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PRINCÍPIOS PROCESSUAIS FORA DO PROCESSO Ada Pellegrini Grinover

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PRINCÍPIOS PROCESSUAIS FORA DO PROCESSO
Revista de Processo | vol. 147 | p. 307 | Mai / 2007
Doutrinas Essenciais de Processo Civil | vol. 1 | p. 323 | Out / 2011
DTR\2007\325
Ada Pellegrini Grinover
Professora Titular da Faculdade de Direito da USP.
Área do Direito: Civil
Sumário:
- 1.Exercício do poder e garantia do contraditório - 2.Contraditório e direito à prova - 3.A observância
do contraditório pelo órgão que preside a produção da prova: exame da ilicitude da prova -
4.Entidades que integram o sistema nacional de defesa do consumidor: identificação de exercício de
poder e submissão à exigência constitucional do contraditório (e respectivos desdobramentos) - 5.O
exame da situação retratada na consulta - IV. Respostas aos quesitos
I. A consulta
Honram-me os ilustres advogados Drs. Cássia Bianca Lebrão Cavalari Ferreira e Paulo Nicolellis Jr.
encaminhando consulta, acompanhada de documentos, com pedido de parecer em nome de ABIA -
Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação.
Relata a Consulente que a Associação de Defesa do Consumidor - Pro Teste, organização
não-governamental sediada no Rio de Janeiro, realizou em junho de 2006 "testes comparativos" com
30 marcas de molhos de tomate existentes no mercado, tendo efetuado, para tanto, a aquisição de
amostras de cada uma das referidas marcas em supermercados, bem como submetido tais amostras
a exames laboratoriais, sem que, por outro lado, os respectivos fabricantes das marcas de molho de
tomate fossem previamente informados da realização dos aludidos "testes comparativos", das datas
e locais em que as amostras seriam colhidas, dos nomes dos laboratórios aos quais tais amostras
seriam encaminhadas, do número identificador dos lotes cujas amostras foram coletadas, da
possibilidade ou não de acompanhamento - por assistentes técnicos nomeados pelos fabricantes -
dos procedimentos de coleta e de análise das amostras coletadas ou de obtenção de amostras do
mesmo lote para a realização paralela de contraprova e da possibilidade ou não de apresentação de
defesa e de contraprova.
Tais circunstâncias, de acordo com a Consulente, estariam em desconformidade com a legislação
específica que regula a matéria (art. 33 do Dec.-lei 986/1969, art. 27 da Lei 6.437/1977 e art. 5.4 da
Res. RDC 12/2001 da Anvisa), que exigem, para a coleta de amostras de produtos alimentícios com
a finalidade de inspeção: (i) a arrecadação de 3 amostras representativas de cada produto a ser
analisado; (ii) a entrega de uma das amostras ao respectivo fabricante para viabilização de produção
de futura contraprova; (iii) a lacração das amostras na presença do fabricante ou de quem o
represente; (iv) a remessa de cópia do laudo técnico com os resultados da análise ao fabricante; e
(v) a possibilidade expressa de apresentação de defesa e de recurso à autoridade administrativa,
bem como de solicitação da realização de contraprova.
Além disso, segundo a Consulente, encerrados os referidos testes, os fabricantes também não foram
cientificados dos resultados das análises e do inteiro teor dos laudos técnicos lavrados, tendo a Pro
Teste se limitado a encaminhar, em 29.06.2006, correspondência na qual se transmitiu breve síntese
do laudo laboratorial produzido para cada amostra analisada, concedendo-se naquela ocasião prazo
de uma semana para eventual interesse dos fabricantes das marcas envolvidas em se pronunciar
sobre os resultados informados.
Contudo, aduz a Consulente que o prazo concedido para manifestação restou não observado, uma
vez que - além de haver ignorado a circunstância de que a realização, pelos fabricantes, de eventual
contraprova em laboratórios credenciados pela Anvisa demandaria período de tempo de 25 a 30 dias
- a Pro Teste: (i) em 28.06.2006 aforou diversas ações judiciais em face de empresas que fabricam e
comercializam os produtos submetidos ao "teste comparativo"; (ii) em 29.07.2006 publicou o
resultado dos testes em periódico mensal intitulado "Pro Teste"; (iii) nas primeiras semanas de julho
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de 2006 veiculou notícias sobre os resultados dos testes pela imprensa e pela internet.
Dessa maneira, alega a Consulente que as empresas fabricantes das marcas submetidas aos "testes
comparativos" promovidos pela Pro Teste não tiveram a oportunidade de participar das análises, de
se manifestar sobre os resultados apurados, de confirmar a autenticidade das amostras e dos
procedimentos técnicos adequados na realização dos testes e nem mesmo de ter pleno
conhecimento dos testes realizados para que se lhe possibilitasse contra prova, em contraditório
posterior.
Sujeitaram-se elas imediatamente à inegável repercussão dos resultados na mídia, foram
compelidas a aforar medidas judiciais contra a Pro Teste com a finalidade de obstar à já iniciada
divulgação dos testes e, recentemente, ainda foram notificadas pela Anvisa para prestar
esclarecimentos relativos à qualidade do processo de fabricação de seus produtos e às medidas
adotadas em relação às questões apontadas pela Pro Teste nos testes por ela efetuados.
Assim sumariamente relatada a questão, a Consulente formula os quesitos que seguem, que versam
sobre as questões processuais postas nos autos.
II. Quesitos
1 - Qual a atribuição (competência legal) conferida às entidades privadas de defesa do consumidor,
como é o caso da Pro Teste - Associação Brasileira de Defesa do Consumidor? Elas integram o
Sistema de Defesa do Consumidor e se submetem às regras do Dec.-lei 986/69 e da Lei 6.437/77?
2 - É correto afirmar que os testes realizados pela Pro Teste - principalmente análises
microbiológicas de alimentos por laboratórios - que possam apontar eventual desconformidade dos
produtos com a legislação ou com as normas da Anvisa - deverão obedecer ao devido processo
legal, ao contraditório - inclusive o contraditório técnico - e à ampla defesa, notadamente em relação
aos procedimentos estabelecidos pelo Dec.-lei 986/69 e pelas normas-padrão da Associação
Brasileira de Normas Técnicas (ABNT)?
3 - Em caso de resposta afirmativa ao quesito anterior, é correto afirmar que os procedimentos de
testes conduzidos sem a obediência ao devido processo legal e sem possibilitar o contraditório e a
ampla defesa, bem como os resultados obtidos seriam técnica e juridicamente questionáveis,
configurando resultados nulos e prova ilícita e inadmissível?
4 - A divulgação pública de resultados de testes conduzidos em afronta aos princípios constitucionais
acima mencionados, antes de as empresas se manifestarem e possam contrariar tais resultados,
configura atitude temerária, negligente e imprudente da Pro Teste?
Bem examinada a questão, inclusive pelos documentos que a instruem, passo a proferir meu
parecer.
III. Parecer
1. Exercício do poder e garantia do contraditório
Um primeiro tema a ser enfrentado para que se dê adequada resposta às indagações da Consulente
diz com a relação que existe, de um lado, entre a garantia constitucional do contraditório - que
integra a cláusula do devido processo legal - e o exercício do poder, em suas diferentes expressões
e, portanto, não apenas estatais, de outro lado.
Consoante autorizadas palavras de Cândido Rangel Dinamarco, tomado o poder em sua acepção
mais ampla e vaga, ele "é a capacidade de produzir os efeitos pretendidos (ou simplesmente de
alterar a probabilidade de obter esses efeitos), seja sobre a matéria ou sobre as pessoas". A nação,
vista como realidade social, disse aquele processualista, "dispõe de meios integrados para a
consecução de seus objetivos, sintetizados no bem comum. Todas as instituições sociais (família,
grupos religiosos, culturais ou recreativos) econômicas (empresa, sindicatos) ou mesmo políticas
despregadas da estrutura estatal (partidos políticos) constituem pólos de poder e, na sua esfera,
reputam-se responsáveis pela promoção do bem comum, de tal maneira que "o poder nacional
encontra-se'disseminado' por todas as moléculas da sociedade"1 (grifamos).
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Ainda na lição de Dinamarco, "Mede-se o poder nacional pela expressão somada de todos esses
aspectos setoriais, sabendo-se que existem muitas e variadas fontes de poder". A noção de poder
pode ser traduzida na "capacidade de decidir imperativamente e impor decisões", na qual está
presente uma "implícita alusão ao elemento sanção"2 (grifei). E é precisamente nesse contexto que
se insere a garantia de participação dos destinatários dos atos de poder, como elemento a lhes
conferir legitimidade, mais do que simples legalidade.
Ainda nas palavras de Dinamarco, "Sabe-se que no Estado-de-direito tem-se por indispensável fator
legitimante das decisões in fieri a participação dos seus futuros destinatários, a que se assegura a
observância do procedimento adequado e capaz de oferecer-lhes reais oportunidades de influir
efetivamente e de modo equilibrado no teor do ato imperativo que virá. Tal é o primeiro significado da
exigência democrática do contraditório; e trata-se de postulado que invade todo e qualquer processo,
por força de suprema garantia constitucional (não somente o de jurisdição)". A exigência do
contraditório "constitui conseqüência de tratar-se de procedimentos celebrados em preparação a
algum provimento, qualquer que seja a natureza deste; provimento é ato de poder, imperativo por
natureza e destinação, donde a necessária legitimação mediante o procedimento participativo"3
(grifei).
Como já afirmei em sede doutrinária, o contraditório se desdobra em dois momentos: a informação e
a possibilidade de reação".4 Ainda anotei ser "Clássico, entre nós, o conceito de Joaquim Canuto
Mendes de Almeida, no sentido de constituir o contraditório expressão da ciência bilateral dos atos e
termos do processo, com a possibilidade de contrariá-los", lembrando que, na Itália, La China
também viu no contraditório, de um lado, "a necessária informação às partes e, de outro, a possível
reação aos atos desfavoráveis. Informação necessária, reação possível"5 (grifei).
Segundo Nelson Nery Junior, "Por contraditório deve entender-se, de um lado, a necessidade de
dar-se conhecimento da existência da ação e de todos os atos do processo às partes, e, de outro, a
possibilidade de as partes reagirem aos atos que lhes sejam desfavoráveis"6 (grifei). Nas palavras de
José Carlos Barbosa Moreira, impõe-se que o contraditório opere "não apenas formalmente, mas
substancialmente", isto é, que sejam levadas em conta as possibilidades que cada parte terá, in
concreto, de exercer os direitos inerentes ao contraditório, e que ao juiz se impõe assegurar, na
realização dos atos instrutórios, as condições mais favoráveis, em princípio, à participação eficaz dos
litigantes"7 (grifei).
Posta nesses termos (e considerando ainda apenas o âmbito estatal), tem-se que a garantia do
contraditório é exigida não apenas para legitimar as decisões de cunho jurisdicional, mas também
aquelas proferidas em sede administrativa. Conforme já dissemos, "As garantias do contraditório e
da ampla defesa desdobram-se hoje em três planos: a) no plano jurisdicional, em que elas passam a
ser expressamente reconhecidas, diretamente como tais, passa o processo penal e para o
não-penal; b) no plano das acusações em geral, em que a garantia explicitamente abrange as
pessoas objeto da acusação; c) no processo administrativo sempre que haja litigantes"8 (grifei).
No campo administrativo, dá-se grande ênfase à concepção da "processualidade", seja para transpor
para a atuação administrativa os princípios do 'devido processo legal', seja para fixar imposições
mínimas quanto ao modo de atuar da administração. Assim, "o caráter processual da formação do
ato administrativo contrapõe-se a operações internas e secretas, à concepção dos arcana imperii
dominantes nos governos absolutos e lembrados por Bobbio ao discorrer sobre a publicidade e o
poder invisível, considerando essencial à democracia um grau elevado de visibilidade do poder".
Assim, "entre as linhas fundamentais dos procedimentos administrativos, contém-se "a) a publicidade
dos procedimentos; b) o direito de acesso aos autos administrativos; c) a condenação do silêncio,
com sanções aos responsáveis; d) a obrigação de motivar; e) a obrigatoriedade de contraditório, e
defesa na formação de atos puntuais restritivos de direitos e de atos compositores de conflitos de
interesses"9 (grifei).
A propósito, Odete Medauar também observou que, no âmbito administrativo, vigora o direito à
"informação geral", isto é, "direito de obter conhecimento adequado dos fatos que estão na base da
formação do processo, e de todos os demais fatos, dados, documentos e provas que vierem à luz no
curso do processo. Daí resultam as exigências impostas à Administração no tocante à comunicação
aos sujeitos de elementos do processo em todos os seus momentos. Como é evidente, a
comunicação deve abranger todos os integrantes da relação processual administrativa. Vincula-se,
igualmente à informação ampla, o direito de acesso a documentos que a Administração detém ou a
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documentos juntados por sujeitos contrapostos. E a vedação ao uso de elementos que não constam
do expediente formal, porque deles não tiveram ciência prévia os sujeitos, tornando-se impossível
eventual reação a tais elementos"10 (grifei).
Segundo referida jurista, "Sob o ângulo técnico, evidencia-se a finalidade instrutória, de busca da
verdade, de conhecimento mais preciso dos fatos, de coleta de informações para a decisão correta.
O confronto entre a autoridade administrativa e as partes envolvidas no processo contribui para
fornecer ao órgão chamado a decidir um panorama completo da situação de fato, de direito e dos
interesses envolvidos, de modo que a decisão poderá ser mais ponderada e mais aderente à
realidade". Assim, prossegue, "No perfil colaborativo, sobressai o objetivo de propiciar a
impessoalidade, pela igual oportunidade, dada aos sujeitos entre si, e a sujeitos ante a
Administração, de apresentar alegações, provas, pontos de vista, etc. Expostos, às claras, todos os
elementos de uma situação, torna-se mais fácil a tomada de decisões objetivas, sem conotações
pessoais; caso estas predominem, o cotejo dos dados expostos permitirá que sejam detectadas com
mais nitidez". E mais:
"Com isso se amplia a transparência administrativa. O contraditório não pode realizar-se em regime
de 'despotismo administrativo' que pressupõe e impõe o segredo de ofício. Daí estar o contraditório
vinculado à exigência de democracia administrativa, sob o ângulo da visibilidade dos momentos que
antecederam à decisão."11 (grifei)
Mas, se é certo, como acima indicado, que o exercício do poder não se limita ao Estado (Judiciário
ou Administração), na medida em que também outras "moléculas da sociedade" têm aquela
capacidade de editar decisões que repercutem na esfera jurídica de outras pessoas, então é
rigorosamente certo que a garantia do contraditório há que ser exercida e observada igualmente fora
dos limites estatais, sempre que se tratar de ato que, de direito ou mesmo de fato, se imponha a
certas pessoas, com aptidão a interferir em sua esfera jurídica ou patrimonial. É que, como já
dissemos, "A garantia do contraditório não tem apenas como objetivo a defesa entendida em sentido
negativo - como oposição ou resistência -, mas sim principalmente a defesa vista em sua dimensão
positiva, como 'influência, ou seja, como direito de incidir ativamente sobre o desenvolvimento e o
resultado' de um dado processo"12 (grifei).
Em reforço disso, lembrem-se as aqui palavras de Jessé Torres Pereira Júnior, o conceito dos
"acusados em geral", aludida pela Constituição (art. 5.º, LV, da CF/1988 (LGL\1988\3)), "não está
associado ao processo e é referido de modo indeterminado". O que se quer é "pôr o cidadão a recato
também quando defrontadocom o arbítrio de outras instâncias de poder, cujos atos sejam dotados
de cogência suficiente para submetê-los unilateralmente a seus desígnios"13 (grifei).
Considerações análogas foram feitas por Ivani Contini Bramente, para quem "O direito a defesa não
é mais restrito ao processo judicial em geral, mas, também, é aplicável ao processo administrativo
em geral, alcunhado de processo administrativo inominado; ao processo administrativo disciplinar; e
ainda, a qualquer procedimento no âmbito particular estatutário ou contratual de que resulte uma
instância decisória que venha, de qualquer modo, imiscuir-se na esfera jurídica da pessoa".14 Nas
relações estatutárias, na seara do Direito Privado, prosseguiu referida autora, "também há campo
para a operatividade do direito constitucional a defesa, já que as relações dessa índole resultam nas
chamadas normas estatutárias". Como lembra, "Trata-se da aplicação do pensamento doutrinário
germânico, conhecido por Drittwirkung - que significa a eficácia dos direitos fundamentais frente a
terceiros - incluído aí a incidência imediata do princípio constitucional do direito de defesa sobre o
direito privado. Este direcionamento eficacial adquire um alcance decisivo, seja como garantia da
afirmação e da subsistência dos direitos constitucionais fundamentais, seja como impulsora do seu
desenvolvimento". E mais:
"Posto isso, não se descarta, antes confirma, a existência de uma modalidade de processo não
estatal e não jurisdicional, no qual é perfeitamente possível a imposição de reprimendas, devendo,
nesse caso, imperar a observância direta e imediata dos direitos fundamentais constitucionais em
tais relações, incluído o direito a defesa, sob pena de nulidade do ato.
Concluindo o presente enfoque, o princípio do contraditório e da ampla defesa decorre do princípio
jurídico, cujo conceito retrata a garantia da bilateralidade da audiência, abrangente, não só das
relações do processo penal, civil, administrativo, mas, inclusive, das relações estatutárias de direito
privado com estrutura de processo decisório."15 (grifei.)
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2. Contraditório e direito à prova
Conforme indicado no tópico precedente, as garantias da defesa e do contraditório estão à base da
regularidade do processo - e da justiça das decisões que, mesmo fora do âmbito propriamente
estatal, possam de alguma forma impor gravames ou repercussão relevante na esfera jurídica e
patrimonial das pessoas, destinatários dos atos de poder.
Como disse Antonio Magalhães Gomes Filho, é justamente o antagonismo entre as falas dos
interessados no provimento final (contra dicere) que garante a imparcialidade de quem decide, donde
surgir o contraditório como "uma espécie de direito natural". Sem que o diálogo entre as partes
anteceda o ato de poder, disse Magalhães, "a decisão corre o risco de ser unilateral, ilegítima e
injusta; poderá ser um ato de autoridade, jamais de verdadeira justiça"16 (grifei).
Nesse contexto é que se insere o direito à prova que, à evidência, nada mais é do que uma
resultante do contraditório. A esse propósito, já tive a oportunidade de escrever: "Não pode ficar
imune a tais garantias o direito à prova, que nada mais é do que uma resultante do contraditório: o
direito de contradizer provando. E assim como o contraditório representa o momento da verificação
concreta e da síntese dos valores expressos pelo sistema de garantias constitucionais, o modelo
processual informado nos princípios inspiradores da Constituição não pode abrir mão de um
procedimento probatório que se desenvolva no pleno respeito do contraditório"17 (grifei).
Na relação entre contraditório e prova, aquele emerge como verdadeira condição de eficácia desta.
Conforme já tive a oportunidade de assinalar, tanto será viciada a prova colhida sem a presença do
juiz, quanto aquela colhida sem a presença das partes. Daí, inclusive, poder afirmar-se que, ao
menos em princípio, não têm eficácia probatória os elementos informativos se a respectiva colheita
não contar com a possibilidade real e efetiva de participação dos interessados, em relação aos quais
se pretende editar provimento de caráter vinculante e cuja esfera jurídica possa vir a ser atingida.18
Tomo a liberdade de voltar a invocar minha anterior manifestação:
"E é importante salientar que o princípio da ineficácia das provas que não sejam colhidas em
contraditório não significa apenas que a parte possa defender-se em relação às provas contra ela
apresentadas: exige-se, isso sim, que seja posta em condições de participar, assistindo à produção
das mesmas enquanto ela se desenvolve."19 (grifei.)
Nessa mesma linha, já tive oportunidade de destacar a relevância do contraditório, "entendido como
participação das partes no momento da produção das provas. Trata-se, agora, das atividades
dirigidas à constituição do material probatório que vai ser utilizado pelo órgão jurisdicional na
formação de seu convencimento". Lembramos, então, que a relevância de tais atividades tem sido
posta em destaque pela doutrina universal, de que é ilustração o pensamento de Franco Cordero
segundo quem "il contraddittorio (seriamente inteso come participazione dei contendenti alla
formazione delle prove) è condizione di ogni atto di formazione della prova porque non sono prove
quelle formate fuori del contraddittorio" (grifei). Ou, ainda, a lição de Luigi Paolo Comoglio, para quem
"L'accertamento e la valutazione dei fatti dedotti in giudizio a fondamento di una pretesa devono
scaturire dal contraddittorio dinanzi all'organo giudicante"20 (grifei).
Também já dissemos que "a exigência do contraditório, na formação e produção das provas, vem
desdobrada, na experiência jurisprudencial e na lição doutrinária de diferentes países, em diversos
aspectos, assim resumidos por Giuseppe Tarzia: a) a proibição de utilização de fatos que não
tenham sido previamente introduzidos pelo juiz no processo e submetidos a debate pelas partes; b) a
proibição de utilizar provas formadas fora do processo ou de qualquer modo colhidas na ausência
das partes; c) a obrigação do juiz, que disponha de poderes de ofício para a admissão de um meio
de prova, de permitir às partes, antes da sua produção, apresentar os meios de prova que pareçam
necessários em relação aos primeiros; d) a obrigação de permitir a participação dos interessados na
produção das provas.21 E mais:
"Também nesse ponto é expresso o Código de Processo Civil (LGL\1973\5) alemão, ao estatuir, nos
§§ 357 e 397, que às partes assiste o direito de participar da produção da prova. A esse fundamental
princípio, doutrina e jurisprudência alemã dão o nome de Parteioffentlichkeit, reconhecendo-o como
uma das garantias fundamentais do processo em geral e extraindo de sua inobservância a proibição
de utilização das provas produzidas.
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(...)
Foi salientado, aliás, que a garantia não significa apenas que a parte possa defender-se contra as
provas apresentadas contra si, exigindo-se, ainda, que seja colocada em condições de participar,
assistindo às que forem colhidas de ofício pelo juiz. É que tudo que for utilizado sem prévia
intervenção e participação das partes acaba sendo reduzido a conhecimento privado do juiz.
Expresso, nesse sentido, Trocker (...), com referências às copiosas doutrina e jurisprudência alemã e
italiana."22 (grifei.)
Na doutrina sul-americana, Hernando Devis Echandía destacou que "la parte contra quien se opone
una prueba debe gozar de oportunidad procesal para conocerla y discutirla, incluyendo en esto el
ejercicio de su derecho de contraprobar, es decir, que debe llevarse a la causa con conocimiento y
audiencia de todas las partes; se relaciona con los principios de la unidad y la comunidad de la
prueba, ya que si las partes pueden utilizar a su favor los medios suministrados por el adversario, es
apenas natural que gocen de oportunidad paraintervenir en su práctica, y con el de la lealtad en la
prueba, pues ésta no puede existir sin la oportunidad de contradecirla".23
Ainda nas palavras desse prestigioso processualista, "Este principio rechaza la prueba secreta
practicada a espaldas de las partes o de una de ellas y el conocimiento privado del juez sobre
hechos que no constan en el proceso ni gozan de notoriedad general, e implica el deber de
colaboración de las partes con el juez en la etapa investigativa del proceso. Es tan importante, que
debe negársele valor a la prueba practicada con su desconocimiento, como sería la que no fue
previamente decretada en el procedimiento escrito, e inclusive, el dictamen de peritos oportunamente
ordenado, o al menos simultáneamente en el oral, pero que no fue puesto en conocimiento de las
partes para que éstas ejercitaran su derecho de solicitar aclaraciones o ampliaciones. Los autores
exigen generalmente la contradicción de la prueba como requisito esencial para su validez y
autoridad".24
Echandía também ressaltou a importância do princípio da publicidade da prova. Segundo asseverou,
ele é "consecuencia de su unidad y comunidad, de la lealtad, la contradicción y la igualdad de
oportunidades que respecto a ella se exigen. Significa que debe permitirse a las partes conocerlas,
intervenir en su práctica, objetarlas si es el caso, discutirlas y luego analizarlas para poner de
presente ante el juez el valor que tienen, en alegaciones oportunas; pero también significa que el
examen y las conclusiones del juez sobre la prueba deben ser conocidas de las partes y estar al
alcance de cualquier persona que se interese en ello, cumpliendo así la función social que les
corresponde y adquiriendo el 'carácter social' de que habla Framarino dei Malatesta"25 (grifei).
Entre nós, esse último aspecto foi bem examinado por Antonio Carlos de Araújo Cintra, para quem
"O princípio da publicidade tende a garantir a tranqüilidade das partes, afastando as dúvidas e
desconfianças que geralmente cercam as atividades secretas, senão furtivas, propiciadoras de
ilegalidade e quebras da honestidade ou do decoro. De outro lado, a publicidade enseja o controle
social do desempenho, pelos juízes, de suas atribuições. Nessa perspectiva é de recordar a lição de
Hélio Tornaghi no sentido de que 'o contraste da atividade judicial pela opinião pública é uma
garantia: para o jurisdicionado, contra a prepotência e o arbítrio; para o juiz, contra a suspeita e a
maledicência'. Ou seja, 'o sistema da publicidade dos atos processuais situa-se entre as maiores
garantias de independência, imparcialidade, autoridade e responsabilidade do juiz'."26 (grifamos)
Ainda na doutrina nacional, Antonio Magalhães Gomes Filho mais uma vez bem observou que: "Se
num primeiro momento o respeito ao contraditório, como expressão dos direitos de ação e de defesa,
impõe o reconhecimento a cada uma das partes de um direito à introdução da prova, e também,
inversamente, à parte contrária, de um direito de exclusão, no sentido de só ver admitidas as provas
lícitas, pertinentes e relevantes, essa mesma garantia do contraditório deve ser observada quanto
aos modos de admissão, introdução e valoração das provas no processo"27 (grifei).
A introdução contraditória da prova "significa que, admitida uma prova por decisão judicial, a
participação dos interessados nos procedimentos de sua produção deve ser ativa e efetiva. Assim,
se se tratar de provas preconstituídas, suficiente será a possibilidade de manifestação sobre a
legalidade ou idoneidade do material probatório introduzido; mas, no caso de provas que se formam
no próprio procedimento, as partes devem ter oportunidade de acesso a todos os atos de sua
elaboração, formulando questões às testemunhas ou peritos, obtendo e contestando informações e,
ainda, podendo oferecer a contraprova"28 (grifei).
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Além disso, prosseguiu Magalhães, "manifesta-se também o contraditório no momento da valoração
das provas, envolvendo não somente o seu momento argumentativo anterior, com a oportunidade
que devem ter as partes de criticar os resultados dos procedimentos probatórios - seja nas
alegações finais, seja posteriormente, sempre que novas provas venham aos autos -, mas
principalmente a efetiva apreciação, pelo juiz, das provas introduzidas em observância ao direito a
prova e, em contrapartida, a não consideração, para fins de decisão, das provas inadmissíveis ou
daquelas introduzidas sem respeito ao contraditório"29 (grifei).
De forma correta e abrangente, referido processualista também observou que "casos há em que a
violação do contraditório representa somente um aspecto do quomodo da prova, ou seja, trata-se de
irregularidade relacionada apenas à forma com que se realizaram os atos procedimentais
probatórios; em outras situações, ao contrário, o desrespeito à contraditoriedade atinge a própria
essência da prova considerada na decisão; aqui não se tem uma prova simplesmente irregular, mas,
na verdade, uma não-prova, ato sem a mínima aptidão para fundar o raciocínio judicial". E mais:
"Se se tratar de uma infringência ao contraditório que atinge a própria natureza do ato tido como
probatório, sua própria existência, a solução deve ser a mesma reservada para as provas
inadmissíveis, que jamais podem ser utilizadas pela sentença.
Pense-se, como exemplo dessa categoria, na utilização de dados colhidos no inquérito policial, que
não podem fundar o convencimento judicial porque não obtidos sob o contraditório; ou ainda,
naquela situação já mencionada, em que o Ministério Público pretende juntar aos autos, como prova,
testemunho colhido irregularmente, em seu gabinete; aqui a impossibilidade de consideração da
prova é absoluta, uma vez que uma renovação do ato, com observância do contraditório, é
simplesmente inviável."30
Na lição de Celso Antonio Bandeira de Mello, vigora perante a Administração o chamado princípio
"da ampla instrução probatória, o qual significa, como muitas vezes observam os autores, não
apenas o direito de oferecer e produzir provas, mas também o de, muitas vezes, fiscalizar a
produção de provas da Administração, isto é, o de estar presente, se necessário, a fim de verificar se
efetivamente se efetuaram com correção ou adequação técnica devidas"31 (grifei).
Tudo isso, como dito, afigura-se válido não apenas para o processo jurisdicional, conforme
anteriormente já anotado a propósito da extensão da garantia do contraditório para o âmbito
administrativo e mesmo para fora dos limites estatais.
3. A observância do contraditório pelo órgão que preside a produção da prova: exame da
ilicitude da prova
A prova, entendida como demonstração da veracidade de certas alegações de fato, normalmente
está a cargo das partes interessadas. Isso não afasta, por óbvio, que o órgão presidente de certo
procedimento - estatal ou não, conforme considerações supra - possa ele próprio determinar a
providência de instrução. Tal poder não infirma a garantia constitucional do contraditório e, pelo
contrário, somente reforça a preocupação com a atuação da referida garantia, impedindo-se
pronunciamentos que surpreendam as partes.
Trata-se de questão da qual tem se ocupado a doutrina mais recente e, dentro dela, tem destaque o
pensamento de Luigi Paolo Comoglio que, tratando especificamente do tema, observou que "occorre
indubbiamente considerare - nel panorama delle tendenze processuali moderne - la progressiva
emersione del ruolo del giudice nella direzione del processo, nonchè la derivata esigenza di una
protezione sempre più efficace delle garanzie del contraddittorio proprio in quei modelli di processo
inquisitorio, nei quali sia più decisiva (seppur con gli oppotuni correttivi e controlli, a salvaguardia
dell'imparzialità) la presenza di poteri d'ufficio del giudice"32 (grifei). Da mesma forma, na doutrina
italiana recentíssima, colhe-se a lição de Giulio Ubertis:
"Uno degli ambitiin cui maggiormente assume rilievo il principio del contraddittorio è, come
accennato, quello probatorio, segnatamente per quanto concerne l'esercizio del diritto alla prova.
Questo implica (quando il suo titolare lo faccia espressamente valere attraverso apposite richieste
agli organi giudiziari almeno sommariamente motivate) non solo il diritto all'ammissione di un
esperimento probatorio rilevante su un oggeto di prova verosimile e pertinente - e quindi il dovere per
il giudice di motivare sul rigetto dell'istanza di parte -, ma anche quelli alla sua effettiva assunzione in
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contraddittorio e alla valutazione dei suoi esiti."33 (grifei)
Significativa a respeito, como fonte de inspiração para outros ordenamentos, é a disposição contida
no art. 16 do novo Código de Processo Civil (LGL\1973\5) francês que, alinhado às mais modernas
tendências de dar efetividade às garantias constitucionais do processo, estabelece que "Le juge doit,
en toutes circonstances, faire observer e observer lui-même le principe de la contradiction", de tal
sorte que "Il ne peut fonder sa décision sur le moyens de droit qu'il a relevés d'office sans avoir au
préalable invité les parties à présenter leurs observations".
Na doutrina nacional, Luiz Guilherme Marinoni bem observou que: "O direito de produzir prova
engloba o direito à adequada oportunidade de requerer a sua produção, o direito de participar da sua
realização e o direito de falar sobre os seus resultados. No caso de prova determinada de ofício vale
o mesmo, pois a parte não só tem o direito de sobre ela se pronunciar, mas também o direito de
participar da sua realização. Quando o juiz determina a prova de ofício, ele se encontra, em respeito
à exigência do contraditório, na mesma posição da parte. Evocando a proibição de fazer uso da
ciência privada, poder-se-ia dizer que, à luz do contraditório, configura-se como ciência privada tudo
o que for utilizado sem a prévia participação das partes"34 (grifei).
Daí porque, consoante já tivemos oportunidade de registrar, "quando o juiz introduz a prova de ofício,
encontra-se, perante a exigência do contraditório, na mesma situação da parte, e a intervenção e
participação dos sujeitos do processo há de ser prévia"35 (grifei).
A partir das considerações precedentes chega-se ao tema da ilicitude das provas produzidas em
violação a direitos e garantias estabelecidas pela Constituição; e, a partir dele, é necessário
determinar as conseqüências, em um dado processo, de nele se introduzirem elementos de tal forma
viciados.
Conforme já tive oportunidade de asseverar, "No conceito de inconstitucionalidade da prova se
subsumem os dois momentos, o da ilicitude material e o da ilegitimidade processual: quando uma
prova ilícita é produzida no processo, está sendo infringido, em última análise, o princípio
constitucional da igualdade; e se a própria Constituição estabelece que os direitos fundamentais
somente podem ser limitados pela lei, e esta não existe, ou é infringida ao colher-se a prova, a
própria prova acaba sendo inconstitucional e sujeita à sanção, que por isso a fulmina. A prova
inconstitucional é atípica frente à Constituição, e para o processo é configurada como viciada de
atipicidade derivada". E mais:
"Assim, a medida e o limite da prova ilícita devem ser estabelecidos sempre com vistas à
Constituição. Se a colheita de prova importar em infringência a um direito ou a um princípio de
caráter constitucional, a prova deverá ser afastada, ainda que com isso, vez ou outra, se corra o
risco da impunidade do culpado."36 (grifei)
A propósito, também observei que "o rito probatório não configura formalismo inútil,
transformando-se, ele próprio, em escopo a ser visado, em uma exigência ética a ser respeitada, em
um instrumento de garantia para o indivíduo. A legalidade na disciplina da prova não indica um
retorno ao sistema de prova legal, mas assinala a defesa das formas processuais em nome da tutela
dos direitos". Dessa forma, "Ao prescrever expressamente a inadmissibilidade processual das provas
ilícitas, a Constituição brasileira considera a prova materialmente ilícita também processualmente
ilegítima, estabelecendo desde logo uma sanção processual (a inadmissibilidade) para a ilicitude
material"37 (grifei).
Lembrei ainda que "a atipicidade constitucional, com relação às normas de garantia, acarreta, em
regra, como conseqüência a sanção de nulidade absoluta. O menos que se poderia dizer, portanto, é
que o ingresso da prova ilícita no processo, contra constitutionem, importa na nulidade absoluta
dessas provas, que não podem ser tomadas como fundamento por nenhuma decisão judicial. Mas
aqui o fenômeno toma outra dimensão: as provas ilícitas, sendo consideradas pela Constituição
inadmissíveis, não são por esta tidas como provas. Trata-se de não-ato, de não-prova, que as
reconduz à categoria da inexistência jurídica. Elas simplesmente não existem como provas; não têm
aptidão para surgirem como provas. Daí sua total ineficácia"38 (grifei).
Nas palavras de Cândido Rangel Dinamarco, "Consideram-se incluídas no quadro do devido
processo legal as garantias de inadmissibilidade da prova obtida por meios ilícitos (art. 5.º, LVI, da
CF/1988 (LGL\1988\3)), da inviolabilidade do domicílio (art. 5.º, XI, da CF/1988 (LGL\1988\3)), do
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sigilo das comunicações e dados (art. 5.º, XII, da CF/1988 (LGL\1988\3)), etc.; e, se alguma
disposição infraconstitucional for emitida ou alguma decisão judiciária proferida, sem infração a
qualquer dessas garantias assim tipificadas mas violando as premissas do Estado liberal
democrático, ela será violadora da garantia ampla e vaga do due process of law - e por isso carecerá
de legitimidade constitucional"39 (grifei).
Nessa mesma direção, Ovídio Baptista da Silva, lembrando que "a parte contra quem se produz a
prova, tem direito de conhecê-la antes que o juiz a utilize como elemento de convicção em sua
sentença, e deve ter igualmente o direito de impugná-la e produzir contraprova, se puder, por este
meio, invalidá-la", concluiu que "carece de legitimidade a prova secreta produzida sem o prévio
conhecimento da outra parte e sem o indispensável contraditório processual"40 (grifei).
De forma análoga, João Batista Lopes - também lembrando que "o contraditório abrange (a) o direito
de ser ouvido; (b) o direito de acompanhar os atos processuais; (c) o direito de produzir provas; (d) o
direito de ser informado regularmente dos atos praticados no processo; (e) o direito à motivação da
sentença; (f) o direito de impugnar as decisões"41 - conclui que "Em linha de máxima, as provas
ilícitas, ilegítimas, ilegais ou clandestinas não devem ser admitidas"42 (grifei).
Contudo, a efetiva prevalência da garantia constitucional não termina aí. O problema não reside
apenas na necessária exclusão, de um dado processo, de provas obtidas em violação a garantias
constitucionais, mas envolve também a questão da influência que a prova ilícita - mesmo que
posteriormente excluída por inadmissível - tenha sobre o ânimo de quem julga. E, nesse particular,
tem-se como correto que não apenas deve ser excluída dos autos a prova ilícita, mas também deve
ser impedido de julgar todo aquele que tenha travado contato com os elementos produzidos com
violação a normas e garantias constitucionais.
Com efeito, tal é o que resulta da constatação de como se forma o convencimento. Se é certo que se
pode retirar dos autos a materialidade do ilícito, o mesmo, infelizmente, não pode ser dito em relação
à marca que fica no espírito de quem julga. Como já se disse em doutrina, "Una vez adquirida la
prueba por el juzgador, no podrán nunca descartarse los efectos de una convicción psicológica por
encima de toda inferencia lógica"43 (grifei). Não basta, em suma, excluir materialmente a prova ilícita
dos autos, sendo imperativo - para que a garantia nãoreste uma mera e vazia promessa -
reconhecer-se o impedimento para julgar de todo aquele que travou contato com a prova obtida de
forma ilegítima.
Em página clássica da doutrina, Sentis Melendo observou que: "Tales elementos probatorios,
aunque hayan llegado a entrar en los autos, no deben quedar incorporados a ellos, no deben ser
adquiridos por el proceso. Así cuando se trate de pruebas obtenidas en violación de derechos
constitucionalmente, o aun legalmente, garantizados. El problema presenta toda su gravedad en
aquellos casos en los que, como derivación de una prueba obtenida ilegalmente, se ha practicado
otra que, considerada aisladamente, es una prueba lícita. Cuál es el procedimiento a seguir? Radiar
de los autos esos elementos probatorios? Pero cuáles? Sólo los ilícitos o también todos los que,
siendo lícitos por sí, se descubrieron a consecuencia del empleo de medios ilícitos? Sería necesario
prescindir de todo lo obtenido como consecuencia. Pero de esas pruebas surgen elementos de
convicción para quien ha de juzgar. Será suficiente tachar o eliminar de los autos todas esas
pruebas?". E a resposta é esta:
"No lo creo. La única manera correcta me parece que será eliminar del proceso al juez, separarlo de
los autos en que tales elementos figuran y que él no ha podido por menos de haber conocido.
Eliminar todas esas pruebas y dejar como juzgador a quien ha tomado conocimiento de ellas no
parece una solución aceptable. La solución drástica sería anular todo lo actuado y separar al juez
que ha intervenido hasta entonces, para que su sucesor, sin conocimiento de esos elementos
probatorios, pueda juzgar con absoluta imparcialidad."44 (grifei)
Não se limitando ao plano exclusivamente doutrinário, tal postulado constou de projeto de Reforma
do Código de Processo Penal (LGL\1941\8), relativamente à disciplina legal da prova ilícita.
Conforme tive oportunidade de relatar, a respeito, "O anteprojeto disciplina as provas obtidas por
meios ilícitos, cuja admissibilidade é vedada pelo art. 5.º, LVI, da CF/1988 (LGL\1988\3). Com base
na doutrina e na jurisprudência, conceituam-se elas como as colhidas em violação a princípios e
normas constitucionais e se determina seu desentranhamento do processo e arquivamento sigiloso
em cartório, caso venham a ser introduzidas nos autos. Também se impede que o juiz que delas
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tenha tido conhecimento profira a sentença"45 (grifei).
Nessa mesma direção, Oswaldo Trigueiro do Valle Filho, a propósito do Projeto em questão,
observou que "A comissão de reforma optou por uma construção legal extremamente feliz, com as
chamadas cláusulas gerais, de porção aberta. Deu às provas ilícitas o referencial de violação a
princípio e normas constitucionais. Quando afirmamos que a expressão disposta à prova ilícita
alcança a satisfação jurídica, é porque entendemos que o dispositivo jamais poderia ser efetivo, caso
viesse abranger as ocorrências de proibição. Correria o risco, no modelo taxativo, de não alcançar
situações que, não previstas pelo legislador, tocariam de igual modo os princípios ou as normas
constitucionais". E mais:
"Mas o texto foi mais além quando, em brilhante e fundamental decisão progressiva, impôs um
impedimento na ordem de que, caso o magistrado tenha qualquer contato com a prova ilícita, ficará
impedido, pela prevalência do princípio da não contaminação, de proferir a sentença que
naturalmente o vinculará. Esta direção de política criminal brinda a postura que se quer acusatória,
fulminando qualquer hipótese de vícios na atividade mais importante dentro do processo: a
probatória.
"Convém registrar ainda que a adoção da teoria dos frutos da árvore envenenada, de cariz
americano, ultimou qualquer dúvida a este respeito. Não só a sua adoção, mas também os
elementos de sua composição, vinculando o efeito a situações de causalidade bem distribuída no art.
157, § 1.º, do Projeto de Reforma."46 (grifei)
Alinhando-se a tais considerações, Ricardo Baroneze asseverou que "as conseqüências da
admissão da prova ilícita em uma relação processual civil podem ser mais gravosas do que no
processo penal, apesar de se tratar de tutelas, de bens da vida, diversos. A afirmação se explica: no
processo penal, a admissão da prova ilícita pro reo é largamente admitida pela doutrina, como
aplicação do próprio princípio da proporcionalidade. Já no processo civil, tal assunção levaria
diretamente à contradição do princípio da igualdade processual, desequilibrando a paridade de
armas que deve haver entre as partes. Nem há de se falar que a prova pode ser contraditada pela
outra parte, vez que já foi produzida, na sua origem, por meio ilícito, em contraposição às normas de
direito constitucional". Assim, prosseguiu referido autor, "ao aproveitar o magistrado, na formação de
sua convicção e conseqüente motivação de qualquer ato decisório, em especial na sentença,
qualquer fato demonstrado por intermédio de prova ilicitamente obtida, agirá com patente erro de
procedimento (error in procedendo), que poderá ocasionar a nulidade dos atos praticados, salvo
aqueles que não tiverem estreita relação com a prova ilícita". E mais:
"Por outro lado, além de garantir o arquivamento sigiloso das provas obtidas ilicitamente, após o
trânsito em julgado da decisão que determina seu desentranhamento, prevê o anteprojeto a vedação
de o magistrado proferir sentença se teve conhecimento do conteúdo da prova declarada ilícita.
Na verdade, cria o dispositivo uma nova forma de impedimento do órgão julgador, ao lado de outras
hipóteses previstas pelo art. 252 do CPP (LGL\1941\8), considerado como causa objetiva geradora
de presunção absoluta de parcialidade do magistrado pelo simples fato de ter conhecimento prévio
da prova obtida ilicitamente, não havendo razão para questionar-se a sua análise subjetiva ou
intenção em julgar a causa com parcialidade.
Preserva-se, assim, a incolumidade do restante do conjunto probatório, propiciando ao juiz
substituinte a análise imparcial dos fatos sem a influência perniciosa da prova obtida por meio ilícito,
em nítida preservação da própria integridade da tutela jurisdicional."47 (grifei)
Se é verdade que as garantias do contraditório e da ampla defesa (integrantes do devido processo
legal) aplicam-se a todas as formas de exercício de poder, da qual possam resultar decisões
passíveis de interferir na esfera jurídica ou patrimonial de determinadas pessoas, então é certo que o
impedimento a que se aludiu no item imediatamente precedente não deve se limitar à prova
ilicitamente produzida no âmbito judicial. Vale dizer: no exercício de poder - no âmbito estatal e no
dos demais pólos existentes na sociedade - há que se exigir, se não imparcialidade, quando menos o
atributo da impessoalidade, para que o resultado da atividade estatal não acabe resultando em
desvio de poder e de finalidade.
Falando do tema em relação à Administração, Celso Antonio Bandeira de Mello ensinou que nesse
princípio "se traduz a idéia de que a Administração tem que tratar a todos os administrados sem
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discriminações, benéficas ou detrimentosas. Nem favoritismo nem perseguições são toleráveis.
Simpatias ou animosidades pessoais, políticas ou ideológicas não podem interferir atuação
administrativa e muito menos interesses sectários, de facções ou grupos de qualquer espécie. O
princípio em causa não é senão o próprio princípio da igualdade ou isonomia"48 (grifei).
Assim também Odete Medauar, para quem "Impessoalidade, imparcialidade, objetividade envolvem
tanto a idéia de funcionários que atuam em nome do órgão, não para atender objetivos pessoais,
como de igualdade dos administrados e atuação norteada por fins de interesse público. Trata-se de
ângulos diversos do intuito essencial de impedir que fatores pessoais, subjetivos, sejam os
verdadeiros móveis e fins das decisões administrativas. Como princípio da impessoalidade, a
Constituição visa a obstaculizar atuações geradas por antipatias, simpatias, objetivos de vingança,
represálias, 'trocos', nepotismo, favorecimentos diversos, muito comuns em concursos públicos,
licitações, processos disciplinares, exercício do poder de polícia. Busca, desse modo, fazer
predominar o sentido de função, isto é, o caráter objetivo nas atuações dos agentes, pois, sob tal
enfoque, os poderes atribuídos não se destinam a atender interesses e móveis subjetivos e
pessoais; finalizam-se ao interesse de toda a coletividade, portanto a resultados desconectados de
razões pessoais". E conclui:
"Em situações que dizem respeito a interesses coletivos, ou difusos, a impessoalidade significa a
exigência de ponderação equilibrada de todos os interesses envolvidos, para evitar decisões
movidas por preconceitos e radicalismos ideológicos ou pela busca de benesses de tipos diversos."49
(grifei)
Vê-se, dessa maneira, que, ao final, se entrelaçam as garantias examinadas: do magistrado, do
administrador e de quem, enfim, exerce poder, exige-se que observe e que faça observar a garantia
do contraditório, porque, dentre outros, essa garantia é fator assecuratório de imparcialidade, da
impessoalidade, além de garantir a validade e a eficácia da prova. Violando-se, na colheita da prova,
o contraditório e outros postulados que integram a cláusula do devido processo legal,
compromete-se a isenção e a impessoalidade de quem produz a prova.
4. Entidades que integram o sistema nacional de defesa do consumidor: identificação de
exercício de poder e submissão à exigência constitucional do contraditório (e respectivos
desdobramentos)
As considerações precedentes permitem que se passe agora ao exame das entidades que integram
o sistema de defesa do consumidor e, a partir do modo pelo qual atuam, que se determine se e em
que medida elas se sujeitam à exigência constitucional do contraditório e da ampla defesa, com
todos os desdobramentos anteriormente examinados.
Segundo a regra do art. 105 do CDC (LGL\1990\40), integram o chamado "Sistema Nacional de
Defesa do Consumidor - SNDC", os órgãos federais, estaduais, do Distrito Federal e municipais e as
entidades privadas de defesa do consumidor (grifei). Consoante observou Daniel Roberto Fink,
referido sistema "é a conjugação de esforços do Estado, nas diversas unidades da federação, e da
sociedade civil, para a implementação efetiva dos direitos do consumidor e para o respeito da
pessoa humana na relação de consumo. Quis o Código que o esforço fosse nacional, integrando os
mais diversos segmentos que têm contribuído para a evolução da defesa do consumidor no Brasil50"
(grifei).
Nas palavras de Bruno Miragem, "O espírito do Código é o de integração da atuação dos diversos
órgãos públicos e entidades privadas na atividade de promoção da defesa do consumidor. E isso é
percebido desde logo pelos princípios da Política Nacional das Relações de Consumo, expressos no
art. 4.º, que relaciona, entre outros, a ação governamental no sentido de dar efetiva proteção do
consumidor, por iniciativa direta, incentivo à criação e desenvolvimento de associações
representativas, assim como pela presença do Estado nas atividades de regulação e fiscalização do
mercado de consumo"51 (grifei).
Ainda nas palavras desse mesmo autor, "O direito do consumidor, ao lado de outros denominados
novos direitos típicos da pós-modernidade, como o direito ambiental, guarda uma característica
extremamente louvável e que, em boa medida, é uma das razões de sua crescente efetividade, tanto
entre nós, quanto na experiência do direito europeu, de influência marcante no Brasil. Trata-se do
papel ativo que reserva às diversas organizações da sociedade civil, a qual é expressamente
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estimulada pelo Código. Este estímulo à auto-organização dos consumidores é perceptível na
legitimação das associações para interposição de ação coletiva, assim como na sua participação no
SNDC, o que lhes determina a atuação e coordenação na formulação de políticas públicas,
mobilização da sociedade, educação para consumo e colaboração com órgãos públicos na
repressão às infrações aos direitos dos consumidores".52
Sobre o tema, Eduardo Gabriel Saad assinalou que: "A ação governamental para proteção do
consumidor é realizável direta ou indiretamente. No primeiro caso, o poder público organiza-se para
atender aos interessados e dar sustentação às atividades fiscalizadoras conducentes a sanções
administrativas, penais e civis. No segundo, estimula a criação de associações representativas dos
consumidores" (grifei). Dessa forma, prosseguiu: "O Código, arrimado na Constituição Federal
(LGL\1988\3), abre campo para múltiplas atividades das associações que representam os
consumidores. Credenciam-nas a representar os consumidores nas esferas administrativa e judicial,
o que as torna respeitadas - senão temidas - pelos fornecedores em geral"53 (grifei).
De forma realista, mas sem generalizações, referido autor observou que "Poderia o poder público
criar centros de treinamento e capacitação dos administradores de tais sociedades, o que
aumentaria consideravelmente as probabilidades de sucesso dos programas por ela adotados. O
despreparo dos dirigentes de tais organismos é, na maioria das vezes, a causa determinante de seu
fechamento ou - o que é pior - do desvirtuamento de suas finalidades"54 (grifei).
Na literatura jurídica portuguesa, Carlos Ferreira de Almeida indicou como funções e atividades das
instituições privadas ou mistas, com participação dos consumidores, dentre outras, a de -
"intervenção" "quer de natureza jurídica, pelo direito que, em alguns países e em certas
circunstâncias, lhes é reconhecido para a representação judiciária dos consumidores; quer de
natureza político-administrativa, pela atribuição de funções e direitos de intervenção e informação
junto dos órgãos de decisão ou consulta; quer ainda de natureza sócio-econômica, através de sua
função porventura mais eficiente de informação e educação, e também pela utilização de processos
de pressão de diversos graus de eficácia, incluindo aqueles que são inspirados pelas acções
reivindicativas dos sindicatos", falando também dos "meios mais radicais de pressão (a
contra-publicidade e o boicote)" e de outros "que usam a persuasão por diligências directas junto das
empresas, quando tenha havido lesão dos interesses dos consumidores"55 (grifei).
Disso tudo decorre, com relativa facilidade, a verificação de que tais entidades, ainda que privadas,
exercem inequívoca forma de poder. Com efeito, seu funcionamento e suas atividades têm origem
no Estado e, como visto, não deixam de ser forma indireta de atuação estatal. Em certa medida, há
aí uma forma, ainda que atenuada, de delegação. Na experiência nacional e internacional, tais
entidades são, de alguma forma, "credenciadas" a atuar e a elas se atribui papel social relevante,
dentre outros, de fiscalização e mesmo de "pressão" sobre os fornecedores.
Sua intervenção, tendo em vista a respectiva origem, resulta em inequívoca forma de poder porque o
resultado de suas atividades é destinado ao conhecimento dos consumidores e tem o explícito
escopo de influir sobre o respectivo comportamento; donde resulta também inegável aptidão de
interferência na esfera jurídica e patrimonial dos fornecedores, circunstância, aliás, reconhecida a
partir do verdadeiro "temor" de que acima se cogitou. É, portanto, típica forma de capacidade de
decidir e de - ainda que por formas coativas indiretas ou sutis - impor suas decisões, se não a
vincular os destinatários a influenciá-los decisivamente.
A propósito, vêm bem a calhar as palavras de Helena Najjar Abdo ao destacar a importância da
informação no ordenamento jurídico pátrio, tendo em vista "(i) a sua relevância para a formação da
opinião, (ii) a influência que exerce sobre a capacidade de discernimento e o comportamentodos
sujeitos receptores da mensagem e, por fim, (iii) o grande poder de persuasão exercido pela sua
reiteração"56 (grifei).
Tratando-se de "moléculas da sociedade" aptas ao exercício de poder, elas necessariamente estão
adstritas à rigorosa observância da garantia do contraditório e, mais do que isso, de todas as demais
que, como examinado, dali decorrem, particularmente em relação aos elementos de convicção que
sejam aptas a gerar. Em relação à demonstração de fatos que tais entidades pretendam realizar, a
não observância rigorosa do contraditório, com informação e oportunidade de reação dos
fornecedores, compromete o resultado da "prova" produzida e apresentada a consumidores, como
ainda põe em xeque a própria credibilidade - imparcialidade e impessoalidade - de tais entidades,
comprometendo, portanto, o próprio sistema de defesa do consumidor que integram.
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Em suma, aplicam-se a tais entidades, todas as considerações desenvolvidas nos itens precedentes,
o que, aliás, é confirmado por um exame da legislação que, mais particularmente, rege a matéria.
Com efeito, o Dec. 2.181, de 20.03.1997, que dispõe sobre a organização do Sistema Nacional de
Defesa do Consumidor - SNDC, estabelece as normas gerais de aplicação das sanções
administrativas previstas na Lei 8.078, de 11.09.1990. Em seu art. 42 do Dec. 2.181/1977, tal ato
legislativo estabelece que: "A autoridade competente expedirá notificação ao infrator, fixando o prazo
de dez dias, a contar da data de seu recebimento, para apresentar defesa, na forma do art. 44 do
Dec. 2.181/1977", podendo apresentar "as razões de fato e de direito que fundamentam a
impugnação" e, naturalmente, "as provas que lhe dão suporte" (art. 44, III e IV, do Dec. 2.181/1977).
Especificamente no campo dos alimentos, o art. 33 do Dec.-lei 986/1969, que instituiu normas
básicas sobre alimentos, dispõe que: "A interdição de alimento para análise fiscal será iniciada com a
lavratura de termo de apreensão assinado pela autoridade fiscalizadora competente e pelo possuidor
ou detentor da mercadoria ou, na sua ausência, por duas testemunhas, onde se especifique a
natureza, tipo, marca, procedência, nome do fabricante e do detentor do alimento". Após prever o
procedimento que terá lugar em tal situação, referido diploma dispõe que: "Se a análise fiscal
concluir pela condenação do alimento a autoridade fiscalizadora competente notificará o interessado
para, no prazo máximo de 10 (dez) dias, apresentar defesa escrita", de tal sorte que: "Caso discorde
do resultado do laudo de análise fiscal, o interessado poderá requerer, no mesmo prazo do parágrafo
anterior, perícia de contraprova, apresentando a amostra em seu poder e indicando o seu perito" (art.
34, §§ 1.º e 2.º, do Dec.-lei 986/1969; grifei).
Ainda nessa particular seara, o art. 27 da Lei 6.437/1977 prevê que: "A apreensão do produto ou
substância constituirá na colheita de amostra representativa do estoque existente, a qual, dividida em
três partes, será tornada inviolável, para que se assegurem as características de conservação e
autenticidade, sendo uma delas entregue ao detentor ou responsável, a fim de servir como
contraprova, e a duas imediatamente encaminhadas ao laboratório oficial, para realização das
análises indispensáveis". Também após prever procedimento atento à garantia do contraditório
estatui que se houver discordância do resultado condenatório da análise, o interessado "poderá, em
separado ou juntamente com o pedido de revisão da decisão recorrida, requerer perícia de
contraprova, apresentando a amostra em seu poder e indicando seu próprio perito" (art. 27, § 4.º, da
Lei 6.437/1977), inclusive com a possibilidade de recurso (art. 27, § 8.º, da Lei 6.437/1977); o que, de
resto, é ratificado pelos termos da Resolução RDC 12 da Anvisa, de 02.01.2001, segundo a qual "As
amostras colhidas para fins de análise de controle e fiscal devem atender aos procedimentos
administrativos estabelecidos em legislação específica" (5.4) (grifei).
Para além de tais aspectos, enfatize-se a circunstância de que tais entidades, na medida em que
sejam responsáveis pela divulgação de informação ao consumidor e à sociedade de um modo geral,
devem necessariamente pautar-se pela chamada regra de objetividade. Assim, conforme ressaltou
uma vez ainda Helena Najjar Abdo, "Para que uma mensagem seja considerada objetiva, ela tem de
ser, em primeiro lugar, verídica". Além disso, "precisa respeitar alguns elementos, tais como a
eqüidistância, a isenção, a imparcialidade, a clareza, e a 'verificabilidade' ou 'checabilidade'."57 (grifei)
Aliás, referida autora bem destacou que, ao classificar um determinado dado como informação, digna
de ser divulgada ao público, o profissional encarregado da tarefa "deverá cercar-se de cautelas
suficientes para referendar essa sua classificação, tais como (i) consultar uma pluralidade de fontes
sobre cada fato narrado, (ii) atribuir corretamente as informações às fontes consultadas, (iii) respeitar
o contraditório quando existirem posições ou pontos-de-vista conflitantes, (iv) manter a
imparcialidade ao narrar esses diferentes pontos-de-vista ou versões eventualmente conflitantes etc."
58 (grifei). Tudo isso, conforme destacou referida autora, liga-se ao dever de "completude" da
informação:
"O fundamento desse dever de completude está não só no respeito à objetividade, como acima
defendido, mas também na circunstância de que o fato omitido poderá comprometer de tal forma a
narração, a ponto de torná-la inverídica. Portanto, a superficialidade, a simplificação excessiva e a
omissão de fatos relevantes não só comprometem a objetividade, como também podem incidir em
inverdade." (Grifei.)
5. O exame da situação retratada na consulta - IV. Respostas aos quesitos
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Diante das considerações precedentes, o exame da situação posta pela Consulente fica
consideravelmente facilitado na medida em que o quanto já foi exposto adianta, em boa medida, as
conclusões que agora serão ratificadas.
Não há dúvida de que a Pro Teste pode ser considerada como entidade que integra o assim
denominado Sistema de Defesa do Consumidor. Suas origens e suas atividades confirmam tratar-se
de organismo inserido no contexto já examinado, do esforço de integração da atuação de órgãos
públicos e privados para promoção da defesa do consumidor. Sua forma de intervenção envolve
fiscalização e informação, com conseqüente e relevante influência sobre o mercado consumidor,
gerando o que, como visto acima, constituem-se em verdadeiros "processos de pressão".
Portanto, na linha das considerações precedentes, a Pro Teste, ao lidar com o exame de produtos e
disseminação de informações acerca da respectiva qualidade, maneja importante instrumento que, a
exemplo de decisões estatais (ou quiçá até com maior intensidade), influenciando o comportamento
dos consumidores, afeta diretamente a esfera jurídica, moral e patrimonial dos fornecedores. Seu
poder é inequívoco e, em um Estado Democrático, precisa ser rigorosamente regrado como o são as
formas de poder exercidos diretamente pelo Estado.
Sendo assim, a realização de testes e a correspondente divulgação de seus resultados, sem a
observância do prévio e efetivo contraditório dos fornecedores envolvidos, representam grave
violação à citada garantia e, portanto, à do devido processo legal. Mais do que isso, a "prova" assim
produzida - entendida como as conclusões e resultados dos testes realizados pela Pro Teste -
padece de visceral ilicitude. Sendo assim, tais elementos não podem, em hipótese alguma, servir de
fundamento para qualquer medida ou decisão judicial pelas quais se pretenda, eventualmente, a
retirada de determinado de produto de circulação. Na realidade, a divulgação de tais resultados -
equiparáveis à prova porque se propõe, como esta, à demonstração da verdade de certo fato - deve
serimpedida a todo custo porque, como visto, uma vez que a prova ilícita chega ao conhecimento de
quem deva tomar decisões - no caso, o consumidor - a situação se torna irreversível.
A realização dos testes, de forma secreta, viola, como conseqüência, o direito à prova dos
fornecedores, direito que não apenas decorre da Constituição Federal (LGL\1988\3), como
amplamente demonstrado, mas que, na situação particular dos alimentos, é garantido também pela
legislação que disciplina a matéria; preceitos aos quais evidentemente a Pro Teste está adstrita
como órgão integrante do sistema de defesa do consumidor que é. Ademais, disso, a realização a
sorrelfa dos testes compromete a isenção da entidade, dando margem a questionamento quanto a
sua imparcialidade e impessoalidade, tudo na linha da exposição anteriormente realizada. Sugestão
disso está no fato - portanto, circunstância objetiva - de que referida entidade teria tido seu
credenciamento cassado perante o governo italiano.
Além disso, a violação ao contraditório impede que se atenda à exigência de objetividade na
divulgação das informações. Sem a possibilidade de oitiva dos interessados, a informação
transmitida aos consumidores corre o sério risco de ser incompleta. Omitindo dados relevantes, tal
informação pode se revelar inverídica e isso, ao invés de tutelar o direito dos consumidores, acaba,
em última análise, por prejudicá-los.
Nem se diga que o contraditório estaria, no caso, satisfeito com o debate em juízo da prova, isto é,
dos testes realizados pela citada entidade. Quando o tema chega em juízo, ao que mostra a
realidade trazida pela Consulente, as informações já foram divulgadas e, então, eventual e posterior
retratação de muito pouco valerá.
Tampouco se diga que a Pro Teste estaria dispensada de proporcionar o contraditório aos
interessados por merecer, ela própria, tratamento de consumidor. Sobre isso, não se coloca em
dúvida que tal entidade integra o sistema oficial de defesa do consumidor, tendo por objetivo a tutela
de seus direitos. E, justamente porque é responsável pela divulgação de informações para aos
consumidores, e porque tais informações têm papel relevante na formação de sua opinião, tem a
entidade o dever de conferir objetividade às informações que divulga. E tal objetividade, como visto,
só pode ser atendida se o contraditório for estabelecido.
IV. Respostas aos quesitos
1 - Qual a atribuição (competência legal) conferida às entidades privadas de defesa do consumidor,
Princípios processuais fora do processo
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como é o caso da Pro Teste - Associação Brasileira de Defesa do Consumidor? Elas integram o
Sistema de Defesa do Consumidor e se submetem às regras do Dec.-lei 986/69 e da Lei 6.437/77?
R. - Referidas entidades - dentre as quais a chamada Pro Teste se inclui - integram o chamado
Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, compondo forma pela qual o Estado, indiretamente,
busca preservar os direitos do consumidor. Elas, portanto, se submetem, sim, não apenas às
referidas normas legais mas, antes e principalmente, à exigência constitucional de preservação do
contraditório e da ampla defesa, na medida em que sua atuação configura inequívoca forma de
exercício de poder.
2 - É correto afirmar que os testes realizados pela Pro Teste - principalmente análises
microbiológicas de alimentos por laboratórios - que possam apontar eventual desconformidade dos
produtos com a legislação ou com as normas da Anvisa deverão obedecer ao devido processo legal,
ao contraditório - inclusive o contraditório técnico - e à ampla defesa, notadamente em relação aos
procedimentos estabelecidos pelo Dec.-lei 986/69 e pelas normas-padrão da Associação Brasileira
de Normas Técnicas (ABNT)?
R. - Sim, conforme amplamente demonstrado no corpo do parecer.
3 - Em caso de resposta afirmativa ao quesito anterior, é correto afirmar que os procedimentos de
testes conduzidos sem a obediência ao devido processo legal e sem possibilitar o contraditório e a
ampla defesa, bem como os resultados obtidos seriam técnica e juridicamente questionáveis,
configurando resultados nulos e prova ilícita inadmissível?
R. - Sim. Os resultados dos testes não podem ser considerados porque, sendo fruto de violação ao
contraditório e a princípios constitucionais daí decorrentes, são marcados pela ilicitude. A prova
assim produzida não pode ser considerada em juízo e, mais do que isso, não pode ser divulgada aos
consumidores.
4 - A divulgação pública de resultados de testes conduzidos em afronta aos princípios constitucionais
acima mencionados, antes de as empresas se manifestarem e possam contrariar tais resultados,
configura atitude temerária, negligente e imprudente da Pro Teste?
R. - Sim, conforme razões expendidas no corpo do parecer.
É o parecer.
São Paulo, 28 de agosto de 2006.
1. Cândido Rangel Dinamarco. A instrumentalidade do processo. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 85.
2. Idem, p. 87-88.
3. Idem, p. 133.
4. Ada Pellegrini Grinover. Novas tendências do direito processual. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1990, p. 4.
5. Idem, ibidem.
6. Nelson Nery Junior. Princípios do processo civil na Constituição Federal (LGL\1988\3). 3. ed. São
Paulo: RT, 1996, p. 133.
7. José Carlos Barbosa Moreira. A garantia do contraditório na atividade de instrução. Temas de
direito processual civil. 3.ª série. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 68.
8. Ada Pellegrini Grinover. O processo em evolução. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1996, p.
81-84.
Princípios processuais fora do processo
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9. Idem, ibidem, p. 333.
10. Odete Medauar. A processualidade no direito administrativo. São Paulo: RT, 1993, p. 104.
11. Odete Medauar. A processualidade no direito administrativo, cit., p. 103.
12. Grinover-Scarance-Magalhães. As nulidades no processo penal. 8. ed. São Paulo: RT, 2004, p.
146-147.
13. Jessé Torres Pereira Júnior. O direito à defesa na Constituição de 1988. Rio de Janeiro:
Renovar, 1991, p. 36-37.
14. Ivani Contini Bramante. Eficácia do contraditório e ampla defesa nas relações interprivadas.
Revista LTr, v. LXIV, 2000, p. 1.010.
15. Idem, p. 1.011.
16. Antonio Magalhães Gomes Filho. Direito à prova no processo penal. São Paulo: RT, 1997, p.
169-170.
17. Ada Pellegrini Grinover. O processo em evolução, cit., p. 54.
18. Nesse sentido, meu trabalho O conteúdo da garantia do contraditório. Novas tendências do
direito processual. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990, esp. n. 3.1 e 3.2, p. 22-25.
19. Idem, ibidem, p. 24.
20. Ada Pellegrini Grinover. O conteúdo da garantia do contraditório, cit., p. 25.
21. Ada Pellegrini Grinover. O conteúdo da garantia do contraditório, cit., p. 21-22, com indicação das
fontes doutrinárias citadas.
22. Idem, p. 24.
23. Hernando Devis Echandía. Teoria general de la prueba judicial. 6. ed. Buenos Aires: Zavalia,
1988, t. I, p. 123.
24. Idem, ibidem.
25. Hernando Devis Echandía. Teoria general de la prueba judicial, cit., p. 124-125.
26. Antonio Carlos de Araújo Cintra. Comentários ao Código de Processo Civil (LGL\1973\5). v. 4
(arts. 332 a 475). Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 244.
27. Antonio Magalhães Gomes Filho. Direito à prova no processo penal. São Paulo: RT, 1997, p.
169-170.
28. Idem, ibidem.
29. Antonio Magalhães Gomes Filho. Direito à prova no processo penal, cit., p. 147-148.
30. Idem, ibidem, p. 169-170.
31. Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de direito administrativo. 6. ed. São Paulo: Malheiros,
1995, p. 283.
32. COMOGLIO, Luigi Paolo; FERRI, Corrado; TARUFFO, Michele. Lezione sul processo civile.
Bologna: Il Mulino, 1995, p. 70-71.
33. Cf. Giulio Ubertis. Il contraddittorio nella formazione della prova penale. Estudos e homenagens a
Princípios processuais fora do processo
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Ada Pellegrini Grinover. Coord. Flávio Luiz Yarshell e Maurício Zanoide de Moraes. São Paulo: DPJ,
2005, p. 333-334.34. Luiz Guilherme Marinoni. Novas linhas do processo civil. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p.
153.
35. Grinover-Scarance-Magalhães. As nulidades no processo penal, cit., p. 146-147.
36. Ada Pellegrini Grinover. Provas ilícitas. O processo em sua unidadeII. Rio de Janeiro: Forense,
1984, p. 177-178.
37. Idem, ibidem.
38. Ada Pellegrini Grinover. Provas ilícitas, cit., 1984, p. 177-178.
39. Cândido Rangel Dinamarco. Instituições de direito processual civil. 2. ed. São Paulo: Malheiros,
2002, v. 1, p. 245.
40. Ovídio A. Baptista. Curso de processo civil. Porto Alegre: Fabris, 1987, v. 1, p. 283-284.
41. João Batista Lopes. Curso de direito processual civil. São Paulo: Atlas, 2005, v. 1, p. 42.
42. Idem, p. 50.
43. Kielmanovich Jorge L. Teoría de la prueba y medios probatorio. Buenos Aires, Abeledo-Perrot,
1996, p. 58.
44. Sentís Melendo. La prueba - los grandes temas del derecho probatorio. Buenos Aires: Ediciones
Juridicas Europa-America, 1978, p. 228-229.
45. Ada Pellegrini Grinover. O processo - estudos e pareceres. São Paulo: Perfil, 2005, p. 284.
46. Oswaldo Trigueiro do Valle Filho. A ilicitude da prova. São Paulo: RT, 2004, p. 351-353.
47. Ricardo Raboneze. Provas obtidas por meios ilícitos. 3. ed. Porto Alegre: Síntese, 2000, p. 72-73.
48. Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de direito administrativo. 14. ed. São Paulo: Malheiros,
2002, p. 96.
49. Odete Medauar. A processualidade no direito administrativo, cit., p. 89-90.
50. Daniel Roberto Fink. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do
anteprojeto. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 872.
51. Bruno Miragem. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 2. ed. São Paulo: RT, 2006,
p. 1.143.
52. Bruno Miragem. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, cit., p. 1.161.
53. Cf. Eduardo Gabriel Saad. Comentários ao Código de Defesa Consumidor. 3. ed. São Paulo: LTr,
1998, p. 127.
54. Idem, ibidem.
55. Cf. Carlos Ferreira de Almeida. Os direitos dos consumidores. Coimbra: Almedina, 1982, p.
200-201.
56. Helena Najjar Abdo. Observância da regra da objetividade na publicidade do processo realizada
pelos meios de comunicação social. Tese de doutorado. São Paulo: Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo, 2006, p. 115.
Princípios processuais fora do processo
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57. Helena Najjar Abdo. Observância da regra da objetividade na publicidade do processo realizada
pelos meios de comunicação social, cit., p. 114.
58. Idem, p. 119.
Princípios processuais fora do processo
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