a invasão é a razão principal pela qual o situante faz declaração de sua posse ao INCRA, combinada com pagamento anual de imposto. Ele imagina ser esse o único instrumento de garantia contra o esbulho da fazenda. No entanto, o cadastramento no INCRA e o pagamento do imposto não geram garantias para o situante. Não é raro que o INCRA receba pagamento do posseiro e do formador de fazenda em relação a um mesmo pedaço de terra.” (p. 144) “O contínuo movimento de expansão da fazenda permite que o acréscimo de áreas cada vez maiores à área original. Além da compra de terceiros, nunca tem peso menor o fato de – invocando o parentesco, a morada de favor ou simplesmente exercendo a violência material – obter-se da terra que, efetivamente, pertencia a lavradores. Esses processos sociais são denominados turbação e esbulho. A semelhança de tais categorias com as explicações anteriores do que são ofensa e fecho não passa despercebida. Por turbação da posse entende-se todo fato impeditivo do livre uso da posse ou o exercício dela. Todo ato que, em relação à coisa, é executado contra a vontade do possuidor, consiste em turbações ou atos turbativos. (...)” (p. 145) “Por esbulho entende-se ato violento, em virtude do qual é uma pessoa despojada, contra sua vontade, daquilo que lhe pertence ou está em sua posse. É uma usurpação. Se a lei assegura ao usurpado ou esbulhado o direito imediato de defender sua posse, mediante ação de reintegração, que tem por objetivo integrá-lo na posse de que foi violentamente privado, esses procedimentos judiciais são extremamente morosos e empurram os litígios costumeiros para uma direção mais violenta.” (p. 145) “O confronto de formas distintas de apropriação da terra e a decisão sobre qual delas irá prevalecer está no âmago das invasões efetuadas em áreas de posses. O confronto entre os homens é sempre a forma inevitável, através da qual a agitação das diferentes práticas e verdades se dá e sobre qual delas deverá prevalecer. A iniciativa da invasão funciona como verdadeiro decreto de extinção de um modo de vida. O pequeno posseiro livre não tem mais que duas opções de sobrevivência: ou se subordina, para então ser alvo de todos os atos costumeiros e judicias da fazenda, que culminará com sua expulsão da mesma; ou resiste na terra, situação que pela extrema violência só pode ser praticada por uma grande coletividade de lavradores atingidos.” (p. 147) “O favor, enquanto procedimento dos fazendeiros, é ainda invocado para mostrar sua magnanimidade, sua generosidade onde deveria apenas aparecer a letra fria da lei; é mencionado constantemente. (...) Assim, nos momentos de maior violência, ainda banha a relação a concepção caridosa para com os ‘réus’, invertendo, até o último momento, os verdadeiros fundamentos da questão.” (p. 147) “(...) A tolerância existe porque a fluidez da apropriação da terra do posseiro convive com a fluidez da apropriação que caracteriza os chamados ‘fundos de fazenda’, onde se encontram terras não definidas do ponto de vista da propriedade privada jurídica, tornando a sua convivência ambígua. É a posição de poder do fazendeiro, na terra e nas próprias repartições – prefeitura e cartório – que permite manipular as implicações desse tipo de demanda, parecendo ser benevolente, quando no fundo não se tem pressa ou incerteza de que o desfecho da invasão só poderá lhe ser favorável. (...)” (p. 148) “(...) o território da caridade e o território das rupturas violentas. A alegação para o segundo tipo de procedimento é de que o posseiro seria, ele próprio, o iniciante da violência física: está armado e poderá resistir.” (p. 148) “Se não for cogitada pelo fazendeiro a destruição da roça pelo incêndio ou pela entrada do gado que a pisoteia e come, se não é decididamente possível concretizar a posse da terra, só resta ao situante uma saída: colher as benfeitorias. O lavrador que plantava sempre e muito planta cada vez mais, enche a terra de benfeitorias porque, se nem esta nem o trabalho são reconhecidos como livres e próprios, é a benfeitoria que encarna pela lei da natureza o que nasce, cresce, dá frutos, pelo trabalho humano nela embutido. Outros situantes virão a juntar-se ai esbulhado nessa tarefa. Esse verdadeiro mutirão de emergência se dá no âmago do confronto costumeiro, mas pode prosseguir durante uma ação judicial morosa. É um procedimento que reforça e magnifica a antiga solidariedade do ajutório, evidenciando que é no repertório dos costumes que um grupo social procura salvar seu sentido e sua continuidade. Por outro lado, ele caracteriza de modo irretorquível a natureza coletiva dos conflitos jurídicos. Ao olhar desprevenido, a reação do posseiro pode parecer uma luta individual e alienante; ao olhar atento, trata-se de atos e vontades coletivas, providos de um poder altamente mobilizador dos envolvidos e de toda a comunidade.” (p. 149) “Essas atitudes, interpretadas como resistências pelo fazendeiro, fazem-no iniciar uma ação de reintegração de posse, que salvaguarde os terrenos em litígio para sua futura apropriação privada. Mas, para que tal medida tenha suporte judicial, há que provar domínio da referida área. É, então, que as dificuldades se transportam, em definitivo, do plano costumeiro para o plano judicial propriamente dito.” (p. 149) “Se for provado domínio da terra, através de documentos, a reintegração de posse é liminarmente obtida. Para o situante sobram dois caminhos: 1) O fazendeiro permite amigavelmente a colheita das benfeitorias. Faz isso reativando a dívida simbólica: colher as benfeitorias é favor prestado àquele que, num momento imediatamente posterior, será expropriado. (...)” (p. 149/150) “2) Se o fazendeiro não puder comprovar o domínio da área plantada pelos situantes, ativa-se nestes a decisão de conduzir a disputa em termos de direitos na terra comum. São duas as formas de invoca-los: trata-se de avivar a memória social da comunidade de que sua condição de campesinato livre vem do tempo de seus avós ou bisavós; trata-se, em termos do Código Civil, de avivar na comunidade os artigos que formalizam as prerrogativas da posse. A força desses discursos vem justamente de sua soma. Num conhecido caso de resistência na terra, é esta dupla razão social que tem garantidos os fundamentos jurídicos de uma ação coletiva.” (p. 150) “(...) Chama-se agora contrato e ruptura contratual a relação que lhes permitia coexistir socialmente [fazendeiro e situante] e que, agora, se quer fazer desaparecer. As ações judiciais exprimem nuances sutis e variadas das contradições sociais existentes entre o controle da terra, para fins pastoris e de especulação imobiliária, e o controle da terra livre, para morar e plantar, que caracteriza a apropriação do situante. O repertório de categorias agitadas no desenvolvimento dos processos denota concepções e práticas inconciliáveis de identidade social. Conflitam-se ali dois modos de conceber a vida, sendo o flanco judicial um dos muitos espaços, onde opera essa tensão.” (p. 150/151) “Diferentemente do agregado, cujo poder jurídico se diversifica em função dos diversos planos em que a dominação do fazendeiro sobre ele se exercia, as questões de terra entre situantes e fazendeiros circunscrevem-se, judicialmente, à polêmica sobre quem tem ou não tem direitos de propriedade privada sobre a terra que ocupa. Na medida em que um documento forjado ou incompleto, nas mãos daquele que dominam pessoalmente a terra, é acenado como prova de propriedade contra quem nada possui por escrito, entre em cena um tipo de violência que dá ao portador de um papel poder jurídico e político contra aqueles que controlam a terra imemorialmente pela herança, pela morada e pela roça. Tal como o ‘papel assinado’, o ‘papel escrito’ funciona coativamente. Sua finalidade é ocultar a realidade do situ, em vez de revela-la. É um procedimento que conduz o situante à busca de provas materiais e testemunhais de que controlava determinada área de terra, firmando-se então, na sua teia de concepções, a ideia de que só a propriedade parcelar,