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INTERSEÇÕES ENTRE O MODERNO E O BARROCO (I) A arquitetura brasileira apresentou ao longo de sua história pelo menos dois momentos notáveis, em que ocorreu uma adaptação bem sucedida dos modelos transplantados da Europa a partir da interpretação das limitações e possibilidades da técnica, dos materiais e dos modos de vida: a arquitetura colonial e a arquitetura moderna. Comprova esta assertiva o fato de que foram esses períodos os responsáveis por todos os conjuntos urbanos e edifícios brasileiros eleitos como Monumentos da Humanidade: do Barroco, Ouro Preto e Diamantina são os mais relevantes; do Modernismo, Brasília. Esses dois momentos produziram arquiteturas que podem ser entendidas como genuinamente brasileiras por terem definido padrões construtivos que promovem variações significativas em relação aos modelos universais e colonizadores, especialmente devido à sua adequação ao contexto local. No Barroco, a topografia de difícil apropriação, a falta de mão de obra especializada, a escassez de materiais de construção e as especificidades do clima se constituíram em estímulo à invenção arquitetônica na medida em que demandaram a criação de novas soluções através da transformação dos modelos portugueses a fim de adequá-los às possibilidades materiais do lugar. Do mesmo modo, a arquitetura moderna, embora reeditasse padrões construtivos oriundos de desenvolvimentos tecnológicos em andamento na Europa e nos Estados Unidos – em especial a técnica do concreto armado –, apresenta no Brasil uma hibridação das soluções e uma contextualização dos valores universais da arquitetura moderna dos países dominantes, em especial de sua vertente racionalista, protagonizada por Walter Gropius e a Bauhaus, Mies van der Rohe e Le Corbusier – este último responsável pela maior influência sobre a produção brasileira. Um importante aspecto construtivo comum a estes dois momentos é a exploração da estrutura autônoma, ou estrutura independente. Na arquitetura moderna, a sua utilização foi viabilizada pelo desenvolvimento das técnicas do concreto armado e do aço. Le Corbusier contribuiu decisivamente para a máxima exploração do potencial que a nova técnica apresentava para a construção dos espaços destinados a abrigar a vida cotidiana no início do século vinte. No Brasil, Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Affonso Reidy e Vilanova Artigas destacam-se entre os arquitetos da primeira geração moderna que reeditaram as proposições de Le Corbusier. Na arquitetura colonial brasileira, a estrutura independente dos casarios é definida por uma trama tridimensional em madeira que aparece claramente contraposta aos padrões de vedação. A estrutura, pintada a óleo com cores fortes, se destaca das paredes brancas caiadas que por sua vez são perfuradas por aberturas de dimensões variadas conforme a época, com caixilhos em madeira e geralmente pintados com mesmo padrão da estrutura. Essa diferenciação clara entre estrutura autônoma e vedação caracteriza todo o conjunto da arquitetura civil colonial. É recorrente especialmente em Ouro Preto e Mariana, em que as massas brancas das alvenarias vão desde a calçada ao telhado, interrompidas apenas pelos esteios que definem os suportes para os pisos dos pavimentos. Foi em Diamantina, entretanto, que se verificou o maior grau de exploração do potencial da estrutura autônoma. Em pelo menos dois exemplos virtuosos a estrutura não é preenchida por paredes em taipa de mão caiada, mas tem seus vãos inteiramente liberados, com vedações leves, ora em venezianas, ora em treliçados de madeira. Tratam-se da Casa de Chica da Silva e da Casa da Glória. Na primeira, o balcão lateral fechado com treliças no segundo pavimento contrasta radicalmente com a massa branca dominante. Na segunda, o pátio interno revela o absoluto contraste entre o primeiro pavimento, aberto por caixilharia em venezianas e treliçados de madeira, e as massas brancas caiadas fechadas da parte superior. Tal contraste enfatiza, ainda que de modo não erudito como o fez o modernismo, a estrutura independente e todo o seu potencial de abertura ao nível térreo, a promover total integração visual entre interior – varandas e corredores de circulação – e exterior, além de permitir um controle da privacidade ao nível do chão pelo uso das venezianas e treliçados de madeira. Para além da especificidade formal e construtiva e sua similaridade com os procedimentos da arquitetura moderna, estes exemplos evidenciam ainda o modo de habitar da época, em que a separação entre os domínios do público e do privado eram enfaticamente demarcados. Transpostos para o século XX, permitiriam a conformação de belos pilotis, em que a estrutura independente viabilizaria a ocupação aberta e sem barreiras por sob a construção e demarcaria a clara diferenciação entre o chão público e a construção privada. Não é coincidência que, após ter conhecido Diamantina nos anos 30, Lucio Costa, o mais importante arquiteto do Modernismo Brasileiro, tenha elaborado a síntese entre tradição e modernidade que caracterizou a arquitetura do seu tempo.
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