Baixe o app para aproveitar ainda mais
Esta é uma pré-visualização de arquivo. Entre para ver o arquivo original
1 Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix Apostila de História e Teologia da Unidade Cristã Prof. Ms. Luiz Felipe Xavier 2016 2 2 1. Liberalismo Teológico Historicamente falando, o “liberalismo teológico” refere-se a um movimento específico do protestantismo que dominou a teologia acadêmica entre o final do século XIX e início do século XX. Surgiu primeiramente na Alemanha entre os alunos e seguidores de Schleiermacher e Hegel, e encontrou sua forma de maior influência na escola de Albrecht Ritschl. Três pensadores se destacam como os mais representativos da essência da teologia liberal. São eles: 1) Albrecht Ritschl; 2) Adolf Harnack; e 3) Walter Rauschenbusch. Os dois últimos são compreendidos de forma mais apropriada como discípulos de Ritschl. Mesmo assim, eles deram novos rumos aos preceitos liberais. Características comuns do movimento chamado de teologia liberal clássica: 1) Assim como Schleiermacher, os liberais estavam decididos a recontruir a fé cristã à luz do conhecimento moderno. Para eles, certos desenvolvimentos culturais desde o Iluminismo não podiam ser ignorados pela teologia cristã, mas deveriam ser assimilados de forma positiva. 2) A teologia liberal enfatizava a liberdade que o pensador cristão possuía, como indivíduo, de criticar e recontruir crenças tradicionais. Isso implicava uma rejeição da autoridade da tradição ou da hierarquia da igreja e do controle exercido por elas sobre a teologia. 3) A teologia liberal concentrava-se na dimensão prática ou ética do Cristianismo. Ritschl e seus seguidores, por exemplo, tinham a tendência de evitar aquilo que consideravam especulação vazia e tentavam moralizar a doutrina centrando todo o discurso teológico em torno do conceito de reino de Deus. 4) A maioria dos teólogos liberais procurava basear a teologia em alguma outra fundação que não fosse a autoridade absoluta da Bíblia. Segundo eles, o dogma tradicional da inspiração sobrenatural das Escrituras 3 havia sido irremediavelmente enfraquecido pela pesquisa histórico- crítica. Consideravam não apenas as tradições da igreja, mas também grande parte da própria Bíblia como a “palha do milho”, que esconde dentro de si os “grãos” preciosos da verdade imutável. Isso não quer dizer que os teólogos liberais desprezavam a Bíblia ou a consideravam sem valor. Na verdade, eles procuravam dentro dela o “evangelho”, ou seja, o cerne e o referencial eterno da verdade que não podia ser corroído pelos ácidos do conhecimento científico e filosófico moderno. A tarefa da teologia era identificar o grão, a “essência do Cristianismo”, e separar claramente toda a palha de idéias culturais e expressões que o envolviam. Para a grande maioria dos teólogos liberais, essa palha incluía os milagres, os seres sobrenaturais como anjos e demônios e os acontecimentos apocalípticos. 5) Talvez o fundamento inconsciente de todas as demais características seja o movimento contínuo da teologia liberal em direção à imanência divina às custas da transcendência. Antes do Iluminismo, os teólogos enfatizavam a separação entre aquilo que era radicalmente sagrado – o Deus transcendente – e os seres humanos finitos e pecadores, e viam a Encarnação como o acontecimento dramático em que Deus havia criado uma ponte sobre esse abismo. Começando no Iluminismo e encontrando seu ápice no liberalismo, os teólogos passaram a construir seus pensamentos sobre a ligação entre o divino e o humano manifesta, por exemplo, nas capacidades racionais, intuitivas ou morais. Conseqüentemente, Jesus era visto como um ser humano exemplar e não como o Cristo interventor. Em síntese, o liberalismo teológico pode ser caracterizado da seguinte maneira: 1) negação da divindade de Cristo; 2) idéia de que Deus é achado no andar de baixo – imanência; 3) ênfase na ética; 4) soteriologia universalista; 5) visão otimista do homem e da sociedade; 6) busca de outras fontes do conhecimento de Deus. 4 2. Fundamentalismo Teológico No início do século XX, os cristãos ortodoxos pareciam incapazes de enfrentar o dilúvio de novas idéias, tais como a alta crítica alemã, o evolucionismo darwinista, a psicologia freudiana, o socialismo marxista, o niilismo de Nietzsche e o naturalismo da nova ciência. Todas essas coisas subvertiam a confiança na infalibilidade da Bíblia e na existência daquilo que é sobrenatural. Além disso, o banho de sangue produzido pela Primeira Guerra Mundial esmagou o conceito otimista, pós-milenista, de introduzir o reino de Deus imediatamente depois de se vencer o domínio dos males sociais e, de se cumprir a Grande Comissão de levar o evangelho a todas as partes do globo terrestre. Da luta contra o liberalismo teológico e o evangelho social (na Grã-Bretanha e na América do Norte) surgiu um fundamentalismo. As duas fases do fundamentalismo teológico O fundamentalismo teológico foi um movimento situado na história. Esse movimento pode ser dividido em duas fases: Primeira fase: Precursores: 1) Avivamento de Moody (1837 – 1899); 2) Universidade de Princeton (1812 – 1921); 3) Teólogos importantes: Alexander Archibald; Charles Hodge; A. A. Hodge; e Bejamim Worfield. Em 1910, acontece a publicação de uma série chamada “The Fundamentals”. Essa série saiu em 12 volumes que foram distribuídos, gratuitamente, nos Estados Unidos, Canadá e Inglaterra. Os cinco fundamentos eram: 1) os milagres; 2) o nascimento virginal; 3) a morte expiatória; 4) a ressurreição de Cristo; e 5) a autoridade das Escrituras. Segunda fase: Posteriormente, aparecem mais 18 volumes da série “The Fundamentals” (variação, mais ou menos 20 volumes). Esses volumes expressam uma postura conservadora relacionada, por exemplo, à cristologia e à Bíblia. 5 O líder do movimento era W. B. Riley. Em 1919, ele declara que o dispensacionalismo é um dos fundamentos e o movimento começa a trincar. Sem dúvida alguma, a inserção do dispensacionalismo foi a principal característica da segunda fase. Em 1920, J. Manchen (presbiteriano de Princeton) assume o movimento. Em 1923, ele publica o livro: Cristianismo e Liberalismo. Em 1926 acontece um racha em Princeton. Características do fundamentalismo teológico: 1) Defesa da Bíblia e das doutrinas clássicas (a princípio); 2) Hermenêutica literalista (ou seja, as palavras ditas em uma determinada época são interpretadas hoje com o sentido atual das mesmas); 3) Conservadorismo na ética e costumes; Obs. Essas três características são típicas do início do movimento. O fundamentalismo teológico trazido para o Brasil foi marcado também pelas características que seguem. 4) Dispensacionalismo; 5) Defesa do criacionismo FIAT (instantâneo); 6) Postura separatista; 7) Crítica ao “Evangelho Social”; 8) Rejeição da cultura em geral (arte, teatro, etc.) 9) Educação conservadora (domiciliar); 10) Anti-comunismo. Obs.: Hoje, experimentamos um neo-fundamentalismo. Para melhor compreendê- lo: GOUVÊA, Ricardo Quadros. Piedade Pervertida. São Paulo: Fonte Editorial, 2012. 6 3. Movimento Evangelical Embora o evangelicalismo seja geralmente considerado um fenômeno contemporâneo, o espírito evangélico sempre se manifestou no decurso da história eclesiástica. Na época da Reforma, o nome “evangélico” era dado aos luteranos que procuravam reorientar o cristianismo de volta ao evangelho e renovar a igreja com base na palavra autorizada de Deus. Pouco tempo depois, a palavra “evangélico” veio a ser aplicada coletivamente aos grupos luteranos e reformados na Alemanha. As congregações que pertenciam a igreja unida da Prússia (fundada em 1817) também usavam a palavra, e na Alemanha atual “evangélico” (evangelisch) é sinônimo de protestante. Em 1864, a Aliança Evangélica foi formada em Londres para unir os cristãos (mas não as igrejas nem as denominações em si) na proclamação da liberdade religiosa, das missões e outros interesses em comum. Alianças nacionais foram formadas na Alemanha, Estados Unidos e em muitos outros países. Em 1951, aquela organização internacional foi substituída pela recém- formada World Evangelical Fellowship (Aliança Evangélica Mundial, 1923). Quando os fundamentalistas ficaram cada vez mais sectários e rígidos, os protestantes conservadores começaram a se separar do movimento, mas permaneceram teologicamente ortodoxos. Várias questões distinguiam os protestantes conservadores que queriam ser chamados de evangélicos dos fundamentalistas. As áreas de mútuo acordo também eram relevantes. 1) Tanto os fundamentalistas quanto os novos evangélicos enfatizavam a inspiração sobrenatural da Bíblia e as conquistas doutrinárias da igreja cristã primitiva, como o Credo de Nicéia e a ortodoxia protestante. 2) Os dois movimentos intimamente relacionados enfatizavam a piedade na conversão como uma marca do cristianismo autêntico e rejeitavam a regeneração batismal e o universalismo. 3) Os novos evangélicos rejeitavam o que consideravam um espírito de dissensão dos fundamentalistas quanto a questões doutrinárias e morais relativamente secundárias e queriam desenvolver e nutrir uma coalizão mais ampla do 7 cristianismo protestante conservador ligado à conversão. 4) Para eles, a inspiração bíblica implicava na infalibilidade das Escrituras, mas não exatamente na exatidão técnica absoluta de todos os pormenores registrados na literatura bíblica. 5) Também não exigia uma hermenêutica literalista, mormente no tocante à origem (criacionismo FIAT) e fim dos tempos (dispensacionalismo). 6) Os novos evangélicos afirmavam Deus como criador de tudo (creatio ex nehilo) e a segunda vinda de Jesus Cristo no futuro, mas permitiam diferentes interpretações dos pormenores dessas doutrinas. Pode-se dizer que depois da Segunda Guerra Mundial, houve uma reviravolta dramática. Os empreendimentos missionários no estrangeiro, os institutos e faculdades bíblicos, os trabalhos entre os estudantes universitários e os ministérios através do rádio e da literatura floresceram, e as campanhas evangelísticas do então jovem Billy Graham tiveram um impacto global. Nos Estados Unidos, a fundação da Associação Nacional dos Evangélicos (1942), o Seminário Teológico Fuller (1947) e a revista Christianity Today (1965) foram importantes expressões do “novo evangelicalismo”, um termo criado por Harold J. Ockenga em 1947. As principais críticas de Ockenga ao fundamentalismo teológico são: 1) Atitude errada: achar que só fundamentalista é cristão; 2) Método errado: propor a separação do mundo; 3) Resultados errados: não deteve o liberalismo. Carl F. H. Henry insistiu em que os fundamentalistas eram excessivamente antimundanistas, anti-intelectualistas e indispostos a aplicar sua fé à cultura e à vida social. No fim da década de 50, surge a Associação Billy Graham. Ela foi um importante catalisador evangelical, especialmente quando convocou o Congresso Mundial de Evangelização (Berlim, 1966). 8 Concluindo esta primeira parte, o movimento evangelical é a conjunção dos esforços de evangelicais para levar adiante suas propostas. A principal instância de articulação é a Aliança Evangélica Mundial (AEM), fundada em 1923. A AEM exerceu grande influência nos congressos latino-americanos. 9 4. A Verdade do Evangelho STOTT, John R. W. A Verdade do Evangelho: Um Apelo à Unidade. Curitiba: ABU, 2000. Prefácio Dois motivos conscientes: 1) Tristeza pela tendência evangélica à fragmentação; 2) Desejo de deixar às gerações posteriores um legado espiritual, um testemunho de fé. 1. Introdução: As verdades essenciais do evangelho 1.1. Três refutações – 1) A fé evangélica não é uma inovação recente; 2) A fé evangélica não é um desvio do cristianismo ortodoxo; 3) A fé evangélica não é sinônimo de fundamentalismo. 1.2. Fundamentalismo e evangelicalismo – 1) Quanto ao pensamento humano: Fundamentalistas (F) = anti-intelectualismo, Evangelicais (E) = Toda verdade é verdade de Deus; 2) Quanto à natureza da Bíblia: F= Literalismo excessivo, E= Embora acreditem que tudo que a Bíblia afirma é verdade, ressaltam que parte do que ela afirma é verdade figurativa ou poética; 3) Quanto à inspiração bíblica: F= Ditada por Deus, E= dupla autoria da Escritura; 4) Quanto à interpretação bíblica: F= Aplicar o texto diretamente a si mesmo como se este tivesse sido escrito primariamente para eles, E= Tentam fazer a transposição cultural; 5) Quanto ao movimento ecumênico: F= Rejeição cerrada, acrítica e feroz, E= Tentam agir com discernimento; 6) Quanto à igreja: F= Eclesiologia separatista, E= Acreditam que neste mundo não se pode atingir a pureza perfeita; 7) Quanto ao mundo: F= Tendem a assimilar acriticamente os valores e parâmetros deste (vide teologia da prosperidade); e então, em outras ocasiões, guardam distância deles, por medo de se contaminar, E= Procuram manter em mente a exortação bíblica a não nos conformarmos com este mundo e esforçam-se ao máximo para obedecer ao chamado de Jesus para impregnarmos este 10 mundo sendo sal e luz; 8) Quanto à questão da raça: F= Mito da superioridade branca e defender a segregação racial, E= Igualdade racial; 9) Quanto à missão cristã: F= “Missão” e “Evangelização” são sinônimos e a vocação da igreja consiste tão somente em proclamar o evangelho, E= Mesmo dando prioridade à evangelização, acham impossível dissociá-la da responsabilidade social; 10) Quanto à esperança cristã: F= Tendem a criar dogmas sobre o futuro (ex: dispensacionalismo), E= Ao mesmo tempo que afirmam com fervor e expectativa a volta visível, gloriosa e triunfante de nosso Senhor Jesus Cristo em pessoa, preferem continuar agnósticos no que diz respeito aos detalhes sobre os quais até mesmo cristãos de profunda solidez bíblica diferem em seus pontos de vista. 1.3. Tendências e doutrinas do evangelicalismo – Prioridades evangélicas: 1) A iniciativa reveladora de Deus Pai; 2) A obra redentora de Deus Filho; 3) O ministério transformador de Deus Espírito Santo. 1.4. O evangelho trinitário – 1) Origem: Revelação de Deus; 2) Substância do evangelho: Sabedoria e poder de Deus; 3) Seis aspectos do evangelho que são dignos de nota: A) O evangelho é cristológico; B) O evangelho é bíblico; C) O evangelho é histórico; D) O evangelho é teológico; E) O evangelho é apostólico; F) O evangelho é pessoal; 4) A eficácia do evangelho: Ele precisa de uma demonstração do poder do Espírito. 1.5. Hapax e mallon – Hapax (de uma vez por todas): Cristo é a palavra última e absoluta na revelação de Deus (sua palavra foi falada); Mallon (mais e mais): O Espírito Santo, enquanto “espírito de sabedoria e de revelação” em nosso conhecimento de Cristo, abre nossos olhos para vermos cada vez mais aquilo que Deus nos revelou em Cristo. 2. A revelação de Deus 2.1. Revelação – A palavra “revelação” deriva do latim revelatio, “tirar o véu”, descreve uma ação objetiva através da qual uma coisa que estava escondida por uma cortina é descoberta e, com isso, exposta à visão. No princípio do pensamento evangélico está o reconhecimento da 11 razoabilidade lógica e óbvia da revelação. 1) Revelação geral ou natural: É assim chamada porque se manifesta a todos, à generalidade da raça humana. É também chamada “natural” porque se dá por meio da natureza, através da ordem da criação; 2) Revelação especial ou sobrenatural: Se deu através de milagre (inspiração e encarnação). O único Cristo verdadeiro é o Cristo da Bíblia. A revelação especial de Deus é, comumente, uma combinação de ato e palavra, evento e testemunho. Ela é pessoal e proposicional; 3) Revelação gradativa: Deus foi ensinando gradativamente, a medida que eram capazes de entender; 4) Revelação é pessoal: Neste ponto, o ministério do Espírito Santo pode ser dividido em dois: a) revelação: neste contexto descreve um evento objetivo, a saber, o Espírito Santo expõe a glória de Deus na natureza ou através da Escritura; b) iluminação: por sua vez, descreve um evento subjetivo, a saber, o Espírito Santo ilumina nossos olhos para que agora possamos ver o que ele revelou. 2.2. Inspiração – A palavra “inspiração” indica como Deus se fez conhecido, pelo menos tratando-se da revelação especial: foi falando com os autores humanos e por meio deles. 1) Dupla autoria das Escrituras: A Bíblia é, ao mesmo tempo, Palavra de Deus e palavras de homens, ou melhor, é a Palavra de Deus expressa em palavras humanas. Deus coopera no, com e por meio do livre exercício da própria mente humana. 2) Uma dupla abordagem das Escrituras: a) A Bíblia deve ser lida com uma mente crítica (uso de 4 tipos básicos de crítica bíblica: 1) Crítica textual: O objetivo é estabelecer o texto autêntico das Escrituras; 2) Crítica histórica: O âmbito de preocupação abrange tanto o estudo das circunstâncias históricas nas quais os livros da Bíblia foram compostos, quanto a avaliação do elemento histórico no próprio texto; 3) Crítica literária: Analisa as fontes das quais dispôs o autor e as formas pelas quais o material oral foi preservado e se tornou disponível; 4) Crítica da redação: é valiosa por reconhecer que os autores e editores (redatores) bíblicos tinham uma motivação teológica por trás daquilo que escreveram); b) A Bíblia deve ser lida com reverência: Na 12 abordagem crítica, nós esquadrinhamos as Escrituras, enquanto que na “reverente” nos dispomos a ser examinados pelas Escrituras. Tanto o estudo atento é necessário, quanto a oração honesta. 2.3. Autoridade – indica o resulta do processo iniciado por Deus ao se revelar. Como Jesus exerce sua autoridade e governa a sua igreja hoje? 1) Resposta da Igreja Católica Romana: Através do magistérium ( as igrejas ortodoxas também enfatizam a tradição); 2) Resposta dos liberais: Através da razão e da consciência de cada indivíduo, pela iluminação do Espírito Santo, ou por meio do consenso de uma opinião formada (a autoridade da experiência é sustentada também pelos cristãos pentecostais e carismáticos); 3) Resposta anglicana: Por meio da tríade Escritura, tradição e razão; 4) Resposta dos evangélicos: Por intermédio das Escrituras (a Bíblia é o cetro com o qual reina o Rei Jesus). 2.4. Mais três palavras – 1) Perspicuidade (Clareza): Sua natureza é perspícua (que se pode ver nitidamente), ou translúcida, transparente. A essência da mensagem bíblica – que a salvação vem pela graça, por meio da fé – é simples o suficiente para ser entendida até pelos iletrados; 2) Suficiência (Sola Escriptura): A Escritura é suficiente para a salvação (a suficiência das Escrituras deve-se à suficiência do Cristo de quem elas testificam); 3) Inerrância (ou infalibilidade): A Bíblia é verdadeira e, portanto, digna de toda confiança (quanto às suspeitas de erros nas Escrituras, a resposta mais cristã não é emitir um juízo negativo prematuro, nem tentar conceber uma armonização qualquer, mas suspender o julgamento, esperando pacientemente até que seja dada uma nova luz). 2.5. Duas elucidações – Quando os evangélicos afirmam que a Bíblia é a Palavra de Deus, eles têm em mente dois aspectos cuja elucidação é de importância vital: Primeiro, estão se referindo às Escrituras como proferidas originalmente (não reivindicamos autoridade sobre nenhum texto ou tradução específicos, mas apenas para o texto original, tal como foi escrito por seu autor; Segundo, quando falamos na Bíblia como palavra de Deus 13 estamos nos referindo às Escrituras corretamente interpretadas (não atribuímos autoridade aos erros do intérprete). 3. A cruz de Cristo 3.1. Somos aceitos por Deus – Nós nos gloriamos na cruz para sermos aceitos por Deus. “Nós sustentamos que uma enfermidade espiritual de tal gravidade requer, para sua cura, uma medicação espiritual igualmente poderosa” (Ryle). Subestimar o pecado é subestimar a salvação e, portanto, a cruz. A condição do ser humano sem Cristo é extremamente séria. Somos pecadores perdidos e culpados (contra o movimento que advoga o potencial humano) que precisamos clamar a Deus por misericórdia. Pecado, segundo Brunner: é o desejo do homem de obter autonomia; consequentemente, em última instância, pecado é negar a Deus, é a divinização de si próprio: é declarar-se livre do Senhor Deus e proclamar nossa própria soberania. Nós somos incapazes de fazer qualquer coisa que seja para ganhar a aceitação de Deus. A única forma de sermos redimidos da maldição da lei é o fato de que Cristo a assumiu em nosso lugar; que ele se tornou maldição em nosso lugar; que ele suportou em sua própria pessoa inocente a condenação que nós merecíamos. Isso é a “substituição penal”. 3.2. Justificação pela fé – Trata-se de uma palavra de conotação legal, emprestada das cortes judiciais; justificação é o contrário de condenação. Deus quando justifica um pecador, anuncia um veredito, já em antecipação ao dia final: ele não apenas perdoou todos os seus pecados como também lhe conferiu a condição de justo aos seus olhos. Cinco aspectos da justificação: 1) De onde ela provém? Somos justificados gratuitamente por sua graça (Rm. 3:24); 2) Em que ela se baseia? No sangue de Cristo vertido em sua morte sacrificial (Rm. 5:9; 8:1,3); 3) Qual a sua esfera? Somos justificados em Cristo, por meio de nossa união com ele (Gl. 2:17); 4) Qual o seu significado? Fomos justificados pela fé (Rm. 3:28). Fé é, nada mais, nada menos do que a mão que recebe a dádiva, o olho que 14 contempla o doador e a boca que recebe a água da vida; 5) Qual é o seu fruto? Somos salvos para as boas obras (Ef. 2:8-10; Gl. 5:6). Cinco diferenças fundamentais entre justificação e santificação que os puritanos costumavam enfatizar: 1) A justificação consiste no veredito do juízo de Deus, em que ele declara o pecador justo; a santificação é o seu ato moral, pelo qual ele torna o pecador justo; 2) Deus justifica por meio da morte de Cristo e santifica por meio da regeneração; 3) A justificação é imediata e a santificação é gradativa; 4) A justificação é completa e a santificação é incompleta; 5) A justificação se dá somente pela fé, sem obras e a santificação é pela fé e pelas obras. 3.3. Nosso discipulado diário – Cristo nos chama a negarmos a nós mesmos; quer que tomemos a nossa cruz e o sigamos. Portanto, se nós estamos carregando a nossa cruz e seguindo a Cristo, há somente um lugar para onde podemos estar indo: a morte. “Quando Cristo chama um homem ele, o convoca a ir e a morrer” (Dietrich Bonhoeffer). Jesus nos convida a abnegação, a deixarmos o egocentrismo. O discipulado cristão não é tranqüilo e barato como muitos afirmam hoje. 3.4. Nossa missão e nossa mensagem – Temos uma missão de sair pelo mundo anunciando a mensagem da cruz. O anúncio dessa mensagem é uma pedra de tropeço para o orgulho humano. É uma pregação que destrói os alicerces da nossa auto-justificação. William Temple afirmou: “Tudo é de Deus; a única coisa minha mesmo com a qual eu posso contribuir para a minha própria redenção é o pecado do qual preciso ser redimido” (crítica ao “ministério do gatinho”). Com toda a certeza a mensagem da cruz provocará hostilidade como sempre provocou ao longo da história. 4. O ministério do Espírito Santo 4.1. Os inícios da fé cristã – Referindo-se ao início da fé cristã, o termo “regeneração” é mais apropriado que o termo “conversão”. As duas coisas são radicalmente diferentes: A conversão é obra humana (embora só seja possível pela capacitação da graça de Deus), enquanto que a regeneração 15 depende inteiramente da ação de Deus. Conversão = Arrependimento + Fé. Mas a regeneração ou novo nascimento é outra coisa: 1) O novo nascimento é obra de Deus (Jo. 3:3,7; Jo. 3:5-8); 2) O novo nascimento é imediato; 3) O novo nascimento não é necessariamente uma experiência consciente, embora o seja para algumas pessoas; 4) O novo nascimento não é o mesmo que batismo (ref. ao batismo nas águas) O batismo é, pois o signo ou símbolo (ou “sacramento”) do novo nascimento; entretanto, não se deve confundir o signo com a coisa significada. 4.2. A segurança cristã – O Espírito Santo não produz o novo nascimento para depois nos abandonar. Ele fica conosco. Ou melhor ainda, ele vem habitar em nós. Conseqüentemente, o novo nascimento no Espírito é seguido pela vida no Espírito. Os apóstolos tinham, durante a vida terrena de Jesus, duas grandes vantagens que seriam superadas com a vinda do Espírito Santo (ref. Jo. 16:7): 1) Quando Jesus estava com eles na terra, sua presença era sempre localizada. O que o Espírito Santo faz é universalizar a presença de Jesus, torná-lo acessível a todo mundo, em todo lugar; 2) Quando Jesus estava com eles na terra, sua presença era externa. Ele não podia penetrar a personalidade deles e mudá-los por dentro. Assim, o Espírito Santo internaliza a presença de Jesus; dessa forma, ele habita em nossos corações por meio do seu Espírito (Ef. 3:16-17) e nosso corpo passa a ser templo do seu Espírito Santo (I Co. 6:19). A habitação do Espírito Santo em nós é o selo pelo qual Deus indica que pertencemos a ele. A doutrina da certeza da salvação é uma ênfase especialmente evangélica. A segurança do cristão está alicerçada, acima de tudo, na cruz. A este fundamento objetivo de nossa segurança o Espírito acrescenta o seu próprio testemunho subjetivo (ref. a “Aba, Pai” – Rm. 8:15-16). Os cristãos pentecostais afirmam que o batismo do Espírito Santo é uma experiência isolada posterior ao novo nascimento. Essa experiência é evidenciada pelo falar em outras línguas. Já os cristão não-pentecostais dizem que o batismo do Espírito é a mesma coisa que o dom do Espírito (At. 1:5; 2:33,38-39). Ele é concedido a todos os crentes, embora muitas vezes estes recebam 16 também, em momentos posteriores à conversão, outras experiências de diferentes tipos. Em pontos comuns deveria haver concordância entre os dois grupos (p. ex.: todos os cristãos possuem o Espírito Santo; durante o processo de santificação Deus pode nos presentear com muitas outras experiências do Espírito, mais ricas, mais plenas e mais profundas). 4.3. A santidade cristã – Um dos grandes propósitos da habitação do Espírito no cristão é a sua transformação ou santificação (cf. Ez 36:27; Jr. 31:33). O que o Espírito faz quando é posto “dentro de nós” é escrever ali a lei de Deus (Rm. 8:3-4). Com o Espírito a santidade é essencial; sem o Espírito é impossível haver santidade. Dr. Martyn Lloyd-Jones afirma: “Estou cada vez mais convencido de que a razão por que a maioria das pessoas tem tanta dificuldade de viver a vida cristã é porque elas vivem se paparicando espiritualmente”. Ou seja, ao invés de executarmos a nossa natureza egoísta, nós a adulamos (ref. Gl. 5). “Fórmula 4D” – Cinco passos ou etapas que descrevem como o Espírito Santo opera a santificação em nós: 1) Opera em nossa mente, capacitando-nos a discernir a vontade de Deus; 2) Opera em nossa consciência, capacitando-nos a distinguir entre o certo e o errado; 3) Opera em nosso coração, capacitando-nos a desejar ardentemente os caminhos de Deus; 4) Opera em nossa vontade, capacitando-nos a determinar resolutamente a seguir a vontade de Deus; 5) Só depois de tudo isso é que se dá a etapa final: realizar. A história do evangelicalismo tem sido uma história de busca por santificação (p. ex. reformados, puritanos, pietistas, metodistas, e diversos movimentos recentes). Em alguns momentos apareceram movimentos pretendendo a “erradicação” da nossa natureza caída, ou então a “santificação total” ou o “amor perfeito”. João Wesley é um exemplo de precursor deste tipo de movimento. Porém, o Novo Testamento não promete em lugar algum, nem a erradicação do mal, nem a possibilidade de uma perfeição sem pecado. Handley Moule consegue manter um equilíbrio bíblico ao tratar da questão da santidade cristã em termos de “alvos” e “limites”. 17 4.4. A comunidade cristã – A igreja de Cristo se encontra no centro do eterno propósito histórico de Deus. Ela está em continuidade direta com o Israel do Antigo Testamento. A igreja é chamada no Novo Testamento de “comunidade do Espírito” (II Co. 13:14; cf. Fp. 2:1) porque é a nossa comunhão (koinonia), o fato de fazermos parte desse corpo, que nos faz ser igreja. A palavra koinonia não aparece nos Evangelhos. Sua primeira ocorrência é em At. 2:42, onde Lucas descreve a igreja de Jerusalém, pois não podia haver koinonia alguma antes que o Espírito viesse. Duas convicções significativas que todos compartilhamos: 1) Todos os evangélicos aceitam a diferença entre igreja a igreja visível e a igreja invisível; 2) Para todos os evangélicos, a pureza (tanto doutrinária como ética) da igreja é um alvo a ser perseguido, pois foi estabelecido por Deus. 4.5. A missão cristã – A missão sempre foi uma preocupação dos evangélicos, tanto que evangelicalismo e evangelismo são palavras muito semelhantes. O Espírito Santo é o evangelista principal. Certa vez William Temple disse: “Ninguém pode possuir o Espírito de Deus (ou melhor, ser habitado por ele) e guardar esse Espírito para si. Onde quer que o Espírito esteja, ele flui livremente; se isso não ocorrer é porque ele não está ali”. Duas marcas essenciais de uma igreja cheia do Espírito: 1) Compassiva penetração na comunidade local; 2) Seriedade com seu compromisso com a missão global. Três aspectos que convém abordar: 1) Evangelização e ação social: a) Ação social é uma conseqüência da evangelização; b) Ação social pode ser uma ponte para a evangelização; c) Ação social é uma parceira da evangelização; 2) Evangelização e milagres: Deveríamos evitar duas reações extremas: a) O ceticismo (negar até mesmo a possibilidade de um milagre, seja em virtude de um preconceito teológico, seja por secularismo científico, é beirar o absurdo); b) A credulidade (no extremo oposto se encontram aqueles que, em palavras de John Wimber, consideram os sinais e maravilhas como uma característica da “vida cristã norma”. No que diz respeito aos milagres não podemos negligenciar a tensão escatológica 18 do “já, mas ainda não”; ”; 3) Evangelização e reavivamento. Uma igreja avivada dedica-se às boas obras. 4.6. A esperança cristã – A era messiânica seria a era do Espírito. Assim, o dom do Espírito era, ao mesmo tempo, o “princípio do fim” e a garantia divina do resto que viria a seguir. Era “tanto o cumprimento da promessa quanto a promessa do cumprimento”. Essa dupla expectativa é expressa no Novo Testamento pelo uso de três metáforas: 1) Comercial: O dom do Espírito é comparado ao pagamento da primeira parcela de uma transação comercial: é como se recebêssemos o pagamento da primeira prestação e, com isso, a garantia de que depois disso virá a quitação, o valor total da compra (II Co. 1:22; cf. 5:5; Ef. 1:14); 2) Agrícola: A dádiva do Espírito é como o amadurecer dos primeiros frutos; ela é, ao mesmo tempo, o início da colheita e a garantia de que o resto virá depois (Rm. 8:23); 3) Social: O dom do Espírito é como o primeiro prato de um banquete, aquilo que às vezes chamamos de “aperitivo” ou “entrada”. É, ao mesmo tempo, uma antecipação do que virá e a garantia de que o resto da refeição está a caminho (Hb. 6: 4-5). Em todos os três casos o Espírito Santo é, ao mesmo tempo, a dádiva e a promessa, tanto a experiência inicial como a esperança futura. 5. Conclusão: O desafio da fé evangélica 5.1. O chamado à integridade evangélica – ou a viver uma vida digna do evangelho. O conceito de se viver uma vida “digna” expressa, não mérito, mas correspondência. Nenhuma dicotomia pode haver entre aquilo que professamos e o que praticamos, entre o que dizemos e aquilo que somos; pelo contrário, nossa vida deve refletir uma consistência fundamental. 5.2. O chamado à estabilidade evangélica – ou a permanecer firme no evangelho. Este ponto refere-se à estabilidade do cristão, ao manter-se firme. Estabilidade é coisa que está em falta hoje em dia, tanto na doutrina, quanto na ética. É mais fácil deixar-se levar pela correnteza do que nadar 19 contra ela. O chamado à estabilidade se faz muito necessário hoje. O seu alicerce principal é a rocha da Escritura Sagrada. 5.3. O chamado à verdade do evangelho – ou lutar pela fé evangélica. É a combinação entre evangelismo e apologética. Não basta proclamarmos as boas novas; precisamos também defendê-las e confirmá-las. Paulo não separava essas duas tarefas. Nunca deveríamos contrapor o uso de argumentos e a confiança no Espírito. Uma coisa não exclui a outra, mas ambas se complementam. 5.4. O chamado à unidade evangélica – ou a trabalhar juntos pelo evangelho. A ênfase aqui recai sobre a unidade. A tendência à fragmentação no meio evangélico é patológica. É preciso distinguir entre as verdades essenciais do evangelho, que não podem ser comprometidas, e as adiaphora (“questões indiferentes”) sobre as quais, por serem de importância secundária, não precisamos necessariamente insistir. O que se poderia incluir hoje na categoria de adiaphora? 1) Batismo; 2) Santa Ceia; 3) Governo da Igreja; 4) Culto; 5) Charismata; 6) Mulheres; 7) Ecumenismo; 8) Profecias do Antigo Testamento; 9) Santificação; 10) Estado; 11) Missão; 12) Escatologia. “Na verdade, unidade; nas questões duvidosas, liberdade; e em todas as coisas, caridade” (Rupert Meldenius). 5.5. O chamado à perseverança evangélica – ou a sofrer pelo evangelho. Um vez que Paulo recomenda aos filipenses que lutem pela fé evangélica, isso implica a existência de adversários. O discípulo é chamado a compartilhar o sofrimento do seu mestre e também o sofrimento dos apóstolos. Este é um aspecto inevitável da sucessão apostólica: Uma sucessão não de ordem, doutrina ou missão, mas de sofrimento. Fontes fidedignas comprovam que o número de cristãos que foram martirizados no século vinte é bem maior do que em qualquer outro período da história da igreja. Posfácio: A preeminência da humildade – A qualidade suprema que a fé evangélica produz (ou pelo menos, deveria produzir) é a humildade. Tudo isso porque o cristianismo evangélico é um cristianismo trinitário. Nós defendemos os 3 20 R’s: Revelação, redenção e regeneração. Esses 3 R’s ressaltam o poder de Deus e a dependência do homem. 21 5. O movimento ecumênico no século XX – algumas observações sobre suas origens e contradições Antonio Gouvea Mendonça Introdução O movimento ecumênico é uma das mais importantes marcas do século XX, desde que se considere válido o pressuposto da importância da religião no desenrolar da história humana. Há muito se reconhece que as relações com o sobrenatural, nas diversas formas que o sagrado assume na sociedade humana, condicionam os estilos, as normas e a práxis do homem nas suas relações uns com os outros e com a natureza. Mesmo onde a racionalização filosófica ou científica passa por alto na nomenclatura dos deuses, estão presentes configurações de poderes que desenham universos diferenciados pelos quais os homens lutam, às vezes, até às últimas conseqüências. Estes universos assumem, para merecer tão extraordinários modelos de comportamento humano, feitios que, embora sob disfarces diversos, são poderes verdadeiramente religiosos. Não é necessário descer a exemplos para comprovar isso que estamos afirmando, até porque ideologias políticas, econômicas, símbolos e bandeiras têm estado presentes com muita nitidez neste século. Todos nós sabemos os conflitos a que têm levado. Assim, o movimento ecumênico, com sua intenção de unificar as diversas forças religiosas, acabou revelando mais os desencontros do que os pontos de acordo. E o que é muito significativo é que, mais uma vez, embora não seja possível negar a sinceridade religiosa dos iniciadores do movimento já no século XIX, é a leitura sociopolítica que revela as racionalizações e as intenções subjacentes aos conflitos religiosos do nosso tempo. É nossa intenção neste trabalho tecer algumas considerações sobre as origens do movimento ecumênico e também a de demonstrar como, através da sua história, o movimento ecumênico manifesta suas próprias contradições. Isso é mais perceptível numa parte do mundo onde a dependência econômica e política 22 se expressa de diversas maneiras, em particular através das idéias e da práxis religiosa. Os últimos eventos eclesiásticos e a germinação ininterrupta de novos movimentos religiosos mostram como o sobrenatural, na sua multiplicidade de faces, está mais presente do que nunca na luta pelas hegemonias de toda ordem. Consideramos que o movimento ecumênico é algo que diz respeito exclusivamente ao cristianismo. As reações positivas ou negativas a formas não cristãs de religião mostradas aqui e ali pelos líderes do movimento ecumênico, a nosso ver essas reações nada mais são do que demonstrações de boa vontade e de boa vizinhança política, de um lado para com as religiosidades populares e, de outro, para com as religiões poderosas do Oriente. Isto sob o ponto de vista político, porque sob o prisma da teologia cremos não ser possível ir além do que Visser’t Hooft disse a respeito das relações do cristianismo com as outras religiões, isto é, que essas relações são de diálogos através dos quais o testemunho de Jesus Cristo deve ser dado. O diálogo não deve conduzir à aceitação da relatividade, mas ao testemunho. A cooperação em tarefas comuns que não colidam com os postulados da fé cristã é desejável, mas o sincretismo religioso não está na base do movimento ecumênico. É por essa razão que, em certos casos, a expressão do movimento ecumênico se torna possível entre segmentos historicamente conflitantes do cristianismo quando se trata de confrontar movimentos religiosos não-cristãos ou para-cristãos ameaçadores da hegemonia religiosa clássica do Ocidente. Desse modo, algumas das contradições que aparecerão ao longo deste texto são resultantes das contradições internas do próprio cristianismo quando defrontado com os desafios sócio-políticos e, em especial, nas áreas de dependência em que a concorrência econômico-política assume formas de racionalização religiosa. A história do movimento ecumênico é uma história de reações contra desafios filosóficos, científicos, econômico-políticos e mesmo religiosos, diante dos quais a desunião do cristianismo protestante, em certos momentos, se apresentou com preocupante fraqueza. Que elementos podemos recuperar da 23 história do movimento ecumênico que nos ajudem no entendimento de algumas de suas atuais dificuldades. 1. O movimento ecumênico e seu ponto de partida: missões protestantes e movimento leigo 1.1. As missões protestantes As missões modernas tiveram início nos últimos anos do século XVIII e desde logo foi sentida a necessidade de colaboração entre as diversas corporações eclesiásticas para maior eficiência diante da gigantesca tarefa de levar a mensagem cristã a um mundo cada vez maior. William Carey, considerado o fundador das missões protestantes modernas, propugnou desde o início a cooperação entre todos os cristãos no campo missionário. Há três fatores importantes a serem considerados no estudo das missões protestantes modernas: primeiro, a expansão colonial dos povos protestantes; segundo, o enriquecimento desses povos, decorrente diretamente ou não dessa expansão; terceiro, a vitória de uma proposta teológica que, embora não sendo nova na história do pensamento protestante, ganhara relevo a partir do movimento religioso de João Wesley, na Inglaterra do século XVIII. a) Consideramos o primeiro fator, a expansão colonial dos povos protestantes. A Revolução Comercial provocou a europeização do mundo e promoveu a extensão do poder político das nações da Europa Ocidental sobre a maior parte dos continentes. De fato, as grandes companhias mercantis, como a Companhia Inglesa das Índias Orientais, a Companhia Holandesa das Índias Orientais, a Companhia de Plymonth, a Companhia de Hudson etc., não somente exploravam comercialmente as áreas onde se instalavam, mas também exerciam sobre elas o poder político em nome de suas respectivas nações. Essas empresas comerciais eram companhias privilegiadas, isto é, possuíam cartas de privilégio dos governos que lhes concediam o monopólio do comércio em certa localidade e, o que é mais importante sob o nosso ponto de vista, lhes conferia ampla 24 autoridade sobre os habitantes. À presença comercial e política das nações protestantes juntava-se sempre a presença religiosa. O caso dos holandeses no Nordeste do Brasil, de 1630-1654, sob o patrocínio da Companhia das Índias Ocidentais, ilustra bem este fato. O início da tentativa de implantação da Reforma naquela parte do país é simultânea com a chegada das tropas holandesas comandadas pelo coronel Diederick Waerdenburch, em 15 de fevereiro de 1630, que trouxera como capelão o pastor Johannes Baers. Parece ter sido esta a prática de todas as expedições comerciais que, na maioria dos casos, eram expedições de conquista em todos os sentidos, inclusive cultural. A partir do padre Antônio Vieira cresce a convicção de que a influência protestante permaneceu no Nordeste, como certas noções calvinistas entre os índios da região. A influência da religião holandesa permaneceu também em outras partes do mundo, em conseqüência do mesmo tipo de ocupação, à semelhança das áreas de influência inglesa. Onde iam os conquistadores, ia também a religião. b) Um segundo fator foi o enriquecimento dos povos protestantes. Mas o mercantilismo provocou o enriquecimento não só das nações que empreendiam expedições comerciais, como promoveu a circulação e a acumulação de riquezas de modo geral. Assim, a Alemanha e os Estados Unidos também se enriqueceram e o acúmulo de bens e bem-estar constituiu estímulos para a expansão missionária. c) O terceiro fator se situa no contexto da proposta teológica. Observemos que desde o Renascimento o individualismo ganhara espaço, inclusive introduzindo uma cunha na teologia calvinista. Isto aconteceu na Holanda enriquecida quando a burguesia comercial inclinava-se necessariamente para as idéias de liberdade individual. Regra geral, o calvinismo anulava o homem, cerceando-lhe a liberdade, e Tiago Armínio (1560-1609), teólogo calvinista holandês, propôs a doutrina da liberdade humana e a sua capacidade de escolha e opção. Para Armínio, Deus dotou o homem da possibilidade de escolher entre a bênção e a maldição. Desse modo, Armínio afastava a doutrina calvinista da predestinação, que depunha em Deus o destino do homem e colocava nas mãos 25 do homem o seu futuro eterno. As idéias de Armínio provocaram muitas controvérsias, mas conquistaram um lugar definitivo no protestantismo. É possível, todavia, que as idéias arminianas jamais passassem de mais uma oportunidade de debate entre teólogos, não fosse o pregador anglicano João Wesley (1703-1791) tê-las assumido e aperfeiçoado. Já gozava o arminianismo de certa influência na Igreja Anglicana através das idéias da graça ao alcance de todos, da universalidade da obra expiatória de Cristo e da responsabilidade do homem pela sua salvação. João Wesley avança no aperfeiçoamento dessas idéias, principalmente distinguindo entre a graça, dom de Deus, e a fé, atributo humano. Influenciado pelo misticismo e pelo pietismo, Wesley introduz na sua teologia os elementos emocionais e os da perfeição cristã ou santificação. A salvação em Wesley segue um caminho simples: Deus, pela sua graça, oferece a todos os homens a obra expiatória de Cristo; pela fé e num ato voluntário o homem aceita ou se apropria dessa oferta, e é justificado; daí por diante procura ser digno do sacrifício de Cristo e busca santificar-se cada vez mais, vivendo de modo a agradar a Cristo. Este é o aspecto prático da teologia de Wesley, visto por muitos como adesão à salvação pelas obras. Mas o fato é que Wesley desenvolveu um cristianismo prático e apropriado à sua época e às posteriores porque favorecia o individualismo, regulava a vida em épocas de grandes mudanças sociais e, principalmente, estimulava a piedade ao lado do desempenho pessoal. O Renascimento, a Revolução Comercial e a Industrial haviam provocado profundas alterações sociais na Europa Ocidental, introduzindo a insegurança cada vez maior na massa de indivíduos que buscavam um lugar na sociedade. Como resultado, ao lado das oportunidades de ascensão social até então inexistentes, os males sociais também se avolumaram, como a violência, vícios como o jogo e a embriaguês, a imoralidade e as cruéis repressões tantas vezes achadas excessivas pelos filósofos do direito, como o milanês Cesare Beccaria no seu famoso tratado Dos delitos e das penas (1764). 26 A perversidade do homem e a correspondente insatisfação diante de tal estado de coisas foram atribuídas à civilização. O iluminismo romântico preconizava a reversão do homem civilizado para o homem natural, no que ele encontraria a felicidade. Mas não havia como renegar a civilização. Ela apresentava suas regras e o seu progresso exigia obediência às normas de probidade, trabalho e cumprimento dos deveres civis e familiares. A felicidade, então, parecia estar numa terceira via entre o princípio do prazer e o princípio da realidade, isto é, viver de modo a pagar o preço devido à civilização e ao progresso com o menor atrito possível com o princípio de realidade. Se os ideais românticos sonhavam com o homem natural vivendo em simbiose com a natureza, os ideais da civilização e do progresso não tinham outro caminho a não ser tentar colocar o homem em harmonia com o mundo do trabalho e da competição. As regras desse novo mundo eram vistas como naturais e a harmonia com elas levaria o homem à felicidade. Seria, pelo menos, o máximo de felicidade possível no melhor dos mundos possíveis. Uma espécie de estoicismo moderno, uma combinação de Zenon de Citium com Leibniz. Seria, como registraria bem mais tarde Marcuse: “Uma falta de liberdade confortável, suave, razoável, um testemunho do progresso...”. É nessa acepção que nos referimos acima ao sentido prático da teologia de Wesley. Ela ajudava a inserir os homens no mundo do trabalho, nas suas variadas formas e situações, sustentava as normas que o regulamentavam e criava meios de reduzir os atritos entre os princípios do prazer e da realidade. Introduzia uma terceira via de paz e felicidade relativas, que tornava possível viver razoavelmente bem neste mundo, enquanto se esperava a felicidade completa no outro. É por isso que o protestantismo ocidental do mundo industrializado e capitalista não encontrou até hoje fórmula teológica melhor do que a do metodismo wesleyano, pelo menos ao nível da vivência popular. Todas as demais expressões ou tentativas teológicas que têm surgido, desde a segunda metade do século XIX até hoje, acabaram esbarrando, em última instância, com a velha fórmula de conversão do wesleyanismo: converter-se é enquadrar-se da melhor maneira nas regras e estruturas deste mundo, que é o melhor possível enquanto se espera a 27 vinda do reino da perfeição, o reino a-histórico de Deus. Para os pobres é assim, enquanto que para os poderosos o reino de Deus, seja em que tempo for, antes ou depois da Parousia, não é coisa que interesse muito. Conseqüentemente, a conversão assim considerada conseguiu reunir e solucionar os velhos conceitos pessimistas do mundo. O mundo era originalmente bom, mas a civilização o estragou; entretanto, é possível fazer com que a civilização se torne um lugar razoavelmente bom para o homem e, para isso, certas normas têm de ser seguidas; converter-se é bom para o indivíduo e bom para o mundo. E o reino de Deus dos Evangelhos? Esse fica para quando este mundo acabar. Esta teologia é imbatível porque consola os despossuídos ao mesmo tempo em que dá sustentação às estruturas do mundo moderno. É uma teologia romântica e ao mesmo tempo muito racional. No confronto com a teologia liberal, a teologia do despertamento religioso tomou de empréstimo algumas de suas idéias. Entre elas a idéia de imortalidade, que no liberalismo mais radical era uma maneira de descartar a discussão das questões referentes ao destino do homem após a morte, já que o que valia era a vida em si mesma. Mas para a teologia do mundo industrializado, em que era impossível a aquisição da plena felicidade, a discussão do problema da vida após a morte era importante porque só ali se completava aquele ideal. Embora a idéia de imortalidade da alma tenha sido bem cedo incorporada ao cristianismo, nunca ela ganhou tanta relevância como na civilização moderna. Incorporando-lhe as idéias de prêmio e castigo, ela se tornou forte esteio das instituições porque o futuro da alma depende de como se vive esta vida. A teologia wesleyana, mesmo com suas variações posteriores, transformou-se numa espécie de theologia perennis do protestantismo contemporâneo. Nas áreas de missão norte- americana, como exemplo especial o Brasil, esta é uma verdade constatada. Essa theologia perennis serviu, ao mesmo tempo, a dois objetivos: primeiro, ao desejo de superar, ao menos ao nível das formas de crença, o divisionismo protestante, sendo, por isso, assimilada pelo movimento “evangelical”; segundo, à necessidade de uniformizar a mensagem missionária. Propiciou, dessa forma, a organização de um vasto movimento que, se em nenhum momento conseguiu 28 suplantar o denominacionalismo, constituiu a espinha dorsal do pan- protestantismo, fornecendo aos protestantes um útil esquema de auto- identificação diante das várias ameaças à “ortodoxia da Reforma”. No entanto, embora estejam no pan-protestantismo as origens do movimento ecumênico, nele também estão os germes dos futuros conflitos, especialmente nas áreas de missão. A apropriação do espírito do “evangelicalismo” por parte do movimento missionário levou clérigos de todas as denominações à formação de sociedades missionárias interdenominacionais. A Sociedade Missionária de Londres (1795) foi a primeira manifestação “ecumênica” protestante, seguindo-se outras como a Sociedade de Tratados Religiosos (1799), a Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira (1804), a Sociedade Bíblica Americana (1816), a Sociedade Americana de Tratados (1825), e assim por diante. Embora algumas dessas sociedades interdenominacionais tenham permanecido, como as Sociedades Bíblicas, por exemplo, logo o denominacionalismo triunfou e a Sociedade Missionária de Londres tornou-se congregacional, enquanto as igrejas iam organizando suas próprias juntas missionárias. É certo que o esforço para pregar uma mensagem cristã uniforme permaneceu, ao mesmo tempo em que se concentraram esforços comuns em alguns objetivos como a disseminação da Bíblia e a promoção da saúde através da fundação de hospitais. No entanto, na área da educação as missões foram criando escolas denominacionais que, apesar de refletirem objetivos e padrões uniformes, dependiam das denominações e para elas tentavam canalizar os resultados. As missões concentraram suas forças na mensagem conversionista “evangelical”, mas foram organizando os convertidos em congregações denominacionais, levando para as áreas de missão seus conflitos e suas tendências competitivas. Dessa maneira, elas não conseguiam levar o cristianismo essencial, mas a denominação. Apesar disso, as missões constituíram forte elemento de aproximação das igrejas pela necessidade de companheirismo e cooperação entre os agentes missionários, na maioria das vezes trabalhando em situações muito adversas. 29 1.2. Movimentos leigos É possível que as raízes mais robustas do movimento ecumênico tenham sido as associações leigas mundiais de jovens, que começaram a surgir a partir da segunda metade do século XIX. Talvez os leigos e jovens não estivessem tão picados pelas animosidades teológicas e pelo orgulho denominacional e, assim, suas organizações puderam ter vida longa e prestar grande serviço ao ecumenismo, principalmente no preparo dos seus futuros líderes. A primeira dessas instituições foi a Associação Cristã de Moços (ACM), fundada em Londres, em 1844, por George William (1821-1905), que se espalhou pelo mundo e se organizou mundialmente pela Aliança Mundial das ACM, em 1855. Neste mesmo ano foi criada, também em Londres, a Associação Cristã Feminina, sendo formada sua Aliança em 1894. Além desses ressaltamos um outro importante movimento de jovens, que foi o Movimento de Estudantes Voluntários para Missões Estrangeiras, organizado em 1886, sob a influência de Dwight L. Moody (1837-1899). Seu organizador foi o incansável John R. Mott (1865-1955), leigo metodista norte-americano, uma das maiores expressões do movimento ecumênico. Mott criou também, em 1895, a Federação Mundial de Estudantes Cristãos. Foi secretário geral internacional da Associação Cristã de Moços, presidiu a Conferência Internacional de Missão, em Edimburgo (1910), e o Conselho Internacional de Missões (1921). Mott teve reconhecidos serviços à causa internacional, através dos esforços pela cooperação de todos os cristãos ao longo de quase 70 anos, ao receber o Prêmio Nobel da Paz em 1946. Chegou a presidir o Conselho Mundial de Igrejas (1954), um ano antes de sua morte. Mott escreveu diversas obras, todas versando sobre missões e cooperação internacional. Outro importante movimento de fortes características leigas encontra-se nas Convenções Mundiais de Escolas Dominicais, que começaram a acontecer a partir de 1889, formando finalmente a Associação Mundial de Escolas Dominicais, em 1907. 30 A prática do diálogo ecumênico muito deve ao movimento de associações mundiais de jovens, ao qual se atribui o uso, pela primeira vez, da palavra “ecumênico” na acepção moderna. Ela aparece na correspondência mundial de Henri Dunant (1828-1910), quando a serviço da Associação Cristã de Moços, em Genebra. Pode-se dizer, no entanto, que o movimento missionário, seja interdenominacional, seja eclesiástico-denominacional, e o movimento leigo, estavam sob a égide da theologia perennis. A diferença estava nos objetivos, pois enquanto as missões buscavam a conversão pura e simples das pessoas à fé cristã protestante, as associações de jovens leigos tinham como meta a vivência prática do cristianismo e a convivência fraterna dos cristãos sem acepção confessional. Por exemplo, parece evidente a presença de católicos nesses movimentos, pelo menos nas ACM, pela proibição aos católicos de nela entrar por parte do papa Bento XV (1914-1922). 8 Os anglo-católicos, como outro exemplo, inseriram-se no movimento ecumênico pela influência do Movimento de Estudantes Cristãos Britânicos (Student Christian Movement — SCM). 2. Ecumenismo, Congresso de Edimburgo (1910) e o início da perda da convergência Sob o influxo da Aliança Evangélica que, embora expressando interesses individuais muito já tivesse feito pela aproximação entre as igrejas, avançou o movimento ecumênico através da obra missionária e do movimento leigo internacional até o marco decisivo do ecumenismo, o Congresso de Edimburgo, em 1910. Esse Congresso constituiu a matriz de vários desdobramentos do movimento ecumênico, sendo que alguns deles merecem uma rápida análise. No entanto, o próprio Congresso, tanto na sua organização como no desenvolvimento, revelou uma contradição fundamental que iria afetar o movimento ecumênico de maneira muito sensível e duradoura. Ao contrário das conferências missionárias que o antecederam, compostas, regra geral, por pessoas interessadas e de boa vontade, preocupadas com o relacionamento intereclesiástico nas áreas de missão, freqüentemente prejudicada pela 31 competição, a Conferência Missionária Mundial de Edimburgo reuniu representantes oficiais de várias sociedades missionárias. Foi uma conferência tecnicamente muito bem preparada e muitos dos líderes do movimento ecumênico do século atual ali receberam inspiração e direção. Edimburgo foi momento decisivo na história ecumênica. a) A primeira das grandes conquistas ecumênicas de Edimburgo foi a sua preparação: John R. Mott, idealizador, realizador e presidente do Congresso, escreveu sozinho cartas pessoais a cerca de 600 pessoas do mundo inteiro solicitando pronunciamento sobre a “expansão do Evangelho no mundo não cristão.” A correspondência de Mott constituiu o primeiro diálogo ecumênico. Aliás, nunca é demais ressaltar a obra de Mott quando o assunto é ecumenismo. Mott foi Prêmio Nobel da Paz (1946) e presidente do Conselho Mundial de Igrejas (1954), após ter desenvolvido intensa atividade ecumênica internacional, criando a Federação Mundial de Estudantes Cristãos (1895). Também foi secretário geral internacional da Associação Cristã de Moços, presidindo o Congresso de Edimburgo (1910) e o Conselho Internacional de Missão (1921), sendo também o seu presidente honorário (1942). O pensamento de Mott centralizava-se na evangelização do mundo através de um labor comum de todas as igrejas, levando em conta a essência do Evangelho acima das barreiras confessionais. Isto está presente em sua ação e relatado em seus escritos: Evangelization of the world in this generation (1900), Cooperation and the world mission (1935) e Adresses and papers of John R. Mott (1946). De fato, a intensa preparação do Congresso, liderada por Mott, chamava a atenção dos líderes mundiais do protestantismo para a necessidade e possibilidade de cooperação entre as igrejas na área missionária, pondo de lado as diferenças confessionais, o que por si só caracterizou o Congresso como marco do movimento ecumênico. b) A segunda das grandes conquistas do Congresso de Edimburgo foi a determinação de que as pessoas que viessem ao Congresso fossem delegados de suas organizações, isto é, sociedades missionárias, não igrejas. Como diz Jan Hermelink, 10 “estava rompida a esfera de puro diletantismo em assuntos 32 ecumênicos, e um saudável elemento de compromisso e responsabilidade ingressou a partir de então nos encontros ecumênicos”. diletante c) A terceira conquista foi o princípio da liberdade, isto é, as decisões tomadas no Congresso em hipótese alguma comprometiam as instituições ali representadas. Esse princípio tornou-se chave no movimento ecumênico e evoluiu até à constituição do Conselho Mundial de Igrejas, afastando, assim, o risco do surgimento de uma futura “super-Igreja”. No entanto, é bom lembrar que, apesar disso, os inimigos do ecumenismo, dentre eles Carl McIntire, nunca deixaram fugir a oportunidade de apontar o movimento ecumênico como projeto, não só de uma Igreja mundial, mas de um Estado mundial. Todavia, como já pudemos registrar, o Congresso de Edimburgo, a exemplo do que freqüentemente acontece na história, e apesar da sua cuidadosa preparação, revelou desconhecimento por parte da liderança organizadora da verdadeira situação das chamadas “igrejas novas” nas áreas missionárias, principalmente naquelas regiões já historicamente ocupadas pela Igreja Católica. Não houve consciência das formas e estratégias pelas quais essas igrejas haviam se inserido nos interstícios de sociedades culturalmente configuradas pela civilização católica romana. Decorre disso o grande erro que, embora de boa fé, cometeu o Congresso ao ignorar a América Latina, não contemplando esta parte do mundo como área de evangelização, dado a presença histórica da Igreja Católica. Atribuímos este fato ao elevado espírito ecumênico do Congresso ao considerar a Igreja Católica como cristã em todos os sentidos, reputando desnecessária ação missionária onde ela estava presente. A orientação do Congresso demonstrou como grandes e teoricamente corretas decisões podem produzir efeito contrário ao pretendido, principalmente quando não se levam em conta as situações conjunturais e até estruturais da realidade. Por isso, se o Congresso constituiu, no sentido global, o grande marco do movimento ecumênico, para a América Latina veio a ser um entrave que se prolonga até hoje. Esta foi a contradição fundamental do Congresso. 33 A reação a esse aspecto do Congresso de Edimburgo veio alguns anos após, em 1916, através do Congresso de Obra Cristã na América Latina, ocorrido no Panamá. Mas, como argumentamos atrás, a desinformação do Congresso a respeito da realidade religiosa da América Latina foi um fator negativo e que pode ser analisado sob dois aspectos: o sociológico e o teológico. No primeiro caso, não se levou em conta que o protestantismo na América Latina era absolutamente minoritário e buscava espaço num campo religioso inteiramente dominado pelo catolicismo romano. Era uma dura disputa de mercado religioso. No segundo, desconheceu-se a característica teológica da mensagem religiosa empregada pelas missões. A mensagem missionária tinha duas características principais, entre outras: era conversionista e doutrinária. A separação entre estes dois aspectos da mensagem é meramente pedagógica porque, de fato, são complementares na maioria das vezes. Os casos de adesão exclusivamente intelectual ao protestantismo, passando pelo convencimento da “verdade” protestante em relação à “falsidade” católica, não foram raros. Esta epistemologia comparativa foi muito usada pelos missionários e pregadores nacionais e se fez presente nos seus sermões e cânticos sagrados adaptados no Brasil e na América Latina. A pregação doutrinária, pedagógica, às vezes de um racionalismo muito acentuado, tem sido historicamente o forte dos púlpitos protestantes. Contudo, o elemento emocional da teologia perennis percorria caminho mais rápido na adesão das pessoas ao protestantismo. Os melhores pregadores sempre foram aqueles que conseguiram aliar a lógica à emoção. A mensagem das missões protestantes, fosse conversionista ou doutrinária, objetivava sempre uma “mudança de mente” e uma “mudança de vida”, o que equivalia à substituição de valores tradicionais por novo padrão de cultura, resultando num forte distanciamento do mundo circundante. Este mundo era o lugar do pecado, do erro, antagônico, portanto, ao universo da “verdade” que o converso passava a aceitar. Ora, toda a responsabilidade pelo “erro” cabia ao ensino e à prática da Igreja Católica. Assim afirmavam os missionários nas suas 34 mensagens e nos hinos que ensinavam aos seus adeptos. Vejamos, a título de exemplo, o que diz um desses hinos na sua versão tradicional: Da vaidade fiéis servos / Ou romanos ou ateus Muitas vezes nos assaltam / Para nos tornarem seus; Mas se alguém procura ver-nos / Sem o gozo do bom Deus. Vencendo vem Jesus! (Salmos e Hinos, 1957, n. 579). Em suma, a mensagem missionária visava converter os católicos ao protestantismo, tirando-os do “erro” e oferecendo-lhes a “verdade”. Como, pois, convencer os protestantes, principalmente seus líderes, que haviam abandonado a Igreja Católica, acusada de herética, para aceitar uma “nova religião”, afirmada como verdadeira, de que sua antiga Igreja era cristã e de que não era necessário continuar evangelizando os católicos? Teriam sido vítimas de um trágico engodo?
Compartilhar