177899 N O T A S O escritor Guimarªes Rosa Guimarªes Rosa O Centro de Estudos Luso-afro- brasileiros da PUC-Minas Gerais promove entre os dias 24 e 28 de agosto o SeminÆrio Internacional Guimarªes Rosa. O evento reunirÆ estudiosos e escritores que se dedicaram à obra do autor de Sagarana como os brasileiros Benedito Nunes, Lígia Chiappini, Kathrin Rosenfield e AdØlia Bezerra de Menezes, os portugueses E.M. de Melo e Castro e Eduardo Lourenço, o moçam- bicano Mia Couto, o italiano Ettore Finazzi-Agró e o francŒs Francis UtØza. Estarªo presentes tambØm tradutores de Guimarªes Rosa como Curt Meyer Clason (Alemanha), Jacques ThiØriot (França) e Luciana Stegagno Picchio (ItÆlia). Paralelamente, o seminÆrio promove a exibiçªo de filmes e vídeos, representaçıes teatrais e de contadores de estórias, alØm de minicursos sobre a obra de Guimarªes Rosa. Informaçıes e inscriçıes: Centro de Estudos Luso- afro-brasileiros da PUC-MG, Av. D. JosØ Gaspar, 500, prØdio 4, sala 103, Belo Horizonte, MG, CEP 30535-610. tel. 031/319-1368, fax 319-1369, e-mail: cespuc@pucminas.br Bernanos O escritor francŒs Georges Bernanos, morto hÆ 50 anos, serÆ tema de um en- contro promovido nos dias 21 e 22 de agosto, no Rio de Janeiro, pelo Consulado FrancŒs e pelo Fórum de CiŒncia e Cultura da UFRJ. O colóquio Bernanos e o Brasil reunirÆ estudiosos de França, Alemanha e Brasil (onde o escritor morou durante a Segunda Guerra), alØm de amigos do autor de Sob o sol de Satª, como o acadŒmico Geraldo de França Lima. Católico e membro da Action Française (movimento conservador liderado por Charles Mauras), Bernanos viveu na Espanha nos anos 30, onde testemunhou as atrocidades do franquismo, insur- gindo-se entªo contra a Igreja Católica e escrevendo inflamados panfletos contra o nazifascismo. Informaçıes sobre o colóquio pelos telefones 021/210-1272 e 220-4128. Feira do livro em Minas Gerais A Câmara Mineira do Livro e a ABDLC (Associaçªo Brasileira de Difu- sªo do Livro e Coleçıes) promovem entre 7 e 16 de agosto a 2“ Feira Paname- ricana do Livro. O evento acontece no Diamondmall (regiªo central de Belo Horizonte) e reunirÆ cerca de 250 expo- sitores, entre editoras, livrarias e distri- buidores, com representaçıes de ItÆlia, Portugal, França, Inglaterra, Argentina, Peru, Bolívia e Cuba. Segundo os orga- nizadores, a feira deverÆ criar melhores canais de acesso das editoras ao mercado mineiro, que hoje representa 17,2% do consumo de livros do país. Informaçıes pelo tel. 031/581-1206. Literatura Comparada Entre 18 e 22 de agosto,Florianópolis sedia o VI Congresso da Abralic (Asso- ciaçªo Brasileira de Literatura Compa- rada). O evento terÆ conferŒncias, debates e comunicaçıes sobre o tema Literatura comparada = Estudos culturais?. Entre os convidados estrangeiros estªo Marjo- rie Perloff, Beatriz Sarlo, Peter Osborne e Susan Buck-Morss. Do Brasil, parti- cipam Roberto Schwarz, Joªo Adolfo Hansen, Jeanne Marie-Gagnebin, MÆr- cio Seligmann-Silva e Arthur Nestrovski, entre outros. Informaçıes e inscriçıes no Nœcleo de estudos literÆrios e culturais (Nelic) CCE, sala 253, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, CEP 88040-000, tel. 048/331-6602, fax 331-9988, e-mail: abralic@cce.ufsc.br Concursos de conto e poesia A Fundaçªo Cultural Cassiano Ricardo, de Sªo JosØ dos Campos (SP), abriu ins- criçıes para dois concursos literÆrios: a XIII Antologia PoØtica HØlio Pinto Fer- reira e a XI Antologia de Contos Alberto Renart. O jœri de cada um selecionarÆ trabalhos de no mÆximo 40 autores, que serªo publicados em dois livros. Cada concorrente pode inscrever atØ cinco poemas de no mÆximo duas laudas ou trŒs contos todos inØditos. As inscriçıes vªo atØ 15 de setembro. Informaçıes: tel. 012/324-7300, fax 341-8577. Ar qu ivo do Es ta do /A ce rv o Úl tim a Ho ra Georges Bernanos Reproduçªo CULT - agosto/984 e n t r e v i s t a T E I X E I R A C O E L H O Év els on de Fr eit as /F ol ha Im ag em agosto/98 - CULT 5 Um romance-ensaio sobre o mal-du-siŁcle. Assim poderia ser definido o novo livro de Teixeira Coelho, As fœrias da mente Viagem pelo horizonte negativo, que a editora Iluminuras lança este mŒs. Ao longo de 162 pÆginas de escrita errÆtica, concŒntrica, seu anônimo protagonista penetra nos labirintos da depressªo um distœrbio psicológico que vem tomando proporçıes epidŒmicas a ponto de ser comparado à histeria do sØculo XIX. PorØm, ao contrÆrio desta outra doença cultural (que esteve na base da teoria psicanalítica de Freud), a depressªo nos leva a perceber o cØrebro como uma glândula e o comportamento como algo passível de manipulaçªo por meio de remØdios. Daí sua importância. Pois, para Teixeira Coelho, a depressªo e sua terapia sªo a expressªo paroxística do ideal da modernidade de controle da natureza humana e da natureza tout court. Romancista, ensaísta, professor da ECA-USP e diretor do MAC (Museu de Arte Contemporânea de Sªo Paulo), Teixeira Coelho mantØm um olhar atento para todas as manifestaçıes da pós-modernidade. Nesta entrevista à CULT, ele fala de como estas questıes impregnam sua obra ficcional. Aurora F. Bernardini Manuel da Costa Pinto CULT - agosto/986 CULT As fœrias da mente Ø um romance sobre uma personagem que cai em depressªo e, embora tenha uma herança intelectual humanista, vive a experiŒncia de sair de um problema psicológico por meio de remØdios. Qual o significado disso? Teixeira Coelho Existe um tema que Ø um pilar de As fœrias da mente: o conflito entre o homem cultural e o homem natural. Na medida em que vocŒ nªo precisa mais recorrer a uma entidade divina, ou a seu intermediÆrio na Terra (que Ø o sacerdote), ou a seu intermediÆrio leigo (que Ø o psicanalista), para resolver um problema de desequilíbrio, em outras palavras, na medida em que vocŒ pode recorrer a uma medicaçªo e, com isso alterar, transformar seu estado emocional interior, vocŒ jÆ pôs um pØ no território do homem absolutamente cultural, o homem que se faz, o homem que controla suas emoçıes (e quando eu escrevi isso nem estava em pauta o Viagra...). A cada ano que passa, o gŒnio humano lança no mercado algum novo instrumento de uso imediato, prŒt-à-porter, para vocŒ modelar sua personalidade interior. Isso coloca para mim com grande evidŒncia esse tema do homem cultural, que vem desde o sØculo XVIII com o projeto da modernidade, em que havia uma tendŒncia clara do homem colocar a natureza sob seu controle, de avançar em termos de progresso e desenvolvimento, custe o que custar e especialmente custe o que a natureza custar. Esse processo tem expressªo paroxística na possibilidade que se abre agora de vocŒ construir sua natureza humana de maneira cultural (seja por meio da clonagem, transplantes ou remØdios). CULT Isso modifica certas noçıes e ideais. A idØia de felicidade proporcionada pelo remØdio, por exemplo, Ø artifi- cial se comparada à noçªo convencional. T.C. Vira e mexe eu ouço alguØm dizer em debates sobre tendŒncias filosóficas do sØculo XX que o homem cultural Ø absurdo, que isso seria uma facilidade, que, recorrendo a medicaçıes, o ser humano estaria desistindo de enfrentar suas questıes filosoficamente. Eu nªo tenho resposta pronta. Essa Ø a razªo, aliÆs, pela qual escrevo algo que estÆ na fronteira entre a ficçªo e o ensaio e nªo propriamente um livro ensaístico. Mas aquela rejeiçªo me parece simplista, passadista, fora de ocasiªo pois ela vai acontecer. O livro Ø flutuante, nªo passa uma posiçªo muito clara a favor de uma coisa ou outra. Existe, sim, uma espØcie de adesªo da personagem a essa possibilidade. Sair da depressªo pelo remØdio Ø uma saída que, seja artificial ou nªo, ele vai assumir. Talvez esclareça um pouco dizer que pensei inicialmente em dar ao livro o título de O homem-glândula. Existe mais de uma descriçªo científica do cØrebro como sendo uma glândula. A gente tem uma idØia arcaica, clÆssica, de que o cØrebro Ø a mente, ou o espírito ou quase uma massa divina colocada numa caixa de ossos... CULT A partir do momento em que vocŒ soluciona uma decepçªo existencial por meio de uma pílula, o que acontece com o diÆlogo com o outro? T.C. A questªo Ø muito similar a uma que me foi colocada num seminÆrio: a conquista da palavra Ø o nascimento da democracia, pois a palavra permite diÆlogo. Minha intervençªo foi colocar isso em dœvida. O aparecimento da palavra por si só nªo tem nada a ver com diÆlogo. E nªo acho que o remØdio elimine o diÆlogo. Ele dÆ condiçıes diferentes de iniciar o diÆlogo. CULT Essa diferença elimina a hipótese do diÆlogo psicanalítico? T.C. O que me assusta tremendamente num tipo de diÆlogo psicanalítico Ø que se trata de diÆlogo que nªo sai do mesmo lugar, que se faz em cima de um remoimento do passado que me parece destrutivo. Considero o diÆlogo proposto pela agosto/98 - CULT 7 Évelson de Freitas/Folha Imagem psicanÆlise muito entravante. Com o recurso do medicamento, vocŒ teria condiçıes de se colocar disponível para o diÆlogo num nível diferente de abertura para o outro. A tentativa de abordar uma glândula, que Ø o cØrebro, atravØs da palavra, me parece que coloca as pessoas numa situaçªo de constante fechamento de cada um em si mesmo. Quando se trata de remontar seu universo afetual, vocŒ pode exercer uma açªo sobre o cØrebro que nªo aquela açªo imaterial, espiritual, a que estamos acostumados com religiıes e com a psicanÆlise. Nós vivemos muito pouco, nªo podemos ficar fazendo dez anos de psicanÆlise para poder tocar o outro. Nossa vida mØdia Ø de 70 anos, nos quais temos contato com o outro durante cerca de 40 anos, sendo que a vida œtil desse contato Ø de 20 anos: portanto nªo dÆ para passar dez anos num diÆlogo pantanoso e turvo. A psicanÆlise nªo Ø factível, justa, digna. Ela me incomoda menos como discurso filosófico ou poØtico sobre o mundo, embora a quantidade de objeçıes levantadas sobre os mais variados aspectos (lingüístico, antropológico) da obra de Freud deixe dœvidas sobre sua subsistŒncia depois da vastíssima revisªo dos œltimos dez ou vinte anos. Ainda assim a psicanÆlise, como poesia, me interessa. Como terapia, porØm, ela surge como œltimo grito do movimento xamanista, que Ø prØ-modernidade. A gente entrou na modernidade, em que o homem controla a criaçªo de outros homens e apontapara a substituiçªo do homem natural por outro tipo de homem possível. Por que isso seria tªo impossível ou desumano? É o nosso projeto. Poderíamos ter ido em outra linha, mas fomos nesta. É isso que me interessa acentuar, esse grande cenÆrio de fundo que aponta para a possibilidade de o homem se controlar inteiramente. CULT VocŒ escreveu como observador externo ou teve processo depressivo? OBRAS DE TEIXEIRA COELHO Moderno pós moderno (Iluminuras) Arte e utopia (Brasiliense) Usos da cultura: políticas de açªo cultural (Paz e Terra) Uma outra cena (Pólis) Em cena, o sentido (Duas Cidades) A construçªo do sentido na arquitetura (Perspectiva) Artaud: posiçªo da carne (Brasiliense) O sonho de Havana (Max Limonad) DicionÆrio do brasileiro de bolso (Siciliano) Semiótica, informaçªo, comunicaçªo (Perspectiva) O que Ø indœstria cultural (Brasiliense) O que Ø utopia (Brasiliense) O que Ø açªo cultural (Brasiliense) Fliperama sem creme (romance, Brasiliense) Niemeyer, um romance (Geraçªo Editorial) Os histØricos (com Jean Claude Bernardet; Cia. das Letras) CØus derretidos (com Jean Claude Bernardet; AteliŒ Editorial) DicionÆrio crítico de política cultural (Iluminuras) CULT - agosto/988 Leia trechos de As fœrias da mente Um dia, ao acordar pela manhª, num pulo ele se senta à beira da cama e pela primeira vez admite: Isso nªo Ø um estado de espírito, Ø um problema. Terrível, declarar- se com um problema (ele nªo quer ainda declarar-se doente). É uma sentença inapelÆvel. Quando Ø uma outra pessoa que o diz, um mØdico por exemplo, Ø sempre possível pensar num engano. Ou num logro. Um segundo mØdico poderÆ oferecer diagnóstico diferente, e o paciente escolherÆ em qual acreditar. É um problema, nªo Ø, Ø uma doença, nªo Ø uma doença, Ø grave, nªo Ø grave. O paciente escolhe. Nesse caso, nªo Ø só o diagnóstico que vem de fora: o próprio mal Ø de algum modo exterior ao paciente, estranho a ele, algo que se infiltra nele contra sua vontade. Quando Ø vocŒ mesmo que se reconhece doente, entre a doença e vocŒ constrói- se uma identidade indissolœvel. O mal estÆ dentro de vocŒ. A doença Ø vocŒ. Nªo hÆ engano algum. VocŒ sabe. Levou tempo para ele declarar-se com um problema (continua relutando em declarar-se doente; aceitaria declarar-se dolorido: nªo deveria bastar?). Nªo foi uma questªo de semanas, meses. Foram anos, desconfia, atØ que a consciŒncia de que havia algo errado a corrigir, de que havia um mal a enfrentar, como se diz, mostrou- se incontornÆvel. Uma vida inteira, provavelmente. AtØ que um dia, a sentença: estou em depressªo. De início, estar em depressªo lhe parece expressar seu estado com mais força do que dizer estou deprimido. Mais exato ainda: tenho depressªo. Resiste à tentaçªo de dizer uma depressªo tem a mim porque seria admitir que a depressªo estÆ fora dele e se apossou dele. Nªo. A depressªo estÆ nele, ele Ø a depressªo. (...) • À noite, assistindo televisªo no escuro, banhado pela luminosidade azulada do aparelho que exibe um filme antigo, sente-se num universo de fantasmas e essa nªo era uma sensaçªo agradÆvel. Agora, ele considera a hipótese de que o cinema seja o mÆximo de movimento possível, o mÆximo possível de modificaçªo de estados, com o mÆximo de fixidez aceitÆvel. Isso poderia constituir um antídoto para a depressªo, se Godard estivesse certo. O deprimido que nªo se compraz na depressªo quer sair, sair de si mesmo, sair de onde estÆ, mover-se e ao mesmo tempo permanecer, ter certeza de que ainda Ø ele mesmo, que pode reconhecer-se. Esses dois momentos contrÆrios, mas talvez nªo contraditórios, podem significar a superaçªo da angœstia de sentir-se imobil izado e ao mesmo tempo condenado ao desaparecimento. A depressªo, claro, Ø a imaginaçªo da morte. Mover-se e simultaneamente permanecer, ir adiante mas nªo adiante demais, nªo irreversivelmente adiante demais: esse seria o antidepressivo ideal. O antidepressivo possível. As palavras, pelo contrÆrio, abolem o tempo e, por esse viØs, eliminam o movimento. Permanecem demais e o que mais apavora na depressªo Ø a permanŒncia. No limite, a eternidade. • De sœbito, aquilo que Camus havia denominado, em O mito de Sísifo, de o œnico verdadeiramente sØrio problema filosófico, o suicídio, nªo passava de um banal incidente químico. Ruía por terra, para ele, toda uma filosofia. Naquele instante, quase se convencia de que toda a filosofia de todos os tempos, toda, havia desmoronado. A questªo central em Camus, como em Sartre, era a opçªo, a liberdade de escolha e a aceitaçªo da responsabilidade que daí deriva. O suicídio, maior problema do homem atØ ali, era uma opçªo intencional. O acidente de carro que matou Camus foi visto como um modo deliberado de suicídio: Camus nªo dirigia o carro mas sabia que o motorista era fascinado pela velocidade. Camus fez uma opçªo. Nem sequer correu um risco: simplesmente aceitou o caminho previsível. Mas, se a questªo era de dosagem de serotonina, Camus nªo escolhera nada, nªo fizera opçªo alguma e o maior problema filosófico, o œnico verdadeiramente fundamental para o homem, era apenas mais um problema de química orgânica, tªo equacionÆvel e solucionÆvel quanto tantos outros. agosto/98 - CULT 9 T.C. Ambas as coisas. Porque a obra Ø ficcional mas reflete de alguma maneira uma experiŒncia pessoal. A minha obsessªo hÆ algumas dØcadas Ø de me ver livre de um aparato bÆsico que me conformou e sobre o qual nunca tive nenhum poder, um aparato bÆsico de idØias e de sensibilidades que recebemos em bloco, sem poder intervir, e que marca nossa vida, a menos que se faça um esforço sobre-humano para descartÆ-lo. CULT Essa preocupaçªo aparece em As fœrias da mente dentro de uma reflexªo sobre a geraçªo de 68. T.C. No caso da geraçªo de 68, para mim Ø claro que fomos formatados. O livro do Gabeira, O que Ø isso companheiro?, permanece bastante vÆlido no sentido específico de que um militante nªo podia usar sunga, ir à praia, ter paixıes. Gabeira tocou no nervo de muita gente. A turma de 68 foi formatada para deixar de lado a sensibilidade em nome de um ideal racionalmente construído e com bases falsas. Fomos formatados por uma família e um país; mas tambØm nos deixamos formatar, aderimos à nossa formataçªo por um conjunto cultural muito específico. CULT Como isso entra na construçªo do livro? T.C. EstÆ presente em filigranas. As fœrias da mente Ø um livro sobre um fenômeno específico, um estado de depressªo muito comum hoje em dia e, no momento em que eu estava escrevendo, as pessoas em depressªo ao meu redor eram em quantidades imensas. Entªo hÆ vÆrias coisas em filigrana aqui. Essa obsessªo com o desaprender, com o desformatar, Ø uma das molas dessa personagem, que quer intervir no sentimento dele, quer ver o mundo de outra forma. A depressªo Ø um sintoma de outro mal-estar maior, com a vida e com o mundo, que assume esse aspecto: eu estou em conflito com minha formaçªo anterior. O livro Ø a reflexªo de alguØm que estÆ em estado depressivo e tenta entender o que se passa, localizar experiŒncia. Nªo chega em nenhum momento a parar. É um processo errÆtico. CULT A depressªo Ø para o sØculo XX o que a histeria foi para o sØculo XIX. VocŒ Ø co-autor de um livro chamado Os histØricos e agora escreve um livro sobre a depressªo. O que representam a histeria e a depressªo para o mundo de hoje? T.C. Escrevi Os histØricos com Jean Claude Bernardet logo depois do período Collor, com o fechamento das contas das pessoas etc. A histeria estava no ar. Depois, apesar do real, do FHC, veio a grande depressªo nacional que a gente sofre, manifestamente ou nªo. Depressªo dos jovens, fartos da universidade, sem perspectiva (quase a mesma do jovem em 68, diga-se de passagem). Outra razªo Ø que depressªo Ø doença cultural desta Øpoca. Todo mundo estÆ em depressªo e se tratando. Como diz a personagemde As fœrias da mente, vocŒ encontra anœncios em revistas estrangeiras convocando vocŒ a perceber que estÆ em estado de depressªo o que Ø apresentado de maneira positiva, na medida em que muita gente nªo perceberia que este Ø um estado patológico e, portanto, nªo reagiria. É uma doença cultural e nªo quero dizer com isso que Ø ilusória ou imaginÆria. Juntando as duas coisas, eu diria que hÆ um grande estado depressivo na cultura nacional, que a cultura brasileira Ø muito marcada pela idØia de morte (coisa que nªo vejo claramente em outras culturas), e acho que em determinados momentos, como este que estamos vivendo, esse sentimento aparece. Talvez nªo seja uma idØia ousada, se pensarmos na cultura portuguesa que herdamos e que Ø tremendamente marcada pela idØia de morte. Tendo a encarar essa história da alegria do brasileiro mais como representaçªo ideológica do que como constataçªo objetiva inegÆvel. CULT - agosto/981 0 Joªo Alexandre Barbosa A publicaçªo, em 1995, dos Saggi de Italo Calvino, reunidos em dois extensos volumes de mais de trŒs mil pÆginas, sob os cuidados de Mario Barenghi, com anotaçıes preciosas e editados pela Mondadori na coleçªo I Meridiani, incluindo textos escritos entre 1945 e 1985, ano da morte do escritor, mostra, para o leitor interessado, a variedade e a continuidade da intensa reflexªo de Calvino sobre temas literÆrios e tudo aquilo que converge para a apreensªo de uma mente e de uma sensibilidade com- prometidas com a literatura. Os dois volumes foram organizados em quatro partes: a primeira inclui os trŒs livros de ensaios quase completos do autor (e o quase refere-se ao œltimo, póstumo) e que sªo Una pietra sopra, Collezione di sabbia e Lezioni americane; a segunda inclui Narratori, Poeti e Saggisti, que Ø subdividida em Classici, Con- temporanei italiani e Contemporanei stranieri, Altri discorsi di letteratura e società, compreendendo Per una lette- ratura dellimpegno, Sul romanzo, Sulla fiaba, Territori limitrofi: il fantastico, il patetico, lironia, Editoria e dintorni, Leggere, scrivere, tra- durre, e Immagini e teorie que inclui Sul cinema, Intorno alle arti figurative e Letture di scienza e antropologia; a terceira Ø dividida em duas seçıes, Scritti di politica e costume, onde estªo Da Gente nel tempo (1946), Ritratti, cronache, interventi, Le armi e gli amori (1955- 1956), Cronache planetarie. Cronache italiene, e Descrizioni e reportages em que se encontram Liguria, Tacuino di viaggio nellUnione Sovietica (1952), Corrispondenze degli Stati Uniti (1960-1961) e Altre descrizioni; finalmente, a quarta parte Ø intitulada Pagine autobiografiche. Acrescente-se ainda que, no segundo volume, em Note e notizie sui testi, encontram-se preciosos elementos editoriais, alØm de uma bibliografia da crítica e índices remis- sivos de nomes e de periódicos. Como se pode ver, trata-se da mais completa e exaustiva reuniªo dos textos ensaísticos de Italo Calvino, revelando, para quem o conhecia de modo frag- mentÆrio atravØs da dispersªo de seus ensaios pelos livros que editou ou que foram editados postumamente, uma figura completa de intelectual para quem a curiosidade nªo apenas se detØm nas artes, mas se expande para alØm, envolvendo as ciŒncias de nosso tempo, os aconte- cimentos políticos e sociais, as trivia- lidades da crônica cotidiana, a contem- poraneidade da literatura ou a herança clÆssica europØia e mesmo as conver- gŒncias de culturas mais diversas. Nªo obstante a diversidade dos as- suntos e das ocasiıes em que foram escritos os vÆrios ensaios, hÆ, entretanto, uma recorrŒncia fundamental em todos eles: a maneira de articular, pela escrita, uma convergŒncia fundamental entre o conhe- cimento, atØ mesmo a erudiçªo em certos casos, e a sensibilidade para o detalhe que, seja na obra literÆria, seja nos acon- tecimentos lidos pelo autor, Ø elevado à categoria do elemento deflagrador do movimento ensaístico. Desta maneira, o ensaio, quer o que tem por tema a literatura ou as artes, quer o que registra a impressªo de acon- tecimentos políticos e sociais, ou o que traduz, contextualizando, o cotidiano de uma experiŒncia, Ø quase sempre a ex- pansªo muito controlada, por uma lin- guagem de precisªo e clareza, de um primeiro momento de sœbita apreensªo de singularidade. É o caso, por exemplo, de um dos textos que escreveu sobre Ariosto, intitulado Ariosto: la struttura dell Orlando furioso, em que o início do ensaio Ø jÆ a afirmativa daquilo que, depois, se expande como anÆlise da singularidade do poema: a sua recorrente incompletude. Diz Calvino: O Orlando furioso Ø um poema que se recusa a começar e se recusa a acabar. Recusa-se a começar porque se apresenta como a continuaçªo de um outro poema, o Orlando enamorado, de Matteo Maria Boiardo, que ficou inacabado com a morte O escritor italiano Italo Calvino de Italo Calvino As passagens obrigatórias agosto/98 - CULT 1 1 Xi lo gr av ur a de Jo ªo Le iteA obra de um escritor tªo inquieto quanto Calvino Ø marcada pela retomada de nœcleos obsessivos, que sªo encontrÆveis desde os seus primeiros textos e que retornam com a releitura do conjunto de seus contos e ensaios do autor. E recusa-se a terminar porque Ariosto nunca deixa de trabalhar nele (...). Esta dilataçªo interna, fazendo proliferar episódios a partir de episódios, criando novas simetrias e novos contrastes, parece- me explicar bem o mØtodo de construçªo de Ariosto e Ø para ele, na verdade, um modo de alargar este poema de estrutura policŒntrica e sincrônica, cujas histórias se espalham por todas as direçıes em contínua intersecçªo e bifurcaçªo. [Saggi (1945-1985), primeiro tomo, pÆg. 759] Sendo assim, aquilo que Ø percebido como um movimento entre o começo e o tØrmino do poema envolvendo, por um lado, a questªo da tradiçªo literÆria, representada pelo poema de Boiardo, e, por outro, o próprio modo de composiçªo obsessivo de Ariosto Ø, por assim dizer, o elemento deflagrador para o conhecimento da estrutura do poema. E, na verdade, todas as minuciosas observaçıes que sªo feitas em seguida sobre o poema conservam, ecoando, por uma mÆgica prodigiosa de estilo, aquela primeira percepçªo. Entre a recusa de começar e a de terminar, estÆ toda a tensªo que dissemina e recolhe os significados do poema. Como se, por entre os galhos frondosos da erudiçªo e ela Ø vasta por entre história circunstancial e literÆria que vªo sendo rastreadas para singularizar o texto de Ariosto , o leitor sentisse uma certa leveza na companhia daquela primeira afirmativa que o acompanha durante toda a leitura do ensaio. Mais tarde, o próprio Calvino vai elaborar, numa de suas liçıes americanas, o conceito de leveza: um certo modo de nªo pesar a mªo, mesmo tratando de temas graves, e deixando o texto correr solto, como se caminhasse à revelia do autor. É, sem dœvida, o que parece buscar o ensaio nas mªos de Italo Calvino e Ø, pensando bem, a marca do próprio gŒnero. Mas foi um gŒnero que, segundo o seu próprio testemunho, ele aprendeu com o poeta Leopardi e sua Operette morali. De fato, numa carta mencionada por Anselmo Pessoa Neto numa certa altura de Italo Calvino. As passagens obrigatórias (Editora da Universidade Federal de Goiânia), estÆ dito explicitamente: as Operette morali sªo o livro do qual deriva tudo o que escrevo. Por outro lado, a escolha do ensaio parece ter uma razªo mais profunda: a de que, por seu intermØdio, Ø tambØm possível, como ocorre na preferŒncia pelo conto, ultrapassar as distinçıes entre poesia e prosa, como estÆ dito naquele trecho de uma outra liçªo americana, aquela sobre rapidez, e que tambØm Ø transcrita pelo autor desse livro: Estou convencido de que escrever prosa nªo deveria ser diferente de escrever poesia; em ambos os casoshÆ a busca da expressªo necessÆria, œnica, densa, con- cisa, memorÆvel. É difícil manter este tipo de tensªo em obras muito longas: por isso meu temperamento faz com que eu me realize melhor em textos breves. É precisamente a partir dessas pre- ferŒncias de Italo Calvino que Anselmo Pessoa Neto arma o seu modelo de apreensªo da obra do escritor italiano. Na verdade, o ensaio e o conto sªo, como ele os chama, passagens obrigatórias para a leitura do escritor, e mesmo o seu primeiro livro, o romance Il sentiero dei nidi di ragno, pode ser, em sua estrutura mais profunda, sentido como uma coleçªo de fragmentos narrativos que buscam se organizar a partir do ponto de vista do menino personagem, meio perdido por entre os adultos das lutas guerrilheiras. Mas, como observa, com razªo, Anselmo Pessoa Neto, este primeiro livro tem uma funçªo mais larga na obra de Calvino: a de uma espØcie de acerto de contas com as possibilidades e os limites da representaçªo de uma experiŒncia muito pessoal do escritor que, por assim dizer, passa a limpo o seu aprendizado político e social numa Øpoca turbulenta, contraditória e, talvez por isso mesmo, muito rica para a experimentaçªo dos valores da literatura. Ao mesmo tempo, no entanto, em que o livro inicial parece dialogar com a narrativa neo-realista de Vittorini ou Pavese, Italo Calvino ia acumulando outros conhecimentos que vinham de outras leituras obsessivas como as do mencionado Leopardi ou mesmo de Ariosto, que serªo autores iluminadores para a compreensªo do escritor poste- rior: o primeiro, ensinando aquela rapidez e leveza, que jÆ foram men- cionadas, e o segundo, incitando ao gosto pela fÆbula que serÆ uma constante em tudo o que, depois, escreveu e pensou na literatura. Nada disso passa desa- percebido ao autor deste livro: logo de início as marcas da leitura feita por Italo Calvino sªo rastreadas por indicaçıes, às vezes, Ø verdade, bastante sumÆrias, mas que sªo importantes como de- marcaçıes de um território de criaçªo original. CULT - agosto/981 2 Joªo Alexandre Barbosa Ø um dos maiores críticos literÆrios do país, autor de A metÆfora crítica, A imitaçªo da forma, As ilusıes da modernidade (pela Perspectiva), Opus 60 (Livraria Duas Cidades) e A leitura do intervalo (Iluminuras). Professor titular de teoria literÆria e literatura comparada, foi diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e CiŒncias Humanas da USP, presidente da Edusp e Pró-reitor de Cultura da mesma universidade. Joªo Alexandre assina mensal- mente esta seçªo da CULT, cujo nome foi inspirado no título de seu mais recente livro, A biblioteca imaginÆria (AteliŒ Editorial). Ainda este ano, o crítico lançarÆ a coletânea de ensaios Entre livros, tambØm pela AteliŒ. Clóvis Ferreira/AE O livro de Anselmo Pessoa Neto aponta para a relaçªo indissolœvel entre o conto e o ensaio e para a rasura das diferenças entre poesia e prosa que percorrem a obra de Calvino Nesse sentido, o que parece fazer o autor deste livro Ø oferecer ao possível leitor um material que sinaliza um caminho para a leitura de Italo Calvino: seja a relaçªo indissolœvel entre o conto e o ensaio que aponta, por sua vez, para aquela busca de rasura das diferenças en- tre poesia e prosa, sejam as primeiras repercussıes da obra do escritor, quer em si mesmo, quer em outros leitores, seja a releitura de prefÆcios atualizadores do próprio Calvino para os seus primeiros livros, seja, enfim, a traduçªo de uma longa entrevista concedida pelo escritor a Guido Almansi, com que fecha o trabalho. Deste modo, Anselmo Pessoa Neto trabalha com um Italo Calvino que apenas se preparava para a realizaçªo de sua obra. Seu primeiro romance, seu primeiro livro de contos, sua primeira coletânea de ensaios que parecem ao autor deste livro passagens obrigatórias para a leitura posterior que se vier a fazer quer do Calvino de I nostri antenati: Il visconte dimezzato, Il barone rampante e Il cavaliere inesistente, de Sotto il sole giaguaro ou das Lezioni americane Sei proposte per il prossimo millenio. Mas jÆ entre Ultimo viene il corvo e Una pietra sopra, isto Ø, entre o conto e o ensaio, Ø possível perceber vinculaçıes mais intrínsecas e que apontam para aquilo que, a meu ver, serÆ fundamental na poØtica de Calvino. Para ficar apenas com uma, eu men- cionaria uma espØcie de difícil controle das passagens entre realidade e ima- ginaçªo conseguido por força daquilo que jÆ me referi, no caso do ensaio sobre Ariosto, como expansªo do detalhe percebido por um ato de sœbita ilu- minaçªo o que, a meu ver, Ø tambØm responsÆvel para que, muito posterior- mente, Italo Calvino venha a se entregar seja aos experimentos do O.L.I.P.O., seja ao aberto fantÆstico de Le cosmicomiche, sem esquecer, todavia, a crítica da leitura e mesmo da cultura que estÆ num livro como Se una notte dinverno un viaggiatore. Certamente, a compreensªo de um escritor tªo inquieto quanto Calvino nªo pode prescindir do estabelecimento de tais vinculaçıes: a sua obra Ø quase toda a retomada de nœcleos obsessivos que sªo encontrÆveis desde os seus primeiros textos e, muitas vezes, aquilo que se julgara ultrapassado por uma obra posterior, numa espØcie de perigosa leitura evolutiva, retorna de sœbito numa releitura. Dou um exemplo: fazendo agora a releitura do primeiro dos contos de Ul- timo viene il corvo, movido pelo exame deste livro de Anselmo Pessoa Neto, encontrei traços de composiçªo que, de imediato, me fizeram pensar em um dos contos reunidos em Sotto il sole giaguaro. Ali estÆ, por exemplo, o mesmo cui- dado em deixar com que os elementos de uma possível relaçªo amorosa apareçam nªo atravØs de palavras ou de grandes declaraçıes, mas por intermØdio de gestos ou açıes que traduzem modos de participar da própria relaçªo. Nªo sªo, por assim dizer, palavras ou gestos isolados, que funcionam como meca- nismos de aproximaçªo ou de distan- ciamento: a nomeaçªo dos gestos e das açıes Ø transformada em nœcleos de significado que assumem os valores da linguagem usual das declaraçıes ou recusas amorosas. No caso do conto do primeiro livro, Ø a escolha das coisas, animadas ou inani- madas, que, uma vez oferecidas à mulher, pudessem dizer de um sentimento jamais expresso pelo personagem; no caso do conto da obra póstuma, Ø o elenco de comidas mexicanas e mesmo a açªo de comer (ecoando todo um movimento antropofÆgico que Ø bÆsico na estrutura ficcional do conto e na reflexªo cultural que ele desencadeia) que responde pela intensidade da recusa ou da retomada amorosa. Deste modo, lidos simultaneamente por artes da memória da leitura a que a gente chama de releitura, os contos distanciados no tempo terminam por anular absolutas diacronias e se instauram como momentos atualizados pela sensi- bilidade. É, a meu ver, o grande mØrito desse livro de Anselmo Pessoa Neto: lembrar ao pos- sível leitor de Italo Calvino, mais do que as passagens, as paradas obrigatórias. agosto/98 - CULT 1 3 A cama sªo umas palhas, escreveu mestre Camilo Castelo Branco. Por mais que as gramÆticas expliquem essa concordância que eu tambØm ex- plicarei , Ø inegÆvel que ela causa um certo desconforto. NinguØm espera o verbo no plural depois de um substantivo no singular. Soa um pouco como A galera vibram, A turma foram. O fato, porØm, Ø que, quando se estudam as regras de concordância verbal, verifica-se que hÆ uma divisªo clara: os casos genØricos e os par- ticulares. Entre os particulares, estªo os verbos haver, fazer e ser. Qualquer gramÆtica traz um item em que se trata da concordância especial do verbo ser. E o que ocorre com o verbo ser no caso? No exemplo de Camilo, o verbo estÆ ligando coisa e coisa, ou seja, cama e palhas, substantivos comuns, de nœmero diferente um no singular, outro no plural. As gramÆticas ensinam que, quando isso ocorre,a tendŒncia Ø que o verbo ser vÆ para o plural. Foi o que fez Camilo. Apesar de o sujeito ser cama, o verbo (sªo) concorda com o predicativo (palhas). E o coloca em evidŒncia, ou seja, enfatiza-o. Apesar da regra se nªo chega a ser regra, Ø, sem dœvida, a tendŒncia do- minante , nªo faltam nos bons autores exemplos contrÆrios. As gramÆticas ensinam que isso ocorre quando se quer enfatizar o que estÆ no singular. Foi o que fez Saramago, em Que farei com este livro? Nessa obra, lŒ-se: Terei de explicar-te que, na matØria que estamos a discutir, o ramo Ø os princípios e o vinho a prÆtica? AlØm de ter preferido nªo seguir a recomendaçªo gramatical quanto à pontuaçªo faltou vírgula depois de vinho para marcar a omissªo do verbo (o vinho Ø a prÆtica), o que Ø praxe no mestre , Saramago optou pelo verbo ser no singular, certamente para en- fatizar ramo, e nªo princípios. Onde entra Dunga na história? Depois do jogo do Brasil contra a Noruega vitória norueguesa, lembra? , houve uma reuniªo entre jogadores e comissªo tØcnica, para que cada um dissesse o que quisesse, ou seja, para que ocorresse a famosa lavagem de roupa suja. Depois da reuniªo, o capitªo da seleçªo disse que nªo adiantava ficar falando, falando. Nosso negócio nªo Ø falar, Ø jogar. Nossa língua Ø os pØs, disse Dunga. Pois bem. Por incrível que pareça, o ato falho de Dunga deu a dimensªo do que ocorreria com o time de Zagallo. Ao empregar o verbo ser no singular, conscientemente ou nªo o capitªo colocou em evidŒncia algo que ele mesmo dizia nªo ser o forte dele e dos demais jogadores: a língua. Ledo e ivo engano, como diria outro mestre Carlos Heitor Cony. Talvez premonitória, a declaraçªo de Dunga por meio da concordância verbal sintonizava-se com o pífio futebol que a seleçªo exibiu na Copa, principalmente na final. Apesar de ser tarde, convØm corrigir, sobretudo para estabelecer o nexo entre a gramÆtica e o que Dunga pretendia afirmar, ou seja, adequar a frase à verdadeira intençªo do falante enfatizar os pØs, base literal de seu ofício: Nossa língua sªo os pØs. Pasquale Cipro Neto professor do Sistema Anglo de Ensino, idealizador e apresentador do programa Nossa língua portuguesa, da TV Cultura, autor da coluna Ao pØ da letra, do DiÆrio do Grande ABC e de O Globo, consultor e colunista da Folha de S.Paulo. A PREMONI˙ˆO DE DUNGA Pasquale Cipro Neto CULT - agosto/981 4 Mas Petersburgo Ø um estado de espírito, quase uma nacionalidade , explicava Helena, a mulher do famoso mitólogo EleÆzar Meletínski, quando a visitei em Moscou em 1992. É diferente disso que estÆ aqui, Ø a œnica grande cidade que, bem ou mal, conseguiu resistir. Ao quŒ, nªo perguntei. Imagino que seja à total dissoluçªo de valores em que, por exemplo, mergulhou Moscou, depois da perestróika falida. Nªo tive, porØm, coragem de ir atØ lÆ. Preferi ficar com a recordaçªo do que vi nas viagens de estudo que repeti entre 77 e 83, e que se fundiu com as leituras de Pœchkin, de Gógol, de DostoiØvski, com a mœsica de Tchai- kóvski, de Glinka, de Mussórgski, com a arquitetura ampla e dourada pelo sol de junho de suas praças, com as visitas aos tesouros do Hermitage ou do PalÆcio de Verªo e... com as noites brancas: uma cidade feØrica, onde a realidade e a imaginaçªo dificilmente resistem ao convite de se unirem. Minhas lembranças tambØm se unem às de outros entusiastas de Peter (Ø assim que os russos sempre chamaram a cidade que hoje tem uma populaçªo de quase 5 milhıes de habitantes) e, como se trata de uma rememoraçªo principalmente geogrÆfica, nada melhor do que se deixar guiar pelas do petersburguense Josif Bródski (mais A cidade russa ergue-se sobre um pântano, criando uma atmosfera de irrealidade pelo contraste entre a onipresença da Ægua e o equilíbrio dos conjuntos arquitetônicos, igrejas e telhados orlados de ouro de seus palÆcios cujo estilo clÆssico, segundo Josif Bródski, Ø tªo abstrato e perfeito a ponto de se tornar absurdo Aurora F. Bernardini Sªo Petersburgo, sob o signo do classicismo agosto/98 - CULT 1 5 sua grande maioria estªo agora unidas ao continente. Fundamentalmente, o rio Nieva e seus afluentes locais dividem o centro da cidade em quatro setores principais: a ilha Vassilievski, a oeste, Petrogrado e Viborg, ao norte, e o Almirantado, a sudeste, em cuja parte ocidental nos deteremos. Em meados de dezembro, a Ægua dos rios congela e isso vai atØ o começo da primavera, em abril. Mas este Ø um panorama completamente diferente: nossa viagem se dÆ no mŒs de junho, quando a temperatura gira por volta dos 18 graus centígrados e, durante o mŒs inteiro, o sol desaparece do cØu por umas duas horas apenas e os palÆcios, despidos de suas sombras e com os telhados orlados de ouro, tomam o aspecto de um delicado serviço de porcelana. A maior concentraçªo das riquezas artísticas e culturais da cidade estÆ justamente no Almirantado, setor que tem o nome do famoso prØdio cuja agulha de ouro tenta, como um raio invertido, anestesiar as nuvens, e que Ø tambØm o nœcleo da cidade original de Pedro I. Mas deixemos a palavra a Bródski: Muito apropriadamente, alguns quilômetros rio abaixo, na margem do rio oposta [à da Estaçªo Finlândia, onde atØ a morte de Bródski existia a estÆtua de LŒnin], ergue-se um monumento ao homem cujo nome a cidade usou desde sua fundaçªo: Pedro, o Grande. (...) É um monumento imponente [universalmente conhecido como O cavaleiro de bronze], com cerca de seis metros de altura, a melhor obra de Étienne-Maurice Falconet [1782], que foi recomendado por Voltaire e Diderot à grande Catarina, que encomendou a obra. Pedro, o Grande [1672-1725], paira do alto da rocha gigantesca de granito [vermelho] arrastada atØ aqui do istmo da CarØlia, contendo com a mªo esquerda o cavalo rampante, simbolizando a Rœssia, e com a direita indicando o caminho do norte. A inscriçªo gravada no lœcido bloco de granito do pedestal diz em latim, uma língua incisiva tanto quanto o russo, PETRO PRIMO CATARINA SECUNDA. Foi este monumento que inspirou a Pœchkin o poema longo mais famoso da Rœssia, O cavaleiro de bronze, a história relata Bródski de um obscuro funcionÆrio que após ter perdido sua amada numa inundaçªo [nªo se esqueça de que a cidade foi construída prati- camente sobre um pântano] acusa a estÆtua eqüestre do imperador de negli- gŒncia (nªo cuidou das barragens) e tarde, na AmØrica, Joseph Brodsky), o poeta laureado com o Nobel de 87, que morreu hÆ pouco e que sempre achou que o espaço (o olhar) Ø o essencial: a disciplina das colunatas, a luz pÆlida difusa, onde olho e memória operam com acuidade desusada, a onipresença da Ægua, forma adensada do Tempo. A Sªo Petersburgo, Bródski dedicou um ensaio em 86, o Guia a uma cidade que mudou de nome (existe traduçªo para o portuguŒs em Menos que um, pela Com- panhia das Letras), que tem como epígrafe uma frase de On photography de Susan Sontag: Possuir o mundo sob forma de imagens Ø tornar a experimentar a irrealidade e o afastamento do real, mas em toda sua obra, em prosa e em verso a evocaçªo da cidade Ø uma categoria do espírito, como faz questªo de acentuar. De fato, Sªo Petersburgo Ø uma cidade que mudou de nome: do original Sankt Peterburg, que lhe foi dado por Pedro I, seu fundador, em 1703, a Petrogrado em 1914, a Leningrado, de 1924 atØ a queda do impØrio soviØtico, quando voltou a chamar-se por seu primeiro nome, para nós, Sªo Petersburgo. A Ægua onipresente Ø a do rio Nieva, que desemboca no golfo da Finlândia, e seus numerosos afluentes: a cidade se espraia sobre as 42 ilhas (101, segundo Bródski) de seu delta, mas em O cavaleiro de bronze, estÆtua eqüestre em homenagem a Pedro, o Grande, fundador de Sªo Petersburgo; na pÆgina à esquerda, o domo dourado do Hermitage CULT- agosto/981 6 enlouquece ao ver Pedro soltar-se do pedestal e ir atrÆs dele enfurecido para pisoteÆ-lo sob os cascos de seu cavalo e fazŒ-lo desaparecer no ventre da terra. Os versos, em pentâmetro jâmbico, espØcie de medida mØtrica-espiritual tªo familiar na Rœssia como o tetrâmetro na Inglaterra, sªo conclui Bródski os mais belos que tenham sido escritos em louvor a essa cidade, nªo sendo os de Ossip Mandelchtam, que tambØm foi tragado pelo impØrio um sØculo depois de Pœchkin ter sido morto em duelo. Mas continuemos nossa viagem. À direita do cavaleiro de bronze hÆ uma instituiçªo militar o Almirantado. À sua esquerda, porØm, fica o Senado, hoje sede do Arquivo Histórico do Estado e a mªo indica, alØm do rio, a Universidade construída por Pedro em pessoa e onde o homem do carro blindado [LŒnin] recebeu parte de sua educaçªo. A vasta praça do Senado, mais tarde chamada Dos Decembristas em homenagem à revolta de 1825 de alguns jovens da nobreza contra o czar, todos eles sentenciados (Pœchkin escapou por pouco), abriga edifícios majestosos cujas fachadas datam de 1830 e representam a œltima grande obra de Carlo Rossi, um dos artistas italianos que embelezaram a cidade. Aquelas magníficas fachadas cheias de marcas atrÆs das quais por entre pianos vetustos, tapetes puídos, quadros empoeirados dentro de pesadas molduras de bronze, sobras de móveis (quase inexistentes as cadeiras) devoradas pelas estufas de ferro, durante o sítio uma tŒnue vida começava a tremeluzir. E lembro que, ao passar diante daquelas fachadas para ir à escola, perdia-me imaginando o que poderia acontecer dentro daqueles quartos com as velhas tapeçarias infladas e flutuantes. Devo dizer que daquelas fachadas e daqueles pórticos clÆssicos, modernos, eclØticos, com suas colunas e pilastras e cabeças de animais míticos ou personagens escul- pidas em gesso , de seus ornamentos e cariÆtides que sustentavam os balcıes, dos torsos à espreita nos nichos dos Ætrios, aprendi mais coisas sobre a história de nosso mundo do que de qualquer livro que vim a ler mais tarde. AlØm do Manejo (1804-07), que fica próximo do prØdio do Senado, abre- se outra praça que abriga a famosa Catedral de Santo Isaac com sua cœpula de mais de cem quilos de puro ouro, construída em estilo clÆssico por Auguste Montferrand (1818-58). O estilo clÆssico, tªo abstrato e perfeito a ponto de se tornar absurdo, Ø no dizer de Bródski o signo de Sªo Petersburgo. Toda crítica (...) pressupıe no crítico a consciŒncia de um plano de observaçªo superior, de uma ordem mais conveniente. A história da estØtica russa fazia com que os conjuntos arquite- tônicos, igrejas inclusive, fossem percebidos e ainda o sªo como a melhor encarnaçªo possível desta ordem. De qualquer modo, uma pessoa que tenha vivido o suficiente nesta cidade Ø levada a associar a virtude com a proporçªo. Trata- se de uma velha idØia grega que porØm, uma vez transferida para sob o cØu do norte, adquire a autoridade particular de um espírito de cruzada e confere ao artista uma aguda consciŒncia da forma. Este tipo de influŒncia Ø sobretudo claro no caso da poesia russa, ou melhor (...) petersburguesa. Por dois sØculos e meio esta escola, de Lomossov e DerjÆvin a Pœchkin e sua plŒiade (...) atØ os acmeístas Achmatova e Mandelchtam, neste sØculo viveu sob o mesmo signo que a concebeu: o signo do classicismo. Do Almirantado e de suas praças irradiam trŒs grandes avenidas, entre as quais a mais importante Ø a avenida NiØvski, imortalizada pelo conto de Gógol do mesmo nome (sem falar de O capote, do mesmo Gógol, e de Crime e castigo, de DostoiØvski, entre outros), que se estende por cinco quilômetros À esquerda, vista panorâmica de Sªo Petersburgo. Na pÆgina oposta, a colunata da catedral de Kazan e o poeta Josif Bródski agosto/98 - CULT 1 7 praticamente em linha reta atØ a abadia de Alexandre NiØvski, cortando um meandro do Nieva de parte a parte e cruzando, no caminho, dois rios menores, o Moika, numa ponte das mais sugestivas, sobre a qual campeiam as estÆtuas de quatro cavalos, e o Fontanka. As margens do Fontanka, semeadas de casarıes, hospedam tambØm uma das instituiçıes mais tradicionais do povo russo, os bania ou casas de banho, descritas magistralmente por Pasternak em um de seus poemas. Sªo construçıes que tŒm, internamente, um tipo especial de tijolo capaz de produzir, quando aquecido e molhado, um denso vapor dÆgua. Os banhistas esfregam seus corpos com ramalhetes de capim seco chamados matchÆlka, que eram vendidos na porta por velhinhas, e despejam jatos de Ægua fria uns nos outros. JÆ as construçıes do NiØvski Prospect (Ø este o nome russo da famosa avenida) sªo palÆcios da antiga nobreza (os Stroganov, os Chuvalov e Anichkov), igrejas conhecidas por seus ícones e esculturas (como a mais importante delas, a catedral de Kazan, de 1801-11), o Teatro Pœchkin e o Gostinni Dvor, hoje centro comercial, uma construçªo que forma uma praça irregular que dÆ para quatro ruas e que remonta a 1761, quando foi projetada por Jean-Baptiste Vallin de la Mothe. AlØm da praça da abadia de Alexandre NiØvski (herói da história russa a quem Prokófiev dedicou uma ópera com o mesmo nome que tem um dos coros mais impres- sionantes jamais compostos), abre-se um curioso conjunto arquitetônico: dos lados esquerdo e direito, respectivamente, o cemitØrio de LÆzaro, com esculturas em mÆrmore e granito do sØculo XVIII, e o de Tikhvin, do sØculo seguinte, que acolhe, por entre arbustos e flores campestres, os tœmulos de DostoiØvski, Mussórgski e Tchaikóvski. De lÆ se vŒem as cœpulas da Igreja da Anunciaçªo, projetada em 1720 por Domenico Trezzini, e a Catedral da Santíssima Trindade, desenhada entre 1778-90 por Ivan Starov. Nas Øpocas sucessivas à de Pedro nªo se construíram mais edifícios œnicos, isolados, mas inteiros conjuntos arqui- tetônicos, ou melhor, paisagens arqui- tetônicas. Intocada atØ entªo pelos estilos da arquitetura europØia, a Rœssia levantou suas barragens, e o barroco e o classicismo jorraram inundando as ruas e as margens de Sªo Petersburgo. Feito imensos órgªos de igreja, florestas de colunas ergueram- se para o cØu e se alinharam ao longo das majestosas fachadas, ad infinitum, num quilomØtrico triunfo euclidiano. Durante a segunda metade do sØc. XVIII e primeiro quartel do seguinte, esta cidade tornou-se um verdadeiro safari para os melhores arquitetos, escultores e decoradores italianos e franceses. Ao adquirir seu aspecto imperial, a cidade levou seu escrœpulo atØ o menor detalhe: as chapas de granito que revestem rios e canais, o elaborado desenho de cada caracol de suas grades de ferro fundido sªo exemplo disso. (...) No entanto, qualquer que fosse o modelo em que os arquitetos se inspiravam em seu trabalho Versailles, Fontainebleu etc. , o resultado era sempre inconfundivelmente russo. Isso porque o que ditava ao construtor a distribuiçªo das vÆrias partes de um edifício e o estilo a ser adotado a cada vez nªo era tanto a vontade caprichosa do cliente (...) quanto a abundância exorbitante de espaço. Quem observar o panorama do Nieva da fortaleza de Pedro e Paulo, ou entªo a Grande Cascata junto ao golfo da Finlândia, tem a estranha sensaçªo de que nªo Ø a Rœssia que procura alcançar a civilizaçªo europØia, mas que esta, como que de dentro de uma lanterna mÆgica, Ø projetada com seus detalhes ampliados, sobre um enorme vídeo de espaço e de Ægua. Aurora F. Bernardini professora de pós-graduaçªo em literatura russa na USP CULT - agosto/9818 E PI FA N IA S PO É T IC AS JosØ Guilherme Rodrigues Ferreira e Manuel da Costa Pinto Fotos de Juan Esteves Haroldo de Campos fala de seu novo livro, Crisantempo, que viaja num território poØtico sem fronteiras, registrando experiŒncias de viagem, homenageandoamigos, traduzindo desde Catulo atØ poetas israelenses, e atualizando cada ocasiªo numa concreçªo de linguagem que ultrapassa o rótulo redutor do concretismo e revela as dicçıes variadas desse poeta da agoridade agosto/98 - CULT 19 Em visita à multicultural JerusalØm, Haroldo de Campos se emocionou ao ver de perto a rocha-plataforma de onde, segundo a tradiçªo islâmica, MaomØ ascendeu aos cØus num burrico alado, guiado pelo arcanjo Gabriel. Em Medellin, na Colômbia, muito alØm da propalada guerra do trÆfico, se inebriou com os sons da siberiana Sainkho Nam- tchylak, uma rapsoda xamânica, parti- cipante como ele de um democrÆtico festival internacional de poesia. Depois de conhecer vÆrios templos no Japªo, Haroldo tomou chÆ e descansou como um zen-budista no sofÆ que pertenceu a Fenollosa. Encontros e momentos epifâ- nicos como esses foram ponto de partida para muitos dos poemas que compıem e dªo o tom a Crisantempo, o novo livro do poeta, tradutor e ensaísta Haroldo de Campos que estÆ sendo lançado pela editora Perspectiva e que Ø acompanhado por um CD no qual o autor lŒ uma seleçªo de seus trabalhos. Na poesia da agoridade, pós- utópica, empreendida por ele, o exer- cício de rotina tem sido atualizar cada ocasiªo numa concreçªo de linguagem, viajando num território poØtico sem fronteiras que pode incluir a Nova York dos rasga-cØus ou a esquina mais próxima, com seu semÆforo de olho vermelho, raio polifŒmico a perscrutar a escuridªo da noite. A poesia da presentidade estÆ tam- bØm na sØrie onde homenageia amigos pintores, amigos escritores e amigos felinos. Nem mesmo a tØrmita voraz, nada amiga, quase invisível, no ritual silencioso da destruiçªo de livros (e estes estªo por toda parte no sobrado da Rua Monte Alegre, no bairro paulistano de Perdizes), escapou a um elogio. A ocasiªo pode ser tambØm de outra natureza. Política, por exemplo, ou mesmo ecológica. O anjo esquerdo da história, dedicado aos sem-terra mas- sacrados no ParÆ, foi construído após o choque despertado pela fotografia do funeral das vítimas, estampada na Folha de S. Paulo. Haroldo se entusiasma quando fala desse poema, enfrenta os ataques que apontam a peça como mera açªo panfletÆria, e defende seu rigor formal, lembrando as liçıes de Maia- kóvski: Sem forma revolucionÆria nªo hÆ arte revolucionÆria. AtØ a poluída Cubatªo ganhou palavras tensas do poeta. Haroldo deixou temporariamente de lado os infernos metafísicos para descrever a imensidªo de um inferno factual, da cidade com cØu-enfermiço, cØu-de- fel, dossel bilioso. Crisantempo Ø, a seu modo, mais um golpe duro na ladainha que hÆ anos persegue Haroldo e nªo cansa de entoÆ- lo como poeta concretista. Concretista ele confessadamente jÆ nªo Ø, pelo menos desde as proliferaçıes barroquizantes de suas GalÆxias, no início dos anos 60. O poeta reage bem ao lenga-lenga, diz que Ø mesmo difícil se livrar dos rótulos. E mais uma vez mostra que Ø capaz de manter qualidade e inventividade poØtica com dicçıes variadas. Para isso reclama, como num dos poemas, as doses certas de paciŒncia, ciŒncia, demŒncia, obsessªo, certeza, incerteza. O novo livro tambØm Ø oportunidade para a celebraçªo de mais traduçıes. Haroldo, que jÆ estudou o hebraico para transcriar textos bíblicos, usa essa ferramenta agora para apresentar os maiores poetas israelenses contem- porâneos. Na outra ponta, mostra uma sØrie de poemas de Catulo, que estavam na gaveta, prontos para a revelaçªo. Em Crisantempo ecoam ainda as vozes de HorÆcio, Ovídio, PØrsio, ParmŒnides, Safo, Alcman, Mimnermo, Alceu, KavÆfis O tradutor nunca deu mesmo trØgua ao poeta. E vice-versa. No final dos anos 50, início dos 60, a produçªo pessoal dialogava principalmente com as tradu- çıes inspiradas nos modelos e no pai- deuma de Ezra Pound. Havia entªo um quŒ programÆtico no ar, resquício ainda das inquietaçıes levantadas pelo movi- mento da poesia concreta. Mas o leque de interesses foi se ampliando, entraram o Barroco, a poesia russa... Quarenta anos depois, tradutor e poeta confundem-se numa relaçªo cada vez mais visceral. JÆ nªo hÆ diferença possível entre esses papØis (se Ø que algum dia houve), aos quais se soma o do ensaísta tªo acurado quanto curioso. Afinal, para ele, a literatura Ø feita de literatura. O que sªo Os Lusíadas?, pergunta Haroldo. E ele mesmo responde, com uma aula: No sentido lato da palavra, Os Lusíadas sªo uma traduçªo da Eneida de Virgílio, que por sua vez Ø a conti- nuaçªo e a traduçªo da Ilíada de Homero. A poesia de Homero tinha força e intensidade garantida pela beleza sonora da língua grega. Virgílio era um poeta recrutador, que fez Eneida para celebrar a glória de Roma. Versos inteiros foram transpostos e transformados em versos latinos. Dentro da estØtica entªo neces- sÆria da imitaçªo, Camıes, ao traduzir Virgílio, traduziu Homero. Na entrevista à CULT publicada a seguir, Haroldo fala de Crisantempo, de todas as literaturas nele contidas e da importância dessa cadeia de traduçªo e tradiçªo. Explica o conceito de reima- ginaçªo, passa pela anÆlise da crise das vanguardas, rememora com carinho dos amigos de ofício, e revela que nªo desistiu da idØia de organizar uma antologia da poesia brasileira de invençªo, nos moldes daquela esboçada no seu livro A arte no horizonte do provÆvel. Para que o nosso encontro pudesse acontecer, Haroldo teve de interromper a sessªo diÆria de homeroterapia a que tem se entregado para enfrentar, com extrema dignidade, alguns problemas de saœde. Sem poder sair de casa, comecei a trabalhar como um louco na traduçªo da Ilíada, diz. JÆ traduziu mais de quatro mil versos. É preciso estar factivo para se manter vivo, nªo cansa de receitar Haroldo. O cacha- lote com barbas de Netuno, como carinho- samente a ele se referia seu amigo CortÆzar, ainda tem muitos mares nunca dantes navegados a singrar. Crisantempo, de Haroldo de Campos, incluindo CD com leitura de poemas pelo autor, serÆ lançado atØ o final deste mŒs pela editora Perspectiva (tel. 011/885-8388) CULT - agosto/9820 CULT Crisantempo reœne, a um só tempo, trabalhos que revelam diversas prÆticas de invençªo, desde as Trans- luminuras, traduçıes de gregos e latinos, atØ poemas como o dedicado aos sem- terra. HÆ tambØm uma sØrie que funcio- na como uma memória nada conven- cional das suas viagens. VocŒ poderia falar sobre algo que unificasse ou atØ fosse a negaçªo da unidade entre esses poemas? HAROLDO DE CAMPOS De fato, hÆ uma unidade nessa variedade. O livro abarca os œltimos 12 anos de minha produçªo poØtica, com algumas coisas mais antigas, que tinham ficado meio marginais. É o caso do conjunto de traduçıes do Catulo. Crisantempo se caracteriza exatamente por aquela pro- posta que formulei no ensaio Poesia e modernidade, onde falo do poema pós- utópico. Esse ensaio foi apresentado num encontro por ocasiªo dos 70 anos do Octavio Paz, no MØxico, foi depois publicado na Folha e, mais recentemente, no livro O arco-íris branco. Nesse ensaio eu falo de uma poesia pós-utópica, ou seja, de uma poesia da agoridade, da presen- tidade Crisantempo representa esse momento específico do meu trabalho, em que cada poema Ø uma ocasiªo textual atualizada. Eu jÆ nªo faço poesia concreta, nos moldes daquela estØtica específica do Plano Piloto, ou pelo menos nªo faço poesia concretista, strictu sensu, desde meados da dØcada de 60. Em 63, eu jÆ comecei as GalÆxias, que, embora tenham na microestrutura elementos de concre- çªo, jogos de linguagem que corres- pondem aos poemas concretos, Ø uma experiŒncia completamente no outro sentido, da proliferaçªo. Embora eu nªo esteja mais fazendo poesia concretista, nos termos daquela estØtica de culmi- naçªo (culminaçªo nªo no sentido de valorizaçªo axiológica, mas sim no sentido de radicalizaçªode toda uma poesia do Ocidente que viria desde MallarmØ), continuo fazendo uma poesia concreta no sentido lato. Trabalho com a materialidade da linguagem, numa gran- de diversidade de opçıes estilísticas, ocasiıes concretas de linguagem atua- lizadas em dicçıes diferentes. Daí por que, por exemplo, se em determinado momento a situaçªo sobre a qual o poema incide Ø uma situaçªo lírica, eu trabalho com uma dicçªo lírica. CULT Em que medida as cele- braçıes, evocaçıes de Crisantempo, sªo o paideuma de Haroldo de Campos? H.C. Crisantempo tem um paideuma embutido que serve quase como uma rosÆcea de referŒncias. HÆ nele linhas de formaçªo do poeta que se traduzem em algumas escolhas. É claro que eu tenho uma influŒncia muito definida, nesse particular, do Pound. Mas hÆ tambØm diferenças, algumas vezes atØ bastante grandes. E nªo estou falando do lado político, que isso Ø evidente. Falo do lado estØtico. Pound nunca compreendeu o barroco. Ele criticava Gôngora, nªo aceitava Milton, que pode ser consi- derado um maneirista, de certa maneira um barroco tambØm. Pound tinha outras escolhas na literatura inglesa, valorizava muito os tradutores de Homero. Eu dou imensa importância ao barroco, mas nªo tenho, em relaçªo ao Pound, a postura de um Harold Bloom. Bloom privilegia justamente a tradiçªo contra a qual Pound se insurgiu, que era a tradiçªo de Milton. Pound nªo aceitava Milton porque, dizia, escreve um inglŒs como se fosse latim, fazendo aquelas inversıes. A tradiçªo de Bloom Ø a do grande romantismo, Mil- ton, Blake, Keats, depois Yeats, Wallace Stevens, Elizabeth Bishop, que exclui toda linha Pound-Eliot, que privilegiou os poetas metafísicos. Meu dissídio com Pound, no barroco, nªo implica aceitar as propostas de Bloom, muito interes- sante nas formulaçıes críticas, na meta- linguagem, mas tradicional e reacionÆrio nas escolhas. É bom lembrar que ele Ø tradicional no sentido sublime. Nªo se pode confundir o seu tradicionalismo com o das revistas literÆrias americanas. CULT Qual a relaçªo entre esse tradicionalismo e aquele que chega ao pœblico por meio das revistas literÆrias? H.C. VocŒ nªo vŒ a vanguarda poØtica americana nas revistas normais, nem nas mais sofisticadas, tipo New York Review of Books. Elas publicam poemas sempre dentro dessa tradiçªo neo-romântica, que significa conservadorismo em termos poØticos. Seria como se as revistas e jornais brasileiros privilegiassem uma produçªo romântica tipo Augusto Frederico Schmidt. É como se, de repente, o tom da literatura brasileira fosse dado por esse poeta. Na Øpoca da revista Clima, o tom era Frederico Augusto Schmidt. Basta ver a coleçªo. A revista o elogiava como o poeta, apesar do fato de ser um poeta reacionÆrio, um homem de direita. Nªo vou fazer esse juízo moralista agosto/98 - CULT 21 poema qohelØtico 2: elogio da tØrmita os cupins se apoderaram da biblioteca ouço o seu Æfono rumor o canto zero das tØrmitas os homens desertaram a biblioteca palavras transformadas em papel os cupins ocupam o lugar dos homens gulosos de papel peritos em celulose o orgulho dos homens se abate madeira roída tudo Ø vªo a lepra dos cupins corrói o papel os livros o gorgulho mina o orgulho assim ficaremos cadÆveres verminosos escrevo este elogio da tØrmita (Nota do autor: QohØlet, O-que-sabe, Ø o nome hebraico do autor anônimo do livro bíblico conhecido como Eclesiastes) Extraído de Crisantempo Nesse trecho da entrevista, Haroldo de Campos explica seu projeto de uma antologia da poesia de invençªo. Eu nunca deixei morrer a idØia de fazer uma antologia da poesia brasileira de invençªo, esboçada no livro A arte no horizonte do provÆvel. Com a colaboraçªo do NØlson Ascher e da tradutora Regina Alfarano, jÆ estou preparando uma pri- meira versªo abreviada dessa antologia. Seria a tentativa de ver a diacronia da poesia brasileira do ponto de vista sincrônico, ou seja, a poesia do passado vista com olhos do presente, mas nªo sem considerar o contexto do passado. Haveria uma dimensªo histórica, em que o toque de escolha seria dado pela pervivŒncia dos poemas. Um poeta como o alemªo Klopstock, que fez O Messias, nªo tem pervivŒncia, embora tenha im- portância. Agora Goethe tem impor- tância e pervivŒncia. O Fausto Ø o Finnegans wake da Øpoca de Goethe, considerado ininteligível. Eu faria uma antologia em que leria todo o passado desde Anchieta (que tem coisas interessantes entre o mundo medieval e prØ-barroco, o uso de vÆrias línguas, tupi, latim, espanhol, portuguŒs, algumas coisas com sabor de Gil Vicente). Passaria tambØm por todos os demais, o barroco, os Ærcades. Cartas chilenas, por exemplo, seria obrigatório. Botelho de Oliveira, que Ø muito menos considerado que Gregório, tem de entrar. Ele era mesmo um artesªo, como obser- vava MÆrio Faustino. Os poetas entrariam dentro dessa escolha sincrônica e, em anexo, teríamos as pedras de toque: em vez de um poema inteiro, que na sua in- teireza Ø chato, vocŒ escolhe as pedras de toque, recorta determinados versos para mostrar a incidŒncia da modernidade mesmo onde aquele poeta desenvolve uma dicçªo tradicional. AlØm disso, darei lugar, em pØ de igualdade, aos tradutores. O Gonçalves Dias tem uma traduçªo do Heine que Ø desprezada. Numa antolo- gia de Gonçalves Dias, poderia nªo colocar alguns daqueles famosos poemas indianistas. A Cançªo do exílio nªo me diz nada, foi corroída pelo tempo. Mas Gonçalves Dias tem uma outra parte da obra muito interessante, aliÆs muito bem salientada por Antonio Candido, que faz uma boa abordagem do seu legado, apon- tando inclusive o pesado lastro da prosa alemª. Eu jÆ fiz tambØm uma leitura extensa do Fagundes Varela e jÆ tenho idØia de como escolher Castro Alves. O Castro Alves Ø muito visto sob aquela coisa retórica da poesia abolicionista. Acho, por exemplo, que, como poesia abolicionista, a de Castro Alves nªo Ø a mais interessante. E sim a de um poeta negro, Luís Gama, que fez a famosa sÆtira A bodarrada, uma das coisas mais violentas jÆ escritas, na qual ele arrasa com a prosÆpia dos nobres, dos brancos, fazendo uma coisa corrosiva, diretamente influenciada por Gregório de Matos. Na antologia, eu colocaria A bodarrada na íntegra. A poesia do passado vista com olhos do presente agosto/98 - CULT 21 CULT - agosto/9822 e ideológico, porque se ele fosse reacionÆrio e um bom poeta Mas era um mau poeta. Chegavam a pôr poeta com pŒ maiœsculo, que Ø o que fazem quando nªo sabem explicar por que o poeta Ø bom. A revista Clima Ø uma legenda nªo decodificada, as pessoas a aceitam em bloco. Nunca nin- guØm foi ver o que estÆ escrito lÆ, os artigos, as posiçıes tomadas, os poetas que eles publicavam. É só ver A revista Clima chegou a celebrar um poetaço, o Rossini Camargo Guarnieri, tratado como um futuro Drummond, nªo vou dizer nem por quem. E Ø uma revista da dØcada de 40. Se fosse uma revista do romantismo alemªo! Eu jÆ comprei vÆrios exemplares em sebo e tenho toda a revista xero- copiada, porque estou interessado em discutir esses assuntos, mas sem respeito reverencial. Nªo sou movido por respeito reverencial, sou movido por amore, amor à poesia. À poesia e ao fato. Dife- rentemente das publicaçıes quase oficiais desse romantismo de diluiçªo. E o Bloom Ø hoje o grande responsÆvel por isso, no foro universitÆrio. Ao privilegiar o grande romantismo e excluir a outra linha, ele acaba oferecendo os funda- mentos ao alicerce dessa gente medíocre. O Bloom Ø um crítico de formulaçıes brilhantes, mas nªo Ø um analista de texto. Ele trabalha com temas que muitas vezes conforma às suas teorias. Num certo sentido, para ser polŒmico e fazer uma brincadeira, ele Ø o exemplo de mau crítico, do ponto de vista do Pound, que Ø aquele que chama atençªo antes para suas idØias do que para os textos que analisa.Isso Ø uma pequena digressªo CULT Voltemos às suas escolhas pessoais, de certo modo refletidas em Crisantempo H.C. O barroco Ø algo fundamental para mim, com suas vÆrias literaturas, Sor Juana InØs de la Cruz, Gregório de Matos e a herança fantÆstica hispanoamericana. Eu tenho outras leituras de interesse que Pound nªo teve. A poesia hebraica, por exemplo, que estudei por seis anos. TambØm entrei por uma vanguarda alemª que nunca interessou especificamente ao Pound. Ele tinha as preferŒncias dele, os provençais, Dante, aquela linha de língua inglesa que estÆ no ABC da literatura, os gregos e latinos, sobretudo Catulo e HorÆcio, PropØrcio e a linha coloquial, irônica, do simbolismo francŒs. Esse Ø o grande contorno. Nªo apreciava Petrarca, nªo apreciava Virgílio, apreciava Ovídio. Embora, nesse particular, me considere um aluno desse paideuma poundiano, eu me interessei por poesia russa, que nªo esteve no endereço do Pound. Entªo eu posso dizer que tenho um paideuma meu, instigado, inspirado na idØia de paideuma que Pound veicula, que corresponde mais ou menos àquela idØia da Bildung [for- maçªo] que vem desde Goethe. A edu- caçªo dos sentidos Ø a finalidade da história universal. Quanto mais mœsica uma pessoa ouve, mais ela pode apreciar mœsica. Se vocŒ Ø ouvinte de Bach, vocŒ entende melhor Schoenberg do que uma pessoa que nunca ouviu Bach. Se vocŒ conhece os œltimos quartetos de Beethoven, terÆ uma sensibilidade para a mœsica atonal que nªo teria se nªo tivesse contato com essa tradiçªo. CULT Como se deu a aproximaçªo com a poesia russa, tªo cara aos poetas concretos? H.C. Houve uma sØrie de conjunçıes favorÆveis a isso. Nós nªo chegamos ao formalismo russo atravØs dos franceses. No Brasil havia fermentos para esse interesse. Um deles era o fato do Mattoso Câmara ter sido aluno de Jakobson, na Øpoca em que esteve em Nova York. Entªo nós tínhamos aqui o principal lingüista e fonólogo brasileiro, discípulo de Jakobson, difundindo a existŒncia da Escola de Praga. Tivemos tambØm a felicidade de termos uma pessoa como o Boris Schnaiderman, que escrevia sobre mØtodo formal no Suplemento LiterÆrio do jornal O Estado de S. Paulo. Conheço o Boris atravØs disso e ficamos amigos para a vida inteira. Isso foi na dØcada de 60. Eu estava traduzindo Maiakóvski com imenso sacrifício. Fazia um curso na Uniªo Cultural Brasil-Rœssia, onde a professora nªo sabia nada de literatura, só de conversaçªo. E eu nªo estava interessado exatamente nisso. Quando procurei o Boris, minha traduçªo do poema sobre IessiŒnin estava quase pronta, e ele ficou espantado com o trabalho que eu jÆ vinha fazendo, me ajudou a resolver algumas estrofes e me ofereceu aulas de russo por quase dois anos. Entªo todos esses fatores existiam, mais o ideológico. Sem forma revolucionÆria nªo hÆ arte revolucionÆria. Nas propostas do formalismo russo, a semântica existia, só que era pensada numa dialØtica de forma e conteœdo. Mais tarde pude conhecer pessoalmente o Jakobson, nos Estados Unidos. Depois ele fez uma memorÆvel visita ao Brasil. agosto/98 - CULT 23 o poeta ezra pound desce aos infernos nªo para o limbo dos que jamais foram vivos nem mesmo para o purgatório dos que esperam mas para o inferno dos que perseveram no erro apesar de alguma contriçªo tardia e da silente senectude diretamente com retitude o velho ez jÆ fantasma de si mesmo e em tanta danaçªo quanto fulgor de paraíso Extraído de Crisantempo agosto/98 - CULT 23 Haroldo de Campos nega que o moder- nismo tenha se esgotado e afirma que uma nova vanguarda pode brotar do atual contexto pós- utópico. Eu nªo aceito o termo pós-moderno. Acho que nós ainda estamos na moder- nidade, a nªo ser que se entenda que Mal- larmØ jÆ Ø pós-moderno em relaçªo a Baudelaire. Nós estamos numa fase espe- cífica, que eu chamo de pós-utópica, que poderÆ ser modificada numa outra cir- cunstância, como na Rœssia ou na China. Eu nªo vejo, no momento, nenhuma van- guarda possível na poesia do Ocidente. Mas vejo outras possibilidades. A Uniªo SoviØtica ficou privada da tradiçªo de vanguarda durante anos e anos por causa da incidŒncia do stalinismo e daquelas prÆticas repressivas. Agora, na Rœssia que emergiu da queda do regime, os poetas estªo fermentando. Nada obsta que amanhª um movimento de vanguarda surja lÆ. Porque lÆ a ocasiªo estÆ propícia, Nós ainda estamos na modernidade existe um horizonte coletivo que pode mobilizar. Outro lugar onde acho que pode estar acontecendo coisas interes- santes Ø na China, que tem uma literatura poØtica muito curiosa. O país teve uma revoluçªo poØtica praticamente contem- porânea ao Imagismo e influenciada por um discípulo de Ezra Pound. Um poeta chinŒs chamado Hu Shi, que foi aluno de universidades americanas no período em que estava sendo publicado o manifesto dos imagistas, voltou para a China, tornou-se professor de literatura e lançou em 1919 um manifesto de oito pontos, sendo que num deles defendia o uso da linguagem cotidiana. Foi uma reversªo: os princípios do Pound, derivados da estØtica de concisªo chinesa e japonesa, estavam voltando à China atravØs desse discípulo. Foi a partir daí que começaram a aparecer poetas dos mais diferentes matizes, um deles famoso tradutor de poemas de Rilke. Mas, com a revoluçªo comunista, o leque de opçıes foi cortado, com os poetas levados a fazer realismo socialista, poesia proletÆria, aquela coisa de homenagem ao líder. E os poetas que queriam fazer experiŒncias foram calados. De repente, surge esse grupo que foi reprimido na Praça da Paz. Uns os chamavam de poetas hermØticos, obscu- ros. Os adversÆrios os chamavam de poetas obscurantistas, porque nªo faziam aquela poesia de louvaçªo e sim uma poesia cheia de dramas metafísicos, inquietaçıes, aquela coisa niilista. Para nós, no Ocidente, nªo hÆ novidade nenhuma, mas para eles era uma coisa extraordinariamente nova. Daqui a uns dez anos, esses poetas todos, que hoje estªo nos Estados Unidos e na Europa, estarªo de volta. Nªo se trata de uma diÆspora em que a pessoa vai ficar no exílio, na escolha do exílio, como Pound e Joyce. Na primeira oportunidade eles estarªo de volta e, de repente, podem fazer uma nova vanguarda. CULT - agosto/9824 CULT Quando foi isso? H.C. Foi em 68. Ele adorou. Gostou mais de Sªo Paulo do que de qualquer outro lugar. Era um homem muito urbano, tinha muita experiŒncia em grandes capitais, era uma espØcie de judeu errante. Aqui ele reviu o Mattoso Câ- mara. Uma das conferŒncias dele ia ser na Biblioteca Municipal, mas o pœblico nªo cabia na sala. Entªo Jakobson foi da Biblioteca atØ a Aliança Francesa a pØ [onde se deu a conferŒncia]. Foi uma verdadeira passeata com o Jakobson à frente e em pleno 68! CULT Uma coisa interessante ob- servada a partir de Crisantempo Ø que vocŒ estÆ sempre agregando novos nomes, como no caso dos poetas israelenses. H.C. Nesse meu livro, eu ponho algumas traduçıes numa seçªo que eu chamo de Transluminuras, que vem desde o meu livro anterior, A educaçªo dos cinco sentidos. Sªo traduçıes que nªo cabem especificamente em nenhum livro, algumas delas marcadamente para- frÆsicas. HÆ aquela traduçªo de HorÆcio [Ad Pyrrham] em que faço toda uma modificaçªo estrófica, onde uso um falso latim, duplex, latex, a rosicama do teu duplex HÆ tambØm algumas tradu- çıes de poesia japonesa, inclusive de um poeta meu amigo, Gozo Yoshimasu. Finalmente, na seçªo Israel, mostro alguns poemas sobre cidades e templos daquele país e algumas traduçıes, as primeiras que fiz de poetas israelenses modernos. Estive com todos eles, à exceçªo de Amir Guilboa, que jÆ faleceu. Dentre esses poetas, Guilboa tem a minha preferŒncia pela sua radicalidade. Um poema dessa sØrie Ø dedicado a IehudÆ Amihai, que Ø considerado o maior de todos eles. O mais interessante Ø que a maioria
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