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Apple, Michael Currículo Oculto e a natureza do conflito

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Michael W. Apple
Professor de Currículo e Ensino
Universidade de Wisconsin
IDEOLOGIA
E
CURRÍCULO
1982
centenário de monteiro lobato
O currículo oculto
e a natureza do conflito
Sustentei no Capítulo l que, para entender a relação entre o
currículo e a reprodução cultural e económica, deveríamos abordar
mais completamente a preservação e o controle de determinadas
formas de ideologia, a hegemonia. Vimos agora como histórica e
presentemente algumas concepções normativas de cultura e valores
legítimos se introduziram no currículo. Entretanto, precisamos res-
saltar que^ijiejg£mojiiajé produzidae reproduzida pelo corpus formal
do conhecimento escolar, assim como pelo ensino oculto. Como as
citações de Williams indicaram um pouco acima, a tradição e incor-
poração seletivas atuam ao nível do conhecimento manifesto, de
modo que alguns significados e práticas são escolhidos como impor-
tantes (geralmente por um segmento da classe média1 ) e outros são
menosprezados, excluídos, diluídos ou reinterpretados. Da mesma
forma como muitos educadores e especialistas em currículo per-
deram a noção de suas origens históricas nos interesses de se manter
numa visão
de uma sociedade estratificada por classe e por critérios de "compe-
tência", também a tradição seletiva opera hoje para negar a impor-
tância tanto do conflito quanto da disputa ideológica séria. O que
em geral se constituiu no passado em um esforço consciente da
(1) Ver em especial a análise de Basil Bernstein em seu novo capítulo "As-
pects of the Relation between Education and Production". Class, Codes and Control.
Volume 3: Towards a Tfteory of Educational Transmissions, 2. ed. London, Rou-
tíedge & Kegan Paul, 1977.
126 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRÍCULO 127
burguesia de criar um consenso que não havia, tornou-se a única
interpretação viável das possibilidades sociais e intelectuais. O que
era a princípio uma ideologia na forma de interesses de classe
passou a ser agora a definição da situação na maioria dos currículos
escolares. Devemos analisar isso examinando alguns aspectos do
corpus formal do conhecimento escolar e ver como o que se passa
dentro da caixa negra cria as consequências que os teóricos da
reprodução económica procuraram descrever. Mais uma vez, nossa
visão da ciência desempenhará um papel interessante e, neste caso,
mais direto.
Antes de prosseguir, porém, é importante observar que, para
que a escola continue a desempenhar de maneira relativamente
suave seus papéis históricos complexos, na maximização da produ-
ção de conhedimento técnico e na sociabilização dos estudantes com
a estrutura normativa exigida por nossa sociedade, ela tem de reali-
zar uma outra coisa que se relaciona com ambos os papéis e ajuda a
sustentá-los: tem de tornar legítima uma perspectiva basicamente
técnica, uma tensão da consciência que responde ao mundo social e
intelectual de maneira acrítica. Ou seja, a escola precisa fazer com
! que tudo isso pareça natural. Uma sociedade baseada no capital
cultural técnico e na acumulação individual do capital económico
precisa mostrar-se como se fora o único mundo possível. Parte do
papel da escola, em outras palavras, é contribuir para a distribuição
do que os teóricos críticos da Escola de Frankfurt poderiam chamar
de padrões utilitário-racionais de pensamento e ação.
Este é um elemento importante na hegemonia ideológica,
pois, como se observou no Capítulo 3, para que se mantenham as
definições de situações de estudantes (como aquelas transmitidas em
sua experiência escolar inicial), essas definições precisam ser cons-
tantemeníe confirmadas. Naturalmente, essa confirmação deve
acarretar uma continuação dos padrões de interação que prevalecem
no jardim de infância. Mas, unia vez que os estudantes, à medida
que crescem, podem raciocinar verbalmente com alguma facilidade
e podem refletir sobre aspectos de suas condições sociais e culturais,
o próprio conteúdo do currículo adquire importância ainda maior.
É necessário haver uma justificação constante e cada vez mais
aperfeiçoada para a aceitação das distinções e papéis sociais ante-
riormente aprendidos. Essa justificação precisa estabelecer os limi-
tes ideológicos de uma abordagem como essa, incorporando formas
"adequadas" com as quais os estudantes possam começar a racio-
cinar, através da lógica, por que são de fato legítimas as instituições
e a cultura com que interagem cotidianamente. Isso exige que as
instituições, as regras do senso comum e o conhecimento sejam
vistos como relativamente pré-dados, neutros e basicamente inalte-
ráveis, pois todos continuam a existir por "consenso". Portanto, o
currículo deveria acentuar suposições hegemónicas, que ignoram a
atuação real do poder na vida cultural e social e que apontam para a
naturalidade de aceitação, prebendas institucionais e uma visão
positivista em que o conhecimento está desvinculado dos atores hu-
manos concretos que o criaram. A chave para pôr isso a descoberto,
creio, está no tratamento do conflito no currículo.
O conflito e o currículo oculto
O fato de as escolas normalmente mostrarem-se neutras e
serem patentemente isoladas dos processos políticos e do debate
ideológico tem apresentado qualidades tanto positivas quanto nega-
tivas. O isolamento serviu para defender a escola de caprichos ou
modismos que em geral exercem um efeito destrutivo sobre a prática
educacional. Também pode, no entanto, tornar a escola muito
insensível às necessidades das comunidades locais e a uma ordem
social em mudança. Os prós e contras da escola como uma insti-
tuição "conservadora" têm encontrado discussão inflamada em
torno dos últimos dez anos. Entre os mais notáveis dos interlocu-
tores encontram-se Edgard Z. Friedenberg e o Jules Henry maduro.
à parte das discussões do ensino de normas relacionadas ao traba-
lho, o ensino oculto de uma ética da eficiência e do mercado e a
provável substituição de um sistema de valores de "classe média" e
em geral "esquizofrênico" pelos próprios significados biográficos de
um estudante têm sido alguns dos tópicos mais frequentemente
postos em análise. Como vimos, boa parte do enfoque tem incidido
no que Jackson com muita propriedade rotulou de "currículo
oculto" — ou seja, nas normas e valores que são implícita porém
efetivarnente transmitidos pelas escolas e que habitualmente nãosjlo
mencionados na apresentação feita pelos professores dos f instou
objetivos. De maneira semelhante à que se encontra no Capítulo 3,
embora sem a mesma orientação política, Jackson trata amplamente
da forma como os estudantes aprendem a enfrentar os sistemas de
panelas burocráticas, recompensa e poder nas saias de aula: a larga
margem de espera que as crianças são obrigadas a sofrer, o pro-
fessor como o primeiro "patrão" da criança, e da forma como as
128 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRÍCULO 129
crianças aprendem a dissimular alguns aspectos de seu comporta-
mento para se adaptarem ao sistema de recompensas existente na
maioria das salas de aula.2
Essas críticas da visão de mundo ideológica legitimada nas
escolas são incisivas, embora tenham deixado de enfocar uma carac-
terística predominante da escolarização corrente que contribui signi-
ficativamente para manter a hegemonia. Até agora é pouco o exame
sobre o modo como o tratamento do conflito no currículo escolar
pode conduzir a um quietismo político e à aceitação por parte dos
estudantes de uma perspectiva do conflito social e intelectual que
atua para manter a distribuição existente de poder e racionalidade
numa sociedade. Além de seu apoio às funções de formação e socia-
bilização da escolarização, o tema do conflito é decisivo por duas
razões. O modo como é abordado ajuda a postular o sentido do
estudante dos meios legítimos de adquirir recursos em sociedades
estratificadas. Isso tem e terá cada vez maisimportância em áreas
de classe operária e urbana. Pode ser muito premente que os estu-
dantes oriundos da classe operária e urbana, entre outras, desen-
volvam perspectivas positivas quanto ao conflito e à mudança, pers-
pectivas que lhes possibilitem lidar com realidades políticas e a
dinâmica do poder de sua sociedade, complexas e frequentemente
repressoras, de maneira menos propensa a preservar os modos de
interação institucionais comuns.3 Também há sugestões programá-
ticas específicas que poderiam ser instituídas de modo razoavel-
mente imediato nos programas escolares para minorar alguns dos
problemas (e que poderiam ser experimentadas também por razões
táticas).
Pode-se aprender um pouco a respeito da importância do
ensino tácito ou oculto dos textos sobre a sociabilização política.
Está começando a ficar claro que o "aprendizado incidental" con-
tribui mais para a sociabilização política de um estudante que, di-
gamos, as aulas de Educação Moral e Cívica ou outras formas de
ensino deliberado de orientação de valor específicas.4 Ensina-se às
(2) Philip Jackson. Life in Classrooms. New York, Holt, Rinehart & Winston,
1968, p. 3-37.
(3) Cf. Peter K. Eisinger. "Protest Behavior and the Integratíon of Urban
Political Systems". Madison, University of Wisconsin Instituto for Research on
Poverty, 1970, mimeo.
(4) Roberta Sigel (ed.). Leaming About Politics. New York, Random House,
1970, p. xiii.
crianças como lidar e se relacionar com a estrutura de autoridade da
coletividade a que pertencem por meio de padrões de interação a
que estão expostas até um certo ponto nas escolas.
Evidentemente, não é apenas a escola que contribui para o
"ajustamento à autoridade" por parte de um estudante. Por exem-
plo, grupos de companheiros e em especial a família, através de suas
práticas de educação e de seu estilo de interação interpessoal, podem
afetar profundamente a orientação geral de uma criança para com a
autoridade.5 No entanto, existe um forte indício nas últimas pes-
quisas de que as escolas são antes rivais acirrados da família como
agentes importantes de sociabilização política. Como expresso por
Sigel:6
[Há] provavelmente pouca dúvida de que as escolas públicas são um
núcleo de alternativas de escolhas mais para o tradicional que o
inovador, e menos para o radical. Conseqúentemente, facilitam a
sociabilização política dos jovens de posições não radicais e tendem a
muni-los com os instrumentos necessários para os papéis específicos
que se espera venham a desempenhar numa dada sociedade. Ê possí-
vel indispor-se com os papéis diferenciais que o governo e as escolas
atribuem aos estudantes, mas é provável que seria consideravelmente
mais difícil negar a eficácia da escola.
(5) Md., p. 104.
(6) Ibid., p. 316. Uma afirmação como essa é tanto realista quanto crítica.
De uma certa forma, os críticos das escolas (e este autor em grande parte) são
apanhados num dilema. É muito fácil denegrir as estruturas "educacionais" exis-
tentes (afinal, todos parecem fazê-lo); no entanto, não é muito fácil apresentar
estruturas alternativas. Aquele que apresentar reformas graduais para algumas das
condições mais enfraquecedoras corre o risco de na verdade ajudar a estabelecer e a
perpetuar o que pode muito bem ser um conjunto ultrapassado de programas insti-
tucionais. No entanto, não procurar melhorar as condições de formas que em geral
são modestas e experimentais é ignorar os seres humanos concretos que habitam as
escolas durante a maior parte de sua vida antes da idade adulta. Portanto, tenta-se
atuar dos dois lados da luta. Criticam-se as suposições ideológicas e económicas
fundamentais que circundam as escolas da fornia como se encontram hoje e, ao mesmo
tempo, paradoxalmente tenta-se tornar essas mesmas instituições um pouco mais
humanas, um pouco mais educativas. Ê uma posição ambígua, mas, afinal, assim é
qualquer situação geral. Minha discussão da natureza e da necessidade de conflito e
do ensino tácito que o acompanha mostra essa ambiguidade. No entanto, se a edu-
cação em particular tem alguma importância (e aqui se deve ler política e económica),
então deveriam ser efetuadas mudanças concretas agora enquanto estão sendo arti-
culadas as críticas mais básicas. Uma não é desculpa para a outra.
130 MICHAEL W. APPLE
Dever-se-ia afirmar que as considerações negativas quanto ao
conflito ultrapassam a forma social com a qual é abertamente consi-
derado em qualquer matéria, em Estudos Sociais, por exemplo, área
em que geralmente se encontra material e ensino a respeito de situa-
ções de conflito. Pelo contrário, abordagem negativa e muito irrealis-
ta parece endémica a muitas áreas, e especialmente às ciências, área
em geral associada à objetividade e ao conflito não interpessoal.
Está se tornando cada vez mais claro que o corpus formal do
conhecimento escolar encontrado, digamos, nos livros de história e
em textos e material de Estudos Sociais vem apresentando, há anos,
uma visão um tanto tendenciosa da verdadeira natureza do volume e
do uso possível da competição destrutiva em que se empenharam
grupos deste e de outros países. O nosso lado é o bom; o deles, o
ruim. "Nós" somos pela paz e queremos pôr um fim à luta; "eles"
são amantes da guerra e visam dominar. A lista poderia ser am-
pliada consideravelmente, em especial no que toca a questões de
raça e de classe.7 Precisamos ultrapassar este tipo de análise, ultra-
passar inclusive a obra dos historiadores revisionistas, cientistas
políticos, estudantes de sociabilização política e educadores, para
alcançar muitas das origens do ensino dessa orientação dominante.
Examinarei aqui duas áreas específicas — Estudos Sociais e Ciên-
cias. Procedendo assim, demonstrarei que a apresentação dessas
duas áreas (entre outras) nas escolas espelha e cria uma ideologia
que é orientada para uma visão estática: em Estudos Sociais, das
funções construtivas e até mesmo essenciais do conflito social; e, em
Ciências, da natureza do trabalho e o discurso científicos e do que se
j chamou de ciência nas escolas é particularmente interessante, uma
i vez que é essencialmente um arquétipo da posição ideológica quanto
ao conflito que desejo esclarecer.
Duas suposições tácitas parecem ser proeminentes no ensino e
nos materiais curriculares. A primeira centra-se numa posição nega-
/ tiva quanto à natureza e aos usos do conflito. A segunda enfoca
j homens e mulheres enquanto receptáculos de valores e instituições,
/ não como homens e mulheres como produzindo e reproduzindo
' valores e instituições. Essas suposições atuam como o parâmetro que
organiza experiências.
(7) Ver, por exemplo, Edith F. Gibson. "The Three D's: Distortion, Deletion,
Denial". Social Education, XXXIII (April 1969), 405-9; e Sidney M. Willhelm. Who
Needs theNegro?, Cambridge, Mass., Schenkman, 1970.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO
Regras básicas e suposições tácitas
131
O conceito de hegemonia implica que os padrões fundamen-
tais numa sociedade são ligados por suposições ideológicas tácitas,
regras, se assim se quiser denominá-las, que em geral não são cons-
cientes, bem como por controle e poder económico. Essas regras
servem para organizar e legitimar a atividade de muitos indivíduos
cuja interação constitui uma ordem social. Analiticamente, é útil
distinguir dois tipos de regras — constitutivasoubásicas e de prefe-
rência.8 As regras Básicas são como as regras de um jogo, são vastos
parâmetros em que se dá a ação. As regras de preferência, como o
nome sugere, são as opções que se têm nas regras do jogo. Tome-se o
caso do xadrez, por exemplo. Há regras fundamentais básicas (que
geralmente não são levadas a um nível de consciência) que diferen-
ciam o jogo de xadrez, digamos, do jogo de damas ou de outros jogos
que façam ou não uso do tabuleiro. E, no jogo de xadrez, há esco-
lhas dos movimentosque podem ser feitos dentro desse parâmetro
constitutivo. As escolhas possíveis para os peões incluem mover para
a frente (exceto ao "comer" uma pedra do adversário), as torres
movem-se para a frente ou para os lados, e assim por diante. Se o
peão de um adversário estivesse para saltar sobre três pedras para
colocá-lo em cheque, então é claro que ele não estaria seguindo as
"regras do jogo", nem estaria tampouco seguindo as regras tacita-
mente aceitas se, digamos, varresse todas as peças do tabuleiro e
gritasse: "Ganhei!".
No nível mais amplo, uma das regras constitutivas predomi-
nantes em nossa sociedade implica a noção de confiança. Quando
estamos dirigindo o carro por uma rua, confiamos em que o carro
que se aproxima da direção oposta ficará na sua faixa. A menos que
haja uma clara manifestação de desvio dessa regra, nunca traremos
ao nível da consciência como essa regra básica de atividade organiza
nossas vidas.9 Uma regra semelhante é a que postula os limites
(8) Helen McClure e George Fischer. "Ideology and Opinion Making: Gene-
ral Problems of Analysis". New York, Columbia University Bureau of Applied Social
Research, July 1969, mimeo.
(9) A linguagem das "regras de atividade" é menos problemática do ponto de
vista analítico do que a distinção que frequentemente se faz entre pensamento e ação,
de vez que implica que a distinção é um tanto ingénua e permite que a ação — per-
ceptual, conceituai e física — seja a categoria fundamental da resposta de um indi-
víduo a sua situação. Embora usemos com frequência as regras de atividade e supo-
132 MICHAEL W. APPLE
0 /
' -l
legítimos do conflito. As regras do jogo implicitamente determinam
as fronteiras das atividades em que as pessoas se empenham ou não,
os tipos de questões a serem formuladas e a admissão ou rejeição das
atividades de outros.10 Dentro dessas fronteiras, existem escolhas
entre uma série de atividades. Podemos recorrer às cortes de justiça,
mas não bombardeá-las; podemos discutir, mas não duelar; e assim
por diante. Uma suposição básica parece ser a de que o conflito
entre grupos de pessoas é inerente e fundamentalmente mau e deve-
ríamos esforçar-nos para eliminá-lo dentro do quadro estabelecido
de instituições, em lugar de ver o conflito e a contradição como as
"forças propulsoras" básicas na sociedade.
Embora algumas das melhores escolas e salas de aula estejam,
em plena atividade com questões e controvérsias, as controvérsias
frequentemente apresentadas nas escolas dizem respeito a escolhas
dentro dos parâmetros de regras de atividade implicitamente susten-
tados. Pouca tentativa se fez para enfocar os próprios parâmetros.
O currículo oculto nas escolas serve para reforçar as regras
que cercam a natureza e os usos do conflito. Estabelece uma rede
de suposições que, quando interiorizadas pelos estudantes, determi-
nam os limites de legitimidade. Esse processo é realizado não tanto
gelos exemplos explícitosjque_mostram o valor negativo do conflito,
mas pela ausência quase total de exemplos que mostrem a impor-
tância do conflito intelectual e normativo em áreas de conhecimento.
O fato é que essas suposições são obrigatórias para os estudantes,
desde que em nenhum momento as suposições são expressas ou
questionadas. Pelo próprio fato de serem tácitas, de se fundamen-
tarem não no topo, mas na base de nossa mente, aumenta sua po-
tência como aspectos da hegemonia.
sições intercambiavelmente, dever-se-ia insistir que as suposições geralmente cono-
tam uma categoria de fenómenos menos inclusiva e são na verdade sinais dessas
regras e limites socialmente sedimentados que parecem afetar até mesmo nossas
percepções. Um estudo aprofundado dessas regras pode-se encontrar na literatura
etnometodológica e, naturalmente, no Wittgenstein velho. Veja-se, por exemplo,
>Harold Garfinkel. Studies in Ethnomethodology. Englewood Cliffs, N. J., Prentice-
Hall, 1967; e Ludwig Wittgenstein. Philosophical Investigations. New York, Mac-
millan, 1953.
(10) Basicamente, o "sistema" que muitos execram não é apenas uma inter-
relação organizada de instituições, mas uma estrutura de suposições fundamentais
que atuam numa relação dialética com essas instituições.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 133
Dreeben examinou algumas das relações entre as suposições
básicas dominantes numa coletividade e o currículo oculto da escola.
Sustenta que os estudantes aprendem tacitamente algumas normas
sociais identificáveis principalmente por tomarem parte nos encon-
tros e tarefas diárias da vida na sala de aula. Ê decisivo o fato de
essas normas aprendidas pelos estudantes se introduzirem em mui-
tas áreas da vida futura, de vez que ajuda a documentar como a
escolarização contribui para o ajustamento individual a uma ordem
social, política e económica vigente. Embora sua análise seja conser-
vadora, como vimos no Capítulo 2, ainda assim, para Dreeben, a
escolarização, o trabalho e a política nos Estados Unidos são bem
integrados. A primeira age como um distribuidor de uma forma de
racionalidade que, quando interiorizada pelo estudante, permite-lhe
atuar nas "instituições ocupacionais e políticas que contribuem para
a estabilidade de uma sociedade industrial", e em geral aceitá-las.n
jEstudo^Sociai§,e_Ci|ncias, conforme são ensinadas na grande
maioria das escolas, fornecem alguns dos exemplos mais explícitos
do ensino oculto. A minha escolha dessas áreas se deve a duas razões
Primeiro, tem se formado uma literatura muito vasta e importante
que está preocupada com a sociologia das áreas de conhecimento de
empenho científico. Essa literatura se ocupa com a "lógica em uso"
dos cientistas (ou seja, o que os cientistas parecem realmente fazer)
enquanto contrária à "lógica reconstruída" dos cientistas (ou seja,
o que os filósofos da ciência e outros observadores afirmam que
fazem os cientistas) que normalmente se ensina nas escolas.12 Se-
gundo, em Estudos Sociais os problemas que discutimos podem ser
esclarecidos de modo perfeito recorrendo-se a noções marxistas para
mostrar que não são inevitáveis as visões do senso comum da vida
social frequentemente encontradas no ensino de Estudos Sociais.
Examinemos inicialmente as Ciências. Assim fazendo, também
quero propor, como uma das sugestões que gostaria de fazer, con-
forme observei no Capítulo l, uma visão alternativa, ou, melhor,
mais ampla, do esforço científico que deveria ser tomada em consi-
deração por educadores e, especialmente, pelos que trabalham com
currículo, caso devam pelo menos enfocar as suposições ideológicas
(11) Robert Dreeben. On What Is Learned in Schools. Reading. Mass.,
Addison-Wesley, 1969, p. 144-5.
(12) Michael W. Apple. "Community, Knowledge and the Structure of Disci-
plines". TheEducationalFórum, XXXVII (November 1972), 75-82.
134 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRÍCULO 135
inerentes a muito do que se ensina em nossas instituições educa-
cionais.
O conflito em comunidades científicas
Uma de minhas teses básicas é que a ciência, como apresen-
tada na maioria das classes do curso primário e, em grande propor-
ção, do curso secundário, contribui para o aprendizado, por parte
dos estudantes, de uma perspectiva basicamente irrealista e essen-
cialmente .consgryadora quanto à utilidade do conflito. As áreas de
conhecimento científico são apresentadas como corpos de conhe-
cimento (os "quê" e "como"), no melhor dos casos organizados em
torno de algumas regularidades fundamentais como em muitos
currículos de áreas de conhecimento e centrados na pesquisa, desen-
volvidos após a "revolução Bruneriana" e, no pior dos casos, como
dados razoavelmente isolados que se dominam para testes. Quase
nunca é seriamente examinada como uma auto-realização. Exami-
nemos essa situação mais de perto.
Uma ciência não é "apenas" uma área de conhecimento ou
técnicas de descoberta e formulação de justificações;é um grupo (ou
melhor, grupos) de indivíduos, uma comunidade de estudiosos nos
termos de Polanyi, à procura de elaborar projetos mais amplos.13
Como todas as comunidades, é dirigida por normas, valores e prin-
cípios que são tanto manifestamente vistos como latentemente sen-
tidos. Por ser construída por indivíduos e grupos de estudiosos,
também possui uma história significativa de debate intelectual e
interpessoal. Em geral, o conflito é gerado pela introdução de um
. paradigma novo e quase sempre revolucionário que desafia as estru-
turas básicas de significado anteriormente aceitas pelo corpo de
cientistas, dividindo, desse modo, efetivamente a comunidade. Esses
debates estão relacionados aos modos de aquisição de conhecimento
verificável, ao que se deve considerar como exatamente científico,
aos próprios fundamentos básicos sobre os quais se sustém a ciência.
Também estão relacionados a situações como as de interpretações
conflitantes de dados, a da propriedade das descobertas e a muitas
outras questões.
(13) Michael Polanyi. Personal Knowledge. New York, Harper & Row, 1964.
No entanto, o que se pode encontrar nas escolas é uma pers-
pectiva que está próxima do que se tem chamado de o ideal posi-
tivista.14 Em nossas escolas, o trabalho científico está sempre taci-
tamente ligado aos padrões aceitos de validade e é visto (e ensinado)
como sujeito sempre à verificação empírica sem influências externas,
quer pessoais ou políticas. As diferentes posturas em ciência não
existem ou, se existem, são empregados critérios "objetivos" para
persuadir os cientistas de que um lado está correto e o outro errado.
Exatamente como ficará claro em nossa discussão do ensino de
Estudos Sociais, apresenta-se às crianças uma teoria consensual da
ciência, uma teoria que subestima as divergências sérias quanto a
metodologia, objetivos e outros elementos que formam os paradigmas
de atividade dos cientistas. Pelo fato de se mostrar constantemente
o consenso científico, não se permite que os estudantes vejam que,
sem discordância e controvérsia, a ciência não avançaria ou avança-
ria a um ritmo mais lento. A controvérsia não apenas estimula
descobertas por atrair a atenção de cientistas para problemas funda-
mentais ls mas também serve para elucidar posições intelectuais con-
flitantes. Essa questão encontrará mais referências adiante em nossa
discussão.
Uma outra questão também decisiva é a de que muito prova-
velmente o padrão de "objetividade" (é-se tentado a dizer "objeti-
vidade vulgar") que se apresenta e ensina nas escolas pode frequen-
temente levar a uma separação do compromisso político. Ou seja,
pode não se tratar de neutralidade como patentemente se declara,
mas, sim, um reflexo do profundo temor do conflito intelectual,
moral e político.16 O enfoque nas instituições educacionais do estu-
dante/cientista (que é em geral um observador passivo na maioria
das salas de aula, apesar da ênfase depositada na pesquisa pelos
teóricos e pelos especialistas em currículo) como um indivíduo que
verifica ou deduz racionalmente suposições comprovadas ou que
arma e verifica hipóteses ou o que seja, este enfoque distorce a
natureza do conflito que em geral ocorre entre os defensores de so-
(14) Warren Hagstrom. The Scientific Community. New York, Basic Books,
1965, p. 256.
(15) Ibid.,p.2(A.
(16) Alvin Gouldner. The Corning Crisis of Western Sociology. New York,
Basic Books, 1970, p. 102-3. Ver também Polanyi, op. cit.. Quanto às relações entre
concepções positivistas de objetividade e formas económicas e de transmissão, ver
Jurgen Habermas, Towards a Rational Society. Boston, Beacon Press, 1970.
136 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRÍCULO 137
luções, interpretações ou modos de procedimentos alternativos nas
comunidades científicas. Não pode possibilitar aos estudantes verem
as dimensões políticas do processo pelo qual os patrocinadores de
uma teoria alternativa vencem seus adversários. Tampouco pode
uma tal apresentação da ciência fazer mais do que ignorar siste-
maticamente a dimensão de poder implicada na retórica científica.
Não apenas se ignora o conflito histórico e contínuo entre
teorias contrárias nas áreas de conhecimento científico, mas tam-
bém tem se dado pouca ou nenhuma atenção ao fato de que a veri-
f ficação de hipóteses e a aplicação de critérios científicos existentes
\o insuficientes para explicar como e por que se faz uma escolha
/ entre teorias antagónicas. Há muitos contra-exemplos que desfigu-
ram essa visão da ciência.17 Há muito mais sentido em observar que
a própria ciência não é necessariamente de todo acumulativa, nem
procede de acordo com um critério básico do consenso, mas, sim,
; que é dirigida por revoluções conceituais que fazem com que grupos
Vde cientistas reorganizem e reconceituem os modelos com os quais
prpcuram entender e manipular o mundo.18
A história da ciência é e deveria ser [vista] como uma história de
posturas antagónicas (ou, caso se queira, de "paradigmas" confli-
tantes) mas não se tornou nem deve se tornar ~umãT sucessão de
períodos de ciência normal: quanto mais cedo inicie a luta, melhor
para o progresso.
Agora, não estou tentando levantar aqui uma causa em favor
de uma visão da ciência que declare que "objetividade" e "neutra-
(17) Thomas Kuhn. The Structure ofScientific Revolutions. 2. ed. Uniyersity
of Chicago Press, 1970. O trabalho germinal de Kuhn é submetido a análise mais
aguda, e discutido com refutação e contra-refutação em Imre Lakatos e Alan Mus-
Jjrave(orgs.). Criticism and the Growth ofKnowledge. New York, Oxford University
Press, 1970. Todo o volume é votado aos temas — epistemológicos e sociológicos —
levantados pelo livro de Kuhn. Ver também Stephen Toulmin, Human Unders-
tanding. Princeton University Press, 1972.
(18) Imre Lakatos. "Falsificatíon and the Methodology of Scientífic Re-
search Programmes". Criticism and the Growth ofKnowledge. Imre Lakatos e Alan
Musgrave (orgs.). New York, Oxford University Press, 1970, p. 155. A ciência normal
refere-se àquela ciência que possui acordo (consenso) quanto aos paradigmas básicos
de atividade a serem utilizados pelos cientistas para interpretar e influenciar suas
respectivas áreas. Ver Kuhn, op. cit., para uma análise intensiva da ciência normal e
da revolucionária.
lidade", procedimentos de verificação de hipóteses e de pesquisa
não sejam de importância suprema. O que estou dizendo é que a
argumentação científica e a contra-argumentação constituem uma
grande parte do empreendimento científico e que as teorias e os
modos de procedimento ("estruturas de área de conhecimentos",
caso se prefira) atuam como normas ou compromissos psicológicos
que conduzem a controvérsia intensa entre grupos de cientistas.19
Essa controvérsia é fundamental ao progresso em ciência, e é este
conflito constante que é ocultado aos estudantes.
Talvez essa questão possa ser esclarecida sondando-se mais
profundamente algumas das características das áreas de conheci-
mento científicas em geral ocultadas na visão do público e quase
nunca ensinadas nas escolas. Embora essa discussão tenha se cen-
trado no conflito nas áreas de conhecimento científicas, é algumas
vezes difícil separar o conflito da competição. Uma das omissões das
escolas é a falta de tratamento de qualquer tipo do "problema" da
competição na ciência. Competição quanto a prioridade e reconhe- v
cimento de novas descobertas é uma característica de todas as ciên- /
cias estabelecidas.20 Basta ler o relato que Watson faz, em The
DoubleHelix, de sua disputa com Linus Pauling pelo prémio Nobel
pela descoberta da estrutura do DNA, para se constatar quão in-
tensa pode ser a competitividade e quão humanos são os cientistas
como indivíduos e em grupos.
Pode-se também ver muito claramente a competição entre
especialistas numa área de conhecimento, nãonecessariamente
quanto às "fronteiras" do conhecimento, como no caso de Watson.
Aqui, como no futebol, a "mercadoria" (se posso falar metafori-
camente) são estudantes exemplares que podem ser recrutados para
aumentar o poder e o prestígio de uma especialidade em surgi-
mento. Existe uma competição constante, mas em geral oculta,
entre subáreas de conhecimento em ciência quanto ao que se mostra
(19) Apple, op. cit., e Michael Mulkay, "Some Aspects of Cultural Growth in
the Natural Sciences". Social Research, XXXVI (Spring 1969), 22-52.
(20) Hagstrom, op. cit., p. 81. É importante distinguir entre conflito e com-
petição. Ao passo que o conflito parece provir de algumas das condições que exa-
minamos ou examinaremos — novos paradigmas, divergência quanto a objetívos,
metodologia, etc. —, a competição parece ter suas bases no "sistema de troca" da
ciência. Ver, por exemplo, o exame de Storer do status do reconhecimento profis-
sional e da troca de mercadoria na comunidade científica, em Norman W. Storer.
The Social System of Science. New York, Holt, Rinehart & Winston, 1966, p. 78-9.
138 MICHAEL W. APPLE
como quantidades limitadas de prestígio à disposição. O conflito
aqui é decisivo. As áreas cujo prestígio é relativamente alto tendem a
arregimentar membros com muito talento. As áreas com prestígio
relativamente mais baixo podem ter um período muito difícil de
arregimentação de adeptos a seus interesses específicos. Realistica-
mente, um fator primordial, se não o fator mais importante, na
pesquisa científica de alto nível é o nível do estudante e da "mão-
de-obra" científica que uma especialidade possa recrutar. O prestí-
gio tem uma forte influência para atrair estudantes e pode ser
intensa a competição quanto ao prestígio relativo, em virtude dessas
consequências.21 Isto está evidentemente relacionado ao papel cul-
tural e económico da escola em identificar esses "trabalhadores"
que podem contribuir para a maximização do conhecimento.
Minha intenção aqui não é denegrir (embora, como obser-
varam Rose e Rose em seus últimos trabalhos, a atividade científica
pode e precisa avançar também através de uma posição ideológica
progressista compartilhada)22 nem apresentar uma visão demoníaca
da pesquisa em todas suas ramificações. Ê, antes, a de adotar uma
visão mais realista dessa pesquisa e os usos do conflito entre seus
praticantes. O conflito aqui é bastante "funcional". Induz os cien-
tistas em cada área a procurar estabelecer uma área de competência
em seus temas que lhes pertença especificamente. As pressões "com-
petitivas" às vezes também ajudam a assegurar que não sejam
menosprezadas as áreas de pesquisa menos populares. Ademais, o
forte elemento de competição na comunidade científica pode enco-
rajar seus membros a aceitar riscos, a ultrapassar seus competi-
dores, aumentando desse modo a possibilidade de novas excitantes
descobertas23 (embora também possa ter sido um fator para ignorar
as contribuições das mulheres na ciência, como demonstra a dis-
cussão de Olby das contribuições menosprezadas de Rosalind
Franklin à descoberta da estrutura do DNA).24
O conflito também é intensificado pela própria estrutura
normativa da comunidade científica. De fato, ela pode ser um
agente de contribuição significativo tanto para o conflito quanto
(21) Hagstrom, op. cit., p. 130 e 173.
(22) Hilary Rose e Steven Rose (orgs.). The Radicalization of Science. Lon-
don, Macmillan, 1976.
(23) Hagstrom, op. cit., p. 82-3.
(24) Ver Robert Olby. The Path to the Double Helix. Seattle, University of
Washington Press, 1974.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 139
para a competição. Entre as muitas normas que orientam o compor-
tamento dos cientistas, talvez a mais importante para nossa dis-
cussão aqui seja a do ceticismo lógico. Storer o define como segue:M
Essa norma é diretiva, incorporando o princípio de que cada cientista
deveria se manter individualmente responsável por garantir a vali-
dade da pesquisa anterior realizada por outros na qual ele se baseia.
Não pode ser desculpado por ter aceitado uma ideia falsa e depois
alegado inocência "porque o Dr. X disse-me que era verdade". Mes-
mo se em particular não pudermos acusá-lo de intencionalmente ter
substituído a verdade pelo erro, ele deveria ter sido devidamente
célico quanto ao trabalho do Dr. X desde o começo. (...)
O cientista é obrigado também por essa norma a tornar públicas suas
críticas do trabalho de outros quando julga que caíram em erro. (...)
Segue-se que nenhuma contribuição de um cientista ao conhecimento
pode ser aceita sem exame acurado e atento, e o cientista deve
duvidar de suas descobertas tanto quanto das dos outros.
Não é difícil ver como a norma do ceticismo lógico contribui ^>
para as controvérsias nas comunidades científicas.
São abundantes outros exemplos de conflito. Talvez um dos
mais importantes para o nosso tema seja a existência de subgrupos (
"rebeldes" nas comunidades científicas. As especialidades que se
revoltam contra os objetivos e/ou os meios de uma área de conhe-
cimento maior são muito comuns na tradição científica. Esses gru-
pos rebeldes de pesquisadores são alienados do corpo principal do
discurso científico corrente em suas áreas específicas e podem voar
faíscas por causa do debate entre os rebeldes e os tradicionalistas.
Aqui, em geral somadas a essa situação, mesmo os debates habi-
tuais que associamos à ciência — isto é, discussões entre grupos e
indivíduos quanto a questões essenciais como conhecimento veri-
ficado e que tais — misturam-se a discussões sobre metas políticas.
Até mais significativamente hoje, está-se tornando muito comum (e
felizmente, no meu ponto de vista) a discussão inflamada e a dissen-
são quanto à posição política que uma área de conhecimento deveria
adotar e quanto aos empregos sociais de seu conhecimento.26
(25) Storer, op. cit., p. 78-9.
(26) Hagstrom, op. cit., p. 193-4. Periódicos como Science for the People,
Marxist Perspectives, Radical Science e Dialectical Psychology fornecem exemplos
interessantes e importantes desse debate, politicamente vinculado.
140 MICHAEL W. APPLE
Por enquanto tenho documentado a dimensão importante do
conflito em comunidades científicas. Tenho sustentado que o conhe-
cimento científico da forma como é transmitido nas escolas tem,
com efeito, estado desvinculado da estrutura da comunidade da
qual se desenvolveu e que atua para criticá-lo. Os estudantes são
"forçados", em virtude da própria ausência de um quadro realista
da forma como as comunidades científicas partilham o poder e os
recursos económicos, a interiorizar uma visão que possui pouca
força para questionar a legitimidade das suposições tácitas sobre
conflito interpessoal que dirigem suas vidas e suas próprias situações
educacionais, económicas e políticas. Não apenas lhes é apresentada
uma visão de ciência claramente irrealista, mas, o que tem mais
importância para a minha proposição, não íhes é mostrado como o
debate e o conflito intergrupal (e daí de classes) e interpessoal
críticos se deram em favor do progresso da ciência. Quando essa
situação é generalizada, numa perspectiva básica da relação que se
mantém com os paradigmas de atividade económicos e políticos
numa sociedade, não .é difícil ver como serve para reforçar o Jjuie-
, conduzi-los a "canais adequados" para modi-
ficarem essas estruturas, ou ajudar a justificar esse, programa insti-
tucional, fornecendo as regras fundamentais de pensamento que
fazem com que qualquer outra visão do conhecimento pareça
não natural.
O conflito na sociedade
A segunda área de ensino em que há debate sobre currículo
oculto e o ensino tácito de suposições constitutivas sobre o conflito, e
que escolhi para enfocar explicitamente, é a de Estudos Sociais.
Como em nossa discussão da ciência, ao aprofundar a investigação
nesta área, irei proporuma visão alternativa ou mais ampla do
conflito na sociedade. Quero também relacionar alguns dos empre-
gos sociais do conflito intelectual e normativo, empregos que são
ignorados na maioria dos debates sobre currículo encontrados nas
escolas.
Um exame de boa parte da literatura em Estudos Sociais
sugere uma aceitação da sociedade como basicamente um sistema
de cooperação. Observações em classe, como as relatadas no Capí-
tulo 3, realizadas em um extenso período de tempo, revelam uma
perspectiva semelhante. A orientação origina-se em grande parte da
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 141
suposição ideológica (talvez necessariamente inconsciente) de que o
conflito, e especialmente o conflito soc^ljjíãojèjjraa^a^a^enstica
essencial do sistema de relações sociais a ojoe^j^iamamos j»cie-
dáde.27 "
Muito frequentemente, representa-se uma realidade social
que aceita tacitamente "a harmonia social" como sendo a forma
normal de vida, se não a melhor. Agora deve ficar claro que a
veracidade da afirmação de que a sociedade é um sistema de coope-
ração (se ao menos todos cooperassem) «ao pode ser determinada \
empiricamente. É essencialmente uma orientação de valor que aju- )
da a determinar as questões formuladas ou as experiências educa-/
cionais planejadas para os estudantes. E as experiências educa-
cionais parecem ressaltar o que é fundamentalmente uma visão
conservadora.
A visão encontrada nas escolas apóia-se fortemente no modo
como todos os elementos de uma sociedade, desde o funcionário dos
correios e o bombeiro, no nível mais simples, até as instituições
específicas em cursos de Educação Moral e Cívica no secundário,
estão ligados uns aos outros numa relação funcional, cada um
contribuindo para a continua.preservação da sociedade. A dissensão
e o conflito interno numa sociedade são encarados como natu-
ralmente"arititéticos à harmonia da ordem social. Novamente o
consenso é uma característica marcada. Essa orientação também é
clara na^ênfase implícita sobre os estudantes (e o "homem" em
geral) antes como pessoas que transmitem e recebem valores que
como pessoas que produzem valores na maioria de sua experiência
escolar.28
De há muito se observou o fato de que existe uma série de
formas paradigmáticas de percepção do mundo social. Contudo,
também é importante observar que cada uma delas estabelece uma
determinada lógica de organização sobre a atividade social e cada
uma tem determinadas pressuposições valorativas subjacentes, em
geral notavelmente diferentes. As diferenças entre a perspectiva
durkheimiana e a perspectiva weberiana, mais subjetivista, cons-
tituem um exemplo. Embora menos elaborada do ponto de vista
económico que alguns de seus mais recentes trabalhos, a última
(27) Ralf Dahrendorf. Essays in lhe Theory ofSociety, London, Routledge &
KeganPaul, 1968, p. 112.
(28) Gouldner, op. cit., p. 193.
142 MICHAEL W. APPLE
análise feita por Gouldner de teorias sociais funcionais estruturais,
especialmente as de Parsons, oferece um exemplo mais comum. Seu
exame, que possui uma longa tradição intelectual na sociologia do
conhecimento, levanta questões intrigantes a respeito das conse-
quências sociais e políticas do pensamento social contemporâneo —
de que boa parte dos fundamentos de suas suposições é determinada
pela existência individual e de classe do pensador; de que oferece
uma "representação parcial, muito seletiva, da sociedade norte-
americana", formada para "evitar tensões políticas", e que visa à
noção de que a estabilidade política, digamos, "seria alcançada se
os esforços pela mudança social prudentemente deixassem de mudar
as formas estabelecidas de distribuição e justificação de poder".29
Em resumo, os fundamentos desse paradigma social usado para
organizar e orientar nossas percepções são basicamente orientados
.para a legitimação da ordem social vigente. Pelo próprio fato de que
procuram considerar esses temas como equilíbrio social e preser-
vação do sistema, por exemplo, existe uma forte tendência para o
consenso e uma negação da necessidade do conflito.30 Como a
tradição da sociabilização da pesquisa do currículo discutida no
Capítulo 2 (que provém do modelo funcional estrutural), esse para-
digma admite a existência dos valores sociais, um perfeito acordo
entre a consciência ideológica dos intelectuais e as exigências da
reprodução das categorias hegemónicas nas crianças.
Contrário ao tipo de raciocínio funcional estrutural, Gouldner
defende um "paradigma" diferente, fundado na busca do indivíduo
de transformar-se a si mesmo e à sua atividade, e que não coloca a
sociedade existente como parâmetro, mas, sim, como a possibilidade
de uma mudança estrutural básica através de um compromisso
apaixonado do indivíduo e de um envolvimento social. A questão da
legitimação, então, passa a ser menos um processo de estudar como
se desenvolvem as tensões institucionais e como podem ser "assen-
tadas", e mais um esforço para vincular as instituições com seu
desenvolvimento histórico e com sua necessidade de transformação
de acordo com princípios explicitamente escolhidos com base na
retórica política, económica e ética. A perspectiva quanto ao conflito
dessa última posição é muito diferente daquela da postura criticada
por Gouldner.
(29) /«</., p. 48.
(30) Md., p. 210-18.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 143
Em sua análise das suposições do pensamento social parso-
niano, por exemplo, Gouldner documenta o lugar do debate moral e
do conflito de valores, que estão no centro das ciências humanas e de
sua compreensão da sociedade. Então, ele alarga consideravel-
mente as fronteiras do conflito possível. Essa posição talvez seja
mais evidente em sua crítica ao status teórico que Parsons confere a
um processo de sociabilização que implicitamente define "homem"
fundamentalmente como um receptáculo de valores.31 Censura as
teorias sociais funcionalistas por serem incapazes de lidar com
"aqueles que se opõem às instituições da ordem social e que lutam
para mudar suas regras e exigências feitas à participação". Gould-
ner opõe-se a essa visão enfocando os seres humanos como enga-
jados num processo dialético de recepção, produção e reprodução de
valores e instituições.32 A contínua reprodução de valores numa '
sociedade é um processo difícil e em geral leva ao conflito entre os -
defensores de modelos de avaliarão divergentes. Ê a esse tipo de j
conflito, entre outros, que Gouldner procura dar um lugar.
Pela sua própria natureza, os paradigmas sociais estão mu-
dando continuamente, em geral "dirigidos" pelo conflito de classe e
contradições sociais e económicas. De fato, os últimos trabalhos de
Gouldner podem ser vistos como um reflexo e uma parte dessa
mudança. Entretanto, deixam atrás de si reificações deles próprios
encontradas nos currículos tanto da escola primária quanto do nível
secundário. Isto pode ser precisamente verdadeiro no caso dos mo-
delos de compreensão da vida social que hoje se encontram nas
escolas. Esses modelos guardam uma semelhança notável com as
posições ideológicas inicialmente articuladas pelos primeiros edu-
cadores e especialistas em currículo analisadas no capítulo anterior.
Talvez não exista melhor exemplo da ênfase no consenso, na
ordem e na ausência de qualquer conflito nos currículos de Estudos
Sociais do que o encontrado em um dos conjuntos mais populares de
materiais didáticos, o "equipamento" de economia dos Science
Research Associates, Our Working World. É projetado para ensinar
os conceitos básicos de economia controlada aos alunos da escola
primária. O curso de estudos para a primeira série que leva o
(31) Ibid.,p. 206.
(32) Ibid., p. 427. Veja-se também a discussão interessante, embora às vezes
não crítica, em Peter Berger e Thomas Luckmann. The Social Construction of Rea-
lity. New York, Doubleday, 1966.
144 MICHAEL W. APPLEsubtítulo de "Famílias no Trabalho" é organizado em torno da
interação social cotidiana, aquilo com que as crianças estariam
familiarizadas. Afirmações como a seguinte perpassam os mate-
Quando seguimos as regras, somos recompensados; mas, se infrin-
gimos as regras, seremos punidos. Assim, meu caro, eis por que cada
um se interessa. Eis por que aprendemos costumes e regras, e por que
os seguimos. Porque, se o fizermos, seremos todos recompensados
com um mundo mais bonito e mais ordenado.
Essa atitude mostrada para com a criação de novos valores e
costumes e para com o valor colocado num mundo organizado, sem
conflitos, parece indicar um conjunto mais essencial de suposições
relativas ao consenso e à vida social. Quando se percebe que os
i estudantes são esmagados com exemplos dessa espécie durante todo
' o dia, exemplos em que é bastante difícil achar qualquer valor
atribuído à desordem de qualquer natureza significativa, é hora de
se parar para pensar.
Mesmo a maioria dos currículos centrados em torno da pes-
quisa, embora sem dúvida férteis, mostram um desprezo extraor-
dinário pela eficácia do conflito e pela sua tradição longa e firme-
mente estabelecida nas relações sociais. Por exemplo, as suposições
básicas de que os conflitos devem ser "solucionados" dentro dos
limites aceitos e de que não é desejável a contínua mudança na
estrutura e no entrelaçamento dos programas institucionais podem
ser vistas nos currículos de Ciências Sociais centrados nas áreas de
conhecimento relativamente sofisticadas que se desenvolvem atual-
mente. Um desses currículos foi lançado pelo Centro para o Estudo
do Ensino, em 1970. Declaradamente apresenta uma abordagem de
"esquemas conceituais" que fundamenta uma hierarquia de gene-
ralizações que, idealmente, devem ser interiorizadas pelos estu-
dantes através de sua participação ativa no desempenho de papéis e
na pesquisa. Esses níveis de generalizações oscilam desde os muito
simples até os razoavelmente complexos e são classificados sob uma
vasta generalização "descritiva" ou "esquema cognitivo". Por exem-
plo, classificadas sob a generalização "A organização política (o
(33) Lawrence Senesh. "Recorded Lessons". Our Working World: Families
at Work. Lawrence Senesh (org.). Chicago, Science Research Associates, 1964.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 145
governo) soluciona os conflitos e facilita as interações entre as pes-
soas", vêm as seguintes subgeneralizações, relacionadas em com-
plexidade crescente:34
1. O comportamento dos indivíduos é governado pelas regras
comumente aceitas.
2. Os membros dos grupos familiares são governados por
regras e leis.
3. Os grupos comunitários são governados por meio de lide-
rança e autoridade.
4. A interação pacífica do homem depende dos controles
sociais.
5. O modelo de governo depende do controle pela partici-
pação no sistemapolítico.
6. A organização política estável desenvolve a qualidade de
vida compartilhada por seus cidadãos.
Associados a essas generalizações "descritivas", a que os estu-
dantes devem ser conduzidos, estão os "enunciados apoiativos", tais
como "As regras ajudam a manter a ordem" e "As regras ajudam a
proteger a saúde e a segurança".35 Poucos irão se indispor com essas
afirmações. Afinal, as regras de fato ajudam. Mas, como as supo-
sições que prevalecem nos enunciados económicos, as crianças se
defrontam mais uma vez com uma ênfase tácita num conjunto
estável de estruturas e na manutenção da ordem.
O que é intrigante é a falta quase absoluta de consideração ou
até de referência ao conflito como uma área focal ou uma categoria
de pensamento nos currículos de Estudos Sociais mais comuns ou na
maioria das salas de aula observadas. Dos materiais mais populares,
apenas os desenvolvidos sob a égide dos últimos trabalhos de Hilda
Taba referem-se a ele como um conceito-chave. No entanto, embora
o currículo de Estudos Sociais de Taba enfoque declaradamente o
conflito, e embora esse enfoque seja em si mesmo um bom sinal, sua
orientação é para as consequências sérias do conflito envvez de para
muitos aspectos construtivos também associados ao próprio conflito.
<\) Center for the Study of Instruction. Principies and Practices in the
Teaching of the Social Sciences: Teacher's Edition. New York, Harcourt, Brace &
World, 1970, p. T-17. É questionável se muitos negros ou latinos nos guetos dos
Estados Unidos dariam apoio incondicional a essa "descrição".
(35) Ibid., p. T-26.
146 MICHAEL W. APPLE
Mais uma vez o conflito é visto como "disfuncional", mesmo quan-
do representado como sempre presente.36
Como observado anteriormente, em grande parte, a socie-
dade, da forma como existe, tanto em seus aspectos positivos quanto
negativos, se mantém unida por regras do senso comum implícitas e
por paradigmas do pensamento, pela hegemonia assim como pelo
poder manifesto. Os materiais de Estudos Sociais como esse (e há
muitos outros a que não me referi) podem contribuir para o ensino
de reforço de algumas suposições básicas dominantes e, portanto,
uma estrutura de crença pró-consenso e antidissensão.
Essa visão está sendo contrariada de algum modo por uma
parte do conteúdo que agora se ensina sob a marca de Estudos do
Negro e da Mulher. Aqui, a luta e o conflito quanto 'a uma base
comum são em geral explícita e verdadeiramente enfocados. 37
Embora muitos especialistas em currículo possam achar essa adoção
manifesta de metas comunitárias um tanto antitética a suas próprias
inclinações, deve-se reconhecer o fato de que tem havido uma tenta-
tiva de apresentar uma perspectiva relativamente realista quanto à
história significativa e aos usos do conflito no progresso de classes e
grupos sociais, através, por exemplo, dos direitos civis e dos movi-
mentos pelo poder negro. Mesmo aqueles que não aprovariam ou
aprovariam apenas uma visão segura ou conservadora dessa maté-
ria, deveriam perceber a força e o verdadeiro valor de uma perspec-
tiva de se desenvolver uma consciência de grupo e uma coesão até
então impossíveis. Voltarei a essa questão na minha discussão geral
dos usos do conflito em grupos sociais.
Dizer, no entanto, que a maioria dos currículos de Estudos
do Negro apresenta essa mesma perspectiva estaria longe de ser
exato. Também se poderia apontar para a expansão agora manifesta
do material histórico sobre o negro em que figuram aqueles negros
que se mantiveram dentro dos limites considerados legítimos (regras
constitutivas) de protesto ou que progrediram nos campos aceitos da
economia, atletismo, educação ou arte. Em geral, não se encontra
referência a Malcom X, a Marcus Garvey ou a outros que formu-
(36) Maxine Durkin et ai. The Taba Social Studies Currículum: Communities
Around Us. Reading, Mass., Addison-Wesley, 1969, p. v.
(37) Nathan Hare. "The Teaching of Black History and Culture in the Secon-
dary Schools". Social Education, XXXIII (April 1969), 385-8; e Preston Wilcox.
"Education for Black Liberation". New Generation, LI (Winter 1969), 20-1.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 147
l . i i . i in uma crítica forte aos modos vigentes de controle e atividade
• i oiiômicos e culturais. No entanto, é a^so/idez da apresentação
i i i c i l a da perspectiva do consenso que deve ser posta em destaque,
r. .nu como sua ocorrência nas duas áreas examinadas neste capí-
Não basta, no entanto, para nossos objetivos, "meramente"
esclarecer como o currículo oculto obriga os estudantes a expe-
i iniciar algumas discussões com regras básicas. É essencial que se
. oloque uma visão alternativa e que sejam documentados os usos do
conflito social a que venho me referindo.
É possível combater a orientação do consenso com um con-
jun lo de suposições um pouco menos ligadas a ele, suposições que se
mostrem tão empiricamente comprovadas, se não mais, quanto
.unidas contra as quais levantei objeções. Por exemplo, alguns
icóricossociais tomaram a posição de que "a sociedade não é
basicamente um ordem em funcionamento harmonioso como um
organismo social, um sistema social ou uma estrutura social está-
tica". Pelo contrário, são características dominantes a mudança
contínua nos elementos e a forma estrutural básica da sociedade. Os
conflitos são os produtos sistemáticos da estrutura em mudança de
urna sociedade e pela sua própria natureza tendem a levar ao
progresso. A "ordem" da sociedade, portanto, passa a ser a regula-
ridade da mudança. A "realidade" da sociedade é conflito e fluxo,
não um "sistema funcional fechado".38 Tem-se afirmado que a
contribuição mais significativa para a compreensão da sociedade
feita por Marx foi perceber que uma fonte importante de mudança e \o é o conflito interno.39 Fundamentalmente, portanto, es '
conflitos devem ser encarados como uma dimensão básica e em geral
benéfica da dialética de atividade a que se denomina sociedade.
Um exame de posições dentro dessa orientação geral e a ela
estreitamente ligadas pode ajudar a esclarecer a importância do
conflito. Uma das perspectivas mais interessantes aponta para sua
(38) Ralf Dahrendorf. Class and Class Conflict in Industrial Societies. Stan-
ford, Stanford University Press, 1969, p. 57. Quanto a estudos concretos de conflito
tanto intra quanto interclasses em sociedades industriais, ver R. W. Connell. Ruling
Class, Ruling Culture. Cambridge University Press, 1977; e Nicos Poulantzas. Classes
in Contemporary Capitalism. London, New Left Books, 1975.
(39) Jack Walker. "A Critique of the Elitist Theory of Democracy". Apolitical
Politics. Charles A. McCoy e John Playford (orgs.). New York, Crowell, 1967,
p. 217-18.
148 MICHAEL W. APPLE IDEOLOGIA E CURRÍCULO 149
utilidade em impedir a reificação das instituições sociais vigentes,
pressionando indivíduos e grupos para que sejam inovadores e cria-
tivos ao realizarem mudanças nas atividades institucionais. Coser
expressa isso bem: *
O conflito intra e intergrupal numa sociedade pode impedir que as
acomodações e as relações habituais empobreçam progressivamente a
criatividade.
O entrechoque de valores e interesses, a tensão entre o que é e o que
alguns sentem que deveria ser, o conflito entre o capital investido e os
novos estratos e grupos exigindo sua fração de poder, têm produzido
vitalidade.
É-se energicamente levado a encontrar alguma coisa próxima
dessa orientação na maioria dos materiais e do ensino apresentados
nas escolas. As regras básicas de atividade que governam nossa
percepção tendem a levar-nos a representar o conflito como ini-
cialmente uma qualidade negativa numa comunidade. No entanto,
a "cooperação harmoniosa" e o conflito são os dois lados da moeda
social, nenhum dos quais é totalmente positivo ou negativo. Embora
de fato Coser aqui se refira a uma perspectiva um tanto funciona-
lista, essa visão é, ainda assim, eficazmente colocada por ele num de
seus primeiros tratamentos desse tema.41
Nenhum grupo pode ser inteiramente harmonioso, pois desse modo
seria desprovido de processo e estrutura. Os grupos exigem desarmo-
nia, tanto quanto harmonia, dissociação assim como associação; e os
conflitos dentro deles não são de modo algum fatores de ruptura. A
formação do grupo é consequência de ambos os tipos de processos.
A crença de que um processo destrói o que o outro construiu, de
modo que o que permanece no fim é o resultado da subtração um do
outro, baseia-se numa concepção errónea. Pelo contrário, tanto os
fatores "positivos" quanto os "negativos" formam relações de grupo.
Longe de ser necessariamente disfuncional, um certo grau de conflito
é um elemento essencial à formação do grupo e à persistência da vida
em grupo.
(40) Citado em Dahrendorf. Class and Class Conflict, op. cit.
(41) Lewis Coser. The Functions of Social Conflict. Chicago, Free Press,
1956, p. 31.
A regra básica de atividade que constitui o valor negativo ...
' " CJlInconsciente associado ao conflito tende a levar ao planejamento de ^j
experiências que se centrem na dimensão de conflito de "infração de J
k i < > u regra", embora deveria ficar claro que o conflito conduz não p>.
upciias à infração da lei mas é, com .efeito, também criação da lei.42 ,^/
Krali/.a a tarefa notável de apontar para áreas que carecehrrte—-=,
i-orreção. Além do mais, torna conscientes as regras mais básicas
'i"f Kovernam a atividade sobre a qual há conflito, mas que estavam
i» tílias. Ou seja, desempenha a função singular de possibilitar aos
indivíduos que vejam os imperativos ocultos engastados nas situa- .
<,<vs que atuam para estruturar suas ações, libertando parcialmente
os indivíduos para que criem padrões de ações relevantes a um grau
i|ue em geral não é possível. Essas propriedades de criação de leis e
de ampliação da consciência, mantidas pelas situações de conflito,
apresentam, conjugadas, um efeito muito positivo. Desde que o
conflito acarreta inerentemente novas situações que em alto grau são
indefinidas pelas suposições anteriores, atua como um estímulo para
D estabelecimento de normas de atividade novas e possivelmente
mais flexíveis ou circunstancialmente pertinentes. Obrigando lite-
ralmente a atenção consciente, as questões são definidas e novas
dimensões podem ser exploradas e esclarecidas.43
A documentação dos efeitos positivos do conflito não chegaria
nem mesmo a ser adequada se se deixasse de mencionar um uso
importante, especialmente tendo-se em vista meu próprio compro-
misso em tornar a educação, em particular, mais sensível às neces-
sidades das comunidades e das classes a que serve. Refiro-me aqui à
importância do conflito em criar e legitimar um experiência cons- ^
ciente e especificamente de classe, étnica e sexual. Agora é bem
conhecido que uma das primeiras formas pelas quais os grupos se
definem é percebendo-se em luta com outros grupos e que essa luta
aumenta a participação dos membros nas atividades do grupo e os
torna mais conscientes dos laços que os unem-.44 Não é de pouca
(42) Ibid., p. 126. Talvez o melhor exemplo de material sobre a dimensão da
infração da lei alcançada pelo conflito seja um curso de primeiro grau, "Respeito
pelas Regras e pela Lei" (New York State Bureau of Elementary Curriculum Deve-
lopment, 1969). Um conjunto de materiais curriculares dá alguns passos interessan-
tes e úteis em permitir uma apreciação mais honesta do conflito. Ver Donald Oliver e
Fred Newmann (orgs.). Harvard Social Studies Project: Public Issues Series. Colum-
bus, Ohio, American Educatíonal Publications, 1968.
(43) Ibid., p. 124-5.
(44) Ibid., p. 90.
150 MICHAEL W. APPLE
importância o fato de que a comunidade dos negros e de outras
etnias e a das mulheres tenham, a um grau significativo, se definido
ao longo dessas linhas "intragrupo e extragrupo", uma vez que
possibilitam maior coesão entre os diversos elementos em suas res-
pectivas comunidades. Valendo-se de "sentimentos básicos" como
os de classe, raça e sexo, cria-se uma estrutura de significado
comum que torna plausível a existência contínua e singularizada de
um indivíduo e de um grupo.45 Da mesma forma como o conflito
parece ser o meio básico para o estabelecimento de autonomia
individual e para a diferenciação plena da personalidade do mundo
\46 é também efetivo para a plena diferenciação da auto-
\a comunitária. Fundamentalmente, pode criar uma "pressão
para a articulação de suposições que distinguem aquele grupo, para
reforçar a solidariedade e a concórdia entre seus membros", fator
que, como vimos no Capítulo l, é um elemento importante numa
ideologia forte.
Venho propondo uma visão alternativa da presença e dos usos
do conflito em grupos sociais. É provável que seja usada como um
fundamento mais objetivo para planejar currículos e orientar o
ensino de modo que o currículo oculto mais estático que os alunos
encontrempossa ser contrabalançado até um certo ponto. O enfo-
que explícito no conflito como uma categoria legítima de concei-
tuação e como uma dimensão válida e essencial da vida coletiva
possibilitaria o desenvolvimento pelos estudantes de uma perspec-
tiva política e intelectualjnais viável e forte, a partir da qual perce-
bessem sua relação com as instituições económicas e políticas exis-
tentes. No mínimo, uma tal perspectiva pode lhes fornecer uma
(45) Peter Berger. The Sacred Canopy. New York, Doubleday, 1967, p. 24-5;
e Clifford Geertz. "The Integratíve Revolution: Primordial Sentiments and Civil
Politícs in the New States". OldSocieties and New States. Clifford Geertz (org.). New
York, Free Press, 1963, p. 118.
A literatura sobre a história das lutas das mulheres para conseguir essa auto-
nomia está, reconhecidamente, tornando-se muito mais ampla. Algumas das contri-
buições recentes mais interessantes à história desse conflito podem-se ver em Gerda
Lerner, The Female Experience: An American Documentary. Indianápolis, Bobbs-
Merrill, 1977; Nancy F. Cott. The Bonds of Womanhood. New Haven, Yale, 1977;
Linda Gordon, Woman 's Body, Woman 's Right. New York, Grossman, 1976; e Mary
P. Ryan. Womanhood in America. New York, New Viewpoints, 1975.
(46) Coser, op. cit., p. 33. Esta talvez seja uma das intuiçôes mais frutíferas
de Piaget.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 151
compreensão melhor das suposições ideológicas tácitas que atuam
para estruturar sua própria atividade.
< onwideracões programáticas com relação ao currículo
Existem várias sugestões para a estruturação do currículo que
i x xleriam pelo menos parcialmente servir para contrabalançar o
currículo oculto e a tradição seletiva mais evidentes em Ciências e em
r.studos Sociais como representativas do corpus formal do conheci-,
mento escolar. Embora sejam por sua própria natureza ainda expe-
rimentais e apenas parciais, podem se mostrar muito importantes.
É essencial uma apresentação mais equilibrada de alguns dos
valores de ciências adotados, especialmente daqueles que se rela-
cionem ao ceticismo lógico. É preciso que se reconheça e enfoque a
importância histórica para as comunidades científicas da visão cé-
lica predominante.
Pode-se ver a história da ciência como uma dialética contínua
de controvérsia e conflito entre defensores dos programas e paradig-
mas de pesquisa conflitantes, entre as respostas aceitas e os desafios
a essas "verdades". Como tal, a própria ciência poderia ser apre-
sentada com uma orientação histórica maior, documentando as
revoluções conceituais necessárias aos rompimentos significativos
por ocorrer.
Em lugar de aderir a uma visão da ciência como verdade,
a apresentação equilibrada da ciência como verdade-até-a-próxima-
informação, como um processo de mudança constante, poderia
impedir a cristalização de atitude. Nessa associação, também, o
estudo de como procedem as revoluções conceituais na ciência con-
tribuiria para uma perspectiva contrária ao consenso como o único
modo de progresso.
A isto pode-se acrescentar um enfoque nos usos e dilemas
morais da ciência. Por exemplo, seria de fato útil individualizar a
história da ciência através de casos como os de Oppenheimer, Wat-
son e, intrigantemente, da controvérsia em torno do caso Veli-
kovsky.47 Quando consideradas em conjunto com uma análise séria,
digamos, do papel das mulheres na ciência e na medicina, essas
sugestões ajudariam a eliminar as pré-noções existentes nos currí-
(47) Mulkay, op. cit.
152 MICHAEL W. APPLE
culos atuais por meio da introdução da ideia de controvérsia e
conflito pessoal e interpessoal.48
Podem-se fazer diversas sugestões para a área de Estudos
Sociais. O estudo comparativo da revolução, digamos, norte-ameri-
cana, francesa, russa, portuguesa e chinesa serviria para enfocar as
propriedades da condição humana que causam o conflito interpes-
soal e são por ele aperfeiçoadas. Essa sugestão torna-se mais apro-
priada quando associada ao fato de que em muitos países a revo-
lução é o modo de procedimento legítimo (no verdadeiro sentido do
termo) para se corrigir injustiças. A isso poder-se-iam acrescentar os
estudos do imperialismo económico e cultural.49
Uma avaliação mais realista dos usos do conflito nos movi-
mentos pelos direitos legais e económicos de negros, índios, mu-
lheres, operários e de outros grupos sem dúvida tomaria parte na
formação de uma perspectiva dessas atividades e de outras seme-
lhantes como modelos legítimos de ação. O fato de que as leis
tiveram de ser infringidas e de que foram posteriormente anuladas
pelas cortes de justiça geralmente não encontram enfoque nos currí-
culos de Estudos Sociais. No entanto, foi através desses tipos de
atividade que boa parte do progresso se fez e se faz. Aqui, os estudos
comunitários e de movimentos sociais da forma como têm se efe-
tuado mudanças constitui um processo interessante, processo que
deveria se mostrar como de importância considerável. Isto sugere
.. quão decisivo é que a história da classe operária, por exemplo, seja
~ ensinada nas escolas. Quase sempre minimrzamos_,a história das
lutas concretas em que os operários tiveram de se empenhar e os
sacrifícios a que se submeteram. Ao mesmo tempo, os estudantes
podem ser levados a fundar suas próprias experiências familiares e
pessoais também na história de classe e de grupo étnico. Há extensas
bibliografias sobre temas como os da história da classe operária, as
(48) Ver, por exemplo, Mary Roth Walsh. Doctor Wanted. No Women Need
Apply. New Haven, Yale, 1977; Edward T. James, Janet Wilson James e Paul S.
Boyer. Notable American Women 1607-1950. Cambridge, Mass., Belhnap Press/
1971; e H. J. Mozans. Woman in Science. Cambridge, Mass., Massachusetts Ins-
titute of Technology, 1974.
(49) Ver, por exemplo, Ariel Dorfman e Armand Mattelart. How to Read
DonaldDuck. New York, International General, 1975; e Martin Carnoy. Education
as Cultural Imperialism. New York, David McKay, 1974. Um dos mais interessantes
livros para crianças que trata de algumas dessas questões é Pai Rydlberg et ai. The
History Book. Culver City, Califórnia, Peace Press, 1974.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 153
l u i . i s das mulheres, dos negros e de outros grupos, para nos auxiliar
nu combate à tradição seletiva.50
Além dessas sugestões para mudanças curriculares específi-
i .is, deveria ser observada uma outra área. Os "paradigmas" socio-
I6KÍCOS também procuram dar a razão da realidade do senso comum
«•m que estudantes e professores se baseiam. As escolas são inte-
rialmente envolvidas nesta realidade e na sua interiorização. Po-
deria ser sensato levar em consideração empenhar os estudantes na
.iiliculação e no desenvolvimento dos paradigmas de atividade na
MUI vida cotidiana nas escolas. Um tal envolvimento poderia possi-
bi l i tar aos estudantes enfrentar e ampliar os discernimentos deci-
livos de seu próprio condicionamento e liberdade. Esses discerni-
mentos poderiam virtualmente alterar o paradigma original e a
própria realidade do senso comum. Também se tornaria possível a
MUI grau maior um debate educacional concreto e significativo dos
estudantes com o processo de reprodução de valor e institucional.
Os currículos de ação social e as lutas pelos direitos estudantis,
embora limitados em sua própria aplicabilidade, em virtude do sério
risco de "incorporação", poderiam ser bastante proveitosos aqui por
dar aos estudantes um sentido de sua própria competência possível
de desafiar as condições hegemónicas em algumas áreas.51
Conclusões
A pesquisa sobre a sociabilização política das crianças parece
sugerir a importância do presidente e da polícia como elementos de
contato entre as crianças e as estruturas de autoridade e legitimi-
dade numa sociedade.52 Por exemplo, existe um laço inicial forte-
(50) Entre as bibliografias disponíveis,encontra-se Women in U.S. History:
An AnnotatedBibliography. Cambridge, Mass., Common Women Collective, 1976; e
Jim O'Brien et ai. A Guide to Working Class History. 2. ed. Somerville, Mass., New
England Free Press, s/d.
(51) As propostas para o currículo de ação social feitas por Fred Newmann
são de interesse aqui. Veja-se sua Education for Citizen Action. Berkeley, McCut-
chan, 1975. Para uma discussão de alguns dos problemas relacionados a essas pro-
postas, ver Michael W. Apple. "Humanism and the Politics of Educationai Argu-
mentation". Humanistic Education: Visions and Realities. Richard Weller (org.).
Berkeley, McCutchan, 1977, p. 315-30.
(52) DavidEaston'e JackDennis. Children in thePolitical System. New York,
McGraw-Hill, 1969, p. 162.
154 MICHAEL W. APPLE
mente pessoal entre a criança e esses representantes das estruturas
de autoridade. À medida que a criança amadurece, esses vínculos
muito pessoais são transferidos para instituições mais anónimas,
como o Congresso, ou para atividades políticas, como o voto. A
tendência para supervalorizar instituições impessoais pode ser uma
fonte muito importante da relativa estabilidade e durabilidade das
estruturas de autoridade nas sociedades industriais.53
No entanto, não é bastante seguro que essa formulação real-
mente responda às questões que se poderia formular com relação à
estabilidade política e social. A base das tendências e relações
políticas (concebidas de modo amplo) para com as estruturas polí-
ticas e sociais está num sistema de crenças que se mantém ele
próprio sobre padrões básicos de suposições "determinados" pela
atividade social e económica. Essas regras para a atividade (e jul-
gadas como uma forma fundamental dessa atividade) provavelmente
são mais importantes para a relação de alguém com sua vida e seu
mundo do que podemos perceber. Vimos examinando uma dessas
suposições ideológicas constitutivas.
Ê meu ponto de vista que as escolas distorcem sistematica-
mente as funções do conflito social em coletividades. As manifes-
tações sociais, intelectuais e políticas dessa distorção são múltiplas.
Elas podem contribuir significativamente para as bases ideológicas
que servem para orientar fundamentalmente os indivíduos em di-
reção de uma sociedade classista.
Os estudantes na maioria das escolas, e nos centros urbanos
j em particular, recebem uma visão que serve para legitimar a ordem
t social vigente, de vez que despreza sistematicamente a mudança,
j o conflito, e os homens e as mulheres como criadores assim como
"portadores de valores e instituições. Apontei para a solidez da
apresentação. Agora, novamente é preciso ressaltar um outro as-
pecto — o fato de que essas estruturas de significado são obriga-
tórias. Os estudantes as recebem de pessoas que são "importantes"
em sua vida, através de seus professores, outros modelos de papéis
sociais em livros e demais meios. Para mudar essa situação, devem
ser modificadas radicalmente as percepções dos estudantes de quem
devem considerar como os detentores do "conhecimento especiali-
zado". Em áreas de gueto, uma resposta parcial é, talvez, instituir
uma perspectiva mais radical nas escolas. Essa mudança pode ser
(53) Ibid., p. 271-6.
IDEOLOGIA E CURRÍCULO 155
executada apenas pela atividade política. Como se mencionou antes,
pode ser muito provável que desvincular a existência educacional de
um educador de sua existência política seja esquecer que, enquanto
uto de influenciar, a educação também é inerentemente um ato poli-
tico. Ainda com essa sensibilidade política, deve também vir uma me-
dida justa de compreensão económica e cultural que diga respeito ao
poder desses significados ideológicos, que os situe nos processos
sociais concretos queNos provocaram.
Portanto, não é de surpreender a existência dessas pré^noções,
tendo-se em vista o debate acerca da "lógica interna" de uma
determinada forma económica e ideológica. A tradição seletiva que
analisei neste capítulo é uma consequência "natural" das relações
entre nossas instituições culturais e económicas. Quando uma socie-
dade "exige", tanto a nível económico quanto cultural, a maximi-
zação (não a distribuição) da produção de conhecimento técnico,
então a ciência que se ensina estará desvinculada das práticas huma-
nas concretas que a mantêm. Quando um sociedade "exige", a um
nível económico, a "produção" de agentes que tenham interiorizado
normas que enfatizem o empenho em trabalho em geral sem sentido
a nível pessoal, a aceitação de nossas instituições políticas e econó-
micas básicas como estáveis e dadivosas, uma estrutura de crenças
que se funde no consenso e uma lógica positivista e técnica, então
deve-se esperar que os currículos formal e informal, o capital cul-
tural, nas escolas, irão se tornar aspectos da hegemonia. A lógica
interna dessas tensões e dessas expectativas determinará os limites,
as regras constitutivas, que irão se tornar nosso senso comum.
Qualquer outra resposta parecerá desnaturai, que é exatamente a
ideia mantida por Williams e Gramsci.
O ensino manifesto e oculto dessas visões da ciência e da vida
social combinam-se e justificam a primeira sociabilização. Ambos
dificultam muito a consciência da saturação ideológica que se rea-
liza. Pois, se os "fatos" do mundo baseiam-se mesmo em nossas
teorias deles, então o mundo que as pessoas vêem, os significados
económicos e culturais que elas lhe atribuem, serão definidos de
modo a se autojustificarem. Atribuem-se os significados à forma
como o mundo "realmente é", e também se legitimam os interesses
económicos e culturais que determinam por que é dessa forma. A
função ideológica é circular. Conhecimento e poder mais uma vez se
acham íntima e sutilmente ligados através dos fundamentos de
nosso senso comum, através da hegemonia.
Uma das primeiras tarefas deste capítulo foi apresentar óticas
156 MICHAEL W. APPLE
que sejam alternativas àquelas que normalmente legitimam muitas
das atividades e debates que os especialistas em currículo planejam
para os estudantes. Ficará mais claro, à medida que este livro
avançar, que a própria área do currículo limitou suas formas de
consciência de modo que as suposições políticas e ideológicas que
cingem grande parte de seus padrões normais de atividade são tão
ocultas quanto aquelas encontradas pelos estudantes nas escolas.54
Apontei para as possibilidades inerentes a uma abordagem mais
realista da natureza do conflito como uma " forma de consciência"
alternativa. Ainda quando já se tenha dito tudo, é ainda possível
levantar a questão de serem essas investigações teóricas heurística,
política e programaticamente úteis.
Uma das dificuldades em procurar desenvolver novas perspec-
tivas é a distinção evidente e frequentemente lembrada entre a teoria
e a prática, ou, para colocar na linguagem do senso comum, entre
"apenas" entender o mundo e mudá-lo. Essa discussão está arrai-
gada em nossa própria linguagem. É fundamental lembrar que,
embora Marx sentisse que a missão fundamental da filosofia e da
teoria não fosse apenas "compreender a realidade", mas mudá-la, é
também verdade que, de acordo com Marx, o revolucionar o mundo
tem em suas bases um compreensão adequada dele. (Afinal, Marx
gastou boa parte de sua vida escrevendo Das Kapital, enquanto
também se engajou na ação política e económica que serviram para
esclarecer a perfeição daquela compreensão. A ação e a reflexão
imergiram naproxis.)55
O risco significativo não é que a "teoria" não ofereça modo
algum de criticar e mudar a realidade, mas que pode levar a um
quietismo ou a uma perspectiva que, como Hamlet, precisa de um
contínuo solilóquio sobre a complexidade de tudo, enquanto o mun-
do desmorona ao nosso redor. Seria importante observar que uma
comprensão da realidade existente não somente é uma condição
necessária para mudá-la, mas

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