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199 A ATUAÇÃO DOS PSICÓLOGOS NO SISTEMA PENAL Tania Kolker Durante muito tempo, os saberes e os fazeres dos profissionais de saúde nas prisões estavam quase que irremediavelmente alinhados com as teorias mais conservadoras sobre o crime, os criminosos e as prisões, cabendo-lhes apenas o papel de operadores técnicos do poder disciplinar. Esse quadro só começa a mudar nas últimas décadas, quando aparecem os primeiros estudos foucaultianos sobre a prisão e são dados os primeiros passos na construção das bases da escola que viria a ser conhecida como Criminologia Crítica. Além disso, com as contribuições do movimento da reforma penal interna- cional e com o desenvolvimento da cultura de direitos humanos, o leque de contribuições teórico-políticas sobre o tema amplia-se consideravelmente e começam a ser criadas as condições para a formação de um novo tipo de profissional, quando não mais engajado politicamente, pelo menos familiari- zado com leituras mais críticas e desnaturalizadoras. Sendo, porém, a criminalidade um fenômeno tão complexo e sujeito a múltiplas determinações, e o tratamento penal do crime objeto de tantas controvérsias, é longo e multifacetado o caminho dos que desejam construir um conhecimento mais crítico e transformador sobre esse campo de inter- venção. Para tal, é preciso estabelecer o diálogo entre saberes tão distintos como história, sociologia, economia, direito penal, criminologia, psicologia jurídica, entre outros. É fundamental entender o papel da criminalização da pobreza, da demonização das drogas, da espetacularização da violência, Tania Kolker 200 da criação da figura do inimigo interno e da funcionalidade do fracasso da prisão, especialmente no contexto atual das sociedades neoliberais globali- zadas. Mas é também necessário conhecer os autores que no passado cons- truíram esse objeto que passou a ser visto como a causa dos crimes e a razão de ser das prisões: o criminoso. Meu objetivo nesse texto é delinear um trajeto, propondo um percurso para os leitores desejosos de conhecer os principais autores e as principais ideias que vêm sendo travadas no conflagrado território dos discursos sobre as prisões e manicômios judiciários e, com isso, fornecer elementos para a problematização da atuação dos psicólogos e demais profissionais da saúde mental nessas instituições. A prisão, tal qual a conhecemos na atualidade, é uma instituição que nasce com o capitalismo e desde então vem sendo utilizada para administrar, seja pela via da correção, seja pela via da neutralização, as classes tidas como perigosas. Embora hoje seja universalmente usada como forma de sancionar a maioria dos crimes, durante muitos séculos servia apenas para guardar os criminosos até o julgamento, ou para tornar possível a aplicação de outras penas, como a de trabalho forçado. Até a sua consagração, em fins do século XVIII, diversas outras formas punitivas foram adotadas, sempre de maneira rela- cionada ao modelo político-econômico vigente, em geral respondendo à neces- sidade de formação, aproveitamento e/ou controle da mão de obra pouco qualificada, ou como instrumento para a gestão das classes consideradas peri- gosas (por sua pobreza e marginalidade, e não apenas por sua criminalidade)1. Assim, a escravidão como punição esteve par a par com a economia escra- 1 Para uma discussão do conceito de classes perigosas ver Guimarães, 1982 e Coimbra, 2001 e, para um aprofundamento da discussão sobre as novas formas de gestão da pobreza, ver Wacqüant, 2001. A pena privativa de liberdade veio responder à necessidade de formação de mão de obra para alimentar a máquina capitalística. Desde então, toda a evolução posterior do trabalho nos cárceres (do trabalho produ- tivo, ao trabalho não produtivo e finalmente à ausência de trabalho) esteve vinculada ao valor da mão de obra e do preço dos salários na sociedade livre. Assim, nos períodos em que a mão de obra era escassa, os presos eram obrigados ao trabalho; quando o exér- cito de reserva se expandia e já não havia a necessidade da mão de obra do preso, o trabalho nos cárceres tinha apenas a função de contribuir para a formação de uma subje- tividade operária e, mais recentemente, quando a tecnologia começou a tornar os homens prescindíveis, o trabalho penal começou a desaparecer. Ver em Melossi e Pavarini, 1980; em Castro, 1983; em Pavarini, 1996; e em Rusche e Kirchheimer, 1999. A atuação dos psicólogos no sistema penal 201 vista; as fianças e indenizações nasceram com a economia monetária; os suplícios e a pena capital foram as penas preferenciais no período feudal, atingindo apenas aos extratos mais pobres da população; o trabalho nas galés serviu para satisfazer a necessidade de remadores; o banimento e a depor- tação estiveram associados ao processo de exploração colonial e a prisão com ou sem trabalho forçado esteve intimamente ligada à emergência e ao desen- volvimento do modo de produção capitalista. Para melhor entender a função histórica da prisão e o papel histori- camente atribuído ao saber médico-psicológico nessas instituições, convém voltarmos um pouco atrás no tempo, a princípio em companhia de Foucault e Castel. Com eles, é possível ver como as diferentes formas de assistir e/ou punir dispensadas aos doentes, deficientes, pobres, desempregados, margi- nais e criminosos de nossa história estão ligadas entre si, como estas estra- tégias estão intimamente relacionadas com as sucessivas políticas voltadas para o controle das classes trabalhadoras e como as nossas ações, enquanto técnicos, estão atravessadas por essas determinações. Mendigos, vagabundos, criminosos e trabalhadores Na obra de Castel vemos que, a partir da dissolução da ordem feudal tem início intenso processo migratório que em pouco tempo vai inchar as cidades, criar extensos bolsões de pobreza e constituir o exército de reserva urbano, aumentando enormemente o número de pessoas involuntariamente desocupadas e sem residência fixa. Forçados a vagar em busca de trabalho, aqueles que não se enquadram na nova ordem econômica vão ficando pelas estradas e são empurrados para a miséria, a mendicância ou o crime. Sem outra alternativa, essas pessoas passam a compor a clientela dos dois tipos de dispositivos que se firmarão ao longo de todo o século XIV e dos três seguintes: a assistência, só acessível aos pobres válidos para o trabalho e com residência conhecida, e a internação/reclusão, nesse momento desti- nada ao enclausuramento dos doentes venéreos, loucos, pobres sem domi- cílio, mendigos e vagabundos irredutíveis, menores abandonados e moças necessitadas de correção. Na medida em que vão piorando as condições de trabalho, são criadas as leis para coagir o povo a aceitá-las e para punir Tania Kolker 202 a recusa ao trabalho. É quando internação2 e reclusão se igualam e têm apenas uma função: absorver a massa de desviantes, neutralizando-os pelo isolamento e corrigindo-os através da tríade trabalho forçado/orações/ disciplina (CASTEL, 1998). Essa preocupação administrativa com as populações pobres logo fará emergir novos sujeitos sociais e novos objetos de intervenção. Nos séculos seguintes, e especialmente no período que ficou conhecido como mercanti- lista, todos os esforços serão empenhados pelos Estados, por um lado, para manter sob controle a mão de obra disponível e, por outro, punir os não enquadráveis nessa nova configuração. A pobreza, que nos séculos ante- riores era valorizada espiritualmente, torna-se motivo de desonra e é crimi- nalizada. A mendicância, a vagabundagem ou a delinquência, que até então se constituíam em estratégias eventuais de sobrevivência, muitas vezes para fazer frente a períodos sem trabalho, pouco a pouco vão se tornando destinos irreversíveis. Mesmo as massas ocupadas são agora severamentepunidas ao menor sinal de associação, desobediência ou insurreição. Nesse leque de situações facilmente intercambiáveis – onde, segundo Castel, a “criminalidade representa[ria] a franja externa, alimentada pela área fluida da vagabundagem, ela própria alimentada por uma zona de vulnerabilidade mais ampla, feita da instabilidade das relações de trabalho e da fragilidade dos vínculos sociais” (CASTEL, 1998: 135) –, o que, na verdade, concorrerá para a constituição daqueles que serão os futuros mendigos, vagabundos ou delinquentes são as próprias instituições criadas para geri-los. Nesse processo, a figura do mendigo é recortada e passa a ser perce- bida “como uma espécie de povo [que corre o risco de se tornar] inde- pendente”, que não conhece “nem lei, nem religião, nem autoridade, nem polícia”, tal como “uma nação libertina e indolente que nunca tivesse tido regras” (CASTEL, 1998: 75). A mendicância é, então, perseguida em toda a Europa pré-capitalista e, para conjurar tal ameaça, é criado o dispositivo da internação, constituído por uma vasta rede de casas de trabalho, casas de detenção e hospitais cuja função principal será a transformação dessas massas inúteis ou potencialmente perigosas em força de trabalho3. 2 O hospital só se tornará um dispositivo médico a partir do final do século XVIII. Até esse momento, a inter- nação, seja em hospital, em casa de trabalho ou em prisão, exercerá função meramente administrativa. 3 Para as casas de trabalho eram enviados os mendigos aptos para o trabalho, os necessitados, os pequenos ladrões, as crianças e jovens rebeldes, as viúvas, os órfãos etc. Segundo Melossi e Pavarini (1980), essas casas não eram um lugar de produção e sim, um lugar onde se aprendia a disciplina de A atuação dos psicólogos no sistema penal 203 Outro personagem que emergirá dessa nova classificação e que mere- cerá um tratamento rigoroso é o vagabundo, que se assemelha aos mendigos por ser pobre e não estar trabalhando, mas que deles se diferencia por não ter pertencimento comunitário. Esta categoria tão ampla que, segundo Castel, até o século XVI abarcará “pessoas que mendiguem sem motivo, velhacos, mendigos que simulem enfermidades, ociosos, luxuriosos, rufiões, tratantes, imprestáveis, indolentes, malabaristas, cantores, exibidores de curiosidades, arrancadores de dentes, vendedores de teriaga, jogadores de dados, prosti- tutas, e até operários, ou rapazes barbeiro”, a partir de então irá ganhando contornos mais precisos (CASTEL, 1998: 120). Assim, em 1566, um decreto real estabelecerá que: ...vagabundos são pessoas ociosas, preguiçosas, pessoas que não pertencem a nenhum senhor, pessoas abandonadas, pessoas sem domicílio, ofício e ocupação. (CASTEL, 1998: 121) E outro de 1701 declarará que: ...vagabundos e pessoas sem fé nem lei [são] aqueles que não têm profissão, nem ofício, nem domicílio certo, nem lugar para subsistir e que não são reconhecidos e não podem valer-se da recomendação de pessoas dignas de fé que atestem sobre a sua boa conduta e bons costumes. (CASTEL, 1998: 121) Ao longo deste período aparecerá farta legislação que determinará como os vagabundos devem ser tratados: na Inglaterra de 1547, os que se recusam a trabalhar são entregues a senhores como escravos por dois anos, se reincidem uma vez, são sentenciados à escravidão pelo resto da vida e, se voltam a reincidir, são condenados à morte (CASTEL, 1998). Na França de meados do século XVI, os vagabundos são obrigados a trabalhar na cons- trução de fortalezas e estradas. Em Bruxelas, um decreto estabelece punição para os trabalhadores que deixem seus senhores para tornarem-se mendigos ou vagabundos (RUSCHE e KIRCHHEIMER, 1999). Devido à sua situ- ação extraterritorial, os vagabundos são punidos também com o banimento, o trabalho forçado nas galeras ou a deportação para as colônias. produção. Dessa maneira, os que conseguiam sair de lá vivos não chegavam a adquirir nenhuma qualifi- cação profissional que lhes pudesse abrir as portas do mundo do trabalho e acabavam retornando. Além disso, essas instituições serviam como ameaça aos demais pobres, que eram obrigados a aceitar qualquer trabalho, sob pena de serem internados. Tania Kolker 204 Castel nos explica o motivo deste tratamento especial: A existência dessas populações instáveis, disponíveis para todas as aventuras, representa uma ameaça para a ordem pública. (...) Não só os vagabundos, individualmente, cometem delitos, mas também a insegurança que representam pode assumir uma dimensão coletiva. Pela formação de grupos que expoliam o campo e desembocam às vezes no roubo a mão armada organizado, por sua participação nas “emoções” e nos motins populares também, os vagabundos, sepa- rados de tudo e vinculados a nada, representam um perigo, real ou fantasmático, de desestabilização social. (CASTEL, 1998: 138) Afinal, ...quem nada tem e não está ligado a nada é levado a fazer com que as coisas não permaneçam como são. Quem nada tem para preservar corre o risco de querer apropriar-se de tudo. A função de “classe perigosa”, que em geral é atribuída ao proletariado do século XIX, já é assumida pelos vagabundos. (...) Realmente, saber que a maioria dos indivíduos rotulados de mendigos ou vagabundos era, de fato, formada por pobres coitados levados a tal situação pela miséria e pelo isolamento social, pela falta de trabalho e pela ausência de suportes relacionais, não podia desembocar em nenhuma política concreta no quadro das sociedades pré-industriais. Em contrapartida, estig- matizando ao máximo os vagabundos, criavam-se os meios regula- mentares e policiais para enfrentar os tumultos pontuais provocados pela reduzida proporção de vagabundos verdadeiramente perigosos. Podia-se também, sem dúvida, pesar um pouco sobre o que, então, funcionava como mercado de trabalho, tentando obrigar inativos a se empregarem por qualquer valor a fim de fazer os salários caírem. (CASTEL, 1998: 138-139) Mas, precisaremos chegar ao final do século XVIII para assistir ao processo de especialização das instituições encarregadas do sequestro4 das populações marginalizadas. Nesse momento em que cresce a popu- lação miserável5, desenvolve-se a produção e multiplicam-se as riquezas e 4 Termo empregado por Foucault para referir-se às instituições que têm como objetivo a vigilância e a disciplina, através do controle do tempo, do corpo e do saber dos sujeitos a elas submetidos. A este respeito ver Coimbra e Nascimento, 2001. 5 Segundo Castel, no período revolucionário havia na França dez milhões de indigentes, trezentos mil mendigos, cem mil vagabundos, cento e trinta mil menores abandonados e alguns milhares de loucos (CASTEL, 1978). A atuação dos psicólogos no sistema penal 205 as propriedades, é preciso aperfeiçoar os instrumentos de controle social. Com o aparecimento dos grandes armazéns – que estocam matérias- primas e mercadorias passíveis de serem roubadas – e das grandes oficinas – que reúnem centenas de trabalhadores descontentes, e onde há máquinas que podem ser danificadas – nasce uma nova necessidade de segurança e aparecem os primeiros rudimentos da Polícia (FOUCAULT, 1993). Os crimes contra a propriedade passam a prevalecer sobre os crimes de sangue e os criminosos do século anterior, geralmente “homens prostrados, mal alimentados, levados pelos impulsos e pela cólera” (CASTEL, 1998: 71) são agora substituídos por bandos profissionalizados e organizados. Para fazer frente a esse novo quadro e ao aparecimento de formas embrionárias de organização das massas trabalhadoras, novas leis repressivas são criadas e a Justiça – que durante toda a alta Idade Média funcionara através de tribunais arbitrais – vai sendo progressivamente substituída por um conjunto de insti- tuições controladas pelo Estado, que terá a função de administrar as massas revoltosase assegurar a ordem pública. Começa, então, a ser constituído o embrião daquilo que se tornará o aparelho judiciário. A este respeito, Foucault dirá que: A partir de uma certa época, o sistema penal, que tinha essencial- mente uma função fiscal na Idade Média, dedicou-se à luta anti- sediciosa. A repressão das revoltas populares tinha sido até então, sobretudo tarefa militar. Foi em seguida assegurada, ou melhor, prevenida, por um sistema complexo justiça-polícia-prisão. (FOUCAULT, 1992: 50) Para ele, a Justiça, a serviço da burguesia, assumirá como um de seus papéis ...fazer com que a plebe não proletarizada aparecesse aos olhos do proletariado como marginal, perigosa, imoral, ameaçadora para a sociedade inteira, a escória do povo, o rebotalho, a ‘gatunagem’; trata- se para a burguesia de impor ao proletariado, pela via da legislação penal, da prisão, mas também dos jornais, da ‘literatura’, certas cate- gorias da moral dita ‘universal’ que servirão de barreira ideológica entre ela e a plebe não proletarizada. (FOUCAULT,1992: 50-51) Ou ainda nas palavras do autor: Tania Kolker 206 Já que a sociedade industrial exige que a riqueza esteja diretamente nas mãos não daqueles que a possuem, mas daqueles que permitem a extração do lucro, fazendo-os trabalhar, como proteger esta riqueza? Evidentemente por uma moral rigorosa: daí esta formidável ofen- siva de moralização que incidiu sobre a população do século XIX. (...) Foi absolutamente necessário constituir o povo como um sujeito moral, portanto separando-o da delinqüência, portanto separando nitidamente o grupo de delinqüentes, mostrando-os como perigosos não apenas para os ricos, mas também para os pobres, mostrando-os carregados de todos os vícios e responsáveis pelos maiores perigos. (FOUCAULT, 1992: 132-133) O nascimento das prisões e a produção da delinquência Com Foucault, é possível entender o papel do dispositivo disciplinar na gênese da subjetividade individuada e a importância da vigilância, das sanções normalizadoras e dos exames na emergência das ciências do homem6. Como veremos ao longo de sua obra, a partir da emergência da prisão e das demais instituições de controle que compõem o diagrama disciplinar, vai sendo construída a máquina panóptica7, que além de produzir subjetividades e agir sobre a conduta dos desviantes, objeto das diversas formas de inter- namento ou reclusão, será um lugar de produção de saberes e, portanto, de constituição de objetos e sujeitos do conhecimento, o que fará dos exames e perícias uma ferramenta crucial8. Nesse momento, que corresponde à formação de um novo modo de exercer o poder, o que está em jogo é a produção de um outro tipo de subjetividade e de uma outra forma de gerir os 6 Segundo Foucault, a medida, o inquérito e o exame são meios distintos de exercer o poder e estabe- lecer o saber: “A medida: meio de estabelecer ou restabelecer a ordem, e a ordem justa, no combate dos homens ou dos elementos; mas também matriz do saber matemático e físico. O inquérito: meio de cons- tituir ou de restituir os fatos, os acontecimentos, os atos, as propriedades, os direitos; mas também matriz dos saberes empíricos e das ciências da natureza. O exame: meio de fixar ou de restaurar a norma, a regra, a partilha, a qualificação, a exclusão; mas também, matriz de todas as psicologias, sociologias, psiquiatrias, psicanálises, em suma do que se chamam as ciências do homem” (FOUCAULT, 1997: 20). 7 O Panóptico concebido por Bentham era um tipo de arquitetura que ao “dissociar o par ver-ser visto” (FOUCAULT, 1993) possibilitava a vigilância contínua, a visibilidade permanente, a anonimidade do controle e a fixação dos indivíduos. 8 Se com o inquérito do período feudal tratava-se de saber o que havia ocorrido e de reconstituir um acontecimento determinando o seu autor, no exame trata-se de construir um novo tipo de saber, cujo objetivo é o controle e a correção dos indivíduos. A atuação dos psicólogos no sistema penal 207 homens que implica em uma vigilância individual, perpétua e ininterrupta, ou seja, na adoção de uma nova tecnologia, denominada por Foucault de disciplina. Esta tecnologia, que também será colocada em prática nas escolas, nos conventos, nas fábricas, nos hospitais e nos quartéis, atravessará a socie- dade de ponta a ponta constituindo quadros administráveis que permitirão a transformação das multidões confusas e perigosas em multiplicidades orga- nizadas e manipuláveis. Segundo Foucault, é quando as classes dominantes descobrem que do ponto de vista da economia do poder é “mais eficaz e mais rentável vigiar que punir” (FOUCAULT, 1992: 130). Trata-se, segundo ele, ...de estabelecer uma nova economia do poder de castigar, assegurar uma melhor distribuição dele, [de fazer com que] seja repartido em circuitos homogêneos que possam ser exercidos em toda parte de maneira contínua e até o mais fino grau do corpo social, [de torná- lo] mais regular, mais eficaz, mais constante e mais bem detalhado em seus efeitos. (FOUCAULT, 1993: 75) Para a nova ordem jurídico-administrativa, fundada no contrato, onde a punição dos criminosos deixa de ser uma prerrogativa do rei para tornar- se um direito da sociedade e em que o cidadão é sujeito e ao mesmo tempo assujeitado, ...o prejuízo que um crime traz ao corpo social é a desordem que introduz nele: o escândalo que suscita, o exemplo que dá, a incitação a recomeçar se não é punido, a possibilidade de generalização que traz consigo. Para ser útil, o castigo deve ter como objetivo as conse- qüências do crime, entendidas como a série de desordens que este é capaz de abrir (...) [Deve] calcular uma pena em função não do crime, mas de sua possível repetição. Visar não à ofensa passada, mas a desordem futura. (FOUCAULT, 1993: 85) Com o fim dos suplícios que dominaram o sistema de punições no período feudal, nasce uma nova maneira de conceber as penas que já não visará tanto ao corpo e sim à alma. A partir de então, de acordo com o princípio de igualdade jurídica, todos devem ser tratados de forma igual Tania Kolker 208 perante a lei e não há crime se não houver uma lei anterior que o tipifique9. Aparece a noção de infração, que – diferentemente do dano ou ofensa que diziam respeito apenas ao acusado, à vítima e ao soberano lesado em sua autoridade – implica em ataque ao próprio Estado, à sua lei e à sociedade. E o criminoso passa a ser visto como alguém que voluntariamente rompeu o pacto social devendo, portanto, ser considerado como inimigo da sociedade (FOUCAULT, 1996). Além disso, a pena passa a ser quantificada e o tempo se torna a sua medida principal. Para essa sociedade onde a liberdade é um dos maiores bens, a punição predominante será a suspensão temporária da liberdade. A prisão torna-se a punição por excelência, mas, diferente da velha prisão-masmorra do período anterior, a prisão-observatório de agora permitirá punir e ao mesmo tempo isolar, vigiar, controlar, conhecer e corrigir. Neste momento, a obra de enquadrar e individualizar a população marginal se verá completa: se para o senso comum a prisão nasce para dar conta da delinquência, para esta leitura, que podemos chamar de genealó- gica, a delinquência será um efeito-instrumento da prisão. Para Foucault: A técnica penitenciária e o homem delinqüente são de algum modo irmãos gêmeos. Ninguém creia que foi a descoberta do delinqüente por uma racionalidade científica que trouxe para as velhas prisões o aperfeiçoamento das técnicas penitenciárias. Nem tampouco que a elaboração interna dos métodos penitenciários terminou trazendo à luz a existência ‘objetiva’ de uma delinqüência que a abstração e a inflexibilidade judiciárias não podiam perceber. Elas apareceram as duas juntas e no prolongamento uma da outra como um conjunto tecnológico que forma e recorta o objeto a que aplicaseus instru- mentos. (FOUCAULT, 1993: 226) Os infratores, uma vez captados pelas malhas da lei, serão submetidos a uma operação que antes de visar corrigi-los, vai transformá-los em delin- quentes. Não importa se o infrator em questão foi premido pela necessidade, ou foi flagrado no seu único crime. A máquina penitenciária irá tragá-lo por uma de suas entradas possíveis e, quando o devolver, se um dia o fizer, já será na qualidade de delinquente. Marcados para sempre pela infâmia; afastados do seu meio social, em geral por muitos anos e irreversivelmente; ocupados com um trabalho inútil, que de nada lhes servirá quando voltarem à liberdade; 9 No período feudal, os castigos não estavam definidos em lei, ficando por conta da vontade do senhor. A atuação dos psicólogos no sistema penal 209 submetidos a condições que só estimularão a sua revolta; estigmatizados por sua folha corrida10; recusados no mercado de trabalho por seus antecedentes penais e, doravante sob a vigilância frequente da polícia, os condenados à pena de prisão serão também condenados à reincidência. Segundo Foucault: O aparelho penitenciário, com todo o programa tecnológico de que é acompanhado, efetua uma curiosa substituição: das mãos da justiça ele recebe um condenado; mas aquilo sobre que ele deve ser aplicado, não é a infração, é claro, nem mesmo exata- mente o infrator, mas um objeto um pouco diferente e definido por variáveis que pelo menos no início não foram levadas em conta na sentença, pois só eram pertinentes para uma tecno- logia corretiva. Esse outro personagem, que o aparelho peniten- ciário coloca no lugar do infrator condenado, é o delinquente. (FOUCAULT, 1993: 223) Foucault nos fala da operação de transformação do infrator em delin- quente em sua obra Vigiar e Punir. Destaca-se neste empreendimento o papel da investigação biográfica: O delinquente se distingue do infrator pelo fato de não ser tanto seu ato quanto sua vida o que mais o caracteriza. (...) Por trás do infrator a quem o inquérito dos fatos pode atribuir a responsa- bilidade de um delito, revela-se o caráter delinqüente cuja lenta formação transparece na investigação biográfica. A introdução do ‘biográfico’ é importante na história da penalidade. Porque ela faz existir o ‘criminoso’ antes do crime e, num raciocínio-limite, fora deste. (...) O delinqüente se distingue também do infrator pelo fato de não somente ser o autor de seu ato (autor responsável em função de certos critérios da vontade livre e consciente), mas também de estar amarrado a seu delito por um feixe de fios complexos (instintos, pulsões, tendências, temperamento). (FOUCAULT, 1993: 223-224) Para captar essa nova objetividade, novos sujeitos serão investidos de poder e novas técnicas de exame serão desenvolvidas, mas antes será preciso esperar pela nova reforma penal, inspirada nas doutrinas positi- 10 Termo que no jargão policial significa atestado de antecedentes criminais. Tania Kolker 210 vistas. É quando será constituído “um conhecimento positivo dos delin- quentes e de suas espécies, muito diferente da qualificação jurídica dos delitos e de suas circunstâncias” (FOUCAULT, 1993: 225), que será conhecido como criminologia. O conhecimento “objetivo” dos delinquentes e a parceria Psiquiatria-Justiça Estamos agora no século XIX, período caracterizado pelas grandes revoltas e sublevações populares cuja disseminação deve ser impedida a todo custo. Segundo Hobsbawn, “nunca na história da Europa e poucas vezes em qualquer outro lugar, o revolucionarismo foi tão endêmico, tão geral, tão capaz de se espalhar por propaganda deliberada como por contágio espon- tâneo” (HOBSBAWN, 1998: 127). Não por acaso, aparecem no período diversos estudos sobre as massas e sua tendência a agir criminosamente, por contágio e irracionalmente, levada por impulsos de momento.11 Aumentam as riquezas e a produtividade, crescem as cidades, mas, como sempre, o enri- quecimento de poucos se faz com a espoliação e a segregação dos demais. A mecanização das fábricas vai deixando sem trabalho inúmeros artesãos que antes figuravam entre os trabalhadores mais qualificados, engrossando ainda mais o contingente de indigentes. Armazéns, celeiros e fábricas são saqueados, máquinas são destruídas, as multidões tomam as ruas e a massa trabalhadora começa a mostrar cada vez maior capacidade de organização. Crescem a indigência e a criminalidade, inflamando as discussões sobre o crime e o tratamento dos criminosos, e a penalidade, antes vista como uma reação penal à infração, passa a funcionar como um meio de agir sobre o comportamento e as disposições do infrator. Por sua vez, a reincidência passa a ser cada vez mais debatida nos meios jurídicos e afins: se em um primeiro momento, este fenômeno permitia ver o fracasso da prisão em seus objetivos de corrigir o criminoso e prevenir novos crimes; logo, essa responsabilidade será atribuída ao próprio delinquente, visto como um tipo natural: “O efeito ‘delinqüência’ produzido pela prisão torna-se problema do delinquente, ao qual a prisão deve dar uma resposta adequada” (FOUCAULT, 1997: 31). 11 A este respeito, ver, por exemplo, A Opinião e as Massas, de Gabriel Tarde. Ver também em Barros (1994) uma importante discussão sobre as multidões e a constituição do modo-indivíduo, para a qual concor- reram as diversas instituições nascidas com a modernidade, como a escola, o hospital, a prisão etc. A atuação dos psicólogos no sistema penal 211 Com a justificativa de que a punição deve visar a prevenção de novos crimes e evitar a reincidência, a pena agora deve levar “em conta o que é o criminoso em sua natureza profunda, o grau presumível de sua maldade, a qualidade intrínseca de sua vontade” (FOUCAULT, 1993: 90). Dessa forma, como dirá Foucault em suas conferências brasileiras, ...toda a penalidade do século XIX passa a ser um controle, não tanto sobre se o que fizeram os indivíduos está em conformidade ou não com a lei, mas ao nível do que podem fazer, do que são capazes de fazer, do que estão sujeitos a fazer, do que estão na iminência de fazer. [Nasce] a noção de periculosidade [que] significa que o indi- víduo deve ser considerado pela sociedade ao nível de suas virtuali- dades e não ao nível de seus atos; não ao nível das infrações efetivas a uma lei efetiva, mas das virtualidades de comportamento que elas representam. (FOUCAULT, 1996: 85) Por sua vez, naturalizada a reincidência, esta servirá ...de justificativa para uma rápida modernização das técnicas de controle e repressão utilizadas pelos aparelhos policiais, dando lugar ao aparecimento de uma ‘polícia científica’ (...). Porém, os efeitos da modernização da polícia não se restringiram apenas ao ‘mundo do crime’; logo se fizeram sentir por todo o tecido social, principalmente junto às camadas da população que exigiam maiores cuidados em termos de contenção, vigilância e disciplinarização. (...) No bojo desse processo, apresentando-se inicialmente como panacéia para o problema da reincidência criminal, constituiu-se uma das mais importantes técnicas de controle que hoje nos atinge a todos: a identificação pessoal através das impressões digitais. (CARRARA, 1998: 64) Para Foucault, se anteriormente julgar era estabelecer a verdade de um crime e apontar o seu autor, agora o objetivo é julgar também as paixões, as vontades e as disposições. Isto quer dizer que se punem as agressões, mas por meio delas as agressividades; os crimes sexuais, mas, ao mesmo tempo, as perversões; os assassinatos, mas através deles os impulsos e desejos (FOUCAULT, 1993: 21). Importa agora não apenas estabelecer que lei sanciona esta infração, mas verificar, também, até que ponto a vontade do Tania Kolker 212 réu determinou o crime, se o infrator apresenta alguma periculosidade e de que maneiraele será melhor corrigido. Isso significa que, a partir de agora, o juiz já não julgará sozinho. De um lado, a Medicina Mental será chamada ao tribunal para decidir sobre a responsabilidade e a periculosidade do crimi- noso, avaliando se ele se encontrava em estado de loucura na hora do ato e se ele é acessível à sanção penal e, de outro, uma nova modalidade de técnicos avaliará o efeito da pena sobre o condenado e se ele merece ou não ser posto em liberdade. Para responder a esses novos mandatos, emergem diversas instituições, laterais à justiça, com as funções de vigilância e correção. E com elas aparecem também os novos atores que doravante se encarregarão de produzir diagnósticos e prognósticos acerca do preso e de acompanhar as transformações que estão se operando em seu comportamento, tornando possíveis um conhecimento individualizado do criminoso e uma indivi- dualização das penas (por exemplo, através da abreviação ou o prolonga- mento das mesmas) que funcionarão como julgamentos adicionais. É quando, segundo Foucault, ...todo aquele ‘arbitrário’ que, no antigo regime penal, permitia aos juízes modular a pena e aos prín- cipes eventualmente dar fim a ela, todo aquele arbitrário que os códigos modernos retiraram do poder judiciário, vemo-lo se recons- tituir, progressivamente, do lado do poder que gere e controla a punição. (FOUCAULT, 1993: 219-220) Essa será a chave de muitos dos excessos que a autonomia da instância carcerária viabilizará. Como nos diz Foucault: ...esse excesso é desde muito cedo constatado, desde o nascimento da prisão, seja sob a forma de práticas A partir do século XVIII, estabelece-se uma colaboração entre a medicina e a justiça. Esta parceria, tão importante para o destino do infrator quanto para o futuro dessas duas instituições, fará nascer uma nova esfera de competência – a perícia –, um novo saber – a psiquiatria –, novos estabelecimentos – as, prisões, os asilos e os manicômios judi- ciários, e uma nova necessidade de distin- guir o louco do criminoso, o irresponsável do responsável, o punível do tratável. Nos primeiros anos, como os loucos infratores só eram punidos quando comprovada sua intenção de causar dolo e sua permanência com as famílias era permitida por lei, as perí- cias só deviam responder se o imputado cometeu a infração em estado de demência. No entanto, com a reforma da lei – que acaba com a exclusão recíproca entre o discurso punitivo e o discurso terapêutico – e a conso- lidação do poder psiquiátrico – que além de ocupar-se da esfera do patológico, atribui-se também o controle do anormal –, as perícias passam também a avaliar a periculosidade e a capacidade de adaptação dos infratores. (CASTEL, 1978; FOUCAULT, 2001) A atuação dos psicólogos no sistema penal 213 reais, seja sob a forma de projetos. Ele não veio, em seguida, como um efeito secundário. A grande maquinaria carcerária está ligada ao próprio funcionamento da prisão. Podemos ver o sinal dessa autonomia nas violências ‘inúteis’ dos guardas ou no despotismo de uma administração que tem o privilégio das quatro paredes. (FOUCAULT, 1993: 220) A prisão, enquanto instrumento de modulação da pena, adquire um poder tal que, além de ser o lugar onde a duração do castigo é decidida e um certo saber sobre o criminoso é produzido, é também o palco onde se definirá, de acordo com as normas disciplinares vigentes em cada estabele- cimento, quais novas punições se acrescentarão às determinadas por lei. É quando a tortura, muito usada no período feudal para fins de prova, ganhará novos objetivos, mas a própria individualização da pena, introduzida pelos reformadores sob a justificativa da humanização, servirá também para a gestão e o controle dos comportamentos. Nesse lugar que funcionará como um microtribunal, os presos serão observados dia e noite, avaliados, classi- ficados, punidos ou recompensados. Segundo Foucault, dessa observação se extrairá um saber cujo objetivo não é mais determinar se alguma coisa se passou ou não, como fazia o inquérito no período anterior, mas sim avaliar se um indivíduo se comporta de acordo com a norma, se está progredindo ou não, se deve ser punido ou merece ser recompensado. Trata-se, pois, de ...um novo saber, de tipo totalmente diferente, um saber de vigi- lância, de exame, organizado em torno da norma pelo controle dos indivíduos ao longo de sua existência. Esta é a base do poder, a forma de saber-poder que vai dar lugar não às grandes ciências de observação como no caso do inquérito, mas ao que chamamos de ciências humanas: Psiquiatria, Psicologia, Sociologia etc. (FOUCAULT, 1996: 88) O dispositivo da periculosidade e a indeterminação das sanções O fim do século XIX é marcado por intensas discussões sobre o crime, a criminalidade e as penas. Criticada por não conseguir dar uma resposta eficaz ao aumento da criminalidade e da reincidência, a Escola Clássica, Tania Kolker 214 que consagrara a igualdade e a liberdade individual, começa a perder espaço para as ideias positivistas. Nesse momento em que se assiste o acirramento das ques- tões sociais, o avanço da organização das classes trabalhadoras12 e a intensi- ficação das greves e agitações operá- rias (segundo Del Olmo chamadas de delitos das multidões), os saberes da época são convocados a munir o poder de novas estratégias para ampliar o leque e a duração das sanções, de maneira a abarcar todo o universo de desviantes e/ ou delinquentes potenciais e a garantir a sua neutralização provisória ou permanente. Assumindo a tarefa de justi- ficar as desigualdades e privilégios de uma sociedade que queria se definir como igualitária, desviar a atenção das causas sociais e políticas dos delitos para a esfera do individual, patologizar os criminosos e resistentes13 e legi- timar a intervenção estatal contra os inadaptados, a Escola Positivista passa a trabalhar com a tese da predisposição hereditária para o delito e propõe que os traços reveladores da personalidade criminosa devem ser procurados na constituição física, na biografia e/ou no meio social do réu. Diferentemente dos liberais que tinham como objeto os delitos e as penas, os adeptos da Escola Positiva de Direito Penal voltam-se para o homem delinquente e as características que os distinguem dos demais. Com esse objetivo, tentam individualizar os fatores que condicionam o comporta- mento criminoso e, apoiados em pressupostos deterministas e na noção de hereditariedade, passam a criticar a noção de livre arbítrio e a questionar a responsabilidade dos criminosos. Segundo eles, a liberdade de escolha 12 Esse foi um período de grande efervescência com a criação da Associação Internacional de Trabalha- dores, em 1864, a publicação do primeiro volume de “O Capital”, por Marx, em 1867 e a Comuna de Paris, em 1871. 13 Para ilustrar o discurso da época destaco um texto de Charles Fèrè, datado de 1884: “Dando a oportuni- dade a instintos criminosos e estimulando predisposições à insanidade mental, as grandes revoluções sociais podem revelar fatores hereditários, anomalias (monstruosités) psíquicas e demonstrar o elo entre estes dois defeitos de um modo quase experimental. Pode-se citar entre os que tiveram um papel particularmente nocivo nas insurreições do século um bom número de indivíduos tratados por insanidade ou que tinham loucos na família” (apud HARRIS, 1993: 75). A esCola ClássiCa, baseada nos ideais do Iluminismo, atravessou parte dos séculos XVIII e XIX. As obras principais desse período foram Dos Delitos e das Penas, de Cesare Beccaria (1764) e Programa do Curso de Direito Penal de Francesco Carrara (1859). Para os clássicos, o criminoso é aquele que, no exercício do livre arbítrio – que implica na perfeita capacidade de entender a ilici- tude de um ato e de agir pautado poresse entendimento – viola livre e consciente- mente a norma penal, sendo, portanto intei- ramente responsável por seus atos. Nesse momento, os loucos são colocados fora do Direito Comum. Para a maior parte das legis- lações à época eles estão isentos de pena. A atuação dos psicólogos no sistema penal 215 não podia ser considerada relevante no julgamento de um ato criminoso, uma vez que o comportamento humano estava predeterminado por causas inatas. No entanto, se os criminosos não podiam ser considerados, sob esse ponto de vista, moralmente responsáveis, deviam ser tratados como social- mente responsáveis pelo perigo que podiam representar. Assim, entendendo que a sociedade tinha o direito de se defender desse perigo e que as leis não tinham o mesmo efeito de intimidação sobre os diferentes homens, os positivistas – em oposição à Escola Clássica que retirava da esfera penal os infratores considerados irresponsáveis –, propõem que é preciso criar sanções diferenciadas para neutralizar os delinquentes natos, reservando as penas tradicionais aos criminosos ocasionais, suscetíveis de serem discipli- nados e incorporados ao mercado de trabalho. Na verdade, de acordo com Sérgio Carrara, ... através do crime, juristas, criminalistas, criminólogos, antropólogos criminais, médico-legistas, psiquiatras, todos fortemente influen- ciados por doutrinas positivistas ou cientificistas, discutiam uma questão política maior: os limites ‘reais’ e necessários da liberdade individual, que excessivamente protegida nas sociedades liberais, era apontada como causa de agitações sociais ou, ao menos, como empecilho à sua resolução. (...) Cumpria então reformar códigos e leis para assentar as bases jurídico-políticas de uma ampla reforma institucional que fornecesse ao Estado e às suas organizações os instrumentos necessários para uma intervenção social mais incisiva e eficaz. (CARRARA, 1998: 65) A oportunidade foi dada com o dispositivo da periculosidade e com o recurso à individualização e à indeterminação temporal das sanções. Desde o século anterior, à medida que a estrutura jurídico-política da sociedade contratual se generalizava, os mendigos, vagabundos e criminosos vinham sendo cada vez mais reprimidos. Como vimos acima, estes eram indiscri- minadamente captados pelas teias de uma mesma rede que cada vez mais se estendia pela sociedade. A partir do século XIX, no entanto, essa malha começa a se especializar. Pouco a pouco, repressão e assistência se dissociam, inúmeras prisões são construídas e os loucos são internados em locais espe- ciais. Vistos como incapazes de trabalhar e de responder por seus atos, ao mesmo tempo inocentes e potencialmente perigosos, que não transgride(m) Tania Kolker 216 a uma lei precisa, mas pode(m) violar a todas, passam a ser tratados como um foco especial de desordem. Segundo Castel (1998), por sua singular imuni- dade às regras do mundo do trabalho e da lei, era como se ameaçassem a própria estrutura que presidia a organização da sociedade. Para administrá- los, portanto, era preciso construir-lhes um estatuto diferente. Não podendo gerir seus bens, deviam ser tutelados, não sendo passíveis de sanção, deviam ser submetidos à internação. Com o movimento alienista começam a ser constituídas as bases teóricas que justificarão a sequestração dos loucos com base em sua imprevisibilidade, amoralidade e suposta tendência para o crime. Portadores de uma alienação, muitas vezes só visível aos especialistas, os diagnosticados como monomaníacos tornam-se objetos de suspeição e devem ser internados para evitar que cometam crimes. Criminalizada a loucura e patologizado o crime, os alienistas passam a ser chamados aos tribunais, ao mesmo tempo em que emergem a figura do monstro moral e a preocupação com a inteligibilidade dos atos criminosos sem causa aparente, cometidos por sujeitos dotados de razão. Progressivamente, o julgamento da racionalidade-responsabilidade se desloca do ato criminal para a pessoa individual, que passa a ser avaliada através de suas motivações profundas e história de vida, dimensões agora indispensáveis para apreciar as possibili- dades de emenda e escolher a sanção mais adequada para a neutralização do infrator. O interesse da medicina mental vai ampliando e deixa de se restringir aos crimes monstruosos – só encontrados nos casos extremos – para se ocupar dos crimes dos indivíduos a serem corrigidos. Por sua vez, as perícias param de funcionar segundo o modo dicotômico (ou louco, ou perigoso) e vão se tornando uma atividade de triagem e classificação, esten- dendo seu domínio a um número crescente de indivíduos (CASTEL, 1978). Diferenciando-se da Escola Clássica, que partia do pressuposto que o criminoso era uma pessoa normal e via na pena um meio de defesa contra o crime atuando como um dissuasivo, uma contramotivação à repetição da infração, a Escola Positivista entende o crime como a manifestação de uma degeneração, anormalidade ou atavismo e se propõe a defender a sociedade do criminoso. Isso significa que, enquanto para a doutrina anterior, o fim da pena seria a eliminação do perigo social que adviria da impunidade do delito e a reeducação do condenado seria um resultado acessório, para o Direito Penal Positivo, a pena como meio de defesa social pretendia intervir direta- mente sobre a subjetividade do indivíduo criminoso, reeducando-o, ou pelo A atuação dos psicólogos no sistema penal 217 menos neutralizando-o (BISSOLI FILHO, 1998). Nesse momento em que o delito passa a ser tratado como um índice de anormalidade e o cárcere se converte em aparelho de normalização, é toda a ideologia punitiva que está em transformação. Segundo Salo de Carvalho, a partir de então: Do estudo das relações objetivas e subjetivas entre o fato e o resul- tado, a ciência penal parte para a anamnese reconstrutiva da perso- nalidade do indivíduo desde os seus primórdios, julgando e punindo sua história de vida. A um direito penal do fato-crime se sobrepõe um direito penal do autor fundado na periculosidade, independente da relação e proporcionalidade entre a lesão do bem jurídico tutelado e a norma jurídica. A um modelo processual acusatório baseado na presunção de inocência e nas possibilidades fáticas de comprovação e refutação de hipóteses, impõe-se um modelo inquisitorial de julga- mento da personalidade do réu e suas ‘tendências’. A uma estrutura retributiva da pena, cominada com escopo de reprovar a violação da norma, impõe-se a tarefa de influenciar e modificar o ‘ser’ do ‘Outro’. (CARVALHO, 2003: 62-63; os grifos são nossos) Dentre os autores mais relevantes que se dedicaram ao estudo “cien- tífico” dos criminosos e que forneceram as bases “científicas” deste novo sistema punitivo, quatro merecem menção especial14. O primeiro foi Morel, que apresenta sua tese sobre a degeneração em 1857, definindo-a como o conjunto de “desvios doentios do tipo normal da humanidade, hereditariamente transmissíveis, com evolução progressiva no sentido da decadência” (MOREL, apud CARRARA, 1998: 82). Para ele, a espécie humana partiria do tipo primitivo ideal que conteria os elementos principais para a continuidade da raça, de modo que qualquer desvio das condições normais levariam a uma degenerescência de natureza. Traçando um perfil dos degenerados que de certa maneira antecipa o criminoso nato de Lombroso, Morel diz que Os indivíduos nascidos dessas condições fatais assinalam-se desde cedo pela depravação de suas tendências. São bizarros, irritáveis, 14 Como vimos, a noção de monomania, cunhada no início do século XIX, também foi fundamental para a criminalização da loucura e para a percepção dos loucos como perigosos. No entanto, somente com a teoria da degeneração os pilares do direito penal liberal começam a ser questionados e passa-se do crime vistocomo sintoma de uma doença capaz de ser tratada para o crime como um atributo de certos indivíduos, que os acompanharia do nascimento até a morte. Tania Kolker 218 violentos, suportando dificilmente o freio da disciplina e mostrando- se na maioria dos casos, refratários a toda a educação. Eles entregam- se instintivamente ao mal, e seus atos, prejudiciais e perversos, são indevidamente, em muitas circunstâncias, designados sob o nome de monomanias (...). Do ponto de vista físico, tem uma constituição franzina e débil. Sua estatura é pouco elevada, suas cabeças pequenas e mal conformadas, a freqüência e a gravidade das convulsões da infância, nestes seres degenerados, produzem o estrabismo ou as deformidades das extremidades inferiores, bem como anomalias e/ ou interrupção do desenvolvimento na estrutura íntimas dos órgãos. (MOREL, apud DARMON, 1991: 42) Produzindo, então, uma nova classificação das doenças mentais baseada em um critério etiológico, este autor afirma que a origem da maioria das doenças mentais era degenerativa, razão pela qual elas deveriam ser consideradas incuráveis e capazes de comprometer as gerações futuras15. Como a degeneração engendrava tipos antropológicos desviantes que progressivamente distinguiam-se do indivíduo normal, até chegar aos here- ditariamente destinados a uma vida imoral, à alienação e ao crime, parecia agora impossível distinguir o criminoso do louco, o punível do tratável e todos que diferissem do tipo normal deviam ser considerados alienados. No entanto, se tal formulação poderia liberar da prisão a maior parte dos transgressores e representar o fracasso da medicina mental no trato com os criminosos, ela agora ampliava a sua competência a todo ato considerado excêntrico, indisciplinado, imoral ou criminoso e abria as portas para as terapêuticas voltadas para a profilaxia social das populações. Seguindo adiante no século – em 1870 – aparecem as teses de Lombroso, que propõe a existência dos criminosos natos16 e entende o crime como um fenômeno atávico, reafirmando a incorrigibilidade dessa classe de criminosos17. De forma semelhante aos degenerados, esse novo 15 Morel incluía entre as principais causas de degeneração a constituição geológica dos solos, o paupe- rismo, a fome, as profissões insalubres, o álcool, o ópio, as doenças infecciosas ou congênitas, as influên- cias hereditárias, a imoralidade dos costumes etc., e considerava degenerados os gênios, os imbecis, os excêntricos, os loucos, os santos, os suicidas, os imorais, os perversos sexuais, os criminosos, entre outros (CARRARA, 1998). 16 Houve também quem propusesse as categorias de vagabundo nato (Professor Benedikt, 1891) e de pobre nato (Alfredo Niceforo, 1907). Segundo Benedikt, "existem indivíduos, e também raças inteiras, nos quais a vagabundagem é congênita" (DARMON, 1991: 73). 17 Não por acaso, Lombroso dedica dois dos seus livros ao estudo dos revolucionários de sua época: Il delito político e le revoluzioni e Gli anarchisti (apud DEL OLMO, 2004). A atuação dos psicólogos no sistema penal 219 tipo também não podia escolher ser honesto, pois o crime fazia parte da sua natureza e era o resultado de sua inferioridade biológica. Além da natureza criminosa, esses homens tinham como característica uma série de sinais e atributos que os identificavam. Destacavam-se pela ausência de pelos, os braços excessivamente compridos, os maxilares superdesenvolvidos, a vaidade, a imprevidência, a instabilidade emocional, a imprudência, a impulsividade, a preguiça, o caráter vingativo, a crueldade, a tendência para a obscenidade, para o jogo, para a bebida e para o crime, a homossexuali- dade, a insensibilidade à dor, o gosto pelas gírias e tatuagens, entre outros. Além disso, como eram incapazes de sentir remorso ou culpa, entre eles a reincidência era a regra. Mas, se eles eram incorrigíveis, o que propunha a Escola Positivista do Direito Penal, nesse momento representada por Lombroso, senão a neutralização temporária ou definitiva dos infratores assim considerados? Segundo Carrara, Para os positivistas responder a tais questões era justamente refor- mular todos os preceitos jurídicos então em vigor e fundar um novo direito que (...) operasse sobre uma concepção cientificista da pessoa humana. Era esse o trabalho reformador da Escola Positiva. Antes de mais nada, tratava-se de dar um novo sentido à pena, libertando-a de tudo o que, nela, poderia representar expiação de uma culpa, ou aplicação de um castigo. A pena deveria converter-se em “medida de defesa social”, e sua duração e modalidade não deveriam mais ser deduzidas da gravidade legal do crime cometido (...), ou ainda do grau de consciência que o autor tivesse tido de seu crime. O critério da reação legal a ser acionada frente aos crimes deveria ser apenas o próprio criminoso (...) classificando-o segundo as causas que o teriam levado à delinqüência, pois somente através de tal classificação científica poder-se-ia estabelecer uma intervenção penal adequada e eficaz. (...) Desta maneira, por exemplo, qualquer indivíduo que apresentasse os estigmas somáticos e psicológicos indicativos de uma criminalidade nata (portador de um grau máximo de periculosidade e de um grau mínimo de regenerabilidade) deveria ser fisicamente eliminado ou segregado para sempre, independentemente do tipo ou da gravidade do crime cometido. (CARRARA, 1998: 110-111) Tania Kolker 220 Seguindo os passos de Lombroso, porém tentando evitar as críticas recebidas pelo seu antecessor, surge Garófalo com um discurso em que se começa a reconhecer várias aproximações com o atual, mas que ainda mantém a crença na hereditariedade e na visão dos delinquentes como um tipo antropológico. Em sua obra de 1878, ele continua a sustentar que as causas do delito devem ser procuradas no delinquente, ou em suas predisposições hereditárias, e a atribuir a tendência ao delito a um tipo de anomalia moral18, mas já abre mão, pelo menos em casos especiais, da crença na incurabilidade dos delinquentes. Negociando com a perspectiva correcionalista que começava a ganhar força e admitindo graus diferen- ciados de capacidade de adaptação dos delinquentes19, Garófalo orienta sua pesquisa para os aspectos da personalidade envolvidos no comportamento criminal e cunha o conceito que pode ser considerado como precursor da noção de periculosidade. Embora questionando os seus contemporâ- neos que negavam a existência de tendências criminosas inatas ou acredi- tavam que elas só existiam em uma minoria de casos e criticando a crença na eficácia da educação sobre os instintos criminosos, Garófalo propõe uma diferenciação das sanções, levando em conta os caracteres psicoló- gicos dos delinquentes, que será fundamental para o aggiornamento da Criminologia Positivista. De qualquer maneira, mantendo a distinção entre os delinquentes típicos e inassimiláveis e os que são susceptíveis de adaptação, Garófalo propõe um sistema de penas em que a eliminação do delinquente, absoluta (pena de morte) ou relativa (prisão temporária, deportação ou relegação) ainda cobre a maior parte das sanções. Concordando com Lombroso, que atribui à pena capital o mérito de melhoramento da raça, e afirmando que há indivíduos que são incompatíveis com a civilização, o autor defende a pena de morte para os que se revelarem destituídos do sentimento de piedade e refere que 18 Segundo Garófalo, “o delito é o efeito de causas individuais atuando num particular ambiente físico ou em particulares contingências sociais; mas, como estas condições existem também para os que não delinqüem, elas não podem ser senão causas ocasionais: o verdadeiro fator do delito deve procurar-se no modo de ser especial do indivíduo, que a natureza criou delinqüente” (GARÓFALO, 1997: 68). 19 A princípio, as teorias positivistas eram voltadasbasicamente para justificar a neutralização/eliminação dos indivíduos considerados incorrigíveis, mas, na medida em que foi tornando-se hegemônica a ideo- logia do tratamento, elas foram obrigadas a admitir a capacidade de reabilitação de certos delinquentes. A atuação dos psicólogos no sistema penal 221 ...esses delinqüentes representam verdadeiras monstruosidades psíquicas e não podem inspirar a ninguém a simpatia, que é o ponto de partida e o fundamento da piedade. Esses indivíduos colocam- se fora da humanidade, (...) que por isso mesmo, tem o direito de suprimi-los. (GARÓFALO, 1997: 163) Para distingui-los e determinar a medida punitiva mais adequada a cada caso, recomenda a avaliação do grau de temibilidade20 do criminoso que ele define como: ...a perversidade constante e ativa do delinqüente e a quantidade de mal previsto que se deve temer por parte do mesmo. (GARÓFALO apud MECLER, 1996: 26) Nesse momento aparece Ferri, o mais importante representante da Escola Positiva que – embora também procure as causas do crime nos homens – já logra uma maior sintonia com o pensamento sociológico/jurí- dico da época. Segundo ele: Ao falar do delinqüente nato, a Escola Italiana não se refere a um tipo exclusivamente anatômico: o homem delinqüente é uma personali- dade completa, ao mesmo tempo biológica, psicológica e social. A delinqüência é produto de uma ordem tripla de fatores: fator antro- pológico, fator de meio físico e fator de meio social. Um homem pode ter os estigmas da delinqüência e, contudo morrer sem haver cometido jamais um delito, se encontrou em seu meio uma força de suficiente resistência. E vice-versa, um homem pode encontrar em seus antecedentes hereditários a força para resistir à influência de seu meio. (FERRI apud DEL OLMO, 2004: 92) No entanto, atribuindo às diferentes classes sociais uma natureza espe- cífica e tratando as desigualdades sociais de forma espantosamente precon- ceituosa, Ferri divide as camadas sociais em três categorias: ...a classe moralmente mais elevada que não comete delitos porque é honesta por sua constituição orgânica, pelo efeito do senso moral (...) 20 Segundo Delgado esse conceito aparece pela primeira vez em Feuerbach, no ano de 1799, referindo-se à "qualidade de uma pessoa que faz presumir fundadamente que violará o Direito" (DELGADO, 1992: 94). Tania Kolker 222 [pelo] hábito adquirido e hereditariamente transmitido (...) mantido pelas condições favoráveis de existência social (...) Outra classe mais baixa [que] é composta de indivíduos refratários a todo sentimento de honestidade, porque privados de toda educação e impregnados (...) da miséria material e moral (...) [que] herdam de seus antepassados (...). A terceira classe [dos que] não nasceram para o delito, mas não são completamente honestos. (FERRI, apud RAUTER,1982: 29) Como seus antecessores, Ferri também defende a tese da heredita- riedade e abraça a causa da defesa social21. Contudo, além de já operar mais propriamente com o conceito de periculosidade, dos quatro é ele quem mais se abre às justificativas terapêuticas para a individualização e indeterminação temporal das sanções, levando-se em conta as probabilidades de reincidência. Para o autor, somente a adaptação das sanções à natureza e à periculosidade do delinquente pode fornecer à sociedade a arma necessária ao sucesso da luta contra o crime. Segundo suas próprias palavras: ...na justiça penal trata-se de ver não se o delinqüente ofendeu ou não ‘um direito’ ou antes ‘um bem jurídico’ e transgrediu ou não ‘a proibição’ ou antes ‘a norma penal’, mas de procurar como e em virtude de que ele cometeu essa ação criminosa e qual a periculosi- dade que revelou em tal ação e quais as probabilidades que apresenta de voltar, depois da condenação, a uma vida regular e por isso qual sanção repressiva que lhe é mais conforme, não ‘ao crime’ por ele levado a efeito, mas à sua ‘personalidade de delinqüente’ pelo crime praticado. (FERRI, apud BISSOLI FILHO, 1998: 37) Esse pequeno desvio vai levá-lo a defender que: Esta distinción de los delincuentes según su peligrosidad deriva de que su conducta antisocial aparece determinada por tendencias congénitas o por atrofia del sentido moral, o por impulsos pasionales, o, en fin, por influjos prevalentes del ambiente familiar y social y por las deficiencias y defectos de los mismos sistemas carcelarios que son como estufas para el cultivo de los microbios criminales. Y sólo en virtud de esta distinción y clasificación psico-antropológica de los 21 Entre os livros de Ferri podemos citar A Defesa Social, de 1878 e A Escola Positiva do Direito Criminal, de 1883. A atuação dos psicólogos no sistema penal 223 delincuentes le será posible al legislador realizar en la práctica, con las sanciones represivas, aquel doble objetivo de la defensa social y de la corrección de los condenados, que los sistemas penales hasta ahora en uso no han podido conseguir, por estar orientados y apli- carse siguiendo el criterio exterior de la gravedad de los delitos y no el de la relación íntima de las diferentes condiciones personales de los culpables. (FERRI, apud RIBEIRO, 1998: 16) A consolidação da ideologia do tratamento e a transnacionalização das políticas criminais Essas teses, progressivamente adaptadas aos discursos e práticas da época e difundidas em um momento de grande efervescência nos meios jurídicos europeus, foram decisivas para a consolidação da criminologia como “ciência” e a para a progressiva construção da delinquência como uma condição tratável. A partir dos anos 1870 são realizados vários Congressos Penitenciários Internacionais, com o objetivo de definir normas universais para tratamento dos delinquentes e em 1889 é fundada a União Interna- cional de Direito Penal (UIDP), que em pouco tempo se torna a maior difusora dos princípios da defesa social22. O 1º Congresso Penitenciário Internacional ocorre em Londres em 1872, o 2º em Estocolmo, no ano de 1878 e o 3º em Roma, em 1885. Este último conta com as presenças de Lombroso, Garófalo e Ferri, que, no mesmo ano, também estão à frente do I Congresso Internacional de Antropologia Criminal pregando a teoria do criminoso nato. No II Congresso de Antropologia Criminal, em 1889, as teorias lombrosianas sofrem forte oposição por parte dos próceres da Escola Francesa de Sociologia (Gabriel Tarde, Lacassagne, Topinard e outros, que põem ênfase nos aspectos sociais da criminogênese) e os positivistas só retornam no IV Congresso, com o discurso um pouco mais adaptado às novas tendências punitivas – agora baseadas na ideologia do tratamento e defensoras da “reabilitação” dos delinquentes. Com essa virada estratégica, no VI Congresso (em 1906) comemora-se o jubileu científico de Lombroso 22 Segundo Del Olmo, a criação da União respondeu ao crescimento da delinquência e da reincidência e tinha como finalidade a coordenação das tendências reformadoras que vinham ganhando forma em diversos países do mundo. Até o início da 1ª Guerra Mundial, foram realizados 12 congressos e “neste processo destaca-se a atuação dos Estados Unidos, que em pouco tempo será um dos maiores propul- sores da transnacionalização do controle social” (DEL OLMO, 2004: 75). Tania Kolker 224 e no VII, e último Congresso de Antropologia Criminal, ainda comparece o debate sobre a questão racial e sua relação com os delitos, mas já predo- minam as visões sociológicas sobre o crime e ganha cada vez mais força a discussão sobre a sentença indeterminada. Quanto às discussões sobre o conceito de periculosidade, no Congresso Penitenciário Internacional de 1905 já se levanta a questão da periculosidade dos reincidentes, em 1907- 1908 incluem-se os loucos e deficientes mentais entre os perigosos; em 1910, discute-se o problema da conciliação entre esta noçãoe as garan- tias de liberdade individual23; no mesmo ano se decide pela necessidade de estabelecer medidas especiais de segurança contra os delinquentes conside- rados perigosos e, em 1913, é feita nova definição das categorias que devem ser consideradas perigosas, incluindo agora os alcoólicos, os mendigos e os vagabundos (BRUNO, apud BISSOLI FILHO, 1996: 132). Pouco a pouco, a ideia da periculosidade vai concernindo a todos os criminosos e delinquentes potenciais, de tal maneira que já não é necessário cometer um delito para ser considerado perigoso. Já que o verdadeiro fim do direito penal é a defesa social, é possível justificar a intervenção no seio das classes perigosas sem esperar pelo delito (BISSOLI FILHO, 1996: 136-137). De qualquer maneira, a 1ª Guerra Mundial acaba interrompendo a sequ- ência dos congressos internacionais e impede o IX Congresso Penitenciário previsto para 1915 em Londres. A UIDP reorganiza-se e passa a chamar-se Associação Internacional de Direito Penal e uma das questões em torno da qual girará o I Congresso desta entidade será: a medida de segurança deve substituir a pena ou simplesmente complementá-la (DEL OLMO, 2004)? Quando, enfim, os positivistas deixam a cena, surge inicialmente a concepção dualista do Direito Penal (ou sistema do duplo-binário), ainda mais rigorosa que a anterior, fará coexistir, durante algum tempo, os dois tipos de resposta penal: a pena como retribuição ao crime e a medida de segurança a ser acrescentada à primeira nos casos considerados perigosos24. 23 Em 1910, no VIII Congresso Penitenciário Internacional realizado em Washington, é aprovada a sentença indeterminada e a individualização das penas e são estabelecidos “os princípios fundamentais dos métodos penitenciários modernos: nenhum indivíduo deve ser considerado incapaz de recuperação; é de interesse público fazer esforços para a recuperação dos delinquentes; esta recuperação deve ser alcançada sob a influência de uma instrução religiosa e moral, de uma educação intelectual e física, de um trabalho eficaz para garantir ao recluso a possibilidade de ganhar a vida no futuro; um período de tratamento relativamente grande é preferível às penas curtas de prisão (...); o tratamento reformador deve ser combinado com um sistema de liberdade condicional e deve ser adotado um sistema especial de tratamento para os criminosos adolescentes, reincidentes ou não”. Idem, p. 106. 24 Este sistema foi adotado pelo Código Penal italiano de 1930 e inspirou diversas outras legislações A atuação dos psicólogos no sistema penal 225 No entanto, logo novas mudanças são introduzidas e o sistema conhecido como duplo binário é substituído pelo vicariante. Com ele, penas e medidas de segurança passam a ser consideradas sanções de natureza diversa, apli- cadas para situações diversas: as primeiras para os imputáveis e as segundas, reservadas para os inimputáveis. O estudo das causas dos crimes é transferido dos fatores biológicos e psicológicos para os sociais e a ideologia defensivista é retomada sob o disfarce de um discurso mais humanizado e aparentemente progressista. Finda a Segunda Guerra, nasce o movimento que viria a ser conhecido como a Nova Defesa Social e realiza-se o I Congresso de Defesa Social, que tinha como um de seus objetivos “a transformação do atual sistema penal e penitenciário no sistema educativo e curativo dirigido à personali- dade do indivíduo” (DEL OLMO, 2004: 118). Este modelo, que também se apoiará na noção de periculosidade e fará da indeterminação do tempo de reclusão uma de suas principais estratégias de controle25, introduzirá o sistema progressivo das penas, responsável tanto pelos efeitos supostamente reabilitadores, quanto inabilitadores, que deverão ser vistos como duas formas inseparáveis e complementares de gestão das populações carcerárias. As primeiras se aplicarão “a la gran mayoría, que tratan de hacer lo posible por salir cuanto antes y por sufrir lo menos posible mientras dure el calvario de la pena (y las otras) a la categoría de presos etiquetados como incorre- gibles, inadaptados, rebeldes y peligrosos” (BILBAO, 1994: 125). A partir de então, o instrumento que permitirá operar esse poder e discriminar/ produzir os dois grupos será o exame cujo objetivo será prognosticar o risco de reincidência (ESPÍ, 1994). Com a repaginação proporcionada pela nova versão defensivista das políticas criminais, mesmo tendo caído em descrédito, a Escola Positiva de Direito Penal deixará entre nós várias heranças: continuarão a fazer parte de nossas legislações o princípio de individualização das penas; os exames que visarão o estudo da personalidade e da história de vida dos condenados e que avaliarão a probabilidade de estes virem a reincidir no delito (exame penais. No nosso país, foi adotado em 1940, até a reforma de 1984. 25 Para Bilbao, a indeterminação do tempo, agora dentro da margem de variação estabelecida pelo legis- lador e da sentença prolatada pelo Juiz, continuará sendo “el fundamento de las estrategias del control carcelario que consiguen establecer cuánto tiempo, y en que condiciones, ha de permanecer el reo en la cárcel, mediante un complejo y pormenorizado sistema de dominación cujo motor es la tecnología disciplinaria” (BILBAO, 1994: 124). Tania Kolker 226 que será conhecido como criminológico); o conceito de periculosidade e as medidas de segurança por tempo indeterminado. Além disso, como legado dessa escola, manter-se-á a tradição, inteiramente maniqueísta de perceber os que delinquem como um outro perigoso, pernicioso à sociedade, desu- mano, verdadeiro monstro e por isso incapaz de viver entre os homens de bem. Dessa maneira, será sempre possível justificar para eles os tratamentos mais cruéis e ainda garantir a aprovação da opinião pública. Afinal, como nos diz Chomsky, “quando você oprime alguém precisa alegar alguma coisa. A justificativa acaba sendo o nível de depravação e vício moral do oprimido (...). Examine a conquista britânica da Irlanda, a primeira das conquistas coloniais ocidentais. Ela foi descrita nos mesmos termos que a conquista da África. Os irlandeses eram uma raça diferente, não eram humanos, não eram como nós. Eles tinham que ser esmagados e destruídos” (CHOMSKY, apud COIMBRA, 2001: 63). É o que veremos nas doutrinas de segurança nacional das ditaduras militares latino-americanas, nas políticas transnacio- nais de combate às drogas e na guerra ao terrorismo. Segundo Dornelles, as matrizes deste pensamento vão se reproduzir nos discursos neopositivistas de corte pseudossociológico que mascarando os determinantes socioeconômicos desse tipo de produção e partindo das cate- gorias normal/anormal para explicar os comportamentos e situações sociais ‘desviantes’ (como morar em áreas irregulares, exercer atividades informais ou praticar atos considerados delituosos), entenderão o crime como resultado ...de um ambiente disfuncional patológico, como um foco irra- diador do contágio de um mal que se alastra para as ‘áreas saudáveis’ da sociedade, [quando] os mecanismos de autodefesa imunológica falha[m] na sua tarefa de proteção do ‘corpo social’. (DORNELLES, 1997) A subversão e a droga na América Latina Chegamos então ao século XX quando, sob o impacto das duas grandes guerras mundiais, é criada a Organização das Nações Unidas (ONU)26. Pouco a pouco, são desenvolvidos diversos instrumentos legais 26 Como nos mostrará Del Olmo (2004), a partir da criação das Nações Unidas, o processo de transnacio- nalização do controle social continuará a ser gestado sob a coordenação desse novo organismo. Em 1929 A atuação dos psicólogos no sistema penal 227 para a proteção internacional dos direitos humanos, entre os quais viriam a se destacar a Declaração Universal de Direitos Humanos, os Pactos Inter- nacionais de Direitos Civise Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos, Cruéis, Desumanos e Degradantes, entre outros27. Paralelamente, a partir dos anos sessenta, são implantadas ditaduras militares em diversos países das Américas e, sob a alegação da necessidade de fortalecer o Estado contra o comunismo, assiste-se à emergência de uma nova doutrina de segurança (Doutrina de Segurança Nacional), que elegerá como inimigo número um a figura do subversivo. Mediante a lógica da guerra e a construção de um discurso de emergência, as polícias são militarizadas e aparelhadas para o combate interno; as legislações são reformuladas de maneira a garantir um ilimitado poder punitivo e se legitima um tratamento diferenciado, segundo o grau de perigo representado pelo inimigo. Nesse momento, os cárceres passam a receber também presos políticos; as penas de morte e de banimento voltam a fazer parte dos Códigos Penais; a tortura – que nunca deixara de ser utilizada contra as parcelas desfavorecidas da socie- dade – é institucionalizada e passa a ser instrumentalizada para o controle da subversão; sem falar nas detenções ilegais e sem processo e no sequestro, execução e desaparecimentos forçados por causas políticas28. Terminadas as ditaduras, termina também a legitimação oficial à prática da tortura, que, no entanto, continua a ser praticada e a amparar-se na certeza da impunidade. Após um breve interregno, no qual os sistemas penais começam a adequar-se às novas regras do Estado de Direito e as forças progressistas se esforçam para livrar nossa legislação do entulho auto- ritário, a cena política volta a convulsionar-se e as promessas democráticas nem bem começam a tornar-se realidade e já assistem à sua demolição. Com a implantação das reformas neoliberais, o capitalismo ganha novo impulso a Comissão Penal e Penitenciária redigirá as regras gerais para o tratamento dos reclusos, que serão ratifi- cadas pela Sociedade das Nações em 1934 e servirão como base para a formulação das Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos, posteriormente adotadas pela ONU em 1955. 27 Progressivamente são também estabelecidos diversos dispositivos internacionais para garantir um tratamento legal e humano para os presos. Ver as Regras Mínimas da ONU para o Tratamento dos Presos de 1955, o Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei de 1979 e os Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer Forma de Detenção ou Prisão de 1988. Disponível em http://www.dhnet.org.br. 28 A esse respeito ver Arquidiocese de São Paulo, Brasil: nunca mais, RJ, Editora Vozes, 1985 e Clínica e Polí- tica: subjetividade e violação dos direitos humanos, organizado por Cristina Rauter, Eduardo Passos e Regina Benevides, Rio de Janeiro, Editora Te Corá, 2002. Tania Kolker 228 e passa a dispensar os ditadores de plantão. As novas regras da economia reduzem os investimentos em políticas públicas inclusivas, ao mesmo tempo em que aumentam as taxas de desemprego e emprego precário, tornando sem efeito as antigas estratégias dos trabalhadores e lançando em situação de total vulnerabilidade um contingente antes inimaginável de pessoas. Não tendo mais sequer como reintegrá-las ao mercado formal de trabalho, as políticas de segurança migram da ideologia de segurança nacional para a ideologia da segurança urbana e inventam outra função para as prisões29. Sem perspec- tivas de vida, legiões de jovens são empurradas para o tráfico, morrendo antes dos 25 anos ou engordando as estatísticas penitenciárias30. Como apontam Batista (1998) e Baratta (1997), não é a toa que nesse momento as drogas se convertem na nova justificativa para a criminalização da pobreza e a reedição de legislações de emergência: para esta nova ordem, é muito mais funcional alimentar o medo e o conflito quebrando todas as antigas formas de sociabi- lidade e solidariedade. Se, como nos diz Bauman, em breve 20% da força de trabalho será suficiente para mover a economia, o que fazer com os outros 80% da faixa vulnerável ou excluída, que já não têm mais utilidade? É preciso ter um pretexto para tornar mais repressivo o controle social punitivo. É preciso, portanto, gerar novos mecanismos reguladores da insatisfação da sociedade, sendo os principais o encarceramento maciço e a manipulação da insegurança e do medo (ZAFFARONI, 1997; BAUMAN, 2000). Movidas por esses novos desígnios, as políticas de segurança pública intensificam o controle, o encarceramento e até o extermínio das classes vistas como perigosas, atingindo especialmente aos pobres, jovens e negros, moradores das áreas pobres. Para sociedades excludentes e elitistas, onde “segurança pública não significa segurança e bem-estar do público, mas, ao contrário, expressa a manutenção de uma ordem desigual e injusta” (DORNELLES, 1997: 113), uma polícia violenta e corrupta é absoluta- mente funcional. Assim, favelas e bairros populares são invadidos a qualquer hora e sob qualquer pretexto por uma polícia que extorque, forja flagrantes, tortura e mata, e é nesse contexto que vai sendo construído o imaginário 29 Segundo Bauman, nas atuais circunstâncias, o confinamento é uma alternativa ao emprego, uma maneira de neutralizar uma parcela considerável da população que não é necessária à produção e para a qual não há trabalho ao qual se reintegrar (BAUMAN, 1998: 119-120). 30 De acordo com os dados do PRODERJ referentes ao ano 2000, 96,0% da população prisional de nosso Estado era constituída por homens, 62,6% por pardos e negros, 67,1% por analfabetos ou apenas alfabetizados, 37,9% tinha idade inferior a 25 anos e 59,4% estava presa por porte (5,1%) ou tráfico de drogas (54,4%). A atuação dos psicólogos no sistema penal 229 social que permite que grande parte de nossa população seja percebida como perigosa e não como beneficiária dos direitos mais essenciais. Identificá-los, pois, como monstros indesejáveis faz parte desse grande empreendimento de reengenharia social. Tendo em vista as novas subjetividades que se querem produzir, a gestão midiática do medo e da indiferença cumpre um papel fundamental. A violência é oferecida como espetáculo diário aos consumidores em busca de entretenimento e adrenalina, para os quais a exposição repetida a cenas de violência promove ao mesmo tempo terror e banalização. Para isso, espe- taculariza-se e cria-se um ambiente de pânico e comoção social generali- zados por um lado, ou banaliza-se e justifica-se a violência por um outro. O objetivo é a aprovação da opinião pública a um tratamento maniqueísta da violência de acordo com a classe social da vítima ou a posição social do perpetrador. Assistimos, então, a uma divisão entre a ‘cidade legal’ e a ‘cidade ilegal’ (DORNELLES, 1997) e à configuração de uma situação absoluta- mente conflagrada que garante que determinados territórios passem a ser tratados como se estivessem fora do ordenamento jurídico. Adotando-se, mais uma vez, a lógica da guerra, os excessos são considerados inevitáveis, seus alvos preferenciais são tratados como ameaças à segurança dos verda- deiros cidadãos ,e nesses locais onde a ordem jurídica normal é suspensa – e a suspensão é tornada a regra –, o Estado se comporta como se estivesse desobrigado a observar a lei. Desprovidos de proteção jurídica, os habi- tantes destas áreas, especialmente os jovens, pobres e negros, podem ser presos por mera suspeição ou até eliminados, se assim a segurança da socie- dade o exigir31. Pelos mesmos motivos, ganham vulto os movimentos que pedem mais lei e ordem, abusam-se das medidas preventivas e cautelares32, entopem-se os manicômios judiciários de pequenos usuários/revende- dores de drogas, clama-se pela redução da maioridade penal ou aplicam-se simulacros de medidas de segurança a adolescentes infratores33. Coerente-
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