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i UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS Gabriela Ferro Firmino Batista Política Externa Brasileira e o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP): da resistência à adesão CAMPINAS – SP 2011 ii FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP Bibliotecária: Sandra Aparecida Pereira CRB nº 7432 Título em inglês: Brazilian foreign policy and the Nuclear Non-Proliferation Treaty (NPT): from the resistance to the adhesion Palavras chaves em inglês (keywords): Área de Concentração: Política externa Titulação: Mestre em Relações Internacionais Banca examinadora: Hector Luis Saint-Pierre, Suzeley Kalil Mathias Data da defesa: 25-02-2011 Programa de Pós-Graduação: Relações Internacionais Brazil -Foreign relations Nuclear nonproliferation Nuclear weapons Brazil - Politics and government - 1995- 1998 Batista, Gabriela Ferro Firmino B320p Política externa brasileira e o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP) : da resistência à adesão / Gabriela Ferro Firmino Batista. - - Campinas, SP : [s. n.], 2011 Orientador: Shiguenoli Miyamoto Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. 1. Brasil - relações exteriores. 2. Não-proliferação nuclear. 3. Armas nucleares. 4. Brasil - Política e governo - 1995-1998. I. Miyamoto, Shiguenoli. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título. iii GABRIELA FERRO FIRMINO BATISTA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA E O TRATADO DE NÃO-PROLIFERAÇÃO DE ARMAS NUCLEARES (TNP): DA RESISTÊNCIA À ADESÃO Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Relações Internacionais na área de Política Externa. Este exemplar corresponde à versão definitiva defendida em 25/02/2011. BANCA: Prof. Dr. Shiguenoli Miyamoto (Orientador) Prof. Dr. Hector Luis Saint-Pierre Profa. Dra. Suzeley Kalil Mathias Prof. Dr. Andrei Koerner (suplente) Prof. Dr. Paulo Cesar Manduca (suplente) Campinas, fevereiro de 2011 iv v AGRADECIMENTOS Ao Professor Shiguenoli Miyamoto, por sua orientação e paciência; Ao Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP-Unicamp-PUC-SP), em especial à UNICAMP e seus funcionários administrativos; À CAPES, pelo auxílio financeiro proporcionado; À minha família, por todo o amor e incentivo. vi vii RESUMO A presente dissertação analisa as mudanças nos elementos domésticos e internacionais que influenciaram a decisão do governo brasileiro de aderir ao Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP) em 1998, após três décadas de rejeição a ele. Essa rejeição era justificada pelo caráter discriminatório do Tratado, que concedia privilégios aos países possuidores de armas nucleares e impedia o desenvolvimento tecnológico autônomo daqueles que não as possuíam. A pesquisa revelou que, em consonância com a explicação oficial, a alteração de postura com relação ao TNP foi fruto das mudanças que ocorreram no plano internacional após o fim da Guerra Fria, juntamente com as mudanças internas, com o fim do regime militar. A manutenção da renúncia ao TNP pareceu, então, infundada por ser incapaz de trazer benefícios práticos para o país e, além disso, causar danos políticos à imagem e à credibilidade externa do país, característica considerada essencial para a obtenção de vantagens no novo contexto internacional. viii ix ABSTRACT This Master’s thesis analyzes the changes in domestic and international factors that influenced Brazilian government’s decision to accede to the Nuclear Non-Proliferation Treaty (NPT) in 1998 after three decades rejecting it. This rejection was justified by the discriminatory character of the Treaty, which granted privileges to countries possessing nuclear weapons and prevented the autonomous technological development of those which didn’t possess them. The survey showed that, in line with the official explanation, the change of attitude to the NPT was the result of the changes that have occurred internationally since the end of the Cold War, along with internal changes, with the end of military regime. The maintenance of rejection to the NPT seems to be, then, useless, for being unable to bring practical benefits to the country and also for causing political damage to the country’s external image and credibility, a characteristic considered essential to obtain advantages in the new international context. x xi LISTA DE ABREVIATURAS • ABACC (Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle) • ABM (Anti-Ballistic Missile) • AIDA (Autoridade Internacional para o Desenvolvimento Atômico) • AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica) • ALADI (Assoaciação Latino-Americana de Integração) • ALCA (Área de Livre Comércio das Américas) • ALCSA (Área de Livre Comércio da América do Sul) • CNEN (Comissão Nacional de Energia Nuclear) • CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) • CoCom (Comitê de Coordenação de Controles Multilaterais) • CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) • CREDEN (Câmara de Relações Exteriores e de Defesa Nacional) • CSN (Conselho de Segurança Nacional) • CTBT (Tratado sobre Proibição Completa de Testes Nucleares) • EMFA (Estado Maior das Forças Armadas) • ENDC (Eighteen Nation Disarmament Committee) • EUA (Estados Unidos da América) • EURATOM (Comunidade Européia de Energia Atômica) • FHC (Fernando Henrique Cardoso) • GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) • IEA (Instituto de Energia Atômica) • IPEN (Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares) • JK (Juscelino Kubitschek) • LTBT (Limited Test Ban Treaty) • MERCOSUL (Mercado Comum do Sul) • MRE (Ministério das Relações Exteriores) • MTCR (Missile Technology Control Regime) • MTCR (Regime de Controle de tecnologia de Mísseis) xii • NAFTA (North American Free Trade Agreement) • NSG (Nuclear Suppliers Group) • OEA (Organização dos Estados Americanos) • OMC (Organização Mundial de Comércio) • ONU (Organização das Nações Unidas) • OPANAL (Organismo para La Proscripción de lãs Armas Nucleares em la América Latina y el Caribe) • OSC (Órgão de Solução de Controvérsias)• OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) • PDN (Plano de Defesa Nacional) • PEI (Política Externa Independente) • PIB (Produto Interno Bruto) • PND (Plano Nacional de Desenvolvimento) • RFA (República Federal da Alemanha) • SADCC (Conferência para Coordenação do Desenvolvimento na África Austral) • SCCC (Sistema Comum de Contabilidade e Controle) • SERE (Secretaria de Estado das Relações Exteriores) • SNI (Sistema Nacional de Informação) • START (Strategic Arms Reduction Talks) • TNP (Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares) • TRIMs (Trade Related Investment Measures) • TRIPS (Trade-related aspects of intellectual property rights) • URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) • ZLAN (Zona Livre de Armas Nucleares) • ZPACS (Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul) xiii SUMÁRIO INTRODUÇÃO........................................................................................................................15 CAPÍTULO I ............................................................................................................................19 REGIMES INTERNACIONAIS E A CONSTRUÇÃO DO REGIME DE NÃO- PROLIFERAÇÃO DE ARMAS NUCLEARES......................................................................19 1. Regimes Internacionais ....................................................................................................19 1.1 Regimes de Segurança e o Regime de não proliferação de armas de destruição em massa ................................................................................................................................24 1.2 O TNP como componente do regime de não-proliferação de armas nucleares..........29 2 A construção do regime de não-proliferação de armas nucleares ....................................31 2.1 Antecedentes...............................................................................................................31 2.2 Principais elementos constituintes do regime.............................................................34 3 TNP: Conteúdo e atualização ............................................................................................42 4 Considerações Finais .........................................................................................................48 CAPÍTULO II...........................................................................................................................53 ANTECEDENTES DA POLÍTICA NUCLEAR BRASILEIRA.............................................53 1 Considerações conceituais sobre política nuclear e aspectos gerais da política nuclear brasileira ...............................................................................................................................53 2 Primeira fase: relativo descaso quanto ao tema nuclear (1945-1956) ...............................56 3 Segunda fase: início de uma política nuclear nacional (1956-1961)................................59 4 Terceira fase: o hiato da Política Externa Independente ...................................................61 5 Quarta Fase: Regime Militar (1964-1985) ..................................................................63 5.1 De Castelo a Médici (1964 -1974): Programa nuclear com dependência tecnológica externa ...........................................................................................................65 5.2 Busca da autonomia tecnológica nuclear (1974-1985) ..............................................68 5.2.1 A cooperação nuclear com a Argentina...................................................................78 6 Considerações Finais .........................................................................................................81 CAPÍTULO III .........................................................................................................................85 A DÉCADA DE 1990: O FIM DA GUERRA FRIA E A REDEMOCRATIZAÇÃO NO BRASIL....................................................................................................................................85 1. Plano Externo: o fim da Guerra Fria e suas conseqüências para o Sistema de Estados..85 2. Plano Interno: redemocratização e crise financeira..........................................................88 3. A Política Externa de Collor e Itamar .............................................................................90 3.1 Postura dos dois governos em relação ao regime de não-proliferação nuclear ..........97 4 Considerações Finais .......................................................................................................101 CAPÍTULO IV .......................................................................................................................103 O GOVERNO FHC E A ADESÃO AO TNP: O CONGRESSO NACIONAL, AS FORÇAS ARMADAS E O ITAMARATY ...........................................................................103 1. A Política Externa de FHC no primeiro mandato (1994-1998): linhas gerais ...............103 1.1 Adesão ao Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares ...........................108 2. Forças Armadas ..............................................................................................................110 3. Itamaraty.........................................................................................................................111 4. Congresso Nacional ........................................................................................................117 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................123 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................................129 xiv 15 INTRODUÇÃO O objetivo desta pesquisa é discutir as razões pelas quais o Brasil resistiu ao Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP) desde sua formulação, na década de 1960, e a partir da década de 1990 passou a dar mostras de aceitá-lo, ratificando-o em 1998. Durante o regime militar, o Tratado era considerado um instrumento de “congelamento do poder mundial”, criado por Estados Unidos e União Soviética com o objetivo de impedir o acesso de novos membros ao clube das grandes potências. O país não aceitava, então, nenhum tipo de restrição ao desenvolvimento de sua tecnologia nuclear. Durante a década de 1980, foram firmados uma série de acordos de cooperação com a Argentina em matéria nuclear, estabelecendo-se, inclusive, mecanismos de inspeção recíproca. O repúdio ao TNP foi mantido nesse período. Na década de 1990, na esteira das mudanças no cenário internacional e da onda de liberalização econômica, ocorreu um ponto de inflexão na política nuclear brasileira, que pode ser observado por atitudes que tiveram o efeito prático de uma adesão ao TNP, que só se concretizaria em 1998, no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. A problemática que se coloca, portanto, - e configura o objetivo geral da pesquisa - é entender porque o governo brasileiro, após três décadas de resistência, aderiu ao TNP em 1998, isto é, entender o posicionamento brasileiro frente ao regime de não proliferação de armas nucleares. A dissertação é composta por quatro capítulos. No primeiro, é discutida a formação do regime de não-proliferação nuclear, em particular do TNP, seu pilar fundamental. Adentramos na teoria dos regimes internacionais, fazendo uma síntese das proposições de diferentes escolas de pensamento para melhor compreensão da dinâmica de construção do regime, bem como para 16 levantar hipóteses sobre as razões que levam os Estados a aderir a ele. Enfatizamos as peculiaridadesatribuídas aos regimes de segurança, que prejudicam a cooperação e dificultam seu funcionamento. Em seguida, traçamos um histórico do regime de não-proliferação de armas nucleares, especificando seus principais elementos constituintes. No segundo capítulo, é traçado um panorama geral da política nuclear brasileira, especificando os pontos de contato com a política externa nacional de modo a verificar suas linhas de continuidade e descontinuidade, e, assim, melhor compreender o que significou, para as duas políticas citadas, a adesão ao Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares em 1998. Trataremos, ainda, neste capítulo, das relações bilaterais Brasil-Argentina, sobretudo na década de 1980, e de sua relevância para as decisões brasileiras sobre a política nuclear. O terceiro capítulo trata das mudanças ocorridas a partir do fim da década de 1980, tanto no plano interno quanto no externo, que provavelmente influenciaram a mudança de postura do país com relação ao TNP. No plano interno, a redemocratização alterou a relação entre os diferentes atores, como militares, o Congresso Nacional e a sociedade civil, modificando seu poder de influência no processo decisório. No plano externo, o fim da Guerra Fria e da bipolarização do mundo causou otimismo generalizado na comunidade internacional. Os Estados nacionais deveriam adequar seu comportamento ao novo contexto, que prenunciava a predominância das instituições e das regras internacionais e, conseqüentemente, da paz mundial. Retomamos as linhas gerais de política externa dos governos Collor e Itamar, com ênfase em suas ações relativas à política nuclear. No quarto capítulo, trata-se do governo FHC, responsável pela adesão ao TNP. Traçamos as linhas gerais de sua política externa, analisando as explicações oficiais para adesão ao Tratado, segundo as quais, em linha com uma perspectiva realista das relações internacionais, 17 a adesão foi puramente a expressão do interesse nacional, pois o país adequava-se ao novo contexto externo, no qual se acreditava não haver mais alternativas de desenvolvimento e inserção para os países periféricos, a não ser o enquadramento nos regimes internacionais e o seguimento do modelo econômico norte-americano. Ainda no quarto capítulo, analisamos as discussões acerca da ratificação do TNP que ocorreram no Congresso Nacional, com vistas a verificar o nível de divergência ou de convergência com a decisão do Presidente da República. Analisamos, por fim, a influência dos militares no governo FHC, de modo a observar se houve resistência significativa por parte do Exército, Marinha e/ou Aeronáutica. 18 19 CAPÍTULO I REGIMES INTERNACIONAIS E A CONSTRUÇÃO DO REGIME DE NÃO- PROLIFERAÇÃO DE ARMAS NUCLEARES Este capítulo discute a formação do regime de não-proliferação nuclear, em particular do TNP, que constitui o pilar fundamental daquele. Adentramos na teoria dos regimes internacionais, fazendo uma síntese das proposições de diferentes escolas de pensamento para melhor compreensão da dinâmica de construção do regime, bem como para levantar hipóteses sobre as razões que levam os Estados a aderir a ele. Enfatizamos as peculiaridades atribuídas aos regimes de segurança, que prejudicam a cooperação e dificultam seu funcionamento. Em seguida, traçamos um histórico do regime de não-proliferação de armas nucleares, especificando seus principais elementos constituintes. O Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares é analisado detalhadamente, desde sua criação, até os desenvolvimentos mais recentes. 1. Regimes Internacionais Sendo o TNP a base do regime de não-proliferação de armas nucleares, convém fazermos menção às teorias dos regimes internacionais. Regimes internacionais são princípios, normas, regras ou procedimentos vigentes em determinada área temática, que devem pautar o comportamento dos atores em um contexto específico para que suas ações sejam consideradas legítimas e aceitáveis pelos demais. Nas palavras de Krasner (1983): “Regimes internacionais são definidos como princípios, normas, regras e procedimentos de tomada de decisões em torno das quais convergem as expectativas dos atores em um determinado assunto.” (p.1). Para os fins deste 20 trabalho, o importante é entender por que os Estados aderem a regimes internacionais, abrindo mão de sua liberdade de agir conforme suas preferências egoístas, para seguir regras que podem, muitas vezes, contrariar seus interesses imediatos. A literatura sobre regimes internacionais surgiu na década de 1970, em meio à onda de contestações às abordagens estruturalistas das relações internacionais predominantes até então, que enfatizavam elementos como a anarquia, a ausência de poder supranacional, o Estado como ator unitário, racional e egoísta, para negar a possibilidade de cooperação entre os países e de qualquer forma de governabilidade. Dois grupos de acontecimentos impulsionaram o surgimento das novas perspectivas. Primeiro, o aumento dos fluxos financeiros internacionais e a facilidade de locomoção de pessoas, bens e informações através das fronteiras sugeriam a obsolescência das perspectivas estado-cêntricas, desafiadas pelo surgimento de atores transnacionais, como os grandes conglomerados empresariais, e motivaram as teorias transnacionais, oriundas predominantemente de perspectivas liberais1. Elas mantiveram distância dos processos políticos internos dos Estados, não obstante deixassem de considerá-lo ator unitário das relações internacionais. Enfatizaram a importância de atores transnacionais e a crescente interdependência entre os Estados, responsável pela transformação do conceito de soberania que, embora mantido formalmente, perdia efetividade devido à incapacidade dos governos de controlarem certos movimentos internacionais, sobretudo na área econômica. Autores como Haas (1983) acreditam que os regimes internacionais são criados e mantidos pelos Estados para intermediar conflitos que 1 Nas relações internacionais, o liberalismo tem sentido diferente do utilizado na economia, referindo-se às teorias que aceitam a existência da cooperação entre os Estados, sobretudo devido à interdependência econômica existente entre eles. 21 ocorrem em um contexto de interdependência entre eles, o qual, segundo Oran Young (1983), aumenta a capacidade de todos os atores relevantes se ferirem mutuamente.2 O segundo grupo de acontecimentos que impulsionou o surgimento de novas perspectivas acerca das relações internacionais inclui o fortalecimento do movimento dos não- alinhados3, o fracasso dos Estados Unidos no Vietnam, seus problemas financeiros ilustrados pelos déficits gêmeos (fiscal e comercial), os quais mostravam que o poder militar não era o único fator determinante das relações entre os Estados. Surgiram, então, abordagens que acreditavam na influência de outros fatores, o que faz com que a relação entre eles não seja, necessariamente, conflituosa. Os trabalhos sobre regimes fazem parte dessa perspectiva e buscavam mostrar que a cooperação entre os Estados era possível, bem como a existência de normas e instituições, mesmo na ausência de poder coercitivo global. Os críticos aos regimes internacionais e à possibilidade de cooperação entre os Estados argumentam que essas instituições são forjadas por um país que esteja em uma situação hegemônica para manter sua liderança em áreas específicas (Snidal, 1985; Smith, 1987). Isso pode ocorrer de forma direta, por meio da imposição de regras, ou de forma indireta, por meio de incentivos e estímulosconcedidos pelo país dominante aos subordinados. Segundo Oran Young (1983), essa situação não implica coerção contínua dos primeiros sobre os últimos, uma vez que os atores acostumam-se à obediência. Além disso, a ordem resultante da preponderância hegemônica de um ou mais países não é necessariamente a que traz piores resultados para os Estados subordinados. O fato de um regime internacional ser criado por meio de negociação não 2 Keohane e Nye (1977) desenvolveram a teoria da interdependência complexa. Afirmam que a interdependência crescente observada entre os Estados, principalmente a partir da década de 1970, resulta em uma interdependência ainda maior, o que aumenta a necessidade de cooperação, com a criação de regimes, por exemplo. 3 Movimento formado durante a Guerra Fria, por países do então chamado Terceiro Mundo, em oposição à divisão bipolar do mundo e com vistas a manter uma posição neutra e não-alinhada a nenhum dos blocos. Sua origem remonta à Conferência de Bandung, Indonésia, de 1955. 22 é garantia de resultados equânimes para todos os atores, primeiro porque a própria negociação inclui elementos de poder e, segundo, porque ainda que a ordem negociada seja igualitária em princípio, não é simples mantê-la e administrá-la de forma que os resultados sejam equânimes para todos os países. Na coletânea publicada por Krasner (1983), o debate teórico geral do campo das relações internacionais da década de 70 emerge das diferentes percepções dos autores acerca dos regimes. Embora aceitem a influência de fatores antes marginalizados ou ignorados, como os elementos subjetivos, os pesquisadores deixam transparecer a dificuldade de se desprenderem da influência racionalista estado-cêntrica. Identificando pressupostos básicos comuns a certos autores, Krasner distingue três correntes teóricas principais, embora admita a existência de nuances consideráveis dentro de cada uma delas, de acordo com cada autor. As correntes são o estruturalismo, cujos pressupostos são típicos dos autores considerados realistas, o estruturalismo modificado, com perspectivas semelhantes às dos institucionalistas liberais, e os grocianos, próximos a abordagens construtivistas. De acordo com a vertente estruturalista, fundada nos pressupostos do neorealismo estrutural de Waltz (2002), a única variável realmente importante na relação entre os Estados é a distribuição de poder. Isso porque considera que a anarquia, presente no sistema internacional, determina relações necessariamente conflituosas entre os membros, sem espaço para cooperação. Nesse contexto, a maior preocupação dos Estados é garantir sua sobrevivência, constantemente ameaçada pelos demais e, portanto, dependente de sua força material relativa. Por isso, os atores que defendem esses pressupostos valorizam, no ambiente internacional, apenas os ganhos relativos, não os absolutos, o que impede a cooperação. Logo, são céticos quanto aos regimes internacionais, negando sua eficácia em moldar comportamentos. Admitem a possibilidade de 23 existência dos regimes, mas ressaltam que os Estados não os levam em consideração quando agem internacionalmente, e que sua criação tem como objetivo elevar as preferências dos mais fortes ao status de norma, legitimando a subordinação dos mais fracos. Apenas refletem as relações de poder, consolidando a ordem vigente - o status quo -, ou alterando-a, quando as preferências dos mais fortes mudam. A segunda corrente é o estruturalismo modificado, correspondente ao neoliberalismo, ou neoinstitucionalismo, fundamentada no interesse do Estado. Embora os autores dessa perspectiva compartilhem de alguns dos pressupostos básicos do estruturalismo tradicional, como a centralidade do Estado, visto como ator racional em busca da realização de interesses egoístas, e a natureza anárquica do meio internacional, inovam ao defender que a anarquia não constitui impedimento rígido à cooperação e que a própria defesa dos interesses nacionais pode favorecê- la. Há situações em que a cooperação proporciona resultado melhor do que o Estado conseguiria atingir se agisse individualmente e, portanto, é benéfica para ambos. É menos rígida que o estruturalismo tradicional, pois afirma que os ganhos de um Estado não constituem, necessariamente, ameaça aos seus pares e, portanto, eles devem se preocupar com os ganhos absolutos, não relativos. Nessas duas perspectivas, ambas estado-cêntricas, pode-se considerar que os Estados aderem a regimes segundo cálculo racional de custos e benefícios. A perspectiva grociana é a que concede maior importância aos regimes internacionais. Ela procura demonstrar que todo comportamento padronizado dos Estados é resultado de regimes, mesmo que eles não estejam formalmente consolidados. Nessa perspectiva, os governantes não seguem uma lógica estritamente egoísta, tentando maximizar seus benefícios a qualquer custo, mas se pautam, também, conscientemente ou não, por normas gerais e modelos de comportamento que formam, com os usos, costumes e percepções dos decisores, regimes 24 dinâmicos e informais. Os regimes não apenas moldam o comportamento dos Estados, como influenciam a própria definição do interesse nacional. (MESSARI, 2003). 1.1 Regimes de Segurança e o Regime de não proliferação de armas de destruição em massa Os autores costumam atribuir aos regimes de segurança características peculiares, que dificultam sua criação e funcionamento satisfatório, quando comparados aos regimes de outras áreas. De acordo com Stein (1983), uma característica básica desse tipo de regime é a propensão dos participantes à trapaça, pois, embora prefiram um mundo totalmente desarmado, a estratégia dominante é o armamento, devido ao medo e à desconfiança que reinam no cenário internacional. No mesmo sentido, Jervis (1983) acredita que todo ator gostaria de obter ganhos individuais, tirando vantagem da restrição dos outros, sem restringir o próprio comportamento, ou seja, sem cooperação mútua. Esta, no entanto, é preferível à competição irrestrita. Logo, um regime de cooperação mútua é melhor para todos, mas todos são constantemente tentados a trapacear, tanto para se proteger da trapaça alheia, quanto para garantir ganhos competitivos. Daí a necessidade de alta institucionalização dos regimes de desarmamento. O TNP corrobora a existência dessas especificidades, principalmente devido a seu abrangente sistema de salvaguardas, não suficiente para impedir que sejam burladas por alguns Estados, mesmo por aqueles que impõem a normatividade. Ressalte-se que a trapaça não é exclusividade dos regimes de Segurança, mas nestes, ela pode ser vital. Jervis (1983), por acreditar que os Estados pensam apenas em termos de ganhos relativos, afirma que medidas tomadas por um Estado para aumentar sua segurança automaticamente diminuem a segurança dos demais, o que também dificulta a adesão a regimes 25 dessa área temática. Eles relutam em aceitar limitar seus armamentos, pois não podem ter certeza de que os demais Estados também o farão, ainda que todos façam parte do mesmo regime, pois pode haver trapaça. Keohane (1983) enfatiza que os resultados dos regimes, em geral, não são equânimes para todas as nações: algumas geralmente são mais beneficiadas do que outras, havendo, inclusive, aquelas cuja situação piora após a entrada no regime. A adesão, ainda que voluntária, se justificaria, nesse caso, pois, uma vez existente, os custos de não adesão a um determinado regime podem superar as perdas causadas pela adesão. Como a informação e a comunicação são vistas como diminuidoras dasincertezas e dos riscos do sistema, Estados fechados, com maior dificuldade em aderir a regimes (que aumentam a quantidade e a qualidade de informação sobre os participantes), serão vistos com desconfiança pelos parceiros potenciais. Freqüentemente são impostas sanções a Estados que se negam a aderir a determinado regime, como restrições de acesso a tecnologia, por exemplo. Essas perspectivas são características de concepções estruturalistas das relações internacionais, compatíveis com as duas primeiras correntes definidas por Krasner (1983), que tomam o conflito e as relações de poder como elementos centrais de análise, e que, se vêm perdendo espaço para vertentes mais liberais nas últimas décadas, ainda são predominantes na literatura relacionada à segurança. Com efeito, embora a revolução das comunicações, após a década de 1970, e a crescente influência da opinião pública internacional sobre as políticas dos Estados tenham aumentado a importância de fatores subjetivos como idéias, valores, usos e costumes, quando se trata de segurança, a prática dos países detentores de considerável poder material é seguir políticas tradicionais de defesa, pautadas na importância da força militar. A 26 diferença fica no plano do discurso: há maior preocupação em legitimar o uso da força por meio da retórica. As peculiaridades dos regimes de segurança, sob a ótica de autores estruturalistas, fornecem importantes insumos para a compreensão da lógica de funcionamento do TNP e para as dificuldades de se assegurar seu cumprimento, observando-se a existência de free riders no seio do regime de não-proliferação. A agravante, no caso do TNP, é que ele não se limita a regular temas concernentes à segurança, mas seus efeitos se estendem à área tecnológica e, portanto, suscita discussões sobre desenvolvimento econômico. As razões que levam os Estados a aderir a regimes de segurança, no entanto, não podem ser encontradas exclusivamente dentro dos argumentos de uma perspectiva teórica, devendo ser estudadas caso a caso, pois dependem tanto de fatores internos, como o contexto político doméstico, quanto de externos, como as pressões internacionais e a posição ocupada pelo país na escala de poder global. É assim que, no caso do Brasil, acreditamos que as análises estado-cêntricas não logram explicar satisfatoriamente a adesão ao TNP, e nos propomos a ampliar a análise para incorporar elementos como a posição dos militares, da comunidade científica, do Congresso Nacional e da opinião pública, buscando reconstruir o processo decisório interno, com vistas a determinar o papel dos atores na decisão final. Para tanto, nos valeremos do arcabouço teórico estabelecido por Graham Allison e Philip Zelikow (1999). As correntes teóricas até aqui analisadas, mesmo aquelas que incluíram aspectos subjetivos, como as crenças e valores do ator responsável pela decisão, mantiveram o Estado como ator central do processo. Escrevendo sobre a crise dos mísseis de Cuba, Allison e Zelikow (1999) sugerem a possibilidade de outras perspectivas de análise. Além da estado-cêntrica, que eles chamam de modelo do ator racional, identificam o modelo organizacional e o modelo burocrático e, aplicando-os às ações estatais na 27 crise dos mísseis, mostram o quão díspares podem ser as explicações encontradas para as mesmas ações, dependendo do arcabouço teórico utilizado pelo pesquisador, conscientemente, ou não. No modelo do ator racional, estão inclusos os autores que consideram o Estado ator unitário, coeso e racional, responsável pelas decisões externas. A racionalidade se refere à adequação entre fins e meios, ou seja, à adoção do comportamento apropriado para alcançar objetivos específicos, escolhendo a opção que maximize os ganhos e minimize as perdas. Há um cálculo racional entre custos e benefícios de cada alternativa, antes da decisão. Pressupõe, portanto, que os Estados têm um interesse nacional, o qual se sobrepõe às divergências políticas internas, e que, para explicar seu comportamento, basta descobrir seus objetivos e cálculos. Allison e Zelikow (1999) não excluem dessa corrente os autores que aceitam a influência de fatores subjetivos, afirmando que ela apresenta diversas nuances, e as abordagens mais flexíveis reconhecem limitações na racionalidade, por ser limitada a própria racionalidade humana. Para entender o comportamento, portanto, características pessoais do decisor devem ser consideradas, como os valores e as crenças. Por isso, os autores incluem tanto o realismo clássico e o neorealismo quanto o liberalismo e institucionalismo internacional na perspectiva do ator racional. O segundo modelo é o do comportamento organizacional. De acordo com essa perspectiva, o governo não é ator unitário, mas um conglomerado de organizações frouxamente conectadas. As organizações são criadas para aumentar a eficiência no cumprimento das funções públicas, pois elas criam padrões de comportamento, rotinas que diminuem o tempo de resposta a situações pré-definidas. Uma cultura organizacional emerge para moldar o comportamento de indivíduos, que passam a agir de acordo com os objetivos e regras da organização, e não como particulares. O comportamento organizacional limita a racionalidade, pois constrange a escolha 28 ótima para alcançar a eficiência de rotinas estabelecidas. O processo de tomada de decisão se torna ainda mais complexo quando diferentes organizações interagem, visto que raramente uma questão ficará sob o comando de uma única organização. As organizações interpretam mandatos em seus próprios termos. Elas desenvolvem propensões relativamente estáveis a respeito de prioridades, objetivos operacionais, percepções e problemas. O terceiro modelo é o da política governamental. Segundo ele, o comportamento dos Estados é o resultado de jogos de barganha entre atores hierarquicamente posicionados no governo. Os indivíduos, membros de organizações ou não, têm interesses próprios, de acordo com a posição que ocupam, pois diferentes responsabilidades e crenças produzem recomendações conflitantes, e cada um dos atores luta por aquilo que está convencido de que é certo. Vários grupos, puxando em direções distintas, produzem resultados diferentes do que qualquer pessoa ou grupo pretendia. Para explicar o comportamento estatal, portanto, é necessário identificar os jogos e os jogadores, mostrar as coalizões formadas e os compromissos assumidos. A identidade dos atores importa, pois as pessoas, regularmente, não agem de acordo com as doutrinas da escolha racional. Os autores concluem que ninguém apenas descreve fatos: todos os analistas destacam as características que consideram mais relevantes em determinada situação. Cada moldura conceitual consiste de um grupo de suposições e categorias que influenciam o que o analista considerará importante, o modo como ele formula a questão, onde procura evidências, e o que produz como resposta. Por isso, adotar múltiplos, superpostos, competitivos modelos conceituais é a melhor estratégia para compreensão da política externa. Concordamos com essa afirmação dos autores e acreditamos que a decisão brasileira de aderir ao TNP pode ser mais bem explicada se não nos restringirmos a um único modelo de 29 análise. Aceitar a explicação oficial, de que a adesão foi uma forma de “resgatar as hipotecas do passado”, enquadrando o Brasil nos regimes internacionais pela falta de opções alternativas, sem análise das forças internas em jogo, significa reiterar, de forma acrítica, a concepção racionalista e estado-cêntrica das relações internacionais. Pretendemos ampliar a análise, verificando a existênciade outros atores importantes no processo decisório, a fim de determinar se a decisão foi resultado da predominância da posição de um deles sobre a dos demais, ou se houve processo mais complexo, em que a decisão foi fruto da conjunção de posições e, portanto, diferente do que qualquer ator pretendia, inicialmente. 1.2 O TNP como componente do regime de não-proliferação de armas nucleares Os elementos essenciais para a existência de um regime de não-proliferação são, de acordo com Lamazière (1996), os seguintes: a) Uma norma de não-proliferação ou de proibição completa consagrada em um acordo internacional (como o TNP ou o Tratado de Tlatelolco); b) Um sistema de verificação do cumprimento da norma (AIEA, para o TNP; OPANAL e AIEA, para o Tlatelolco); c) Controles informais de supridores (ou cartéis, como o Nuclear Suppliers Group, o Austrália Group e o Missile Technology Control Regime); d) Mecanismos de enforcemente internos ou externos ao regime, como o recurso ao Conselho de Segurança da ONU. 30 Quanto ao posicionamento dos Estados em relação aos regimes, Keeley (1990, apud LAMAZIÈRE, 1996) propõe a seguinte classificação: a) Atores que concordam e cooperam voluntariamente com o regime (eventuais desavenças serão de cunho técnico ou sobre posições relativas no interior do regime); b) Os caronas, ou free riders, que desejam usufruir as vantagens do regime sem se comprometer com suas regras ou com os custos de adesão; c) Os membros rebeldes, que desafiam a ordem com base em discursos alternativos ou em redes alternativas de relações; d) Os completos outsiders. Utilizando essa classificação para os membros do TNP, no primeiro grupo estariam, de acordo com Lamazière (1996), Estados Unidos, ex-URSS, países ocidentais em geral e a maioria das nações não-nucleares. Não existiria, atualmente, nenhum país no grupo dos caronas. O terceiro grupo seria composto dos países que fazem parte, formalmente, do regime, mas não são vistos pelos demais como membros confiáveis, Irã, por exemplo. E no quarto grupo estariam as potências nucleares de facto, mas não de jure (Índia, Paquistão, Israel e Coréia do Norte). O Brasil estaria dentro do primeiro grupo mesmo antes de assinar o TNP, pois, segundo Lamazière (1996), o Tratado de Tlatelolco, o OPANAL e a ABACC fazem parte do regime de não- proliferação de armas nucleares, sendo aceitos, geralmente, como equivalentes funcionais daquele. 31 2 A construção do regime de não-proliferação de armas nucleares 4 2.1 Antecedentes A preocupação com os poderes destrutivos da tecnologia nuclear e com a imposição de limites à sua utilização tornou-se ponto central na agenda internacional do pós-Segunda Guerra, após a explosão das bombas de Hiroshima e Nagasaki. Estados Unidos, Inglaterra e Canadá, parceiros no projeto Manhattan, que resultou na primeira explosão nuclear, no Novo México, decidiram colocar o problema do controle da nova tecnologia sob os auspícios da ONU. Criou-se, pois, em 1946, a Comissão das Nações Unidas para Energia Atômica, que funcionou apenas até 1948, devido à falta de acordo entre Estados Unidos e União Soviética: os primeiros diziam que renunciariam às suas armas atômicas depois que todos os países cedessem seu material nuclear para controle internacional, os segundos exigiam que os EUA renunciassem às armas primeiro. Em 1946, foi redigido, nos Estados Unidos, o Relatório Acheson-Lilienthal, que fundamentaria a posição do país na Comissão da ONU. Com base nesse relatório, em meados daquele ano, Bernard Baruch, chefe da representação norte-americana na Comissão, apresentou a ela um plano com seu nome, o qual previa a criação de uma Autoridade Internacional para o Desenvolvimento Atômico (AIDA), para o controle das atividades nucleares de todos os países, além do conhecimento e domínio dos recursos mundiais de urânio e tório (OLIVEIRA, 1999). Os Estados que tivessem reservas de minerais radioativos em seu território deveriam informar a organização e colocá-las sob sua responsabilidade e guarda. O Plano Baruch foi enfaticamente 4 Parte das informações referentes ao histórico do regime de não-proliferação nuclear foi obtida no site: http://www.nti.org/h_learnmore/npttutorial/chapter01_02.html. Acessado em 20/02/2010. 32 rejeitado pela União Soviética, por conceder poderes supranacionais à Autoridade de controle, como a imposição de sanções aos países, não submetidas ao poder de veto dos membros do Conselho de Segurança. (GARCIA; MOTOYAMA, 1996). Stálin pretendia, desde as explosões no Japão, equiparar, o mais rápido possível, o arsenal nuclear soviético ao norte-americano, e percebeu o projeto como manobra dos EUA para assegurar o monopólio da tecnologia e dos armamentos nucleares, pois não previa a destruição dos arsenais existentes, apenas visava a evitar a produção de novas armas. Nesse mesmo ano foi aprovada, no Congresso norte-americano, a Lei MacMahon, primeira lei de energia atômica dos Estados Unidos, que garantia o monopólio estatal sobre os materiais físseis (GIROTTI, 1984) e proibia o intercâmbio nuclear para fins industriais com outros países, até que fossem estabelecidas salvaguardas internacionais para garantir que a energia não seria utilizada de forma não-pacífica (FELÍCIO, 1991 apud LAMAZIÈRE, 1996). Gardner (1995, apud LAMAZIÈRE, 1996) considera o Plano Baruch e a Lei MacMahon duas políticas opostas dos EUA em relação à não proliferação: a primeira mais idealista e internacionalista, considerada pelo autor apenas uma “manobra de propaganda”, e refutada pela URSS, e a segunda, que seria a política efetiva, mais realista e restritiva. Os Estados Unidos sugeriram diversos outros planos, com o objetivo de manter seu monopólio na área nuclear. Como afirmou Felício: “o único país que detinha a tecnologia nuclear ao término da Segunda Grande Guerra, procurou, por todos os meios, evitar a sua disseminação”. (1991 apud LAMAZIÈRE, 1996, p. 95). O fracasso dessas propostas ficou evidente, no entanto, quando, em 1949, para surpresa dos oficiais norte-americanos, a União Soviética realizou seu primeiro teste nuclear. Uma vez rompido o monopólio, logo outros países viriam a integrar o clube dos detentores de explosivos atômicos. Em 1952, foi a vez do Reino Unido. 33 A aquisição, pela União Soviética, da capacidade de produzir armas nucleares e o agravamento das tensões da Guerra Fria colocou em pauta novas questões estratégicas para os Estados Unidos. Além de evitar a disseminação das armas nucleares, visando a, ao menos, manter o oligopólio formado, o governo preocupava-se, agora, com a incipiente corrida armamentista, e temia a destruição irreversível de seu parque industrial, embora a Força Aérea confiasse em sua capacidade de prevenir eventual ataque soviético. Nesse clima de tensão, Eisenhower, o novo presidente dos Estados Unidos, propôs à Assembléia Geral das Nações Unidas, em dezembro de 1953, o programa Átomos para a Paz (Atoms for Peace), cujo principal objetivo era promover a cooperação na área nuclear. Com ele, os Estados Unidos comprometiam-se a compartilhar seus conhecimentos sobre o assunto com outros países desde que seus estoques de materiais físseis fossem administrados por um organismo internacional a ser criado. (MOTOYAMA, 2004). A referida cooperação foi efetivada, inicialmente, por meio de acordos bilaterais entre os Estados Unidos e seus aliados. Entre 1956 e 1959, foram firmados 40 acordos deste tipo, condicionados à aceitação de salvaguardas norte-americanas contra o uso militar da tecnologia nuclear.Concomitantemente, a União Soviética desenvolveu programa análogo, provendo tecnologia nuclear para nações de sua órbita de influência. Em 1958, foi criada a EURATOM, para facilitar os usos pacíficos da energia nuclear na Comunidade Européia. Os países industrialmente avançados não-nuclearmente armados fizeram alianças com Estados unidos ou União Soviética, as quais as colocavam sob o “guarda-chuva nuclear”, por meio da OTAN ou do Pacto de Varsóvia. 34 2.2 Principais elementos constituintes do regime 2.2.1 AIEA Embora o programa “Átomos para a Paz” tenha promovido, inicialmente, a cooperação nuclear bilateral, seu principal objetivo era criar uma Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) que coordenasse a redução ou eliminação do uso de material nuclear para fins militares e que direcionasse o material nuclear sob sua guarda para países interessados em utilizá-lo para fins pacíficos. Seriam criados mecanismos de segurança visando a evitar o desvio dos insumos para uso militar e a cooperação nuclear entre os países deveria ocorrer por intermediação da AIEA. Enquanto ela não era efetivamente criada, o controle dos insumos nucleares transferidos ocorria via acordos negociados bilateralmente. O Programa “Átomos para a Paz” previa, segundo Lamazière (1996), uma forma mais branda de controle do que o Plano Baruch, pois não exigia a aceitação incondicional de um regime internacional de salvaguardas. Em dezembro de 1954, a Assembléia Geral aprovou, por unanimidade, a criação da nova agência. A partir daí, tiveram início discussões para a elaboração de seu estatuto. Os soviéticos não concordavam com a possibilidade de disseminação horizontal da tecnologia nuclear, alertando que os programas, ainda que com fins pacíficos, seriam facilmente desviados para objetivos militares. Mesmo assim, a URSS tomou parte nas negociações da AIEA, em 1955. A preocupação soviética não era exclusiva: vários países passaram a temer a disseminação das armas nucleares. Por isso, concomitantemente às negociações do estatuto, foi discutida a questão das salvaguardas a serem incorporadas a ele. De acordo com o texto final, aprovado em 1957, a Agência teria dois objetivos principais: promover a utilização pacífica da tecnologia nuclear, por meio da compra e venda de materiais nucleares, e impedir que ela fosse desviada para fins 35 militares, por meio da aplicação de salvaguardas, ou seja, da fiscalização das atividades nucleares dos países. O estabelecimento da AIEA constituiu o fundamento institucional para a promoção dos usos pacíficos da energia nuclear e para a aplicação de salvaguardas para assegurar que a assistência militar não seria revertida para propósitos militares. A AIEA, no entanto, uma vez em funcionamento, não conservou muitas das competências para as quais havia sido designada. Era pouco requisitada para intermediar o processo de compra e venda de material nuclear, pois os países, principalmente os EUA, preferiam negociar bilateral e diretamente, não por meio da Agência, aplicando, também, salvaguardas negociadas bilateralmente. As salvaguardas da AIEA não eram consideradas suficientemente seguras e, ao negociar diretamente com os países receptores, podia-se escolher, por critérios políticos, econômicos e ideológicos, quais deles seriam beneficiados com material e tecnologia nuclear. (FISCHER, 1997). O tratamento superficial dado às salvaguardas, na primeira versão do acordo, se deve à falta de consenso entre os países ocidentais, a URSS e alguns países em desenvolvimento, que discordavam quanto às funções, objetivos e extensão apropriadas para as salvaguardas da AIEA. No início, portanto, discutiam-se salvaguardas ad hoc para cada caso específico de transferência de tecnologia. A conclusão de salvaguardas ad hoc para situações específicas consumiria muito tempo e causaria inúmeras controvérsias. Por isso, em 1959, o Secretariado da AIEA propôs um conjunto de princípios gerais de salvaguardas e um anteprojeto de regulamentos para a aplicação destas. Depois de muitas revisões e desacordos, foram aprovados, em 1961, os princípios e procedimentos para a aplicação de salvaguardas, constituindo o primeiro sistema de salvaguardas da AIEA, aplicável a reatores de menos de 100 MW. Ainda em 1961, foi aprovado, também, o Documento dos Inspetores, estabelecendo os procedimentos a serem seguidos na designação dos 36 funcionários e as regras que deveriam guiar sua conduta quando da realização das inspeções. A limitação das atividades dos inspetores foi resultado das hesitações dos Estados em permitir a penetração de agentes estrangeiros em seu território, além de que vários países eram excluídos da necessidade de se submeterem às inspeções, como a Europa, que podia, por acordo firmado anteriormente com os EUA, utilizar o sistema de salvaguardas da EURATOM, e os países nucleares da época (EUA, URSS, França e Inglaterra). Em 1962, as inspeções começaram, efetivamente. Em 1963, chegou-se ao consenso de que o primeiro sistema de salvaguardas deveria ser ampliado para cobrir a inspeção de reatores de qualquer tamanho. Alterando postura anterior, a URSS não só concordou com essa extensão, como se mostrou favorável a uma revisão geral do sistema de salvaguardas. Segundo Fischer (1997), essa mudança de postura se deve à melhora de relações com os EUA, após a Crise dos Mísseis de Cuba, à deterioração do relacionamento com a China, e, principalmente, à preocupação com o programa nuclear alemão, que, submetido a salvaguardas internacionais, seria menos ameaçador para Moscou. A extensão foi aprovada, em 1964, e foi criado um grupo de trabalho para realizar a revisão do sistema, executada no ano seguinte. Nos próximos quatro anos, o sistema de salvaguardas foi expandido consideravelmente, incluindo plantas de reprocessamento e de fabricação de combustível nuclear, quase sempre com aprovação unânime dos países. Durante a década de 1960, portanto, o aperfeiçoamento do sistema fez com que os EUA e URSS começassem a passar à agência a responsabilidade pela aplicação de salvaguardas a Estados receptores de sua assistência nuclear, antes aplicadas pelos seus respectivos governos. Houve certa relutância por parte dos países receptores, que preferiam os amigáveis inspetores norte-americanos, ou soviéticos, aos 37 desconhecidos oficiais da AIEA, mas, logo, aceitaram a decisão de Washington e Moscou. (FISCHER, 1997). Mais tarde, a AIEA tornar-se-ia a instituição por meio da qual o TNP verificaria os compromissos dos países não-nucleares. 2.2.2 Tratado de Proibição Parcial de Testes Nucleares (1963) Duas semanas após a apresentação do Plano Baruch, em 1946, os Estados Unidos lançaram uma bomba atômica no Atol de Bikini, no Oceano Pacífico, explosão seguida por outra, semanas mais tarde, também na água. Essas duas operações constituíram a Operação Crossroads, e foram os primeiros testes nucleares realizados em tempos de paz. Em 1951, tiveram início os testes continentais, com a Operação Ranger. Os testes se proliferavam exponencialmente, desenvolvendo-se outras tecnologias, como a da bomba de hidrogênio, baseada na fusão de núcleos, em contraposição à fissão. A primeira bomba deste tipo explodiu durante uma experiência feita pelos Estados Unidos em 1952, com potência 750 vezes superior à das primeiras bombas atômicas e suficiente para arrasar qualquer grande cidade. Em 1956, durante a campanha presidencial norte-americana, o candidato democrata, Adlai Stevenson, defendeu a conclusão de um acordo para banir os testes nucleares, mas a proposta não foi apoiada pela população, preocupadacom a instabilidade externa do país. Stevenson perdeu as eleições para Eisenhower, que se recusava a cessar os testes sem um acordo geral de desarmamento. Dois anos depois, em 1958, o próprio Eisenhower declarou uma moratória voluntária dos testes, embora esta tenha começado, efetivamente, apenas em 31 de outubro daquele ano, quando todos os testes programados já haviam sido realizados. A moratória durou até 1961, 38 quando a União Soviética, sob a presidência de Nikita Krushchev, declarou que iniciaria testes nucleares, e foi seguida, duas semanas depois, pelos EUA. No mesmo ano, Moscow explodiria sua primeira bomba de hidrogênio. Em 1962, a Crise dos Mísseis de Cuba e a possibilidade de uma Guerra nuclear iminente levaram Estados Unidos e União Soviética, além do Reino Unido, a assinarem o Limited Test Ban Treaty (Tratado de Proibição Parcial de Testes Nucleares), proibindo testes na atmosfera, na água e no espaço. Apenas os testes subterrâneos continuavam permitidos. Até então, os EUA haviam realizado mais de 300 testes. (CANTELON, WILLIAMS, 1984). Para Lamazière (1996), a exclusão dos testes subterrâneos foi uma maneira de inibir o desenvolvimento nuclear apenas dos Estados que ainda engatinhavam na área. Ele afirma que a criação desde Tratado e do TNP foram os dois momentos fundamentais para a formação do regime de não-proliferação de armas nucleares. 2.2.3 Tratado de Tlatelolco e outras ZLANs As Zonas Livres de Armas Nucleares também fazem parte do regime de não- proliferação. Em 1967, os Estados Latino-americanos firmaram o Tratado de Tlatelolco – Tratado para Proscrição de Armas Nucleares na América Latina -, estabelecendo uma ZLAN no subcontinente. As discussões para elaboração de seu texto ocorreram paralelamente às do TNP, sendo o Tlatelolco considerado a expressão regional daquele, apesar dos protestos de Brasil e Argentina, que insistiam no caráter discriminatório do TNP, alegadamente formulado para atender aos interesses das duas superpotências, em contraposição ao Tratado de Tlatelolco, que seria tentativa legítima de configurar uma Zona Livre de Armas Nucleares na América Latina. (WROBEL, 1993). 39 O texto final do Tratado ficou pronto em 28 de dezembro de 1966 e foi ratificado pelo Brasil em 29 de janeiro de 1968. Devido à não efetivação de exigências impostas pelo artigo 28, no entanto, Brasil e Chile não se tornaram membros efetivos, o que ocorreria assim que as condições fossem cumpridas. Dentre tais condições estavam inclusas a assinatura e ratificação do Tratado por todos os países da região, inclusive Cuba, e a assinatura e ratificação do Protocolo II por todas as potências nucleares, pelo qual elas se comprometeriam, entre outras coisas, a não empregar armas nucleares contra os Estados-membros do Tratado de Tlatelolco. As exigências não foram cumpridas, mas os dois países se tornariam membros efetivos em 1994, quando assinaram a dispensa do referido artigo. O Pacífico Sul também é considerado Zona Livre de Armas Nucleares pelo Tratado de Rarotonga, de 1986. Em 1995, foi a vez do Sudeste Asiático se tornar uma ZLAN, pelo Tratado de Bangkok. No ano seguinte, o Tratado de Pelindaba declara a África uma Zona Livre de Armas Nucleares. 2.2.4 O TNP Enquanto a AIEA ainda dava seus primeiros passos, entre 1958 e 1961, surgiam propostas na ONU apoiando a negociação de um tratado que evitaria a disseminação de armas nucleares. Essa idéia adquiriu maior urgência em fevereiro de 1960, após a França ter realizado seu primeiro teste nuclear, na Argélia. Receava-se que outros Estados a seguissem, pois, na época, vários países mantinham ativas pesquisas sobre tecnologias nucleares, incluindo a Alemanha, Israel, Índia, Itália, Japão, Suécia e Suíça. As superpotências compartilhavam o 40 interesse de impedir que outros países avançados industrialmente, mas principalmente a Alemanha Ocidental, desenvolvessem armas nucleares. Foram criados, então, na ONU, comitês multilaterais para negociar o desarmamento: o primeiro, em 1960, com 10 nações, e o segundo e mais importante, em 1962, composto por 18 nações. O Comitê de Desarmamento das 18 nações (ENDC – Eighteen Nation Disarmament Committee), como foi chamado, funcionava em Genebra e tinha cinco membros representando os países do bloco ocidental, cinco representando o mundo socialista, e oito países neutros ou não- alinhados, entre eles o Brasil. O ocidente tinha, na verdade, apenas quatro representantes, pois a França nunca compareceu às reuniões. A própria composição do Comitê prenunciava inúmeras controvérsias, dadas as divergências ideológicas e políticas. Estas realmente existiram, mas foram sendo dissipadas logo nos primeiros anos, com entendimentos cada vez mais abrangentes entre Estados Unidos e União Soviética, em conformidade com o encaminhamento da distensão. Em 1965, após a explosão realizada pela China, em outubro de 1964, ambos os países concordaram em que o objetivo principal do Comitê era elaborar um Tratado que evitasse a proliferação das armas nucleares. Neste ano, as Nações Unidas adotaram a Resolução 2028, contendo a base conceitual para o TNP, destacando cinco princípios que deveriam guiar a elaboração do tratado. São eles5: 1) Tanto os países nucleares quanto os não-nucleares devem ser obrigados a não se engajarem na proliferação de armas nucleares; 2) Deve haver um equilíbrio apropriado entre as obrigações assumidas pelos países nucleares e pelos não-nucleares; 5 Disponível em: http://daccessdds.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/217/91/IMG/NR021791.pdf?OpenElement. Acesso em 05/02/2010. 41 3) O Tratado deve constituir um passo em direção ao desarmamento nuclear, bem como em direção ao desarmamento geral e completo; 4) Deve haver provisões práticas para assegurar a efetividade do tratado; e 5) O estabelecimento de Zonas Livres de Armas Nucleares (ZLAN’s) não deve ser cerceado pelo tratado. Foram intensas as discussões em Genebra, nos anos seguintes, sobre o conteúdo do futuro Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP). A maior parte das divergências e discordâncias foram levantadas, para surpresa geral, pelo grupo dos países mediadores, incluídos no Comitê, justamente, para mediar as consideradas inevitáveis desavenças entre os líderes dos dois blocos rivais. Percebendo a proximidade de posições de ambos, as nações neutras, sobretudo as mais industrializadas, preocuparam-se com as conseqüências negativas que o Tratado em elaboração poderia ocasionar para suas possibilidades de desenvolvimento. Diante da concordância entre EUA e URSS de que os Estados não detentores de armas nucleares signatários do Tratado deveriam concluir Acordo de Salvaguardas com a AIEA, aquelas nações queriam garantias formais de que o tratado não impediria o desenvolvimento econômico, a cooperação e o comércio internacional, nem bloquearia o acesso à tecnologia nuclear por meio do enriquecimento e reprocessamento de urânio. Insistiram em incluir responsabilidades, também, para as nações detentoras de arsenais atômicos, exigindo que elas aceitassem reduzi-los ou, mesmo, eliminá-los. Reivindicavam, ainda, a elaboração de cláusula que garantisse sua segurança futura contra eventuais ameaças por parte das nações nucleares, uma vez que, abdicando do direito de possuir armas atômicas, eles não teriam poder dissuasório. As exigências dos membros não nucleares do Comitê foram praticamente ignoradas. O resultado dos trabalhos foi um texto conjunto dos Estados Unidos e União Soviética, 42 submetido à AssembléiaGeral das Nações Unidas, em 1968, e, logo em seguida, aprovado, entrando em vigor em 1970. Deixaremos as discussões mais específicas sobre o conteúdo do TNP para o tópico 3. 2.2.5 Outros mecanismos Conforme mencionado anteriormente, fazem parte do regime de não-proliferação de armas nucleares os mecanismos informais de controle que foram criados, como o Comitê Zangger, regime multilateral de controle de exportações, constituído em 1970 por Estados exportadores e produtores de bens e tecnologias nucleares, para assegurar que as exportações aos estados não-membros do TNP não fossem desviadas para fins militares (FELÍCIO, 1994); o London Supplier Group (1975), outro grupo de exportadores, criado em resposta ao teste nuclear da Índia, em 1974; e o Missile Technology Control Regime (MTCR), de 1987, que é uma associação informal e voluntária de países, com o objetivo de evitar a proliferação de armas de destruição em massa por meio da obediência a diretrizes comuns para exportação de tecnologias sensíveis relacionadas com mísseis. (FELÍCIO, 1994). Em 1949, foi criado um Comitê de Coordenação de Controles Multilaterais (CoCom), por iniciativa dos EUA, para restringir o acesso por parte da União Soviética e de seus aliados a bens e tecnologias sensíveis de utilização dual. Lamazière (1996) afirma que este Comitê tem sido, após o fim da Guerra Fria, progressivamente reorientado em um sentido Norte-Sul. 3 TNP: Conteúdo e atualização 43 Em 1 de julho de 1968, o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares foi aberto a assinaturas, e 62 nações o assinaram. Entrou em vigor em 5 de março de 1970, quando recebeu o número de ratificações necessárias, com 43 Estados-parte, sendo 40 não-nucleares e 3 nucleares (Estados unidos, União Soviética e Inglaterra). Os dois objetivos declarados do TNP são assegurar acesso justo à tecnologia nuclear pacífica sob salvaguardas internacionais (auditorias e inspeções) e prevenir a disseminação de armas nucleares a Estados que não as possuam, ou seja, restringir a propriedade de armas nucleares às cinco potências que explodiram artefato nuclear até 1 de janeiro de 1967, evitando que outros países as obtenham. Para isso, ele estabelece duas categorias de países: os nucleares, aqueles que explodiram artefato nuclear antes daquela data, ou seja, Estados Unidos, União Soviética, Inglaterra, França e China, e os não-nucleares, grupo composto por todas as demais nações. Conforme disposto em seu artigo IX, parágrafo 3º: “Para os propósitos deste Tratado, um Estado nuclearmente armado é aquele que produziu e explodiu uma arma nuclear ou outro artefato nuclear explosivo antes de 1 de janeiro de 1967.”6 França e China, embora beneficiadas pelo Tratado com o status de países nucleares, não o assinaram em 1968, mas a França prometeu comportar-se como se fosse membro. As obrigações previstas para as nações não-nucleares são bastante abrangentes. O tratado proíbe, além da posse ou fabricação de armas, a explosão de qualquer artefato nuclear, incluindo, portanto, aqueles destinados a fins pacíficos. Essa cláusula originou inúmeras controvérsias e oposições por parte das nações não-nucleares. A dualidade da tecnologia era utilizada para justificar a proibição extensiva, pois a mesma tecnologia utilizada para fins pacíficos podia ser aproveitada com objetivos militares. Por exigência das nações não-nucleares, sobretudo de Brasil e Índia, foi incluída cláusula em que os países permitidos a empreender 6 Disponível em: http://www.iaea.org/Publications/Documents/Infcircs/Others/infcirc140.pdf. Acesso em 15/03/2010. 44 explosões para usos civis se comprometiam a compartilhar seus benefícios com os que não eram. A disposição permaneceu, no entanto, letra morta. As potências não-nucleares devem, ainda, aceitar as salvaguardas da AIEA, concluindo com ela acordos bilaterais para sua implementação, o que significa que elas se comprometem a submeter todos os materiais e atividades nucleares, em seu território ou sob seu controle, às inspeções da Agência, que verificará se o país não está desviando suas atividades para a fabricação de armas ou de outros instrumentos explosivos. Também aceitam não fornecer insumos ou equipamentos nucleares para qualquer Estado não- nuclear, membro, ou não, do TNP, a menos que tais insumos e equipamentos estejam sujeitos às salvaguardas da AIEA. Quanto às potências nucleares, elas apenas se comprometem a continuar negociando, com base na boa fé, visando a encontrar medidas efetivas para acabar com a corrida armamentista e para elaborar um tratado de desarmamento geral e completo, num futuro próximo. Ou seja, não há obrigação alguma para elas. Os dispositivos não têm efeito juridicamente vinculante. A única cláusula obrigatória é aquela que as proíbe de transferirem armas nucleares aos países não- nucleares, ou o controle sobre elas, bem como de ajudá-los a fabricá-las, adquiri-las ou controlá- las. Essas restrições não são aplicadas às relações entre os países nucleares, que podem transferir tais armas entre si, livremente. Devido a essas iniqüidades e às dificuldades próprias aos regimes de desarmamento e segurança, a adesão ao tratado foi gradual e, no decorrer dos anos, descobriam-se Estados signatários burlando suas regras. Durante as décadas de 1970 e 1980, vários países não-membros do Tratado desenvolveram programas nucleares secretos, como a Coréia do Sul, em 1970, a Índia que, em 1974, detonou um artefato nuclear, Taiwan, África do Sul e Paquistão. 45 Em 1975, conforme previsto no artigo VIII do Tratado, ocorreu, em Genebra, uma Conferência de Revisão para assegurar que seus propósitos estavam sendo realizados. O TNP contava, então, com 91 membros. Os assuntos a serem tratados eram os objetivos e a implementação do Tratado, a ampliação das adesões e a corrida armamentista entre EUA e URSS. A insatisfação com a continuação desta foi a questão mais discutida. Decidiu-se que ocorreriam Conferências de Revisão a cada cinco anos. Houve mais cinco adesões, neste ano, incluindo a Líbia, a Alemanha Ocidental e a Coréia do Sul, que, sob pressão dos Estados Unidos, põe fim em seu programa de armamento nuclear e adere ao Tratado. Em 1982, acredita-se que o Iraque (membro do TNP) mantém programa clandestino, em violação ao Tratado. Apesar dos contratempos, o Tratado já conta, neste ano, com 132 membros, incluindo a Coréia do Norte, que o ratifica em 1985, embora atrase a implementação das salvaguardas. Na década de 1990, o fim da Guerra Fria e o desmantelamento da União Soviética, em dezembro de 1991, provocam grandes mudanças no cenário geopolítico mundial e, conseqüentemente, na postura dos Estados quanto ao regime de não-proliferação. Em 1990, a URSS anuncia moratória de testes nucleares, o que os EUA também fariam, dois anos depois. Em 1991, A África do Sul elimina seu arsenal de armas nucleares e adere ao TNP como membro não- nuclear, submetendo todas as suas atividades nucleares a inspeções abrangentes da AIEA. A Argentina e o Brasil renunciam formalmente às armas nucleares e acordam inspeções mútuas sob a ABACC – Agência Brasileiro Argentina de Contabilidade e Controle. O Reino Unido realiza seu último teste nuclear. Em 1992, a AIEA encontra evidências de um programa secreto de armas nucleares no Iraque, que violava suas obrigações sob o TNP, o que a leva a reafirmar sua autoridade para 46 realizar inspeções especiais em lugares suspeitos não-declarados nos Estados não-nucleares. Essa posição foi oficializada em 1997, quando foi adotado um protocolo modelo que,quando ratificado por um Estado não-nuclear, permitiria a ampliação da autoridade de inspeção pela agência naquele Estado. Conhecido como “Protocolo Adicional” (INFCIRC/540)7, ele permite que a AIEA realize inspeções em qualquer lugar do país, mesmo que não seja declarado à Agência e que não haja envolvimento de material nuclear; que requeira informações mais detalhadas sobre o programa; que utilize tecnologias de verificação melhoradas (tais como amostragens ambientais), e que exija inspeções mais extensivas sobre as instalações nucleares declaradas. Ainda em 1992, depois de um atraso de cinco anos, a Coréia do Norte permite inspeções da AIEA, sob o TNP. Os inspetores detectam produção não-declarada de plutônio e requerem permissão para inspeções especiais, negada por Pyongyang. China, França e Rússia, como sucessora da URSS, aderem ao TNP. Em 1993, a Bielo-Rússia torna-se membro do Tratado, renunciando ao seu arsenal, herdado da URSS. Em 1994, a Ucrânia e o Cazaquistão, também ex-repúblicas soviéticas, fazem o mesmo. Em 1995, também de acordo com cláusula estipulada no texto de 1968, foi realizada Conferência entre os Estados-membros para decidir se o Tratado seria válido por mais um período limitado, ou se seria prorrogado indefinidamente. A última alternativa prevaleceu. A Argentina adere ao Tratado ainda neste ano. São 178 membros. Em 1996, China e França conduzem seu último teste nuclear. A inteligência norte- americana estima que a Coréia do Norte possua uma ou duas armas nucleares, violando seus compromissos assumidos sob o TNP. 7 Disponível em http://www.iaea.org/Publications/Documents/Infcircs/1997/infcirc540c.pdf . Acesso em 15/03/2010. 47 Índia e Paquistão realizam testes nucleares em 1998. O Tratado conta, então, com 186 membros. Permanecem de fora Brasil, Índia, Paquistão, Israel e Cuba. O Brasil o ratifica, então, com o propósito oficialmente declarado de resgatar as hipotecas do passado (LAMPRÉIA, 1998) por meio da adesão aos regimes internacionais e de conseguir para o país maior participação na elaboração das regras de governança global. Cuba tornar-se-ia o próximo membro em novembro de 2002. Em 10 de janeiro de 2003, a Coréia do Norte declara sua retirada do Tratado, efetivada após 3 meses da comunicação, em 10 de abril. O Timor Leste aderiu em 5 de maio de 2003. Em janeiro de 2003, o Irã admite, pela primeira vez, estar construindo duas plantas de enriquecimento de combustível e uma de produção de água pesada. A partir daí, aumenta a preocupação dos líderes mundiais em relação ao programa nuclear do país. Há constantes avanços e retrocessos na política nuclear iraniana e nas declarações do governo, o que reforça as desconfianças internacionais e o receio de que o Irã esteja desenvolvendo armas atômicas, o que poderia agravar sobremaneira os conflitos regionais do Oriente Médio, palco de permanentes tensões. Devido às atitudes contraditórias, embora tenha assinado o Protocolo Adicional ao seu Acordo de Salvaguardas em dezembro de 2003, o Irã permanece sendo alvo de pressões internacionais e motivo da adoção de diversas resoluções, tanto pelo Conselho de Governadores da AIEA quanto pela ONU, requerendo que Teerã forneça mais informações sobre suas atividades nucleares e que permita inspeções ainda mais abrangentes, além de suspender seu programa de enriquecimento de urânio. Assim como o Irã, o programa nuclear da Coréia do Norte, que se retirou do TNP em 2003, também preocupa a comunidade internacional. Em 2005, ela condicionou o desmantelamento de seu programa nuclear à recepção de um reator nuclear de água leve, o que os 48 Estados Unidos têm relutado a aceitar. Em outubro de 2006, ela testa seu primeiro artefato nuclear. Após os atentados de setembro de 2001, os EUA, sob o governo de George W. Bush, retroagiram em muitos pontos em sua política nuclear. Em 2002, eles se retiram do Tratado Anti- Mísseis Balísticos (ABM- Anti-Ballistic Missile). No ano seguinte, o Congresso autoriza a condução de pesquisas para o desenvolvimento de novas armas nucleares. Em 2005, Bush e o Primeiro Ministro da Índia – país não signatário do TNP - anunciam nova aliança estratégica, que inclui a expansão do comércio de tecnologia nuclear para usos civis, mostrando que a restrição de acesso a tecnologias sensíveis como sanção para não-membros do TNP só é efetivada quando é do interesse e quando faz parte dos cálculos estratégicos dos exportadores. Os dois países só chegaram a um consenso quanto aos termos do acordo em julho de 2007, e ele ainda precisa de aprovação do Congresso norte-americano. Estabelece que os Estados Unidos ajudariam a Índia a encontrar suprimentos de combustível nuclear mesmo se ao país testasse outra arma atômica. Críticos denunciam que isso concede à Índia um melhor acordo do que aos países signatários do TNP. 4 Considerações Finais O TNP é o acordo de desarmamento ou de controle de armas mais universal da história, pois conta com o maior número de adesões já verificado. Em abril de 2004, apenas quatro Estados estavam fora do Tratado: Índia, Israel, Paquistão e Coréia do Norte, que se retirou do Tratado no ano anterior. Israel, Índia e Paquistão, por serem reconhecidos como nuclearmente armados de fato, mas não de direito, segundo os critérios estabelecidos pelo TNP, se a ele 49 aderissem teriam que eliminar todo seu arsenal de armas nucleares e que submeterem todas as suas atividades nucleares a inspeções abrangentes da AIEA. Lamazière (1996) lembra que o regime de não-proliferação vinha fundamentando sua legitimidade no argumento da eficácia, uma vez que, no fim da década de 1950, previa-se que, pelos meados da década de 1970, haveria entre 15 e 20 estados nuclearmente armados, contra os nove hoje existentes (os cinco reconhecidos pelo TNP, mais Índia, Paquistão, Israel e Coréia do Norte, considerados países nucleares de facto). Apologistas do regime argumentavam, ainda, que a mera não-assunção pública do status nuclear tinha dois efeitos muito positivos: o desincentivo a uma corrida nuclear entre vizinhos ou globalmente, e a modéstia dos arsenais dos eventuais novos possuidores, impossibilitados de testar armamentos ou implementar instalações ostensivas. Acompanhar o desenvolvimento do regime de não-proliferação e do TNP, em particular, nos permite reforçar a validade das hipóteses de Lamazière (1996) sobre as especificidades dos regimes de segurança. Muitos países mantiveram-se fora do regime durante longo tempo, mesmo reconhecendo os perigos da energia nuclear quando utilizada para fins bélicos. Não foram pouco freqüentes os descumprimentos (trapaças) das cláusulas do Tratado por países membros, mesmo quando não assumidas, e as suspeitas quanto ao descumprimento são constantes. A grande adesão ao TNP após o fim da Guerra Fria, no entanto, se pensarmos em uma perspectiva racionalista e estado-cêntrica, talvez seja indicativo de que os Estados periféricos deixaram de dar importância aos elementos estruturalistas das relações internacionais, por acreditarem que, em um mundo em que predomine o realismo político, teriam poucas chances de ascender na escala de poder e que há maior probabilidade de obterem ganhos concretos em um mundo mais idealista, “governado” por instituições globais e regulado por 50 normas elaboradas em foros multilaterais e, por isso, apostaram nessa alternativa que, há que se admitir, no imediato pós-Guerra Fria deve ter parecido bem factível e atraente. Teoricamente, o Tratado oferece aos Estados não-nucleares, em troca da renúncia ao desenvolvimento
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