Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
ç1 1. A INVEN cÁO DA CULINARIA S T1 A Pritheira Revoluç& o P c ct1 “Urn pao de fôrm a”, disse a M orsa, “E do que m ais precisam os: Alérn disso, pim enta e vinagre Seriam realm ente excelentes. E agora, se vocês estão prontas, queridas o stras, Podernos corneçar a corner.”Lewis Carroll, A través do espeiho Assirn pode-se ver tudo, a co m ida cru a e a quIrnica do fogo — o que n ao sO silencia as reclarnacaes do sanitarista, corno dá m ais vivacidade a sala. W illiam Sansom , Blue Skies, Brow n Studies 0 Fogo Transform ador Essa não e a m an eira co rreta de corner ostras. Você observa alguns e x i gentes frequentadores de restaurantes brincando corn elasa m esa, c obrin do-as corn suco de lim ão esprem ido em guardanapos de m u sselina, o u adicionando-Ihes pequenas doses de vinagres de sabores exOticos, o u pin- 20 COM IDA: UM A HISTORIA A IN V EN cA O DA CULINARIA 21 m entados. Isso é u rna provocaçao deliberada, destinada a refrescar o s m oluscos antes da m o rte, u m a pequena torrura sob aqual as vezes epos sIvel v er as vItim as se retorcerern ou tentarem se esquivar.A seguir, o c o m ensal m anipula a coiher e retira a ostra,f-orçando-a efazendo-a esco rregar da co n cha para a cu rv a de prata fria.A m edida que ele leva o m olusco m acjo e esco rregadio aoslábios, alum inosidade da criatura co ntrasta corn o brilho do taiher. E assirn que a m aioria daspessoasgosta de co rn er o stras.N o entanto, isso significa perder o pleno e v erdadeiro m o m ento da o stra.Se não n o s livrarm os dos utensflios e,jogando a cabeça para trás,levarm os a m eia co n cha aboca, extraindo a criatura da toca corn n o sso sdentes,provando seu suco salgado e esprem endo-a ligeiram ente co ntra o c u da boca antes de engoli-la viva, estarem os nos privando de u m a experiéncia histórica. D urante a rn aior parte da histOria, os co m edores de o stras desfrutaram aquele cheiro ligeirarnente fétido edesagradavel ao paladar sern cobri-lo edisfarcá-lo corn m oihos de ácidos a ro m tjcos.Essa era a rn an eira co m o A usónio gostava delas, em “seu su co adocicado, m isturado corn u m a se n sação de m ar”.O u, naspalavrasde urn m oderno especialista em o stras, o objetivo e receber “algum a sen sação aguda do m ar, corn todas as suas a! gas ebrisas...Estam os co rn endo o m ar,éisso, so que a sen saçao de tornar urn gole de água m arinha foi elirninada da experiéncia por algum tipo de bruxarja”l. Pois, no repertO rio da co zinha o cidental m oderna, a o stra é a tinica coisa que co m em o s cru a e ainda viva.E o m aisprOxirno que ternosde urn alirnento “n atural” — o tnico prato que m erece ser cham ado de “au n ature!” sern ironia.E Obvio que,quando co m em o s o stras em urn re stau rante,forarri-Ihes retiradas asbarbas e a co n chajá foi abertas, corn toda a panOplia da civilizaçao e por urn profissional especializado que utilizou u m a tecnologia apropriada em urn ritual secreto e,provavelm enre, urn gesto eleganre.A o stra, antes disso,foi criada debaixo d’água, sobre te Ihasde pedra ou treliçasde m adeira, arrebanhada em urn can reiro de o s tras,desenvolvida durante an o s sob olharesde especialistas e coihida por m ãos experirnenradas — e nao ex atam ente caprurada em urn lago n atural form ado por recifes co m o se fosse urn prêm io da n atureza.A inda assim , ela ë o alim ento que m ais nos u ne a todos os n o sso s antepassados — o prato que co n su m irnos em u m a form a que, reco nhecidam ente, é a m esm a em que a co m ida era en co ntrada pelos sereshum anos desde o su rgim ento de n o ssa espécie. M esm o que você seja u m a daquelas pessoas que pensam o u vir o grito cia pêra o u do am endoim quando são m astigados cru s, haverá pouca chance de você en co ntrar o utro alim ento na co zinha m oderna o cidental que seja tao co n vincentem ente “n atural” co m o a ostra,posto que, corn m uito p o u cas exceçöes — co m o é a caso de algunsfungos e das algas m arinhas — , a s frutas e legum esque co m em o s — m esm o afrutinha selvagem que catam os em seu arbusto — são o resultado de geracöes o u ate de eras inteiras de c riaço seletiva por parte do hom em ; a o stra co ntinua a ser urn produto de seleçao n atural pouco m odificada e varia significativarnentede urn m ar para o utro.Além disso, é ingerida enquanto ainda viva.E v erdade que o utras culturastern rnais alim entosdeste tip o . Os aborigines au stralianos devoram larvasde witjuti, apanhadasdas seringueiras, ainda rechonchudas par c a u sa da polpa da m adeira m aldigerida em seus estom agos.O s n en ets m a sti gam ruidosam ente, “co m o se fossem balas”, ospiolhos vivos que tiram do I prOprio c o rpo”. 2 Dizem que os arn antes n uerdem onstram o afeto m ütuo alirnentando urn ao o utro corn ospiolhosque cataram n a cabeça. Os m asais bebem o sangue esprernido das feridasdo gado vivo.O s etfopes gostam dos favosde m el corn as larvasjovens ainda vivas em suas câm aras. E nOs tem os as ostras. “H a u m a solenidade terrIvel” no ato de co m e-las, co m o observou Som ersetM augham ,que “u m a im aginação pouco ativa não co n segue cap- tar”, 3 e que certam ente faria a M orsa chorar sem hipocrisia.A lém disso, as ostras são co m pletarnente incornuns entre os alim entos cru s porque geral m ente elas tern o sabor arruinado corn o co zim ento. Colocar as o stras em u m a torta de cam e e rins o u prepará-las e n rola das em bacon em churrasquinhos, co m o fazem as ingleses, o u afoga-las em vários tipos de m olho de queijo, co m o n o s pratos cham ados de O stras Rockefeller e OstrasM usgrave, o u rechear corn elas u m a o m elete, co m o n o p rato tIpico cia cozinha regionalda provIncia chinesa de X iam en, ou cotta- las em pedacinhos para rechear urn pedaco de vitela o uu rn peixe grande, tudo isso significa ocultar-ihes o sabor.As vezes, receitas inovadoras podem ter urn pouco m ais de sucesso: u m a vez com i urn prato esplêndido de ostras no A thenaeum , em Londres,ligeiram ente passadas em vinagre de vinho e 22 CO M IDA: UM A H ISTORIA pinceladas corn urn m oiho branco corn saborde espinafre.Esse tipo de experim ento ejustificável co m a diversão, m as rararnente expande asfron teirasda gastronom ia. A o stra e urn caso extrerno, m as todos as alirnentos crus são fascinan tesporque são anôm alos — urn aparente retrocesso a urn m u ndo pré-ci.z1 vilizado e m esm o a urna fase pré-hum ana da ev olucão. Cozinhar os alim entos e urna das poucas práticas estranhas que são peculiarm ente hum anas — estranha em term osda natureza,tendo em vista os padröes m ais cornunsde abordagens ao alim ento dernonstrados pela m aioriadas espécies.Um adas buscas m ais prolongadas e m alsucedidasdahistória e a buscapela esséncia dahum anidade,aquela caracterIstica tfpicaquefaz seres hum anos serem hum anos e as distingue coletivam eñtedos o utros anim ais. Os esforços n aa chegaram alugar algum , e a i’inico fato provávelqueSe para nossa espécie das outras eque n ao podem os acasalar corn elas corn êxito.M uitas das outras caracterIsticas norm alm ente alegadas são m ad m issIveis ou pouco canvincentes.Algurnas são plausIveis, m as parciais. A rrogam o-nos “consciência” sem saberbern o que ela e ou se autras c ri aturas apossuem . Reivindicam ospara nós m esm os o poderdalinguagern — m as, sepudéssem os nos com unicar corn eles, o utros anim aispoderiam argum entar co ntra isso.Som os relativam ente engenhososquando se trata da soluçâo de problem as, relativam ente adaptáveis em nossa capacidade de habitar am bientes distintos, relativam ente hábeis em nossa utilizacao de ferram entas — em especial,de mIsseis.Sam os tam béin relativam ente am biciosos em nossas obras de arte e na concretização fisica de nossa im aginação.Em alguns aspectos, nessas relacoes, aslacunas entre o co rn portam ento hum ano e odas outras espécies são tao gigantescasquepode riam ser definidas, talvez, co m a diferenças de qualidade. Söm os genuinam ente ünicos na explaracao do fogo: em bora alguns m acacostam bern possarn aprender a usa-b para aplicacoeslim itadas,tais com o acen der urn cigarro,liberar aperfum ede urn incenso ou ate m esm opara m anter u rn a fagueira acesa,isso so o co rre sob instruçao hum ana e apenas as ho m en s foram capazes de tom ar a iniciativa de utilizar a cham a. 4 0 ato de cozinharpode ser considerado urn diferencialda espéciehum ana — exceto par u m a séria qualificacao: no v asto espaço de tem po da história hum a A INvENcA0 DA CULINARIA 23 na, a culinária é u rna n o vidade recente. N ão ha qualquer evidência possI velde que tenha m ais de m eio m ilhãa de an o s, n em evidências absoluta m ente co n vincentes de m ais de cerca 150 m u an o s. — E clara, tudo isso depende do quc querem os dizer corn culinária. 0 cultivo, para algum as pessoas, e u m a form a de culinária “terram ex coquere”, co m a VirgIlio a cham ava — , expando os torröes de terra ao sal ardente, fazendo da terra urn forno para as sem entes. 5 A nim ais co rn estôm agas apropriadam ente fortes preparam a cam ida ru m inando: par que issa nao poderia ser classificado co m a culinária? Em culturas de c aça dares, as hom ens que m atam a caça castum arn se dar co m a prêm io u m a refeiçao do conteiido parcialrnente digerida do estOm ago da presa: substi tuicãa instantânea da energia gasta na caçada. Esta e a tIp ica protaculinária n atural — a exem plo m ais antigo que co nhecem os de alim ento processa do. M uitas espécies, inclusive a nassa, tornarn a alim ento m ais fácil de corner para as bebés ou as pessoas doentes m astigando-o prim eiro e de pois regurgitando-o. A quecido n a boca, atacado pelos su co s gástricos, am assado pela m astigação, ele adquire algum as das propriedades da c a rnida pracessada pela aplicacao do calor. N o m o m enta em que e m purra m as a alim ento corn água — co m a alguns rnacacos fazern cam alguns tipas de nozes — ,ja com eçam as a pracessá-bo. Existem pessoas tao obcecadas par co m ida cru a que gostarn ate de deixar a sujeira n o alim ento. C om o a Fazendeiro O ak em Farfrom the M adding Crowd, elas “não dão m uita im portância a sujeira em seu estado puro”. N o m o m enta em que esprem ernos a su co do lim ão em n a ssa o stra cam eçam as a rn adificá-la, a efetuar m udanças que irãa afetar-Ihe a c o n s tituição e a gasta: em urna definicaa m ais am pla, isso poderia ser cham a do de culinária. U m a vinha-d’alho, se u sada par m uito tem po, pode ter efeitos tao transform adares quanta aplicacoes de calor o u de fum aca. Pendurar a cam e para dar-ihe urn sabor de caça, au sim plesm ente deixá la aa relenta para apadrecer urn pouca, e u m a m an eira de processá-la para m adificar a constituiçãa e a digestibilidade: esta, abviam ente, é u m a téc nicam ais antiga que cazinhar corn fogo. A secagem ao v e nto, que é u m a forrna especializada de pendurar a alim ento, produz urna m udanca bioquf mica profunda em alguns alim entos. 0 m esm a aco rre quando as e n terra m os — um a técnica para provacar ferm entação que já foi bastante cam u m , 24 A IN vEN çA O DA CULINARIA 25 COM IDA: UM A HISTORIA m as que e pouco utilizada n a culinária o cidental m oderna, em bora c ele brada co rn o n o m e de graviax: literalm ente, “salm ão de sepultura”.A aplicaçao qulm ica de u m a tintura escu ra em certos tipos de queijo que antes eram preservados na terra tam bém e u m a form a de quase-culinaria, parecida co rn enterrar o alim ento. Entre alguns cav aleiros nôm ades, os co rtesde cam e tornarn-se m ais co m estIveisdepoisde colocados sob a sela para que,durante a longa cav algada,fiquem aquecidos e prensados no su o rdo cav alo(vejaapágina 127).Bater o leite é urn processo quase que de m agia alquIrnica: o lIquido vira sólido, o branco vira dourado.A fer m entação e ainda m ais m ágica,porque pode transform ar urn grão co m u m e sem graca em u m a pocao que pode m odificar o co rnportarnento, supri m ir as inibicaes,provocar visöes e rev elar m u ndàs irnaginários.Porque, entre todas essas forrnas su rpreendentes de transform ar o alim ento,ha v erlarnos de privilegiar o co zirnento a cham a aberta? A resposta, seéque existe u m a, está n o s efeitos sociaisdo alim ento c o zido ao fogoO ato de co zinhar m erece seu lugar co m o urna dasgrandes n o vidades rev olucionáriasda história n ao pela m an eira co m o transform a a com ida — ha m uitas o utras m an eirasdefaze-b — , rnas sirn pelo m odo co m o; transform ou a so ciedade.A cultura co m eçou quando o que era cru foi c o ido.A fogueira n o cam po passa a ser urn localde co m u nhão quando as essoas co m em ao seu redor.0 ato de co zinhar nao é apenas urnaform ade reparar 0 alim ento, m as tam bém u rna m an eira de o rganizar a so ciedade m tom b de refeiçoes em co njunto e de horáriosde co rn erprevisIveis.Ele ntroduz n o v asfuncoes especializadas eprazeres e responsabilidades c o rn ,artilhados.E rnais criativo e co n strói m ais laços sociais do que o rnero :om erjunto.Pode ate rnesrno substituir o co rn erjunto co m o urn ritualde Ldesão so cial. Urna das cerim ônias que m ais irnpressionou Bronislaw vlalinowski, a antropologo pioneiro das ilhas do PacIfico,quando traba hava nas ilhas Trobriand,foi o festival an u alda coiheita da m andioca em iriw ina, n o qual a m ajorparte das cerim ônias adotava a form a de distri uição de alirnentos.A com panhadosportam bores edanças, os nativospre arav am pilhasde co m ida,que eram então levadaspara os váriosdorniculios ara serem co n su m idas em privacidade.A refeição em si — o clim ax do ue na m áiorja das culturas e co n siderado urna festa — “ niinc r I ir 1 Em algum as culturas, o ato de co zinhar passa a ser u m a m etáfora para as transform açôes da vida: tribos califom nianas, por ex em plo, c o stum a yarn colocar m eninas pCiberes ou m uiheresque tinham acabado de dar a 1w em fornos cav ados n o solo, cobertos co rn tapetes e pedras quentes. 7 Em o utras, a guarnicão da co m ida se transform a em urn ritual sagrado, que não so o rganiza a so ciedade, co rn o alim enta as céus corn as ernissöes sacrificiais de fum aça e v apor.Os povosdaA m azônia que co n sideram “as operaçöes culinárias co m o atividades rn ediadoras entre o céu e a terra, a vida e a m o rte, a n atureza e a so ciedade” 8 estão, n a v erdade, generalizan do urn co n ceito que a m aioria das so ciedades utiliza corn relacao a pelo m en o s alguns atos de co zinhar. 0 term o co rn u m japonés para u m a refeicao significa literairnente “honorável arro z co zido”, u rn reflexo não so do lugar ubIquo e essen cial que o arro z o cupa n o Japão, m as tam bém da n atureza so cial — n a v e rda de,do status — da alim entacao.A vida e m edida em refeicOes rituais. Quando n asce u rna crianca, o s pais recebem presentes de arro z v erm eiho o u de arro z co rn feijão v erm elho de farniliares e vizinhos; n o seu prim eiro aniversário, a crianca e levada a pisar em urn bob de arro z cujas m igaihas são depoisdistribuIdas.Quando se co n strói u m a casa n o v a, são sa c rifica dos dois peixes e, ao inaugurá-la,prepara-se u rn a refeiçao para o s vizi nhos. Com o talism ã para a longevidade, os co n vivas de u rn casam ento levam para casa parte da co m ida da recepcão co m o presente — bolos de arro z representando cegonhas o u tartarugas o u u m a pasta de peixe m o delada nessas m esm asform as.O utras refeicOes celebram a co m u nhão co rn os m o rtos e o aniversário da m o rte deles. 9 N a so ciedade hindu, as regras relacionadas corn a com ida são extrem am ente im portantes para m arcar e m anter as fronteiras edistinçoes sociais.As castas são categori zadas em term osde pureza, e isso se reflete nos tiposde com ida que po dem ou nao ser com partilhados corn outras castas... A com ida cru a pode sertransferida entre todas as castas, ao passo que a m esm o não o co rre no caso de alim entos cozidos,jI que eles podem influenciar o estado de pu rezadas castas envolvidas. 26 CO M ID A : UM A H ISTORIA 27 Com idas co zidas são ainda divididas segundo o utras classificacoes.As co zidas em água sedistinguem dasque são fritas em m anteiga clarificada: estas ültim as podem serbarganhadas entre urn n m e ro m uito m ajorde grupos do que as prim eiras.Além das regras que determ inam que c o m i das podem ser co rnpartilhadas ou trocadas, existem tam bém hábitos au m entares eprescriçaes de dietas especificas para grupos de certos status. 0 v egetarianism o,por ex em plo, e próprio das castas superiores e “m ais puras”, “eriquanto o co n su m o da cam e ede bebidas alcoólicas está a sso ciado as m en o sput-as.Certas castasintocávejs são caracterjzadas m ais cia ram ente pelo hábjto de co rn er cam e bovina”.bO Os Tharu, a terceira categoria em D ang, no N epal, n u n ca trocam co rnida corn as castasinferio res ou as alim entam em suas casas, m as co m ern cam e de porco e rato.A co m plexidade dos tabus dasilhas Fijifez corn que elas se popularizassem co m o objetos de estudo de antropólogos.Em Fiji,quando tipos especIfi cos de grupos co m em juntos, tern de se lim itar a alim entos m utuam ente co m plem entares.N a presença de guerreiros, os chefes co m em osporcos que foram capturados, m as não peixe nem coco,já que estes ltirnos são reserv ados para osguerreiros.” I1oje, nas culturasque se co n sideram m odernas, a m aloria dos alim en tosque cham am osde crus vem cuidadosam entepreparada para a m esa.E im portante especificar “alim entos que cham am osde cru s” porque o co n . ceito de cru e culturalm ente co n struido o u , pelo m en o s, m odificado. Em bora co m am o s m uitas frutas e alguns legum es corn urn m inim o de preparaçao, acham os n aturalque estejarn cru sporque isso e culturalm en. te n o rm al.N inguem fala de m açãs cru as ou alface cru a.SO nos casos em que o alirnento em questão n o rm alm ente e co zido, m as aceitável cm ,éque especificam os, u sando a palavra cru co m o no caso da cen o u ra cru a,da cebola cru a e assim por diante.N o O cidente,quando a cam e e o peixe são servidos crus, essa cru eza é tao ex cepcional que adquire cOnotaçoes extras de subversão e risco,de barbarism o eprim itivism o.H istoricam en. te, os chjneses classjfjcavam as tribos bárbaras em “cru a” e “co zida”,Se gundo o grau de civilizaçao que observavarn nelas; e urna classificação m ental sem elhante do rn u ndo surge facilm ente no O cidente, o nde a tra diçao literárja ha m uito equiparou a luxOria por cat-ne cru a corn selvage n a, sede de sangue e a fOria de im paciêncja gástrica. A IN vE N cA 0 DA CULINARJA 0 prato clássico de cam e cru a n a co zinha o cidentale o bife tártaro.0 n o m e alude a reputacao m edieval de ferocidade dos m o ngóis, tam bém co nhecidos co m o tártarOs, gracas ao n o m e especffico de u rn grupo de tn bos m ongOis.A palavra lem brava O s etnografos m edievais de Tártaro, n o inferno clássico, e fazia co rn que parecesse particularm ente apropriado dem onizar seusinirnigos.’ 2 D a m an eira co rn o é co nhecido hoje, n o e n tan to, o prato é sujeito a u rna supercO m pensacão civilizada.A c a m e é m oida em pedacinhos m acios, en ro scados, v erm iform es, em v erm eiho vivo.Com o para co m pensar o fato de estar cru a, a preparacão n o rm aim ente se tran s form a em urn ritual na m esa lateral,a vista do freguês, em que o garcom , co m o em urn cerim onial, vai colocando, urn a urn, os ingredientes que increm entam o sabor, os quais podem incluir tem peros, erv as frescas, cebolinha ebrotosde cebola, alcaparras,pedacinhos de an chova, pim enta em grão em conserva, azeitonas e ovo.A v odca é u m a adiçäo pouco o rtodo xa, m asque m eihora bastante o sabom.Os o utros pratosde c a m e o u peixe crus autorizados pela civilização estão igualm ente distantes da n atureza — a cru eza altam ente disfarcada, a selvageria san eada pela preparacão elaborada. 0 dito presunto “cru ” é m uito bern tratado e defum ado. 0 carpaccio e co rtado, corn u m a fineza co rtesã, em lascas finissirnas, e n m guém pensa em co m e-las ate que estejam bern borm ifadas co rn azeite de oliva e enfeitadas corn pim enta equeijo parm esao.0 graviax, em borajá n ao seja enterrado,e coberto corn cam adas de sal, an et e pim enta e, rega do corn seu prOprio suco,eferm entado por váriosdias ate que esteja pronto para set- co n su m ido. “Se n o s s o s antepassados rem otos co m iam a cam e se m pre cru a”, escrev eu Brillat-Savarin, em u m a obra de 1826 que ainda e a biblia do gourm et e a apologia do gourm and, “nOs prO prios não perde m os o hábito inteiram ente.Ospaladares m aisdelicados re sponderão m uito bern as salsichasde Aries e Bolonha, ao bife defum ado de H am burgo, as an chpvas, aos arenques salgados n ahora e a o utras coisas sem n eihantes que n u n cafomam sujeitas ao fogo, m asque, apesardisso, estim ulani o apetite.” 1 3 0 sushi,que hoje e urn acessOrio de m oda obrigatOmio n o O cidente, en v olve peixe cru sO ligeiram ente ternperado — e as v ezes n ern isso — corn vinagre e gengibme; m as o co m ponente principaldo prato e o arro z co zido, as vezes co m plem entado pot- alga m arinha tort-ada. 0 sashim i é u m a v olta a urn estado rnaisdrástico de cru eza, m as o c uidado ao prepam á 28 CO M ID A : 114’4A HISTORIA A (NvENçA0 DA CU LIN A RIA 29 lo nao e m enor.Asfatiasdo peixe devem serde um a finura transparente, “barbeadas” corn um a navaiha de aco bern tem perado, e a apresentaçao deve ser surnam ente elegante — para que o estado de crueza da com ida intensifique a sensaçao do com ensalde estarparticipando do processo civilizador.A guarniço deve serpicada, rem exida e co rtada em tiras em urna arnpla variedade de m aneiras, e urngrupo de m oihosbern arquiteta dosdeve ser servido.Osdinam arquesesgostam dagem a crua com o guar nicão ou m oiho, m as ate neste caso ela e servida separada da clara.Nos “inárneros banquetesde cam e crua” corn que obsequiararn Laurens van der Post na Etiópia, em bora a preparaçao fosse m inim a, a form alidade das cerim ônjas era detaihada. A cam e crua era passada, sangrando e ainda corn o calordo animal em vida,de urn convidado para o utro.Cada homern prendia a extremidade da cam efirmemente entre osdentes e e ntão, c o rtando para cirna co rn um a faca afiada, retirava urnpedaçopara si m esrrio — e nessa tarefaporpouco não arrancava apeledo prâprio n a riz.’ 4 Asfatias nao eram cornidas secas, m as rapidam ente im ersas no berebere, urn m olho tao apim entado que “dava a im pressão de serquente o sufi ciente para co zinhar a cam e” eque tam bém pode transform ar urn cozido em u m a m istura “tao forte que praticam ente faz sangrar os o u vidos”. 1 5 De vez em quando, um a fatia de cam e era passadapor cim ado om bro de urn hom em para as m uiheres e crianças que estavam de pé, em silêncio, atrás dos com ensais.Na verdade, todas essas com idas são cruas apenas em u m a definiçao bastante restrita. Estão tao diferentes de seu estado n atural — seja ele qualfor — que seriam praticarnente irreconhecIveis, presum e-se,pelos antepassados horninIdeos que im aginarnos para nós m esm os, osque, supostam ente, com iam qualquer coisa que Ihes chegasseas m acs.D epos da invenção do cozimnento,parece que, na m aiorparte do m u ndo, ate a crueza se tornou refinada. N a rnaioria das culturas, as o rigens do co zim ento rem o ntam a urn presente divino, o fogo de Prom eteu, ou a so rte de urn herói cultural. Para osgregos antigos, o fogo foi urn segredo rev elado rraicoeiram ente por urn dissidente do Olim po.N a Persia antiga, ele foi extraido do com a- ção de um a rocha pelo projétil m al direcionado de urn caçador.Para os Indios dacotas, o fogo foi descoberto n o solo pelas garrasde urn deusja guar. Para os astecas, o prim eiro fogo foi o sd, alim entado pelos deuses na escuridão prim eva.Foi trazido para as ilhas Cook porM aui,depoisde sua descida as profundezas da terra.U rn aborigine au straliano e n c o ntrou o fogo esco ndido n o penis de urn anim al totém ico, enquanto para u m a o utra tribo foi u m a invenção das m uiheres,que co zinhavam co rn ele d u rante a au sência dos hom ens, em cacadas, e depois o esco ndiam n a v ul v a . 1 6 “Todostern seu prOprio Prom eteu”, e o m esm o o co rre corn quase todas as c ulturas) 7 As verdadeiras origensda dom esticacao do fogo são desconhecidas) 8 Todas as teorias sobre isso parecem ter su rgido corno o fogo do silex,por urna siibitaidéia ilum inada.N enhum a o co rreu de form a m ais m em o rável ou resistiu tao tenazm ente ao tem po co m o ado “pai da m oderna paleon tologia”, o abade H enri Breuil. Em 1930, urn pupilo de Breuil,Pierre Teilhard de Chardin, o antropologojesuita que, por sua vez, se transfor m aria em u m adas figuras m ais poderosasdahistóriaintelecrualdo século X X , estava trabaihando na China, co m binando trabaihos cientIficos co rn obras m issionárias, na rnelhor tradicaojesufta.Escavava a c a v e rn a -m o ra diado “H om em de Pequim ” — urn hom inIdeo que viveu ha m eio m ilhao de anos; supostam ente antesde o hom em fazerferramnentas o u acender o fogo. Teilhard rnostrou aBreuil o chifre de urn veado epediu sua opiniao sobre ele. “Quando ainda estava fresco”, respondeu Breuil, “esse chifre foi exposto ao fogo e foi trabaihado co rn urn im plernento ri.istico de pe dra, provavelm ente não de silex, m as algum tipo de ferram enta prim itiva para co rtar agolpes.” “M asisso e im possIvel”, respondeu Teilhard. “Vem de Chou Kou-tien.” “Não m e im portade o nde venha”,insistiu seu m entor, “foi trabaihado por urn hom em que co nhecia a utilidade do fogo.” 1 9 Com o no caso de todas as o utras teorias sobre adatada dom esticacão do fogo, düvidas vêm se acu m ulando n o s ültim os anos. Breuil, n o e n tanto, ergueu nas pilhas de cinzas escav adas em Chou K ou-tien u m a reco n struçao sedutora, em bora fantasiosa,da sofisticaçao hom inidea. Em seu retrato im aginário da vida n aquele local, urna m ulhem prepara lascas de silex, enquanto “urn H om em de Pequim corta o chifre de u rn veado” e urn casal porperto acende o fogo.0 hom em prim eiro produz 30 CO M ID A : U M A H ISTORIA A NvENçA0 DA CULINARIA 3 I u m a faIsca por fricçao, enquanto a m uiher segura u rn punhado de capim e foihas secas para pegar a faIsca. “A seguir ela o levará para a futura fo gueira, rodeada de pequenas pedras,que está entre os dois.Atrás deles o utra fogueira arde alegrernente co zinhando urn pedaço de porco selva gem . “20N a v erdade, n a o haqualquer evidéncia de m an ufatura de sliex o u de preparação do fogo por centenasde rnilharesde an o s após a data dos restos referentes a esse texto. Podem os supor que o co zim ento su rgiu co m o u rn a extensão inevitá ye!da dornesticaçao do fogo.N o O cidente m oderno, o rnito m ais c o m u m é representado pelo relato irnaginário das origensda culinária em A D isser tation Upon RoastPig(Uma dissertaçdo sobre porco assado),de Charles Lam b. Urn pastor de porcos acidentairnente sacrificou urna ninhada de porquinhos em urn incêndio cau sado por sua negligencia. Enquanto pensava noquedizer ao pai, esfregando as m ãos sobre o s re stos esfum aradosde urnadas vItimasprem aturas, urn cheiro penetrou por suas narinas,diferentedequalquer outro.odorque elejá tinha sentido.(...) Ao m esm o ternpo, urna urnidade prernonitória derram ou-se sobre seu lábio inferior.Ele nao sabia oquepensar.Abaixou-se, então,para tocar oporco e ver se ainda havia sinaisde vida nele.Queirnou o sdedos e,para resfriá los, colocou-os, corn seujeito m eio abobaihado, na boca.Algumas das migaihasdepele torrada tinham se agarrado em seusdedos e,pelaprim eira vez na vida(na vidado m undo, alias,porque antesdele nenhunihom em tinha conhecido aquilo), eleprovou — torresm o! 2’ “A coisa decolou” ate que “o co stum e de atearfogo as casas”foi superado pela intervençao de urn sábio, “que descobriu que a cam e do porco,bern co rn o de qualquer o utro anim al,poderia ser co zida(qucimada, co m o eles diziam) sem a n ecessidade de co n su m ir u m a casa inteira para guarnecê la”. 2-2 E cu rioso que Lam b tenha rastreado as o rigens dessa im portante tecnologia ate a China,que, n a v erdade, foi o pals m ais engenhoso do m u ndo em toda a história registrada, sem que isso seja n o rm alm ente re co nhecido no O cidente. M ais co m u m é a prem issa de Lam b de que o co zim ento deve ter sido inventado por acidente.Alias, o acidente foi re centem ente reabjljtado na literatura histórica,porque, n o m u ndo aleató rio rev elado pela fIsica quântica e pela teoria do cao s, co n seqQéncias im prvisIveis parecern resultarde cau sas indeterm inadas.0 hariz de C leó patra se parece corn u m a asa de borboleta: esta iiltim a pode provocar u m a tem pestade; rnas, se não fosse pelos poucos c e ntIm etros de elegancia for tuita do prim eiro,é possIvelque n u n ca tivesse havido o Im pério R orna no. H istoriadores “virtuais” estão sernpre n o s dizendo que, se não fosse por esse ou aquele acidente,todo o cu rso da história seria diferente eque reinossão perdidos porfalta de urn prego. M as, n a v erdade, os acidentes só são passIveis de observacão n o s registros históricos se eles co nfirm am a m an eira co m o as coisasjá estão aco ntecendo.0 a cidente é n o sso m ode lo para explicar rn udança nas so ciedades “prirnitivas”, que nós v ulgarm ente supom os estáticas e ignorantes.N o entanto, as invençöes so m uito ra ra m e n te — e pode ate ser que n u n ca — são provocadas por urn acidente v erdadeiro: ha sernpre u rn a im aginacão que Ihes dá forrna o u u rn o b ser v ador pratico por perto. E possIvel que algum tipo de culinária tivesse sido praticado antes m esm o da dornesticaçao do fogo. M uitos anirnais são atraldos pelas bra sasque o co rrern n aturairnenre nasfogueiras, o nde eles rern ex em para e n co ntrar sem entes tostadas C u grãos que se tornaram co m estIveis depois de queirnados. H oje podem os observar chirnpanzés selvagens pondo em prática u rn a técnica que pode ser atribulda, co rn bastante seguranca, por an alogia, aosforrageadores hom inIdeos. 3 Para u rn a c riatura co rn u rn cé rebro suficienternente poderoso e corn habilidade, algum as das c a ra cte risticas de bosquesincendiados, tais co m o m o ntesde cinzas e troncos rn eio queirnados de árvores caldas,podem terparecido fornos n aturais, a rden do co rn u rn fogo adrninistrável, n o qua! sem entes de cascas duras, graos de plantaslegurninosasde pele grossa,legum esdifIceisde m astigar o u cam e cartilaginosa poderiam serprocessados. A culinária foi a prim eira qulm ica.A rev oluçao do co zirnento foi a prirneira rev oluçao cientIfica: adescoberta,por experim entacão e obser v ação,das m udanças bioquIrnicas que transform am o sabor e ajudarn a digestao.A cam e — apesar de rejeitada pelos n utricionistas m odernos, que n o s am eacam corn asgorduras saturadas — e u m a fonte incom pará ye!de n utriçao para o co rpo hum ano, m ase cheia de fibras e m üsculos.0 c o zim ento faz c o rn que a s protelnas n as fibras m u s c ulosas se fu n d am , tra n s COM IDA: UM A HISTORIA lorm ando colágeno em gelatina. Sc Ihe aplicam os o fogo diretam ente,com o provávelque o co rresse nas técnicasdos prim eiros co zinheiros, a super fIcie da cam e sofre urn tipo de caram elizaçao a m edida que O s SU CO S s e :o n centram : pois as proteInas se co agulam quando aquecidas e o co rre a re ação de M aillard” entre os am inoácidos sobre u m a cadeia protéica e lguns dos ac(icares n aturais na gordura.0 am ido é u m a fonte de en ergia iue tern estado disponIvelpara a m aioriadaspessoasdurante a m ajorparte da histOria registrada, m as e ineficiente antes de ser co zido. 0 calor o desintegra,liberando o açücarque todo am ido co ntém .Ao m esm o tem po, o calor seco faz corn que as dextrinas n o am ido fiquem m arro n s,pro duzindo aquela aparéncia reco nfortante que asso ciam osa co rnida cozida. ‘Ja m ajorparte das culturas, e durante quase toda ahistória, a alternativa rnais co m u m ao calor seco é a im ersão em água quente: isso am acia as Fibras m u sculosasda cam e e faz co rn que asparticulasde carboidrato in- them .A cerca de 80°C, essas partIculas se ro m pem epenetram n a m istu a.E por esta razão que os m oihos engrossarn.0 calor m uda a textura de utras co m idas,fazendo corn que possam ser m astigadas o u dissecadas Tianualm ente — “u m a arran cada prim ária n a divilizaçao dos hábitos de :o m er, m uito anteriora introducao de pauzinhosjaponeses o u de garfos facas”. 2 4 Com o o co zim ento torna a co m ida m ais digestIvel,podem os ;om er m ais: cinquenta toneladas em u m a vida m oderna.0 resultado, ate :erto ponto,é m ais eficiênciahum ana.Um a o utra co n seqüência é a opor u nidade de ex cesso s, corn efeitos para a so ciedade que abordarem os n o levido m o m ento(veja a página 161). Além de au rn entar o co n su m o de produtos co m estIveis, o co zim ento ode fazerfuncionar u m a m agia ainda m ais ex citante ao tornar apetitosas :oisasque scm dc seriam v en en o sas.0 fogo destrói o v en en o de alguns lim entos potenciais. A m agia que torna plantas tOxicas co m estIveis é articularm ente valiosapara os sereshurnanos,porque co rnidas v en en o sas odem ser arm azen adas sem o tem orde saquespor criaturas rivais e m ais arde podem sertransform adas em atóxicaspara o co n su m o hum ano: estaé v antagem culturalqucfazda rn andioca-am arga u m a co m idabásica n aA m a ônia e das sem entes de n ardo urn alim ento apreciado entre os aborigines A N vE N cA o DA CULINARIA 33 que co m a u m a porção n o rm al. N o entanto, o v en en o pode ser elim inado por m eio de processos utilizados para prepará-la: so car o u ralar a raiz, deixã-la de m oiho por algum tem po e depois aquec-la. Urn problem a fas cinante, em bora insolüvel, é saber co m o foi quc os prim eiros indios que cultivaram cssa planta, e dcpois passaram a depender dela, descobriram suas propriedades e specificas. A m aioria das infestaçöes perniciosaS pode ser n eutralizada pelo co zim ento. A c a m e de porco e n o rm alm ente infectada por u rn v erm e que cau sa triquinose quando ingerido por seres hurnanos: urn co zim ento profundo torna-o inofensivo. As sairnonelas são m o rtas por urn co zim ento rápido, m as total, e as listérias, pelo calor intenso. U m a ex ceção pouco co m u m é o Clostridium botulinum , u rn a bacteria m ais le tal, que não e afetada pela m aior parte dos processos de co zim entO e s o brevive a tem peratura atingida em todas as culinárias tradicionaiS, e rnbora receitas co rn u rn alto co nteüdo ácido possarn paralisar o seu desenvolV i m entO. Assim que o s efeitos do calor n a co rnida co m ecaram a se desdobrar diante dos olhos dos hornens, o futuro da culinária já estava prenuflCia do. Literal o u o riginalm ente, a palavra “foco”significa “lareira”. A ssim que o fogo passou a ser adm inistrável, d c logo u niu as c o m u nidades, já que para cuidar das charnas cram n ecessários divisão de trabaiho e e s forços co m partilhados. 0 fogo funcionava co m o u rn foco, presum im O S antes m esm o o u alérn de su a adaptacao para o co zim ento de alim entO S, graças as o utras funcOes que fazern co rn que as pessoas se reünam a o se u redor: luz e calor, protecão co ntra pragas e predadores. 0 c o zim eflto aperfeicoou o poder de m agnetism o so cial do fogo ao a c re sc e ntar u m a n utrição m eihor a estas funcO es. Ele so cializou o ato de c o rn e r a o transform á-lo em u m a atividade praticada em local e m o rn e nto deter m inados, por u rn a co m u nidade de co rn en sais. Parece bastante segurO d e duzir que, antes disso, havia pouco incentivo para que a s pessoaS co m essem juntas. A lim entos coletados podiam ser c o n su m idos n o m o m ento m esm o da coleta o u guardados para serem co m idos a v o ntade. Ernbora possarnos im aginar horninIdeos reu nindo-se ao redor de u m a carcaca cru a n ara urn banquete co m u nitário, co m o ayes de rapina e m / 1 34 COM IDA: UM A HISTORIA A IN vEN cA 0 DA CULlN A RIA E bern v erdade que iniciativas co rnpartilhadas, tais co rn o a caça, a m a Xança e a o rganizaçao da segurança coletiva, revitalizavam o grupo, rnas o s fragm entos dos anim ais que tinham sido caçados o u en co ntrados rn o rtos podiam serdesm em brados ou distribuidos para serem co rnidos separadam ente.Quando o fogo e a co m ida se co m binaram ,porém ,foi criado urn foco quase irresistIvelpara a vida co m u nitária. Corner to r n o u -se u rn ato so cialde u m a forrna ünica: co m u nitárjo,porém nao-co-. operativo.A v alorizacao que o co zirnento dá a co rnida transform a.a em algo m ais que m era n utriçao e faz corn que sejam descortinadas n o v as possibilidades im aginativas: as refeiçoes podern se tornar sacrificios re-/ alizados em co rn u rn , celebracoesdo am o r, atos rituais, o casiöes para as transform acoes m ágicasproduzidaspelo fogo — u m a dasquaisé a trans form acao de co m petjdores em u m a co m u njdade N o m u ndo m oderno — o u ,pelo m en o s, recente — , ainda vern sendo possIvel recapturar o u experim entar u rna vëz m ais aquela sen saçao pri m itiva do poderdessa co rnbinacao.Isso su rge naslem brançasda infância do “filósofo cam pones” da década de 1930,G aston Bachelard: / o fogo e urn ser m ais socialdo que natural.(...) Eu cornia o fogo, eu C o. m ia o seu o u ro , o cheiro e ate o crepitar, enquanto obiscoito ainda fum e gante ía se ndo e sm igaihado e ntre m eu s dentes.E é sernpre assirn, co rn u m a e spécie de prazer se n su al... que o fogo prova a su a hum anidade. Ele não so c o zinha, c o m o faz o biscoito c ro c a nte e dourado. Ele dá u m a form a m aterialpara asfestividadeshum anas.Por m aislongequeformos em nossa consulta ao passado, o valorgastronornjc da com ida sem pre supera seu valor alirnentar, eé na alegria, e nâo na dor,que o hom ern encontra seu espIrito...Dosdentesda corrente pendia o caldeirão negro.A panela de trêspernas estava sobre as cinzasquentes.M inha avó enchia asbochechas de ar e soprava por urn tubo de aço para reanim ar a chama adorrnecjda. Tudo ia sendo cozido ao m esm o tem po: asbatataspara osporcos, asbata tas m eihorespara afamilia.Para mim haveria urn o v o fresquinho sendo cozido sob as cinzas. 2 6 Prim eiras Tecnologias da C om ida D a dom esticacão do fogo ainvençao da culinária,houve u rn a lacuna prá - . - - ica e co n ceitual a serpreenchidaporim aginacO es engenhosas.Em alguns clim as, o fogo pode ser adestrado corn rapidez. Em o utros lugares, o nde agm entos apropriados de sliex e gravetos são fáceisde en co ntrar, tam bern é possIvel acendé-lo corn relativa seguranca.N a A ntiguidade m uito re m o ta, n o e n tan to , a m aioria das so ciedades não desfrutava dessas c o n diçoes ideais para fazerfogo.Este era guardado e preservado, u rn pouco co m o a cham a sagrada,que, m esm o nas so ciedades m odernas, as v ezes m antem os acesa em m em ória,digam os,de n o sso s m o rtos im portantes o u em co m em o ração ao n o sso “ideal olim pico”. N a m ajor parte do n o sso passado, e n a m aioria dos lugares, era m ais fácil e m ais co nfiável m a nter o fogo aceso e levá-lo de urn lado para o utro do que tentar acendê-lo quando fosse preciso.A lgum aspessoas perderam o u talvez n u n ca tenham tido as técnicas para acendé-lo — o u talvez sim plesm ente co n siderassem o fogo dem asiado sagrado para serfeito por elas. D izem que e por isso que algum as tribos da Tasm ania,das ilhasA ndarnã eda N ova G uiné via- jam para pedirfogo aos vizinhos se o deles se extingue, sem tentar c o m e c a r u r n n o v o fo g o p o r co nta própria.N a cerim ônia da luz da Páscoa, co rn aqual co m eca a m issade VigIlia, n a escu ridao, n asigrejas católicas e o rto doxas, a tradicao cristã preserva u m a m em ória antiga de quão grave pode serpara u m a so ciedade perder o fogo e terde reacendé-lo do princ!pio. M as m esm o quando existe a possibilidade de obter o fogo sem pre que se queira, não é assim tao fácil aplicá-lo ao co zim ento dos alim entos. 2 7 Tostados pela cham a viva, su spensos sobre a fum aça o u assados n as bra sasde u m afogueira, alguns alim entospodem ser co zidos satisfatoriam en te.Este e urn m étodo co n v eniente se o fogo estiver sendo m a ntido aceso para algum o utro propósito:digam os, co m o u m a fogueira de alerta, co m o fonte de calor o u para m anterpredadores o u dem ônios a distância. E m bora irnpossIvelquando não se usa co m bustIvel sólido, einconveniente m esm o n a co zinha m oderna m ais bern equipada e corn alta tecnologia, esse e urn tipo de co zim ento capaz de gerar pratos de alta sofisticaçao. 35 / COMIDA:UMA HISTORIA A INvENcA0 DA CUUNARIA 37 has fiquem pretas e co rn ecern a fum egar. 2 8 Cozinhar n a cham a vivapare :e fácil, m as o m étodo pode se tornar m ais v ersátil corn o uso de pastas e vinha-d’alhos para co ndicionar os alim entos antes de colocá-los n a cha n a o u regando-os corn licores o u m oihosbern selecionados.Se esta foi a rim eira form a de culinária, ela ainda co ntinua sendo u rn adas m ais ape :itosas e certam ente u m adas m ais praticadas.Um a tradiçao inabalável u n e ) churrasquinho suburbano o u o co nforto de fazer torradas n a lareira a irnadas co m ilancas m aisfam osas da literatura o cidental: o banquete corn qual N estor, o co cheiro, hom enageou A tena n a Odisséia. o m achado co rtou ostendöesdo pescoco da bezerra e ela caiu.Corn isso, as m uiheres alçaram seus gritos com em orativos...Quando o sangue escu ro tinhajorrado e a vida abandonado o corpo da bezerra, eles rapidam en tedesm em braram a carcaça,cortando os ossosdas coxas com ode costum e, envolveram -nos em cam adasdegordura e colocaram cam e crua sobre elas. o venerávelRei as queim ou na lenha,borrifando vinho tiiito sobre as chamas,enquanto osjovensjuntavam-se a volta,corngarfosde cincopontas nas m ãos.Quando as coxas estavam queim adas e elesjá tinharn provado das partes internas, cortaram o resto em pedacos pequenos, colocararn nos em espetos e seguraram aspontas destes sobre o fogo ate que tudo estivesse a ssado. 2 9 o entanto, este m étodo,que, su speita-se, deve ser a tecnologia culinária nais prim itiva, tern desvantagens óbvias.Perm ite apenas u m a v ariedade ulinária lim itada; n ao pode resolver o problem ade alim entosque reque em fogo lento; exige que as carcacas sejarn co rtadas cru as, corn urn gasto esn ecessário de en ergia, e co n so rn e u m a grande quantidade de co m bus rye!.Além disso,tern co n otacoesinequlvocasde selvageria, principalm ente e a cam e tiver sido co rtada de u rna m an eira rudim entar antesde ser as- ida.Urn italiano que visitou os pam pas em 1910 ficou chocado corn a a n eira “totalm ente prim itiva” pela qualOs gauchos co zinhavam a cam e inda n o co u ro , “para que ela co n serv e seus sucos sangrentos”, e a c o iiam co rn n av aihas, sentados em troncos de árvores. 0 pedras quentes. 3 1 Este m étodo e particularm ente eficiente para co m idas que já vêm en v olvidas em coberturas que retêm a u m idade e nquanto e s tao sendo atravessadas pelo calor — m oluscos em suas co n chas, por e x e m plo, o u alguns tipos de fruta o u de grãos selvagens em cascas grossas o u co rn fibras espessas. A lternativarnente, a co rnida pode ser e n v olta em fo ihas, co rn o no caso do co zim ento corn brasas. N este estilo culinário, p0- dem -se em pilhar as pedras para en v olver o alim ento n o calor, e m bora isso n ao signifique que as pedras quentes tenham o m esrn o re sultado das bra sas: se fizerem pressão sobre a co m ida, seu peso pode afetá-lo. Se forem criadas cavidades para evitar isso, estas podern form ar bolsas de am e di m inuir o efeito geral do calor. O s m étodos co m provados pelo tem po para evitar esses problem as en v olvem a utilizacão de foihas apropriadas, c a pim , relva o u peles de anim ais co m o cam adas superiores isolantes. N ão é difIcil para urn viajante que tenha urn espIrito m odestam ente a v e ntureiro en co ntrar esse estilo de culinária hoje. H a u n s poucos an o s, nas ilhas Cook, H ugo D unn-M eynell experim entou em bruihos de m andioca, fruta-pão, inham e, polvo, batata-doce, leitão, bodião e galinha en v olvidos e m foihas, que tinham sido deixados de m oiho em su co de goiaba e c o zidos em pe dras-pom es aquecidas sobre co v as cobertas de paiha de co co . A lgum as fam Ilias u sav am covas de m ais de 150 an o s. A paiha era acesa e sfregando se pauzinhos de bananeira u rn n o o u tro . 3 2 N a civilizacao co nternporânea, o u pelo m en o s ate re c e ntem ente, 0 co ntexto m ais provável para se experim entar u m a vez m ais a c ulinária das pedras quentes seria a m ariscada am ericana cham ada clam bake. N a N ova Inglaterra, no fim do século X IX e co rn eço do século X X , as m ariscadas cram genuinarnente co m u nitárias o u iniciativas cIvicas, perpetuando o s co stum es que os prim eiros colonos aprenderam co rn o s Indios. 0 passeio de toda a populacao da cidade representado em Carrossel, de R ogers e H am m erstein, o nde “aquela foi seguram ente u m a boa m ariscacia” e o s m a drugadores “realm ente se divertiram m uito”, co n segue c apturar o r o m antism o, ingênuo o u inocente, co rn o qual essas m a riscadas são relem bradas. 0 m esm o o co rre co rn a co n centracão intensa e preocupa cia corn a o u al os co m en sais da m ariscada se debm ucam sobre su a tarefa 38 - COM IDA: UM A HISTORIA A INvENcA0 DA CULINARIA 39 gravetos e algas. Com o as co n chas dos m ariscos abrem corn o calor, os isolantes superiores tinham de ser im perm eáveis,pois,do co ntrário, os su co s n aturaisdos m oluscos ev aporariam , corn efeitosperniciosos para o saborda co m ida. Urn requinte de grande im portncia na história da culinária sobre pe dras quentes foi o buraco de co zirnento.Esta n o vidade exigiu u m a certa engenl-iosidade para serinventada, m as n enhum a ferram enta — a n ao ser algum a coisa para ajudar a cav ar — para ex ecutá-la.Um á co v a seca pode ser aquecida corn pedras para criar urn forno. Um a co v a cav ada abaixo do lençolfreático, aquecida da m esm a m an eira,pode servirpara ferver ou escaldar alim entos.Isso representou u m ainovaçao de en o rm e im portân cia — que n u n ca foi superada porqualquero utra inovaçao técnica subse qüente n a histórja da culinárja ate n o sso sdias; eta facilitou a fervura, urn n o v o m étodo de co zinhar o u ,pelo m en o s, urn rnétodo do qual antes so se podia aproxim ar u sando u m a tripa o u u m a pete cheia de água su spensa sobre o fogo,que atuava co m o u rnapanda.Exem plos tardios, m as repre sentativos,foram descobertos naIrlanda, em Ballyvourney,Cork, em 1952. Urn buraco tinha sido aberto em u m a turfeira n o segundo m ilnio antes de Cristo e forrado corn m adeira, o nde o lençolfreático era suficiente m ente alto para m anter agua sem que esta se infiltrasse.N asproxim ida des, tinha sido co n struldo urn forno em solo seco em pilhado cav ando-se urn buraco e forrando-o corn pedras. 3 3 Existem pelo m en o s quatro m it lugares co rn o esse sO na Irlanda. 3 4 Experim entoslevados a cabo nosprOprios locaisdem onstraram que pedaçosgrandesde cam e podiam ser co zidos s a tisfatoriam ente em u m as poucas horas se aspedras quentes fossem substi tuldas de rn odo regular sob u m a tam pa de relva.Corn esse m étodo,perto de setenta galoes de água podiam chegar ao ponto de fervura em cerca de m eia hora.Em solosde argila, o forro interiorda co v a n o rm alm ente c o zi nhava, transform ando.se em cerârnica e fazendo corn que as paredes do Porno ficassem irnperm eáveis o suficiente paraque fossepossfveljogarágua nas covas o nde essa não o co rrja n aturalm ente.D e o utro m odo, o interior le qualquer cova podia serforrado corn argila equeim ado ate endurecer. A lirnenros co zidos em co v as não s o en co ntrados corn fc Id d e cub X X , Jam es H .Cook sentia urn prazer especial em desfrutar u m a c a beça de porco “n o estilo Indio”: enterrada em carvão aceso durante várias horas em u m a covade u n s n o v enta centim etros de profundidade. Ela “saIa do buraco parecendo urn pedaço de carvão, m as o sabor tinha u rn apelo especial para aquelesgastronornos do m ato que n o rm alm ente se banque teavam corn ela”. 3 5 Covas para co zinhar ainda são preferidaspor c o zinhei ros tradicionais em bocalidades ru rais em m uitas areasdo PacIfico e partes do o cean o fndico. E preciso adm itir, n o entanto, que a civilizaçao tende a abandoná-las. Sua grande desvantagem é que, a ex ceção de alguns pratos pequenos o u sim ples, que exigern pouco calor, na m aioria dos caso s é n e cessário — m esm o para o co zim ento scm água — acender u m a fogueira fora da co v a e aquecé-la transferindo pedras quentes para cia. N o e n tan to, u rn efeito sem eihante o u idêntico ao de co zinhar em co v as pode ser obtido u sando-se o forno de argila n o rm alm ente charnado de tandoor, o u urn n o m e sem elhante, na fndia e n o O riente M édio. A co zinha tandoori certam ente é urna evoluçao do co zim ento em covas. Em essência, o tandoor é u rn a co v apara co zinhar, m as acim a do chão.0 fogo e aceso dentro dela: a abertura n a parte superior tern de ser am pla o bastante para m a nter o fogo alim entado corn o xigênio, m as estreita o suficiente para ser c o n v e ni eritem ente selada co m u m a tam pa pesada sern m uita perda de tem peratu ra quando se perm itir que o fogo apague. Enquanto a e strutura e stá esquentando,é possIvel bater pedacos de m assa co ntra as paredes e x ter n as para fazer pao. D epois que o fogo se apaga, as propriedades que aju dam o forno a m anter o calor fazem co rn que seja possivel usa-b para assar cam e, peixe e’legum es o u preparar en sopadinhos. Todas essas tecnologias — co zirnento co m brasas, co rn charnas vivas o u co rn pedras aquecidas em co v as o u em foguciras — c e rtam ente são anterioresaoutensulios de co zinha especializados. Em bora as co n chas pos sam ter servido co m o rescaldeiros n a A ntiguidade, ha poucos lugares n o m u ndo corn co n chas grandes o suficiente para co zinhar de m an eira eficien te.A penas as carapacas de tartarugas o u anim ais sern elhantes podem ter substituIdo o recipiente rn an ufaturado. E, n o entanto, alega-se que o c rcinientes — m esm o os taihados em m adeira — são invencO es relati F N/ / 40 COM IDA: UM A HISTORIA u m a tecnologia m ais sim plesdedom inar e se os tipos apropriadosdeplanta estão disponIveis, podem ser produzidos recipientes totalm ente im per m e v eis, tais co m o osque ainda estão em uso entre ospovosdo n o ro este am ericano.Um a explicaçao levantada corn frequencia para ainvençaodos recipientes de cerâm ica na A ntiguidade rem ota é que os vasos de vim e foram cobertos corn u m a cam ada de argila para isolá-los e perm itirque fossem su spensos sobre o fogo. Por causada n aturezaperecIveldas cesras,éim possIvel estabelecer u m a data para a o rigem do co zim ento em recipientes m an ufaturados. Urna opção m ais sim ples, no entanto,foiposta em prática antes disso: en cherl peles, tripas,ãm nios ou estâm agos de anim als corn água para utilizá-los co m o recipientes. A pele da m aioria das espécies tern u m a utilidade restrita co m o irnperm eabjljzante e m uitas vezesé m ais valiosa se for reti rada da carcaça antesde esta ser co zida edepoisfor cu rtida para a produ çao de ro upas, bolsas e toldos. Os órgãos internos, no entanto, são os recipientes de co zinha da n atureza — co nfiavelm ente im perm eáveis e bastante elásticos, na m ajorparte dos quadrilpedes,para co nter todas as o utras partes co rn estiveis do anirnal e m ais ainda. Com o o espaço pode ser co m pletado corn água, eles podern funcionar co m o recipientes para fervura e se,digam os, urn pequeno intestino e recheado e colocado dentro de urn o utro m ajor — podem ser m uito citeis para banho-m aria, co ntanto que o co zinheiro tenha algum rnétodo para protege-los dosda nos cau sadospelo calordireto excessivo.N osdiasdehoje, resquIciosdesses prirneiros estilos culinárjospodem ser en co ntrados ate rnesm o nas co zi nhas m ais sofisticadas.As m eihores salsichas são produzidas recheando se tripas eintestinosde anim als.Nenhurna m orcelaque sepreze vem dentro de qualquer o utra coisa que nao seja urn pedaço de intestino.Em m uitas : sobrem esas, u sam o s urn pedaco de m u sselina(para m anter osingredien tesjuntos enquanto estão cozinhando) para realizar a tarefa de proteção externa que urn estôm ago ou bexigade anim alfornecia antigarnente.Pra tospreparados cm sacos orgânicos são um a m aneirade conservar o s m iii- dos ou — em pratos sem elbantes — o s a n g u e que pereccria corn rapidez se nao fosse cozido.Por essa razão eles em geral ocorrern na cozinha de pastores nôm ades.0 haggis, o ilder “dessa raça de pratos”,é urn ex em plo facilm ente en co ntrado hoje em todas as regiöes atingidas pela diaspora A IN vEN cA 0 DA CULINARIA 4’ escocesa.A receita n ao chega a ev o car u rn a época prim itiva porque exige u m a boa adicão de aveia,que é urn alirnento do cultivador sedentário. M as os o utros ingredientes — pulm öes,fIgado e co raçao picados — são caracterIsticos.N a co m ida m ais tIpica do pastor, o sangue e a gordura p o dem en cher as cavidades,que, no caso do haggis, são recheadas co rn fan nha de aveia. Corno a vida nôm ade se co m plicania co rn batteriesde cuisine,e,por tanto, entre os nôm ades que esperam os en co ntrar ex em plos duradouros da utilizacao daspartesinternas dos anim ais co m o recipientes culinários. N a co zinha nôm ade, as panelas m an ufaturadas n u n ca co n seguirarn subs tituir totairnente seus antecessores prim itivos, em bora Os nôm ades pare cam apreciar recipientesde m etal,desde que estespossarn ser transportados corn facilidade: a v ariedade culinária é, corn lim ites, u m a form a de luxo apreciada quase u niversalm ente e,de qualquer form a, u m a panela e u rn recipiente co n v eniente para co zinhar u rn a tripa o u u rn estôm ago re chea dos.Os povos turcos tern u m a estranha v ariedade de utensflios de c o zi nha: oqazan, por ex em plo,quc literalm ente significa “objeto escav ado”, e urn recipiente am plo de lata que possuipés e pode ser atado a u rn c a v a lo.O s turcos tam bém co n siderarn indispensável carregar u m a grade para co zinharbolinhosde m assa ao v apor sobre u rn a fogueira.0 antigo u so de escudos co m o bandejas culináriaséperpetuado n o prato raso sem elhante a urn escudo, co nhecido co m o saj.A lança pode se transforrnar em u rn garfo para preparar torradas. Ern algum as culturas, e tentador im aginar que abrochete foi u rna ev olução do u so de pedacos de pau co rn o espetos. N a rn aiorparte das estepes eu rasianas n ao existem árvores e, portanto, os gravetos são çoisas raras e valiosas.E bastante provávelque, n a A ntigui dade, o shish kebab — aquele presente u niversalque n o s foi legado pela co zinha da Asia Central — fosse co zido em u rn punhal. 3’ N os banquetes m ais form ais, n o entanto, a m ajor parte dos povos n o rm alm ente com e seus pratos rnais tradicionais, e entre os nôrnades das estepes isso significa v oltar a culinária feita em peles, estôm agos e tripas de anirnais.Sharon H udgins escrev eu alguns dos relatos m ais vIvidos s o bre expcriênciasde refeicOes nas estepes.Em 1994, cm urn banquete buriat, servirarn-ihe a cabeca de urn carn eiro n o co u ro , a Ia ainda intata. Feliz m ente n ao exigiram que seu m arido cantasse a canção da cabeca de car- A IN V EN cA O DA CU LIN A RIA 43 42 CO M ID A : U M A H ISTORIA n eiro — u rn a relIquia do ritual propiciatório que parece inseparável das refeiçoes form ais n a m aioria das tradiçOes.Copos de vinho eram derra m ados e pedacos de gordura jogados no fogo.Osbrindes,que os buriats gostam de fazer corn u m a bebida de cereais im portada de seus vizinhos sedentários, erarn aco m panhadas dë cançöes. 0 prato seguinte foi urn estôm ago de carn eiro cheio de leite de vaca, sangue de carn eiro, aiho e cebolinha, atado corn tripas. Todos os buriats ao redor da m esa esperavarn corn ansiedade que eu c o rnesse o prim eiro pedaco. M as eu não sabiapor onde com ecar.Finalm en te nossa anfitriã debruçou-se sobre mirn e cortou a parte superior do estôm ago do animal.0 conteüdo não estava totalm ente cozido, e o san gue esguichou no m euprato. Corn um a coiher de sopa, ela raspou urn pouco daquela m assa sem icoagulada e m epassou a coiher.(...) Os outros cOnvidados esperavam que eu fizesse o proxim o gesto.De repente tive um a inspiração: passar o prato adiante. Era exatarnente isso o que eles queriam . 3 7 Irracionalm ente, algunspratosque envolvern rechear intestinos ainda tern urn certo prestIgio na gastronom ia o cidental, enquanto os doces cozidos em estom agos são co n siderados inapropriados para os gourm ets — pra tos rüsticos que dem onstram sua o rigern prim itiva. Em algum as versöes de andouilles e andouillettes, o intestino grosso de urn porco é recheado principalm ente co rn pedacinhos do intestino delgado, sem que seja sacrificada sua autenticidade.Boudins blancs são tira-gostos m uito finos. E possfvel que urn gourm et se delicie corn urna m o rcela que se derrete, m as, ao m esm o tem po, ache que o intestino de urn bode — corno aquele assado e recheado corn sangue e gordura corn que Ulisses foi prerniado por sua pericia n a luta co rpo a co rpo — seja algo obsceno. 3 2 Levi-Strauss estava certo quando supos que a fervura “exige o uso de urn receptáculo, urn objeto c ultural”, 3 9 já que apele ou tripa u sada corno recipiente para afervura na v erdade foitransform ada em urn artefato pela im aginaçao hum ana e urna cova para fervura e u m a invenção co m plica da,que precisa ser escav ada e forrada. N o entanto, se u sarm o s esse a rgu m ento, os vários tipos de espeto e ate m esm o o fogo aceso tarnbérn são objetos culturais e, n a o
Compartilhar