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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Graduação em Direito Priscila Januário Ulian AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA: medida eficaz contra a banalização das prisões provisórias no Brasil? Poços de Caldas 2016 Priscila Januário Ulian AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA: medida eficaz contra a banalização das prisões provisórias no Brasil? Monografia apresentada ao Curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – Campus Poços de Caldas, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Me. Dório Henrique Ferreira Grossi. Poços de Caldas 2016 Priscila Januário Ulian AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA: medida eficaz contra a banalização das prisões provisórias no Brasil? Monografia apresentada ao Curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – Campus Poços de Caldas, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito. _____________________________________________________ Prof. Me. Dório Henrique Ferreira Grossi - PUC Minas (Orientador) _____________________________________________________ Prof. - PUC Minas (Banca Examinadora) _____________________________________________________ Prof. - PUC Minas (Banca Examinadora) Poços de Caldas, ____ de ________________2016. Dedico este trabalho aos meus pais, por sempre terem me dado todo suporte necessário e todo o carinho e paciência para que eu pudesse estar aqui hoje. AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus por todas as oportunidades que tive em minha vida, sempre me guiando e me protegendo. Agradeço meus pais por sempre estarem presentes em minha vida. Agradeço minha mãe pela dedicação, carinho e coração enorme que possui, sempre cuidando de nossa família. Agradeço meu pai por ser um exemplo de caráter, bondade e meu espelho para seguir essa carreira. Agradeço meus familiares por torcerem por mim e estarem sempre presentes. Agradeço minhas amigas Marcele e Gabriela pela paciência, torcida e por entenderem minha ausência em vários momentos e também por todo companheirismo e amor que compartilhamos nesse período. Agradeço todo o corpo docente da faculdade, por constituírem a principal base para a formação do meu conhecimento para que essa etapa fosse concluída. Agradeço o meu orientador Dório Henrique Ferreira Grossi por ter me ajudado a apoiado na escolha do meu trabalho, sendo paciente e compreensivo. Por fim, agradeço a todos que de alguma forma estiveram presentes na minha vida e me auxiliaram em todas as etapas que culminaram nesse momento tão importante. RESUMO O presente trabalho tem por intuito apresentar a audiência de custódia como uma medida eficaz no que tange ao combate da banalização das prisões provisórias frente a uma cultura do encarceramento predominante no Brasil. Pretende ainda, demonstrar sua previsão nos tratados internacionais de direitos humanos dos quais o país é signatário, e a necessidade de efetivá-los, juntamente com os direitos fundamentais previstos no ordenamento jurídico brasileiro. Para tanto, foram analisados dados obtidos através de órgãos oficiais do governo referentes ao perfil das prisões brasileiras, além de pesquisa bibliográfica acerca da audiência de custódia, com a contraposição de teses doutrinárias para atingir o objetivo pretendido. Palavras-chave: Audiência de custódia. Prisão provisória. Direitos fundamentais. ABSTRACT The current work presents the court hearing custody as a measure effective in what regards to the fight the trivialization of provisional arrest ahead of a imprisonment culture in Brazil. Intends too, demonstrate your prediction about the international agreement of the humans rights of which the country is part, and the necessity of effective it, along with the fundamentals rights provided in the Brazilian legal ornament. For this purpose, have been analysed data obtained through official organ of the government refering profile of brazilian’s arrest, besides of bibliographic research about of the custody hearing, with the opposal of doctrinal theses to reach the intended objective. Keywords: Hearing custody. Provisional arrest. Fundamental rights. LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Países que já incorporaram a audiência de custódia no ordenamento jurídico...................................................................................................................p. 50. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade ADEPOL/BR - Associação dos Delegados de Polícia do Brasil ADPF - Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal AJUFE - Associação dos Juízes Federais Art – Artigo CNJ – Conselho Nacional de Justiça CONAMP - Associação Nacional dos Membros do Ministério Público CP – Código Penal CPP – Código de Processo Penal CRFB/88 – Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 FENADEPOL - Federação Nacional dos Delegados de Polícia Federal MPSP - Ministério Público de São Paulo PLS – Projeto de Lei do Senado STF – Supremo Tribunal Federal SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 10 2. INFLUÊNCIA DO DIREITO INTERNACIONAL SOBRE DIREITOS HUMANOS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 ................................................................ 13 2.1 Previsão da audiência de custódia nos diplomas internacionais ................. 14 2.2 Hierarquia dos tratados internacionais frente ao ordenamento brasileiro .. 16 2.3 O sistema penal e o poder de punição do Estado .......................................... 19 2.4 Princípios constitucionais aplicáveis na esfera penal ................................... 20 2.4.1 Conceito e relevância de princípio ................................................................... 21 2.4.2 O princípio da dignidade da pessoa humana ................................................... 21 2.4.3 O princípio da presunção de inocência ............................................................ 23 2.4.4 O princípio do devido processo legal ............................................................... 24 2.4.4.1 O princípio do contraditório e da ampla defesa ....................................... 25 3. A PRISÃO PROVISÓRIA NO CONTEXTO BRASILEIRO ................................... 26 3.1 Prisão em flagrante ...........................................................................................27 3.1.1 Formalidades da prisão em flagrante ............................................................... 30 3.2 Prisão preventiva .............................................................................................. 31 3.3 Prisão temporária .............................................................................................. 32 3.4 Medidas cautelares diversas da prisão ........................................................... 33 3.5 Banalização das prisões provisórias no Brasil .............................................. 35 3.5.1 A cultura do encarceramento ........................................................................... 36 3.5.1.1 Perfil da população carcerária ................................................................... 38 4. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA ................................................................................. 41 4.1 Conceito e procedimento ................................................................................. 41 4.1.1 Atual sistemática do Código de Processo Penal .............................................. 43 4.2 Previsão normativa dentro do ordenamento brasileiro ................................. 44 4.2.1 Aspecto global .................................................................................................. 49 4.3 Posicionamentos contrários ............................................................................ 50 4.3.1 Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.420 ................................................. 52 4.4 Resultados do “Projeto Audiência de Custódia” ........................................... 56 4.4.1 Benefícios frente à sociedade .......................................................................... 63 5. CONCLUSÃO ....................................................................................................... 65 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 67 10 1. INTRODUÇÃO Ao considerar o paradoxo entre instituição da CRFB/88 (Constituição da República Federativa do Brasil de 1988), um marco democrático no país, e o decadente cenário do sistema carcerário brasileiro, o presente trabalho tem como intuito apresentar a emblemática acerca da criação do instituto da audiência de custódia como forma eficaz contra a banalização das prisões provisórias. Para tanto, será demonstrada de que maneira a Carta Magna representou essa mudança de paradigma no cenário brasileiro, uma vez que se revelou pautada em direitos e princípios fundamentais, reflexo da ascensão mundial do princípio da dignidade da pessoa humana. Tal conceito se fez presente também nos principais tratados internacionais de direitos humanos, os quais o Brasil ratificou dentro do seu ordenamento jurídico. Dentre os compromissos assumidos frente a esses documentos internacionais, está presente a previsão da audiência de custódia, que se caracteriza no momento pelo qual o preso em flagrante é apresentado pessoalmente e sem demora à autoridade judiciária competente para analisar a legalidade da prisão, assim como as medidas posteriores cabíveis. Por esse motivo, serão apresentados os tratados internacionais que trazem essa solenidade, bem como em que grau de hierarquia se encontram dentro do ordenamento pátrio, a fim de indicar a necessidade de serem efetivados, pois até então não haviam normas que estabeleciam a dinâmica em que se dariam as audiências, descumprindo os compromissos assumidos. .Também se faz evidente no trabalho a conceituação da função do direito penal e do direito processual penal e a sua relação com o poder punitivo do Estado, para caracterizá-lo como última medida a ser tomada para solução de conflitos. De igual modo, é evidenciada a supremacia da CRFB/88, em conjunto com as normas internacionais de direitos humanos, frente à lei doméstica brasileira, devendo esta se harmonizar com os direitos fundamentais previstos em tais diplomas superiores. Por essa razão, serão analisados os princípios constitucionais aplicáveis na esfera penal, para solidificar a conveniência da criação do instituto em comento, como forma também de ampliar o cumprimento de tais direitos essenciais asseverados. 11 Feito isso, passa-se à abordagem da prisão provisória no contexto brasileiro, enfatizando as principais espécies e requisitos para sua imposição, que se evidencia na real comprovação de sua necessidade e conveniência. O destaque é dado à prisão em flagrante, momento crucial da efetivação da solenidade em análise. Nesse contexto, é exposta a cultura do encarceramento existente no Brasil, que apregoa o uso das prisões cautelares como primeira resposta para combater a criminalidade, mesmo quando dissociada de real exigência. Diante disso, é destacado o perfil da população carcerária brasileira caracterizada, no geral, pelas camadas historicamente marginalizadas na sociedade, reforçando a ideia de que há desvio no poder punitivo do Estado. Posteriormente, é chegado o instante em que se descreve de forma mais minuciosa o conceito e procedimento das audiências de custódia. De igual modo, como se mostra sua previsão normativa dentro do sistema jurídico brasileiro e de que forma é uma tendência concretizada em vários outros países anteriormente ao Brasil. Serão, com isso, expressos entendimentos e jurisprudências contrários à proposta, basicamente sustentados na falta de estrutura do sistema judiciário, o desrespeito à competência legislativa da União, somado ao possível aumento da sensação de insegurança na sociedade. Posteriormente, serão rebatidos tais argumentos através da demonstração de resultados favoráveis obtidos frente aos órgãos do governo, no que tange à implementação das audiências de custódia nos entes federativos brasileiros, ao mesmo tempo em que serão analisados os benefícios frente à sociedade como um todo. O estudo é pertinente na medida em que há carência na produção de pesquisa com esse enfoque, já que é um tema relativamente novo na esfera jurídica. E sendo o sistema judiciário responsável pelo processamento e julgamento dos denunciados, faz-se primordial o exame dessa função frente aos direitos basilares na legislação brasileira. Ante o exposto, o método utilizado para o desenvolvimento do presente trabalho será o método dedutivo, uma vez que a partir de constatações gerais sobre o impacto da implantação do projeto em comento, se chegará a uma conclusão específica sobre a diminuição da banalização das prisões provisórias no país e as consequentes vantagens a toda estrutura judicial e social. 12 Dessa forma, o desenvolvimento será com base em pesquisas doutrinárias e bibliográficas e, principalmente, em artigos científicos, além de textos constitucionais e infraconstitucionais. 13 2. INFLUÊNCIA DO DIREITO INTERNACIONAL SOBRE DIREITOS HUMANOS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 A Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988 representou, no âmbito jurídico, o processo de democratização do Estado brasileiro ao romper-se com o regime militar (1964-1985), gerando crescimento na esfera dos direitos fundamentais1. Apesar de ter originalmente surgido como uma solução para resolver os problemas do regime autoritário, a oposição se fortaleceu com a abertura desse processo, permitindo uma mudança lenta e gradual sobre o contexto do domínio militar. Com isso, a Constituição de 1988 instaura um regime democrático no Brasil,enaltecendo a proteção de camadas marginalizadas da sociedade, com estabelecimento de direitos e garantias fundamentais a todas as pessoas. Como discorre José Afonso da Silva2: É a Constituição cidadã, na expressão de Ulysses Guimarães, Presidente da Assembleia Nacional Constituinte que a produziu, porque teve ampla participação popular em sua elaboração e especialmente porque se volta decididamente para a plena realização da cidadania. Consequentemente, essa mudança de paradigma interno, fez com que o tema de direitos humanos ganhasse destaque também nas relações externas, culminando na assinatura e incorporação pelo Brasil de diversos tratados internacionais que versavam sobre esse tema. Assim, o tema da Audiência de Custódia tem sua origem pautada em alguns desses tratados internacionais que foram elaborados antes da formulação da Constituição Federal de 1988. Portanto, é de suma importância o conhecimento da previsão jurídica desses tratados, bem como de seus desdobramentos no plano interno nacional. Além disso, no presente capítulo, também será demonstrado qual é o grau de hierarquia desses instrumentos internacionais frente às normas brasileiras, de forma 1 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 14. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013. 2 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990. p. 80. 14 que em respeito a elas fora efetivada a criação do “Projeto de Audiência de Custódia”. 2.1 Previsão da audiência de custódia nos diplomas internacionais Conforme exposto, há diversos tratados internacionais que possuem previsão da audiência de custódia, que consiste, basicamente, em um instrumento processual que antevê a análise pelo juiz da necessidade da conversão em prisão preventiva do sujeito recolhido em flagrante3. Assim, a principal base advém da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), internalizada pelo Decreto Presidencial 678 4 , 06.11.1992, que estabelece em seu artigo 7.5 a seguinte redação5: Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em um prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo. Igual efeito tem o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova Iorque, incorporado em 1992, pelo Decreto Presidencial 5926, em seu artigo 9º, item 3, prevê7: Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o 3 JURUBEBA, Yuri Anderson Pereira. Relatório pesquisa: concretização da audiência de custódia no Estado do Tocantins. 2016. 137f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós Graduação Stricto Sensu, Universidade Federal do Tocantins, Palmas, 2016. 4 BRASIL. Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). 5 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Convenção americana sobre direitos humanos: assinada na Conferência especializada interamericana sobre direitos humanos, San José, Costa Rica, em 22 de novembro de 1969. 6 BRASIL. Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992. Promulga o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. 7 ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, 16 dez. 1966. 15 comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do processo e, se necessário for, para a execução da sentença. Destarte, a expressão “sem demora” se apresenta de forma ampla nos citados documentos internacionais. Verifica-se que a Corte Interamericana de Direitos Humanos (IDH) apurou como demora na apresentação do preso ao juiz em prazos de, por exemplo, quatro dias8, uma semana9 e até cerca de trinta e seis dias10, após a prisão do agente, afirmando o dever de se ter respeitada a expressão no menor prazo possível. Além disso, o Comitê de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (responsável por interpretar o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos) estabeleceu que o atraso entre a prisão de um acusado e o comparecimento físico perante uma autoridade judicial não pode ultrapassar alguns dias11, nem mesmo durante estado de emergência. Por tal razão, no Brasil o prazo escolhido para o projeto foi o de 24 (vinte e quatro) horas, o mesmo do encaminhamento do auto de prisão em flagrante ao juiz competente, já previsto no artigo 306, §1º, do Código de Processo Penal12, fato que será mais bem analisado no decorrer da pesquisa. Outrossim, a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, foi promulgada pelo Decreto Presidencial 40/1991 13 . Tal diploma prevê, no art. 2º, §1º, que “Cada Estado Parte tomará medidas legislativas, administrativas, judiciais ou de outra natureza com o intuito de impedir atos de tortura no território sob sua jurisdição14”. Além disso, a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura traz a obrigação dos Estados partes a exercer “medidas efetivas a fim de prevenir e punir 8 COSTA RICA. Corte Interamericana de Derechos Humanos. Caso Chaparro Álvarez e Lapo Íniguez vs. Equador. Sentença de 21/11/2007. 9 COSTA RICA. Corte Interamericana de Derechos Humanos. Caso Bayarri vs. Argentina. Sentença de 30/10/2008. 10 COSTA RICA. Corte Interamericana de Derechos Humanos. Caso Castillo Petruzzi e outros vs. Perú. Sentença de 30/05/1999. 11 INFORMATIVO REDE JUSTIÇA CRIMINAL. Edição 5, ano 3, de 2013. Disponível em <https://redejusticacriminal.files.wordpress.com/2013/07/rjc-boletim05-aud-custodia-2013.pdf> Acesso em 15 ago. 2016. 12 BRASIL. Código de Processo Penal (1941). Decreto de lei n. 3.689, de 1941/10/03. 8a ed. rev., amp. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais. 13 BRASIL. Decreto nº 40, 15 de fevereiro de 1991. Promulga a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. 14 ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. Adotada pela Resolução 39/46 em 10 de dezembro de 1984. 16 a tortura no âmbito de sua jurisdição” (art. 6º, §1º), a propiciar “a qualquer pessoa que denunciar haver sido submetida a tortura, no âmbito de sua jurisdição, o direito de que o caso seja examinado de maneira imparcial” (art. 8º, §1º), bem como a asseverar “que suas autoridades procederão de ofício e imediatamente à realização de uma investigação sobre o caso e iniciarão, se for cabível, o respectivo processo penal” (art. 8º, §2º) 15. Esta última Convenção foi promulgada pelo Brasil por meio do Decreto Presidencial 98.386/198916, inserindo-se nesses dois últimos instrumentos, como medida no combate à tortura. Ademais, a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, integralizada pelo Decreto 7.030/200917, explana em seu art. 26, que “Todo tratado em vigor obriga as partese deve ser cumprido por elas de boa fé”. E acrescenta em seu art. 27: “Uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado (...)18”. Portanto, verifica-se que, até então, o Brasil não tinha cumprido, no plano interno, os compromissos contraídos frente aos diversos atos internacionais mencionados, ao passo que não havia previsão de leis específicas regrando os procedimentos das audiências de custódia. Agora ponderoso salientar o grau de hierarquia em que se encontram os tratados e convenções internacionais no âmbito interno brasileiro, o que será demonstrado a seguir. 2.2 Hierarquia dos tratados internacionais frente ao ordenamento brasileiro Em meados de 1977, o pensamento predominante era de que os tratados de direitos humanos detinham o status de norma infraconstitucional, ou seja, se equiparavam às leis ordinárias. 15 ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura. 10 dez 1984, resolução n 39/46. 16 BRASIL. Decreto nº 98.386, de 9 de dezembro de 1989. Promulga a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura. 17 BRASIL. Decreto nº 7.030, de 14 de dezembro de 2009. Promulga a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, concluída em 23 de maio de 1969, com reserva aos Artigos 25 e 66. 18 ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados. 22 maio de 1969. 17 Todavia, a Constituição Federal de 1988 previu, de forma inédita, no seu art. 5º, § 2º, o seguinte texto19: Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Ora, feita essa previsão, a discussão sobre a posição hierárquica dos tratados se acirrou, uma vez que por uma interpretação sistemática e teleológica do Texto, concluiu-se que os direitos internacionais formavam e complementavam o catálogo daqueles protegidos pela Constituição Federal. Portanto, já entrariam no ordenamento no mesmo patamar das normas constitucionais (e não das leis ordinárias). Entretanto, o entendimento majoritário sobre deterem a posição de norma infraconstitucional se manteve, na medida em que os tratados ou convenções internacionais “não teriam força normativa para restringir a eficácia jurídica das cláusulas constitucionais e dos preceitos inscritos no texto da Carta Magna20”. Com o intuito de esclarecer o impasse, foi editada a Emenda Constitucional 45/04, chamada de “Reforma do Poder Judiciário”, em que os tratados passaram efetivamente a ser considerados como normas constitucionais pelo acréscimo do § 3º, art. 5º, da própria CF/88 (Constituição Federal de 1988), que alude21: Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. Logo, foram equiparados às emendas constitucionais e ficaram sujeitos a gozar de proteção prevista para as cláusulas pétreas, por força do §3º, art. 5º (supramencionado), combinado com o art. 60, §4º, IV 22 , ambos expressos na Constituição Federal, portanto, não podendo ser alterados. 19 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. 20 JURUBEBA, Yuri Anderson Pereira. Relatório pesquisa: concretização da audiência de custódia no Estado do Tocantins. 2016. 137f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós Graduação Stricto Sensu, Universidade Federal do Tocantins, Palmas, 2016. p. 24. 21 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. 22 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. 18 Algumas ressalvas devem ser auferidas no que tange à internacionalização dos documentos internacionais sobre direitos humanos, pois fora também conferido a eles o status normativo supralegal, através da análise de julgados do Supremo Tribunal Federal (STF). Isto é, estariam acima da legislação interna (como por exemplo, o Código de Processo Penal), e abaixo apenas da Constituição Federal. Foi o que se verificou, por exemplo, no seguinte voto23: PRISÃO CIVIL. Depósito. Depositário infiel. Alienação fiduciária. Decretação da medida coercitiva. Inadmissibilidade absoluta. Insubsistência da previsão constitucional e das normas subalternas. Interpretação do artigo 5º, inc. LXVII e §§ 1º, 2º e 3º, da CF, à luz do artigo 7º, § 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Recurso improvido. Julgamento conjunto do RE nº 349.703 e dos HCs nº 87.585 e nº 92.566. É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito. Nesse julgamento, o STF determinou que a norma que previa a prisão civil do depositário infiel não tinha sido revogada pela adesão do país ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e ao Pacto de San José da Costa Rica. Esclareceu que o que ocorrera foi a suspensão de tal norma, pelos tratados serem normas supralegais, estando acima da lei infraconstitucional. Em síntese, os tratados e convenções internacionais, que abordarem os direitos humanos podem ser equivalentes às emendas constitucionais (respeitado o quórum qualificado do §3º, art. 5º, CF/88), ou serem normas supralegais (os aprovados antes do advento da reforma ou quando presente quórum simples de votação). Ademais, toda essa mudança foi resultado da relevância em que foi alçado o princípio da dignidade da pessoa humana no contexto mundial, em decorrência do fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Por essa razão, a Carta Magna elegeu a primazia da dignidade humana como “valor essencial que lhe dá unidade de sentido. Isto é, o valor da dignidade humana informa a ordem constitucional de 1988, imprimindo-lhe uma feição particular”24. Em vista disso, se no plano internacional, esta prioridade se reflete na emancipação dos direitos humanos, no constitucionalismo local também se 23 BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário n° 466.343-1, Relator: Minº CEZAR PELUSO, Data de Julgamento: 03/12/2008, Tribunal Pleno. 24 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 14. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 89. 19 concretizou com o advento de princípios, com enfoque na própria dignidade humana25, dando sustentação a todos os outros que, na pesquisa apresentada, serão examinados no âmbito penal. 2.3 O sistema penal e o poder de punição do Estado Antes de se examinar os princípios norteadores do ordenamento jurídico, cabível o diálogo a respeito do conceito e da função do direito processual penal. Como bem define Führer26: O Processo Penal visa possibilitar a concretização do poder estatal de punir da forma mais eficaz, ou seja, a aplicação efetiva do Direito Penal, sempre dentro de limites que garantam ao indivíduo a preservação de sua dignidade (....) em um Estado Democrático de Direito as garantias do indivíduo não podem ser desprezadas em prol das finalidades do Estado. Dái a presença de princípios (...)”. Nesse contexto, o Estado é a única entidade dotada com o poder soberano do direito de punir, caracterizando o domínio do ius puniendi (direito de punir). Tal direito (ou poder-dever de punir),“é genérico e impessoal porque não se dirige especificamente contra esta ou aquela pessoa, mas destina-se à coletividade como um todo27”. Sendo assim, todo poder deve ser limitado, de forma que o direito processual penal “não pode servir à liberação do poder, e sim ao seu controle28”. Ou seja, não deveria ser usado para atender os clamores da opinião pública, nem como um meio de manipulação vislumbrando uma falsa sensação de segurança na sociedade, para captar apoio político. Aliás, a essência do erro muitas vezes se inicia exatamente nesse ponto: quando se pretende dar respostas à sociedade pelo exercício do sistema criminal29. Concernente seria seu uso para a constituição de um verdadeiro controle da 25 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 14. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 90. 26 FÜHRER, Paulo Henrique. Elementos do Direito: Processo Penal. 11 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. p. 21, v. 8. 27 CAPEZ. Fernando. Curso de processo penal. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 44. 28 MACHADO. Leonardo Marcondes. Resistência crítica e poder punitivo: diálogos em torno da audiência de custódia. Porto Alegre: Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal, vol. 16, n 93, ago-set 2015. p. 41. 29 MACHADO. Leonardo Marcondes. Resistência crítica e poder punitivo: diálogos em torno da audiência de custódia. Porto Alegre: Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal, vol. 16, n 93, ago-set 2015. p. 41. 20 sociedade, enquanto forma indispensável de contenção do poder punitivo abstrato do Estado, e não à sua instrumentalização, apoiando-se em critérios normativos racionais. Diante disso, o texto constitucional deve ser considerado em sua inteira supremacia frente às leis infraconstitucionais, de maneira que deve obrigatoriamente ser observada na aplicação razoável do direito de punir do Estado, para assegurar a máxima efetividade dos direitos e garantias fundamentais. De acordo com Mazzuoli30, a “Reforma do Poder Judiciário”, com o acréscimo do §3º ao art. 5º (citado anteriormente), que permitiu aos tratados internacionais o status de emendas constitucionais, trouxe ao direito brasileiro um novo tipo de controle à produção normativa interna: o controle de convencionalidade das leis. Isto é, a produção normativa doméstica deve se compatibilizar com os tratados de direitos humanos legitimados pelo governo e em vigor no país. Consequentemente, o direito processual penal “além de exigir conformação plena e urgente à Constituição, também deve passar por ajuste de convencionalidade, ou seja, de normatividade convencional31”. Isso significa que é fundamental adequá-lo às normas do direito internacional às quais o Brasil firmou compromisso, principalmente àquelas voltadas à tutela de direitos humanos. Feito breve apontamento, passa-se, enfim, ao estudo dos princípios que devem ser colocados em primeiro plano na persecução penal, como o caminho a ser percorrido para a consolidação do Estado Democrático de Direito, para a mitigação das ilegalidades. 2.4 Princípios constitucionais aplicáveis na esfera penal Objetivando adentrar na questão dos princípios constitucionais aplicáveis na esfera penal, insta pontuar acerca de algumas noções introdutórias acerca dos princípios, mormente no que atine a sua conceituação e relevância no ordenamento jurídico pátrio. 30 MAZZUOLI. Valerio de Oliveira. Teoria Geral do controle de convencionalidade no direito brasileiro. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 46 n. 181 jan./mar. 2009. p. 2. 31 MACHADO. Leonardo Marcondes. Resistência crítica e poder punitivo: diálogos em torno da audiência de custódia. Porto Alegre: Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal, vol. 16, n 93, ago-set 2015. p. 43. 21 2.4.1 Conceito e relevância de princípio A definição etimológica de princípio pode ser dada como o primeiro impulso gerado a uma coisa, origem ou ainda como regras ou conhecimentos fundamentais e gerais.32 No âmbito jurídico, o conceito de princípio indica uma ordenação, que se espalha e alicerça os sistemas de normas, servindo de base para a interpretação e aplicação do direito positivo33. Assim, é importante destacar que a Constituição Federal de 1988, em seu art. 1º, prevê quais são os princípios fundamentais do Estado brasileiro, sendo àqueles que motivam toda a sua estrutura. Entre eles, será explorado o princípio da dignidade da pessoa humana, que conforme apontado se constitui como verdadeiro sustentáculo para todo o ordenamento jurídico. Isto posto, os demais princípios abordados se encontram no art. 5º, do mesmo diploma, que prevê tanto os direitos como as garantias fundamentais, havendo uma sucinta diferença entre os dois termos. Enquanto direito pode ser compreendido como a consagração na lei de valores importantes para a sociedade, as garantias, apesar de também serem ligadas a valores, têm aspectos instrumentais34. Ou seja, funcionam como um meio de proteção dos aludidos direitos previstos na lei. Assim sendo, os princípios, expressos ou implícitos, atuam como garantias diretas e imediatas aos cidadãos, funcionando como critérios de interpretação e integração do texto constitucional 35 , e consequentemente como garantia da preservação dos direitos, consoante exposto. 2.4.2 O princípio da dignidade da pessoa humana Em harmonia com entendimento demonstrado, o direito internacional e nacional tem como base o respeito à dignidade humana. Em vista disso, o princípio 32 BUENO, Silveira. Minidicionário da língua portuguesa. São Paulo: FTD, 2000. p. 624. 33 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal. 10. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 55. 34 NOVELINO, Marcelo. Manual de direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Método, 2013. p. 672. 35 NOVELINO, Marcelo. Manual de direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Método, 2013. p. 672. 22 da dignidade da pessoa humana é considerado como “valor constitucional supremo”36, encontrando-se expresso no art. 1º, inciso III, da Carta Magna, nos termos37: Art. 1º - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento: (...) III – a dignidade da pessoa humana; Logo, sendo o Direito Penal a medida mais extrema do Estado para regulação de conflitos e aplicação de sanções, deve-se respeitar tal princípio para que o poder estatal não perca o seu caráter democrático38. Ou seja, para se ter um direito penal democrático, deve haver prevalência das garantias dos direitos do cidadão em face do dever punitivo do Estado, de modo que aquelas sejam respeitadas frente aos princípios patentes. Desse modo, a origem do conceito do princípio aludido é comumente incumbida a Immanuel Kant 39 , que defendia que o homem possuía um valor intrínseco, que seria a própria dignidade humana. E como portador dela, deveria ser tomado como um meio em si mesmo, e não como um fim, por cada pessoa ser única e imperiosa. Dessa forma, fazendo um conexo com o campo penal, a dignidade da pessoa humana – obviamente -, não faz distinção entre homens livres e presos. Ou seja, deve ser observada no tratamento dos presos provisórios e definitivos do país, em respeito à sua condição humana. Assim, como a audiência de custódia é um instrumento aplicado a eles, amplia a efetividade desse anseio primordial no quetange à observação das legalidades das prisões. 36 NOVELINO, Marcelo. Manual de direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Método, 2013. p. 448. 37 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. 38 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal. 10. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 56. 39 KANT, IMMANUEL. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. São Paulo: Martin Claret, 2005. p. 59. 23 2.4.3 O princípio da presunção de inocência A presunção de inocência, também chamada de não culpabilidade, está prevista no art. 5º, da Constituição Federal40, prevendo que nenhuma pessoa será considerada culpada até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Bem como o princípio da dignidade humana, também teve como substrato os tratados de direitos humanos internacionais, assim como assevera Tourinho Filho: O princípio remonta o art. 9º. da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão proclamada em Paris em 26-8-1789 e que, por sua vez, deita raízes no movimento filosófico- humanitário chamado “Iluminismo”, ou Século das Luzes, que teve à frente, dentre outros, o Marques de Beccaria, Voltaire e Montesquieu, Rousseau. Foi um movimento de ruptura com a mentalidade da época, em que, além das acusações secretas e torturas, o acusado era tido com objeto do processo e não tinha nenhuma garantia. Dizia Bercaria que “a perda da liberdade sendo já uma pena, esta só deve preceder a condenação na estrita medida que a necessidade o exige41. Isto posto, um dos seus efeitos é de se estabelecer como uma regra de tratamento ao sujeito que aparentemente apresenta algum embate com a justiça, evitando juízos condenatórios precipitados, a fim de proteger as pessoas contra eventuais excessos das autoridades públicas42. Assim, também gera efeitos no que tange ao ônus da prova, devendo o Ministério Público ou a parte autora provar a culpa do acusado. Ou seja, sua inocência é presumida, devendo a parte acusadora comprovar a culpabilidade do agente. Em caso de haver alguma dúvida quanto a ela, o magistrado não deve incriminá-lo. De igual modo, reflete na questão da prisão cautelar, que terão suas hipóteses abordadas posteriormente, mas que em razão do princípio abordado, para ser empregada tem que se fazer necessária. Ou melhor, a prisão cautelar deve ser motivada conforme os requisitos previstos na lei. Ademais, essa garantia advém de previsões em documentos internacionais, em já mencionados tratados. Como, por exemplo, na Convenção Americana de Direitos Humanos, segundo a qual aduz que “Toda pessoa acusada de um delito 40 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. 41 FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Manual de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 71-72. 42 ANDRADE, Mauro Fonseca; ALFLEN, Pablo Rodrigo. Audiência de custódia: da boa intenção à boa técnica. Porto Alegre: FMP, 2016. [E-Book] 24 tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpabilidade43.” (CADH, art. 8, parágrafo I). Sendo assim, o princípio em questão exerce função imprescindível ao exigir que toda privação da liberdade, antes do trânsito em julgado de sentença condenatória, deva ser motivada, a fim de demonstrar sua natureza cautelar44. Com isso, apesar de atualmente se verificar uma tentativa de relativização desse princípio àqueles que já se encontram em fase processual45, o enfoque dos seus efeitos na presente pesquisa se dará em relação ao agente que é pego em estado de flagrância e ao preso provisório. 2.4.4 O princípio do devido processo legal O principio do devido processo legal encontra-se consagrado no inciso LIV, do art. 5º, da Carta Magna, estabelecendo que ninguém será privado de sua liberdade ou bens sem o devido processo legal46. Isso significa que para a privação de liberdade ou patrimonial ser considerada legal, ela deve resultar de um processo sujeito às formalidades adequadas previstas na lei, sob pena de nulidade absoluta. Dessa forma, visa garantir a participação no processo das partes para a formação do convencimento do juiz para este proceder a decisão final almejada. Como decorrência desse princípio, surgem duas outras garantias processuais, analisadas a seguir. 43 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Convenção americana sobre direitos humanos: assinada na Conferência especializada interamericana sobre direitos humanos, San José, Costa Rica, em 22 de novembro de 1969. Disponível em: <http://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao>. Acesso em: 10 mar. 2016. 44 ANDRADE, Mauro Fonseca; ALFLEN, Pablo Rodrigo. Audiência de custódia: da boa intenção à boa técnica. Porto Alegre: FMP, 2016. [E-Book] p. 17. 45 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. STF admite execução da pena após condenação em segunda instância. Brasília: STF, 2016. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=326754>. Acesso em: 06 out. 2016. 46 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. 25 2.4.4.1 O princípio do contraditório e da ampla defesa Segundo aludido, surgem como resultado do princípio do devido processo legal, sendo previstos também na Constituição Federal, de acordo com redação do art. 5º, inciso LV47: LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. Entende-se por contraditório o direito da parte contrária em apresentar sua defesa contra a acusação que lhe foi feita. Assim, é composta por dois elementos: “informação e reação”48, ou seja, somente pelas teses apresentadas pelas partes (“informação”) é que o juiz pode formular um veredito. Já a ampla defesa se caracteriza como corolário do contraditório (“reação”), na medida em que é a possibilidade da parte utilizar de todos os meios legais disponíveis para a defesa dos seus direitos. Contudo, a doutrina moderna, representada pelo professor italiano Elio Fazzalari 49 , formula uma nova conceituação ao processo, caracterizando o contraditório não só como o direito de apresentação de resposta, mas também como a participação em simétrica paridade de armas dos litigantes. Ou seja, paridade no sentido de semelhante tratamento entre as partes, conjugado com iguais oportunidades no decorrer do processo. Como será visto, a audiência de custódia amplia o contraditório e a ampla defesa do preso, na medida em que poderá apresentar pessoalmente seu ponto de vista sobre o caso concreto. Assim, a oralidade traz um maior grau de certeza para o magistrado desempenhar o seu papel sem possíveis equívocos. 47 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. 48 NOVELINO, Marcelo. Manual de direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Método, 2013. p. 701. 49 FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual. Campinas: Bookseller, 2006. 26 3. A PRISÃO PROVISÓRIA NO CONTEXTO BRASILEIRO O presente capítulo tem como finalidade expor as diferentes espécies de prisões provisórias, também chamadas de cautelares, existentes no país e os requisitos para sua imposição. Isso porque, a audiência de custódia é um procedimentoanterior à decretação desse tipo de prisão cautelar e que, portanto, tem impacto real sobre sua determinação ou não. Sendo assim, cumpre destacar que o conceito de prisão provisória se difere do significado de prisão privativa de liberdade. Esta, conforme preceitua Nucci, é regulada pelo Código Penal, que estabelece suas espécies, formas de cumprimento e regimes aplicáveis ao condenado, sendo resultado de uma condenação criminal. E continua, caracterizando aquela, como aplicável enquanto se espera o desfecho da instrução criminal, ou seja, antes do trânsito em julgado da sentença50. Destarte, a prisão provisória, ao contrário da prisão privativa de liberdade, é regulada pelo Código de Processo Penal. Observa-se que a partir da Lei n. 12.403/2011, a decretação da prisão provisória passou a exigir, além da necessidade, a sua imprescindibilidade como garantia do processo. Ou seja, a prisão cautelar só poderá ser imposta se, além de verificada sua urgência e necessidade, não houver nenhuma outra medida menos drástica para salvaguardar a eficácia dos atos do procedimento penal. Conforme Fernando Capez, “sem urgência e necessidade, não existe segregação cautelar”51. Nesse sentido, seriam os casos em que não se pode aguardar o término do processo para privar o agente de sua liberdade, por existir chance de que “tal demora permita que ele, solto, continue a praticar crimes, atrapalhe a produção de provas ou fuja, impossibilitando a futura execução da pena”52. Ante o exposto, há três modalidades de prisão provisória previstas no ordenamento, cada qual com seus requisitos e momentos determinados no âmbito penal. 50 NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 13. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 762. 51 CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 111. 52 JURUBEBA, Yuri Anderson Pereira. Relatório pesquisa: concretização da audiência de custódia no Estado do Tocantins. 2016. 137f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós Graduação Stricto Sensu, Universidade Federal do Tocantins, Palmas, 2016. 27 3.1 Prisão em flagrante Preliminarmente, o significado do termo flagrante advém do latim flagrare, que significa queimar, arder. Ou seja, em sentido figurado, seria o que está ocorrendo, “queimando”. E ainda, nos dizeres de Nucci, é aquela realizada no instante em que se está cometendo a infração penal ou quando acaba de produzi-la, tanto em caso de crime como de contravenção penal53. Ela possui caráter administrativo, assegurando que qualquer pessoa possa intervir de imediato o autor da infração, sendo inicialmente formalizada através da lavratura do auto de prisão em flagrante pelo respectivo delegado de polícia. Posteriormente, é enviado à autoridade judiciária para tomar as iniciativas cabíveis, passando a ter caráter jurisdicional. Assim, cumpre salientar que a prisão em flagrante perdeu seu caráter de prisão provisória, na medida em que o sujeito não permanece preso sob essa modalidade durante todo o processo. O que ocorre, é a possibilidade de ser preso antes do trânsito em julgado da sentença, mas não de permanecer preso pelo estado de flagrância, cabendo a análise do juiz como supracitado54. Dessa forma, antes das medidas cabíveis ao magistrado serem informadas, faz-se necessário o conhecimento acerca das modalidades de flagrantes presentes no ordenamento jurídico brasileiro. Tal previsão encontra-se nos artigo 302, do CPP55, que expõe: Art. 302 – Considera-se em flagrante delito quem: I – está cometendo a infração penal; II – acaba de cometê-la; III – é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser o autor da infração; IV – é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração. Dessa forma, pode-se aferir no inciso I, a primeira modalidade de flagrante: o flagrante próprio ou perfeito. Este ocorre no momento em que o sujeito está realizando os atos executórios da infração penal. No caso, se alguém interferir no 53 NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 13. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 794. 54 CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 238. 55 BRASIL. Código de Processo Penal (1941). Decreto de lei n. 3.689, de 1941/10/03. (8a ed. rev., amp. e atual.). São Paulo: Revista dos Tribunais. 28 prosseguimento da execução, pode resultar em tentativa. Mas, se for crime permanente, cuja consumação se prolonga no tempo, o flagrante servirá apenas para impedir o prosseguimento do delito já consumado56. Logo, a modalidade do inciso II recebe a mesma nomenclatura, na medida em que se caracteriza no instante em que o agente acabou de concluir a prática da infração penal, em situação de ficar latente a prática do crime e da autoria57. Ou seja, o sujeito continua ligado ao contexto do crime, mesmo com o delito já consumado. Por outro lado, o inciso III traz o chamado flagrante impróprio ou imperfeito, ou ainda, quase-flagrante, que sucede quando o agente conclui a infração penal, foge e, ao ser perseguido pela polícia, vítima ou qualquer pessoa do povo, é preso58. Verifica-se, portanto, que o autor não é preso em plena atividade da infração, como nas espécies anteriores, cabendo uma análise acerca do significado da expressão “logo após”. A lei utilizou esta expressão para evitar que pessoas inocentes fossem perseguidas, pois significa que a perseguição deve se iniciar imediatamente ao crime realizado. Nos dizeres de Delmanto Junior 59 , “a perseguição há que ser imediata e ininterrupta, não restando ao indigitado autor do delito qualquer momento de tranquilidade” Assim, enquanto o autor for perseguido, permanecerá o estado de flagrância, ficando evidente no artigo que a não há limite para a duração da perseguição, desde que tenha tido início logo após a prática do crime. Ademais, cabe ao magistrado a análise do caso concreto para se verificar se a prisão em flagrante impróprio foi legítima, tendo como base o enunciado da lei. Por fim, o inciso IV traz a espécie de flagrante presumido ou ficto, sendo aquele em que o agente, embora não tenha sido perseguido após o crime, é 56 NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 13. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 798. 57 NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 13. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 798. 58 NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 13. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 798. 59 DELMANTO JÚNIOR, Roberto. As modalidades de prisão provisória e seu prazo de duração. 2. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 101. 29 encontrado portando instrumentos, armas, objetos ou papeis que mostrem, por presunção, ser ele o autor da delinquência60. Igualmente, a expressão “logo depois” sofre limitação. Apresenta-se como uma situação de tempo curto, entendido como algumas horas, admitindo também a análise do magistrado em cada caso particular. Além das hipóteses demonstradas, tem-se o caso do flagrante preparado ou provocado, em que não se admite prisão. Ele é verificado quando o indivíduo é induzido à prática de um crime por um agente provocador, configurando crime impossível, previsto no artigo 17, do CP61. Com base nisso, o entendimento da Súmula 145 do SupremoTribunal Federal62 estabelece que “Não há crime quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”. Contudo, apesar de mencionar somente a polícia, a provocação também pode partir de um particular. Como reforça Nucci, “a armadilha é a mesma, de modo que o delito não tem possibilidade de se consumar”63. Da mesma maneira, há a situação de flagrante forjado, verificado em situação de inserção de prova falsa de crime inexistente. Portanto, não constitui crime, “tendo em vista que a pessoa presa jamais pensou ou agiu para compor qualquer trecho da infração penal”64. Por fim, uma forma considerada legal para autorizar a prisão em flagrante, seria o flagrante esperado, que decorre de mera vigilância dos agentes policiais. Ou seja, chegando à polícia a notícia de um crime, se deslocam ao local, aguardando sua ocorrência, que pode ocorrer ou não. Ocorrendo o fato, será válida a prisão65. 60 NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 13. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 800. 61 BRASIL. Código Penal (1940). Decreto de lei n. 2.848, de 1940/07/12. (54a ed.). São Paulo, SP: Saraiva. 62 SÚMULA 145, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. 63 NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 13. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 801. 64 NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 13. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 802. 65 NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 13. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 802. 30 3.1.1 Formalidades da prisão em flagrante Conforme analisado as possíveis situações de flagrância, o momento crucial é o conhecimento das formalidades que devem ser respeitadas para que a prisão em flagrante seja considerada legal, para ser posteriormente reconhecida pelo respectivo juiz. Assim, logo após a prisão, o sujeito é apresentado à autoridade competente - em regra, o delegado de polícia -, que preside a lavratura do auto de prisão em flagrante, em que serão recolhidos todos os depoimentos das pessoas envolvidas no momento da ação. Tal disposição está expressa no artigo 304, do Código de Processo Penal66. Posteriormente, respeitado os requisitos do artigo supracitado, o artigo 306 do mesmo diploma67, traz a necessidade de a prisão ser imediatamente comunicada, em um prazo de 24 (vinte e quatro) horas, ao juiz competente, ao Ministério Público e à família do preso ou à pessoa por ele determinada. Finalmente, sendo observadas tais formalidades, o auto de prisão em flagrante é encaminhado ao magistrado que terá três possibilidades, consoante artigo 310, do Código de Processo Penal68, com as modificações introduzidas pela Lei 12.403/2011: Art. 310 – Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deve fundamentadamente: I – relaxar a prisão ilegal; ou II – converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou III – conceder liberdade provisória, com ou sem fiança. Parágrafo único. Se o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, que o agente praticou o fato nas condições constantes dos incisos I a III do caput do art. 23 do Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, poderá, fundamentadamente, conceder ao acusado liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos processuais, sob pena de revogação. 66 BRASIL. Código de Processo Penal (1941). Decreto de lei n. 3.689, de 1941/10/03. 8a ed. rev., amp. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais. 67 BRASIL. Código de Processo Penal (1941). Decreto de lei n. 3.689, de 1941/10/03. 8a ed. rev., amp. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais. 68 BRASIL. Código de Processo Penal (1941). Decreto de lei n. 3.689, de 1941/10/03. 8a ed. rev., amp. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais. 31 Como salienta Nucci, “a anterior redação do art. 310 não fazia referência à obrigatoriedade de motivação da decisão judicial, que aprecia o auto de prisão em flagrante, adotando um encaminhamento favorável ou desfavorável ao acusado”69. Dessa forma, como já explanado neste trabalho, ninguém permanece preso em flagrante, devendo o juiz desempenhar alguma dessas medidas previstas no artigo supracitado. Sendo assim, esse tipo de prisão é uma das que terão maior importância no estudo apresentado, na medida em que a audiência de custódia é empregada exatamente após sua efetivação, no qual o juiz decidirá entre as medidas possíveis em contato direto com o preso, coibindo os desvios judiciais. 3.2 Prisão preventiva A prisão preventiva é a principal espécie de medida cautelar, havendo a restrição da liberdade do indivíduo quando observados os requisitos legais. Deve ser adotada como medida excepcional, já que o legislador previu no art. 282, §6º, do Código de Processo Penal, que só “será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar (art. 319)”70. Além disso, deve estar presente o binômio do fumus commissi delicti e o periculum em libertatis, consoante artigo 312, do mesmo diploma: Art. 312 - A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011)71. O fumus commissi delicti significa a “fumaça do cometimento do delito”, ou seja, a probabilidade de uma infração ser cometida, exposto na parte final do artigo quando se prevê a necessidade de prova existencial do crime e indícios suficientes de autoria. 69 NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 13. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 815. 70 BRASIL. Código de Processo Penal (1941). Decreto de lei n. 3.689, de 1941/10/03. 8a ed. rev., amp. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais. 71 BRASIL. Código de Processo Penal (1941). Decreto de lei n. 3.689, de 1941/10/03. 8a ed. rev., amp. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais. 32 Já o periculum em libertatis, ou “perigo da liberdade”, é o risco para a sociedade na permanência do agente solto, apresentada como perigo à garantia da ordem pública, ordem econômica, conveniência da instrução criminal ou necessidade de aplicação da lei penal. Caberá ao magistrado analisar se há concretos riscos de fuga do agente, bem como de ameaça em prejudicar, de alguma forma, a produção de provas. Dessa maneira, fica manifesto a previsão da prisão preventiva como medida excepcional/subsidiária, sendo ulteriormente explanada quais seriam as medidas cautelares diversas da prisão. 3.3 Prisão temporária Ao contrário das outras espécies de prisão, a prisão temporária não está prevista no Código de Processo Penal, sendo editada pela Medida Provisória n. 111, de 24 de novembro de 1989, posteriormente convertida na Lei n. 7960, de 21 de dezembro de 1989. Assim posto, ela se apresenta como prisão cautelar de natureza processual dirigida a possibilitar as investigações de crimes graves, previstos na mesma lei, durante o inquérito policial. À vista disso, a prisão temporária só pode ser decretada pela autoridade judiciária, sob pena de ilegalidade, nas situações previstas pelo art. 1º da Lei 7.960/8972, quais sejam:Art. 1º - Caberá prisão temporária: I- quando imprescindível para as investigações do inquérito policial; II- quando o indiciado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade; III- quando houver fundadas razões de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou de participação do indiciado nos seguintes crimes: (...) Não é pacífica a interpretação desse dispositivo legal, existindo posições diversas sobre a aplicação da prisão temporária. Porém, a mais acolhida é a corrente dada por Damásio de Jesus73, quando pontifica que a prisão temporária 72 BRASIL. Dispõe sobre a prisão temporária. Lei 7.960/89, de 21 de dezembro de 1989. 73 JESUS. Damásio Evangelista de. Código de Processo Penal Anotado. 9. ed., São Paulo: Saraiva. p. 643. 33 somente cabe nos crimes apontados no inciso III, se presentes as condições do inciso I ou do inciso II. Na mesma vertente é o entendimento de Fernando Capez, quando elucida que, para decretar a prisão temporária, o agente deve ser suspeito ou indiciado de um dos crimes previstos na Lei, mais “a presença de pelo menos um dos outros dois requisitos, evidenciadores do periculum in mora. Sem a presença de um destes dois requisitos ou fora do rol taxativo da lei, não se admitirá a prisão provisória”74. Dessa forma, continuando as alíneas do inciso III, art. 1º, é cabível nos seguintes crimes: homicídio doloso, sequestro ou cárcere privado (com os acréscimos operados pela Lei n. 11.106/2005 ao art. 148 do CP), roubo, extorsão, estupro, atentado violento ao pudor; rapto violento (art. 219 do CP, revogado pela Lei n. 11.106/2005), epidemia com resultado morte, envenenamento de água potável ou substância alimentícia, quadrilha ou bando, genocídio, crimes contra o sistema financeiro e tráfico de drogas.75 Enquanto ao prazo, o art. 2º, da Lei da Prisão Provisória, explicita que terá o prazo de 05 (cinco) dias, prorrogável por igual período em caso de extrema necessidade e desde que comprovada 76 . Aos crimes acima indicados que são considerados crimes hediondos, o prazo será de 30 (trinta) dias, prorrogável por igual período, havendo também necessidade de fundamentação, de acordo com redação do art. 2º, §4º, da Lei 8.072/199077. Ademais, nos termos do art. 3º, da Lei 7.960/89, os presos temporários ficarão obrigatoriamente separados dos demais detentos78. 3.4 Medidas cautelares diversas da prisão A Lei 12.403/2011 trouxe como uma de suas conquistas a implantação das medidas cautelares diversas da prisão, rompendo uma barreira carcerária há muito difundida no Brasil, qual seja a da imposição da prisão como forma única de garantia da persecução penal. 74 CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 311. 75 BRASIL. Dispõe sobre a prisão temporária. Lei 7.960/89, de 21 de dezembro de 1989. 76 BRASIL. Dispõe sobre a prisão temporária. Lei 7.960/89, de 21 de dezembro de 1989. 77 BRASIL. Dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências. Lei 8.072/90, de 25 de julho de 1990. 78 BRASIL. Dispõe sobre a prisão temporária. Lei 7.960/89, de 21 de dezembro de 1989. 34 Assim, o Código de Processo Penal prevê várias medidas cautelares diversas da prisão preventiva, de forma que esta só poderá ser imposta em último caso, quando nenhuma delas forem eficientes para afastar a situação de perigo concreto proveniente do delito. Dispõe o art. 282, do Código de Processo Penal79, que as medidas cautelares devem aplicadas de acordo com a: I- necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais; II- adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado. Logo, assim como nas prisões cautelares, qualquer medida de natureza cautelar deve estar fundada na real necessidade de garantia do processo, com a presença do fumus commissi delicti e do periculum libertatis, se apresentado como a maneira mais adequada para tal feito. Ou seja, deve ser respeitado o princípio da proporcionalidade, sopesado com dois outros requisitos: necessidade e adequação. O primeiro obriga a fundamentação de qualquer medida cautelar ao periculum libertatis, não podendo ser imposta com base apenas na gravidade da acusação. Já o segundo, a adequação, impõe que a medida seja a mais hábil possível para a preservação do processo, visualizada quando cabível a prisão preventiva, a medida cautelar se mostrar mais hábil para o mesmo fim, devendo esta ser aplicada por ser menos onerosa ao agente. No mesmo sentido, “se o gravame for mais rigoroso do que o necessário, se exceder o que era suficiente para a garantia da persecução penal eficiente, haverá violação ao princípio da proporcionalidade”80. O rol de medidas cautelares está previsto no art. 319, do Código de Processo Penal81, que aduz: 79 BRASIL. Código de Processo Penal (1941). Decreto de lei n. 3.689, de 1941/10/03. 8a ed. rev., amp. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais. 80 CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 313. 81 BRASIL. Código de Processo Penal (1941). Decreto de lei n. 3.689, de 1941/10/03. 8a ed. rev., amp. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais. 35 Art. 319 - São medidas cautelares diversas da prisão: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011). I - comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011). II - proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011). III - proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011). IV - proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011). V - recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011). VI - suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011). VII - internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (artigo 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011). VIII - fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011). IX - monitoração eletrônica. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011). Observa-se que o artigo encartado compreende uma disposição gradativa das medidas conforme o seu grau de intensidade, partindo das mais brandas até medidas mais contundentes, ampliando as opções do juiz conforme os critériosmencionados. Por fim, a prisão preventiva se exprime de caráter subsidiário em relação às medidas cautelares diversas da prisão, somente devendo ser aplicada em último caso. 3.5 Banalização das prisões provisórias no Brasil Já se falou neste trabalho sobre as principais prisões processuais cautelares e os requisitos para sua prescrição. Entretanto, o que se observa na prática é contínuo excesso de aprisionamento, caracterizando a banalização das prisões cautelares no país. 36 Ademais, mesmo com a vigência da Lei 12.403/11, que trouxe alterações no Código de Processo Penal colocando, no plano legislativo, a prisão como ultima ratio (último instrumento), o número de prisões provisórias não diminuiu. Mesmo com a criação de medidas cautelares diversas da prisão, o que se verifica na prática é a proeminência da prisão. Nesse sentido pode-se dizer que “a lógica judicial permanece vinculada ao protagonismo da prisão, que a homologação do flagrante, longe de ser a exceção, figura como regra no sistema processual brasileiro”82. Nesse contexto, cabe analisar os dados do total de encarcerados atualmente no país e de que maneira a consolidação da audiência de custódia pode significar um importante fator na diminuição de prisões desnecessárias, igualmente em que cenário da cultura brasileira se faz presente, de modo a contribuir para a perpetuação de vícios processuais. 3.5.1 A cultura do encarceramento Como já exposto neste trabalho, a Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1.988 representou o marco da redemocratização do país, bem como da institucionalização de direitos humanos como parâmetro para todo o ordenamento jurídico. Paradoxalmente, há um aumento exponencial no número de prisões, tanto as provisórias como as definitivas, surgindo o questionamento se ainda estão presentes resquícios do estado de exceção que dominou o Brasil no período anterior da referida Constituição. Ou seja, por um lado tem-se a consolidação legislativa de garantias e direitos fundamentais, principalmente de setores vulneráveis da sociedade, por outro ainda se permeia um sistema penal repressivo, que exalta a punição no lugar da ressocialização. É certo que o fenômeno do aumento carcerário não é um acontecimento exclusivamente brasileiro, mas no país adquire mais notoriedade, exatamente por se ter um sistema pautado em tantas garantias. 82 LOPES JÚNIOR, Aury; PAIVA, Caio. Audiência de custódia. Revista Liberdades. nº 17, set/dez 2014. Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. 37 Confirmando essa tendência, o relatório do Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias), de junho de 2014, informou que o número total de presos no país era de 607.731 pessoas, colocando o Brasil em quarto lugar comparado aos países que mais encarceram, quais sejam Estados Unidos da América, China e Rússia83. Foi a primeira vez que o país ultrapassou a marca de 600 mil presos. Outra informação surpreendente advém do Banco Nacional de Mandados de Prisão (BNMP), que traz o número de 473.242 mandados de prisão para serem cumpridos 84 , fazendo com que a demanda de vagas nas prisões ultrapasse o número de um milhão. Entretanto, há apenas 376.669 vagas no sistema criminal, escancarando o imenso deficit de vagas hoje existentes, somando-se a impressionante taxa de aproximadamente 164% de ocupação dos espaços disponíveis85. Ainda consoante levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), datado em junho de 2014, 42% desse número de pessoas presas seriam os de caráter provisório86. Esse dado demonstra como está presente o que se chama de “cultura do encarceramento”, corroborando o paradoxo de que em um Estado Democrático de Direito a prisão cautelar é vista ainda como regra. Nesse seguimento, expõe Masi87: A ideia de que a prisão seria a melhor, se não a única, alternativa para “combater” crimes de natureza “grave” e evitar sua reiteração nunca deixou de permear a atuação dos juízes criminais em geral. Especialmente nos casos de prisão em flagrante delito, a concepção de que a situação de flagrância prenderia por si só, apesar de legalmente afastada com a reforma processual penal de 2011 (Lei 12.403), permanece mais viva do que nunca. Ou como bem explica Lewandowski88: 83 Levantamento Nacional de informações penitenciarias INFOPEN, jun. de 2014. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio- depen-versao-web.pdf> Acesso em 19 ago. 2016. 84 BRASIL, Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/bnmp/#relatorios> Acesso em 10 ago. 2016. 85 http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio- depen-versao-web.pdf 86 BRASIL, Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: Novo diagnóstico de pessoas presas no Brasil, Brasília, jun. 2014. Disponível em: <www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao- penal/audiencia-de-custodia/perguntas-frequentes>. Acesso em 10 ago. 2016. 87 MASI, Carlo Velho. A audiência de custódia frente à cultura do encarceramento. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 960, n. 104, 2015. p.113. 88 LEWANDOWSKI, Ricardo. Audiência de custódia: em busca da autêntica jurisdição de liberdade. Revista do Advogado, nº 128, dezembro 2015. p. 94. 38 A “cultura do encarceramento”, tão arraigada entre os atores do sistema de justiça, repercute a preocupação de um Estado que responde aos desafios da segurança pública mediante a utilização de leis e penas cada vez mais severas, disseminando, com isso, ainda mais violência, numa atitude que só contribui para aprofundar os conflitos na sociedade, que passa, num verdadeiro círculo vicioso, a clamar por medidas cada vez mais repressivas contra os delinqüentes eventuais ou reincidentes. Pode-se concluir que a cultura brasileira no que tange à ideia de justiça se encontra muito fortemente atrelada à restrição da liberdade, refletindo na mentalidade dos juízes criminais brasileiros. Predomina o discurso da insuficiência da aplicação de medidas cautelares, afirmando a tendência feita por Ferrajoli, da degeneração do direito penal, transformando-o em um mecanismo somente de punição sem critérios de proporcionalidade89. Por isso, para que a audiência de custódia resulte na efetivação dos direitos humanos e na consequente diminuição do contingente da massa carcerária, faz-se necessário que os operadores jurídicos manejem adequadamente o novo recurso, aplicando a prisão como exceção, amparado no princípio da proporcionalidade. Isso não extirpará todas as mazelas decorrentes da cultura do encarceramento, mas já se posiciona como um começo de mudança na forma de se distribuir justiça. Como destaca Lewandowski, “muito, inclusive, ainda temos por alcançar e até mesmo aprimorar, diante desse choque de mentalidades que se está a promover. Certo, apenas, é que acreditamos ter dado um importante passo na direção desejada90”. 3.5.1.1 Perfil da população carcerária Para reforçar a ideia de que o Direito Penal tem sido utilizado para atender às expectativas sociais, extrapolando o seu poder punitivo originário, demonstra-se basilar o conhecimento do perfil da população carcerária brasileira. Isso porque a cultura do encarceramento atinge principalmente as camadas sociais mais carentes, contribuindo para sua maior marginalização. Como reforça a 89 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoria Del garantismo penal.
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