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1 MATERIAL PROVA SLIDE COMUNICAÇÃO E POLITICA Aula 01: A política como elemento de organização das sociedades humanas Política e comunicação social Contextualizando o assunto – parte I Compreendendo a política em um sentido básico Uma organização social constitui-se a partir da organização de suas relações: 1) Econômicas; 2) Políticas; 3) Culturais. Assim, pode-se afirmar que: 1) Os aspectos econômicos são aqueles ligados à materialidade envolta em nossas relações sociais. 2) Os aspectos políticos são aqueles relacionados à divisão dos poderes de uma sociedade. 3) Os aspectos culturais estariam ligados ao comportamento, às práticas e aos artefatos desenvolvidos localmente, tradicionais e distintivos de uma determinada organização social. A respeito da Política enquanto conceito, a autora Marilena Chauí afirma algo muito interessante: “Não é raro ouvirmos dizer que ‘lugar de estudante é na sala de aula e não na rua fazendo passeata,’ ou que ‘estudante estuda, não faz política’. Mas também ouvimos o contrário, quando alguém afirma que ‘os estudantes estão alienados, não se interessam por política’. No primeiro caso, considera-se a política uma atividade própria de certas pessoas encarregadas de fazê-la – os políticos profissionais – , enquanto no segundo, considera-se a política um interesse e mesmo uma obrigação de todos. Aparece aqui o primeiro paradoxo da política: é ela uma atividade específica de alguns profissionais da sociedade ou concerne a todos nós, porque vivemos em sociedade?” (CHAUÍ, 2004, p. 345). Percebe-se, a partir da afirmação contida na tela anterior, a preocupação da autora em demonstrar as múltiplas possibilidades do conceito de Polític. A palavra Política pode significar assuntos um tanto diversos, tais como: 1) Assuntos relacionados à administração pública ou mesmo privada; 2) O objeto de estudo da Ciência Política; 3) Os aspectos relacionados à ordenação e ao encaminhamento das questões coletivas de uma organização social; 4) Os assuntos relativos à organização hierárquica da sociedade e mesmo de determinadas instituições humanas; 5) Os aspectos relativos à representação das causas e questões dos cidadãos vinculados a um município, uma unidade estadual, uma nação; 6) A atividade profissional que se desenvolve, através de partidos políticos, relacionada a esta necessidade de representação que os cidadãos e grupos de cidadãos possuem e que ocupam diferentes esferas (municipal, estadual, federal, internacional). 2 Portanto, é perceptível o quanto o termo política pode ser ambíguo e múltiplo, ainda que esteja comumente relacionado a aspectos constitutivos da organização de uma sociedade. A origem do termo é grega e significa aquilo que é relacionado à organização da polis, tanto em termos de discussão quanto em termos de atitudes práticas. Ou seja, existe uma discussão política de âmbito conceitual (muitas vezes, de caráter filosófico e relacionada à ética), tanto quanto um conjunto de atividades práticas (ou práxis) relacionadas à política. A práxis política envolve as atividades cotidianas da política. O termo “política”, do ponto de vista etimológico, deriva de politikós e de politeia (do grego antigo) e significa aquilo que está relacionado à organização dos grupos no território da polis (que eram as antigas cidades-Estado gregas, tal como Atenas). Mesmo sabendo que hoje vivamos em outro contexto sócio-histórico, é importante ressaltar que ainda se usa o termo metrópole (que significaria algo como “cidade-mãe” ou “cidade-matriz”), advindo de “metropolis”, para referir-se a cidades que se articulam com outros municípios menores e estabelecem um funcionamento interligado, geralmente com mais de um milhão de habitantes. Aula 02: A política e o bem comum Aspectos históricos da política como prática coletiva Política é um termo grego e se constitui em um período de muitas mudanças importantes nas sociedade gregas. Evidentemente, a constituição do poder não foi iniciada no Período Clássico (séculos V e IV a.C.), época de Sócrates, Platão e Aristóteles, grandes filósofos que trouxeram as questões ético-políticas para a filosofia. Os filósofos pré-socráticos (séc. VI a.C., ainda pertencendo historicamente ao Período Arcaico da Grécia Antiga), por sua vez, estavam mais preocupados em buscar explicações a respeito dos fenômenos naturais. Porém, a constituição do poder (ou seja, das hierarquias e autoridades das organizações sociais humanas) anterior às sociedades gregas era fundamentada, sobretudo, no poder despótico e patriarcal. Segundo Marilena Chauí: “Nas realezas existentes antes dos gregos, nos territórios que viriam a formar a Grécia - realezas micênicas e cretenses -, bem como as que existiam nos territórios que viriam a formar Roma - realezas etruscas -, assim como nos grandes impérios orientais - Pérsia, Egito, Babilônia, Índia, China - vigorava o poder despótico ou patriarcal” (CHAUÍ, 2004, p. 349). E a autora descreve as características do poder despótico da seguinte forma: “Em grego, despótes, e, em latim, pater-familias, o patriarca, é o chefe de família cuja vontade absoluta é a lei (...). O poder era exercido por um chefe de família ou de famílias (clã, tribo, aldeia), cuja autoridade era pessoal e arbitrária, decidindo sobre a vida e a morte de todos os membros do grupo, sobre a posse e distribuição das riquezas, a guerra e a paz, as alianças (em geral na forma de casamentos), o proibido e o permitido” (CHAUÍ, 2004, p. 349). Deste modo, a figura do déspota se consolidava a partir de alguns elementos fundamentais, tais como: 3 a) A posse de propriedades ou riquezas necessárias e/ou valorizadas pelo grupo em questão; b) A elaboração de um discurso mítico/religioso que associava necessariamente o déspota ao poder, de modo que a figura de ambos se confundia. Os déspotas possuíam, aos olhos de muitos destes grupos sociais, a permissão divina para governar. A complexificação das organizações sociais, no período arcaico da Grécia Antiga (entre os séculos VIII e VI a.C.), modificou significativamente este cenário. Abaixo, uma breve lista de alguns elementos que foram inseridos nas organizações sociais da Grécia Antiga ao longo do período citado: a) A escrita; b) O dinheiro; c) A evolução dos artefatos militares. Isto levou os déspotas, gradualmente, a delegarem determinadas funções importantes, ou seja, a burocratizarem determinados elementos relacionados ao funcionamento das organizações sociais. Três aspectos históricos, segundo Chauí (2004, p. 351), são fundamentais para a compreensão das origens da política. Além disso, são comuns tanto à cultura grega quanto à romana na Antiguidade: 1) A forma da propriedade agrária (as terras não pertenciam mais apenas a um déspota/patriarca, mas a famílias independentes); 2) O processo de urbanização; 3) O modelo de divisão territorial das cidades. Neste sentido, a urbanização passa a ser um elemento fundamental, pois a circulação do dinheiro ocorria principalmente na polis (cidade), de modo que diferentes grupos passaram a disputar não somente as riquezas, mas também o poder. Como afirma Chauí: “A urbanização significou uma complexa rede de relações econômicas e sociais que colocava em confronto não só proprietários agrários, de um lado, e artesãos e comerciantes, de outro, mas também a massa de assalariados da população urbana, os não proprietários, genericamente chamados de ’os pobres’” (CHAUÍ, 2004, p. 351). Portanto, os conflitos entre diferentes grupos sociais que habitavam a polis geraram a necessidade de uma solução, que, no caso da Grécia Antiga (comsimilaridades no caso romano), foi o desenvolvimento da política com forma de organização dos grupos no território. Segundo Chauí (op. cit., p. 351): “Os primeiros chefes políticos, também conhecidos como legisladores, introduziram uma divisão no território das cidades, visando diminuir o poderio das famílias ricas agrárias, dos artesãos e comerciantes urbanos ricos e satisfazer a reivindicação dos camponeses pobres e dos artesãos assalariados urbanos pobres. Em Atenas, por exemplo, a polis foi subdividida em unidades sociopolíticas denominadas demos; em Roma, em tribus”. 4 Finalmente, pode-se afirmar que a noção de “democracia” é grega e significa justamente a de poder/governo das famílias ou grupos, ou seja, o “poder do povo”, o “poder dividido”, o “poder participativo”. Aristóteles e os três bios Nota-se a importância da política para os gregos, por exemplo, através dos escritos de determinados filósofos clássicos, tais como Platão e Aristóteles, a respeito deste tema. Os gregos usavam mais de um termo para a palavra “vida”: Zoé e Bios. Enquanto Zoé estaria mais ligado à vida em sentido animal/individual (de onde vem as palavras “zoo”, “zoológico” etc.), a palavra bios (de onde vem a palavra “biologia”) estaria relacionada à vida em sentido comum, comunitário, social. Seria a vida implicada no contexto da polis. As atividades dimensionadas socialmente seriam consideradas parte do bios e Aristóteles buscou encontrar quais conjuntos de atividades sociais levariam a uma vida plena, repleta de felicidade (“eudaimonia”) e com vistas ao “Bem Comum” (“to agathon”). Assim, o filósofo identificou três bios essenciais. Como afirma o autor Muniz Sodré: “Logo nas primeiras páginas de sua Ética a Nicômaco, Aristóteles distingue, a exemplo do que já fizera Platão no Filebo, três gêneros de existência (bios) na Polis: bios theoretikos (vida contemplativa), bios politikos (vida política) e bios apolaustikos (vida prazerosa, vida do corpo)” (SODRÉ, 2002, p. 25). Continuando o seu pensamento, Sodré explica o conceito de bios: “Cada bios é, assim, um gênero qualificativo, um âmbito onde se desenrola a existência humana, determinado por Aristóteles a partir do Bem (to agathon) e da felicidade (eudaimonia) aspirados pela comunidade” (SODRÉ, op. cit., p. 25). Nota-se, desta maneira, a importância que a política assumiu para os gregos enquanto forma de organização do grupo no território, isto é, dos cidadãos na polis. A relação entre política e cidadania é, portanto, muito antiga. Hoje, poderíamos afirmar que o citadino é aquele que mora em uma cidade, enquanto o cidadão é aquele que não apenas reside, mas participa dos processos políticos (ou seja, organizacionais) de sua cidade. Cidadania é algo que se constrói e se exercita a cada dia. Ter, por exemplo, participado em um pleito eleitoral no passado não exime o cidadão de participar do pleito eleitoral atual. Assim, ser cidadão significa conhecer e exercer seus direitos e deveres em meio ao grupo social. Aula 03: Política: da práxis aos conceitos A práxis política: A política enquanto prática fundamental de organização/ordenação social é bastante dinâmica, possuindo diferenças regionais e temporais. 5 Assim, quando se pensa na Grécia Antiga enquanto berço originário da noção de política tal qual esta se tornou conhecida no mundo ocidental, é preciso ter em mente que sempre houve variações de cidade para cidade. É comum ter Atenas como um modelo, devido ao seu desenvolvimento histórico e à quantidade de material escrito a respeito das atividades atenienses que chegaram até o presente. Em diferentes diálogos platônicos, a política aparece como prática fundamental para a constituição das sociedades. Um exemplo importante seria o do diálogo intitulado “Górgias”, em que Sócrates discute com o sofista em questão e seus discípulos a respeito da ética na condução da discussão política. “A república” é outro texto fundamental do filósofo Platão a respeito da política. Ao conjunto de práticas cotidianas relacionadas à atividade política, os gregos denominavam práxis. É importante afirmar que os gregos distinguiam a práxis da poiesis, ou seja, a “prática” ou “ação” da “fabricação”. Segundo Chauí (2004, p. 275), “A ação, em grego práxis, é aquela atividade humana em que o agente, o ato que ele realiza e a finalidade buscada por ele são idênticos – a práxis define a ação ética e a ação política”. Nesta época, anterior às fotografias, aparelhos de gravação sonora e audiovisual, máquinas de escrever ou computadores, a única forma de registro de um discurso político seria através do manuscrito ou da pintura. Portanto, uma discussão política estava relacionada à práxis, visto que no momento em que discursava, não havia como separar o orador de seu discurso e da finalidade do mesmo. Quando pensamos nesta mesma situação nos dias atuais, o assunto se torna mais complexo, visto que é possível que um orador esteja em um local, enquanto o seu discurso previamente registrado (como no horário eleitoral gratuito, em tempos de eleições no Brasil atual) pode estar sendo veiculado, após ter passado por uma edição. Trata-se, então, de um discurso que se pode separar do agente, por conta do artifício midiático. É como no caso da escrita dos grandes livros a respeito do assunto: o pensador que o escreveu já nem vive mais, mas a obra (fabricada) ainda pode ser lida por todos nós. A ação de escrever pode ser separada do produto final já escrito, revisado, editado e publicado. Quando se estuda o conjunto de atividades práticas e cotidianas (a práxis política) relacionadas às origens da política na Grécia Antiga, as discussões políticas são um elemento fundamental. A noção de democracia, até hoje, ainda está principalmente baseada na possibilidade de discussão e de representação de diferentes grupos através do voto. Mas como seria a discussão política por volta do período clássico (séculos V e IV a.C.)? A discussão política A ágora era um local fundamental de discussão política na Grécia Antiga. Tratava-se de um misto de local de comércio e convívio social, tal como viriam a ser as praças públicas posteriormente. Embora muito antiga, houve diversas mudanças na constituição das ágoras gregas, sendo a mais famosa a ágora ateniense. Por volta do século V a.C., o conjunto de atividades que ocorriam na ágora ateniense incluía atividades comerciais, culturais e de entretenimento/festa, políticas e até mesmo religiosas. A ágora pode ser descrita como espaço de reunião e convívio social. A ágora constituiria o símbolo maior da democracia ateniense, visto que permitia a participação dos cidadãos nos processos políticos. 6 Em geral, a ágora, no período clássico, era constituída de um grande espaço aberto, com edificações que eram erigidas ao seu redor para brigar algumas das inúmeras atividades que ocorriam neste espaço. Muitas vezes, a ágora ateniense abrigava as assembleias (embora nem todas ocorressem neste espaço). A assembleia grega seria uma reunião com poderes legislativos, ou seja, que definia aspectos importantes das decisões políticas da época. Como nos explica John Thompson (1998, p. 112): “Nas cidades-estado da Grécia Clássica, onde os cidadãos se reuniam em lugares comuns para debater questões, fazer propostas e tomar decisões, o exercício do poder político era relativamente visível: as intervenções e argumentações dos participantes podiam ser vistas e ouvidas por aqueles ali reunidos, e todos tinham direitos iguais de manifestar a própria opinião e de ser ouvido.” Nas assembleias, portanto, a política era realizada através da discussão, do convencimentoe do consenso. Os cidadãos gregos em idade produtiva, do sexo masculino e nascidos na pólis participavam das assembleias, ou seja, da política. Neste sentido, é um pouco fantasiosa a ideia de que a democracia grega era um modelo perfeito. Havia uma série de distorções, já que nem todos, de fato, poderiam participar das discussões políticas. Como atesta Thompson: “É certo que a assembleia grega era uma esfera pública de acesso restrito: somente homens atenieneses acima dos 20 anos podiam participar, e mulheres, escravos e ‘metecos’ (estrangeiros domiciliados em Atenas), entre outros, eram excluídos.”(THOMPSON, 1998, p. 113). Neste sentido, é interessante a provocação do autor grego Aristófanes, na comédia intitulada “Lisístrata” (ou “A greve do sexo”). Trata-se de uma comédia escrita em 411 a.C., na qual o autor, de modo irônico, apresenta uma crítica à política ateniense. As mulheres se reúnem secretamente para impedir que a guerra continue, pois não querem perder seus maridos na mesma. Assim, a personagem Lisístrata propõe uma greve de sexo até que a guerra seja interrompida. A peça é engraçada ainda hoje e já foi traduzida e encenada diversas vezes no Brasil. O mais interessante é notar como o autor coloca as mulheres para fazer política em uma época na qual sua presença não era permitida nas discussões políticas. Os regimes políticos enquanto conceitos Os regimes políticos atuais ainda carregam um pouco dos sentidos definidos pelos gregos no período clássico. Portanto, pode-se afirmar que é necessário entender estes regimes enquanto conceitos (hoje estudados principalmente na área da Ciência Política). Como afirma a autora Marilena Chauí (2004, p. 358): “Dois vocábulos gregos são empregados para compor as palavras que designam os regimes políticos: arkhé – o que está à frente, o que tem comando – e kratós – o poder ou autoridade suprema. 7 As palavras compostas com arkhé (arquia) designam a quantidade dos que estão no comando. As compostas com kratós (cracia) designam quem está no poder”. Portanto, ainda com base em Chauí (op. cit., p. 358-359), pode-se afirmar que: 1) No que se refere à quantidade dos que governam (ou ao princípio fundamental da governança), os gregos definiram os seguintes regimes políticos: 1.1) Monarquia – Governo de um só (monas); 1.2) Oligarquia – Governo de alguns (oligói); 1.3) Poliarquia – Governo de muitos (polos); 1.4) Anarquia – Governo de ninguém (ana). Já no que se refere a 2) quem detém o poder, os gregos definiram os seguintes regimes políticos: 2.1) Autocracia – poder de uma única pessoa (autós); 2.2) Aristocracia – poder dos melhores (aristói); 2.3) Democracia – poder de todos os grupos (demos). Estes conceitos a respeito dos regimes políticos são classificações definidas principalmente por Platão e Aristóteles. Em tempos de guerra e de corrupção, os regimes políticos, segundo esta classificação, podem ainda gerar situações temporárias de: 2.4) Timocracia – Poder dos guerreiros. 2.5) Plutocracia – Poder dos muito ricos. Aula 04: A transformação dos processos políticos: da antiguidade à modernidade A transformação na visibilidade dos processos políticos Se, na Antiguidade, os gregos valorizavam a ágora (e os romanos tinham o seu correspondente nos fóruns), a Idade Média modificou novamente as características principais das questões relativas ao poder e à organização das sociedades. Em uma época de intensas guerras e instabilidades política, a aliança entre a nobreza e o alto clero predominou por cerca de dez séculos. Durante este período, pode-se destacar a fé católica como uma justificativa para muitas das reflexões filosóficas e das ações ético-políticas. A visibilidade dos processos políticos na Idade Média Como Danilo Marcondes (2007, p. 105) afirma: “Durante muito tempo, a Idade Média foi conhecida como a ‘Idade das Trevas’, um período de obscurantismo e ideias retrógradas, marcado pelo atraso econômico e político do feudalismo, pelas guerras religiosas, pela ‘peste negra’ e pelo monopólio restritivo da Igreja nos campos da educação e da cultura.” 8 Embora esta ideia possa parecer exagerada a alguns, o fato é que a fragmentação das cidades em áreas rurais criou um retrocesso em termos políticos quando este período é comparado ao pensamento e às práticas políticas atenienses. Neste contexto, a figura do rei passa a ser valorizada como algo divino. Em um mundo cada vez mais teocêntrico (ou seja, Deus passa a ser o centro do universo e das preocupações humanas), o poder passa a ser cada vez mais teocrático. A este respeito, Marilena Chauí (2004, p. 364) ressalta que “O rei, porque escolhido por Deus, Dele recebe a lei, ou, como dizem os teólogos juristas, o rei traz a lei em seu peito e o que apraz ao rei tem força de lei. O rei é, portanto, a fonte da lei e da justiça – afirma-se que é pai da lei e filho da justiça. Sendo autor da lei e tendo o poder pela graça de Deus, está acima das leis e não pode ser julgado por ninguém, tendo poder absoluto.” Assim, seguindo este raciocínio, Chauí (op. cit., p. 364) afirma que: “No topo da hierarquia encontram-se o papa e o imperador. O primeiro possui o poder espiritual, o segundo, o temporal. Em decorrência da desaparição política dos centros urbanos (sobretudo de Roma como cidade universal) e do isolamento provocado pela ruralização da vida econômico-social e sua fragmentação, cada região possui um conjunto de senhores e que escolhe um chefe entre seus pares, garantindo-lhe – e à sua dinastia – a permanência indefinida no poder. Formam-se reinos por todo o território da Europa medieval.” E nos que se refere à visibilidade dos processos políticos durante a Idade Média, Thompson (2008, p. 113) afirma que: “Nos tradicionais estados monárquicos da Idade Média e início da Europa moderna, os negócios do Estado eram conduzidos nos círculos relativamente fechados da corte, de modo completamente invisível à maioria da população. Quando reis, princesas e lordes apareciam diante de seus súditos, eles o faziam apenas para afirmar seu poder publicamente (visivelmente), não para tornar públicas (visíveis) as razões em que assentavam suas decisões políticas. Suas aparições públicas eram eventos cuidadosamente encenados, cheios de pompa e cerimônia, nas quais a aura do monarca tanto se manifestava quanto se afirmava.” A visibilidade dos processos políticos na Modernidade A transição da Idade Média à Modernidade passa pelo período do Renascimento Europeu, nos séculos XV e XVI, em que várias mudanças ocorreram no que se refere à economia, à política, à cultura e ao saber. O desenvolvimento da burguesia a partir dos burgos (centros de comércio) e o renascer das cidades, juntamente com o desenvolvimento das universidades a partir, principalmente, do século XIII, são alguns dos elementos centrais deste processo. A burguesia, por um lado, torna-se uma força crescente em termos econômicos (e, posteriormente, políticos). 9 Já o desenvolvimento das universidades, ainda que permeadas por um ensino fortemente teológico, inicia um processo de revalorização das obras greco-latinas (nos séculos XIII e XIV, principalmente a obra de Aristóteles) que começam a ser traduzidas para as línguas vernáculas. Pouco a pouco, tanto as práticas quanto o pensamento político começam a se transformar. Alguns nomes se destacam, neste contexto, por suas obras. Em um primeiro momento, no século XVI, a obra intitulada O príncipe, de Nicolau Maquiavel, destaca-se como uma obra que influi no pensamento ético-político até os dias atuais. No século XVII, a obra de Thomas Hobbes também alcança um lugar importante na história do pensamento políticoocidental. No que se refere à visibilidade dos processos políticos na Modernidade, pensando em seu desenvolvimento entre os séculos XVI e XIX, Thompson (2008, p. 113) afirma que : “Com o desenvolvimento do Estado constitucional moderno, a invisibilidade do poder começou a ser limitada de alguma maneira. O gabinete secreto foi substituído ou suplementado por uma série de instituições de caráter mais aberto e ‘responsável’; decisões políticas importantes eram sujeitas a debate dentro de assembleias parlamentares; e aos cidadãos foram concedidos certos direitos básicos, em alguns casos formalmente reconhecidos pela lei, que garantia, entre outras coisas, sua liberdade de expressão e de associação.” O Pensamento político na Modernidade: Maquiavel e o príncipe Quando se pensa na obra de Maquiavel sem conhecê-la profundamente, o senso comum a associa a algo negativo. Em termos éticos, ser considerado maquiavélico é ser visto como alguém destituído de escrúpulos e que faz o que é necessário para conseguir seus objetivos, usando racionalmente as pessoas como meios e não como fins em si mesmas. Isto não pode ser considerado completamente falso, pois a leitura da obra em questão, O príncipe, pode levar a algumas conclusões neste sentido. Porém, há bastante exagero a este respeito. Em geral, esta visão se deve a um olhar superficial sobre a obra de Maquiavel. Escrito em 1513, O príncipe é um dos escritos políticos de Nicolau Maquiavel, um autor que vivenciou a política de perto e depois viveu em certa reclusão enquanto escrevia suas principais obras. Trata-se de uma obra que discute os tipos de principado e as formas de governança do príncipe. É um escrito que determina alguns procedimentos para que o príncipe seja bem- sucedido na tarefa de governar seus súditos e seu povo. É importante ressaltar que, nesta obra, Maquiavel cita exemplos reais italianos, franceses, turcos etc., demonstrando bastante conhecimento da política praticada em seu tempo e mesmo em períodos anteriores. O príncipe, segundo Maquiavel, constitui-se como um “condutor” e precisa tomar decisões difíceis, em alguns momentos governando mais através da força do que do consenso. Os conceitos de virtú (capacidade de liderança e tomada decisória através da adaptação diante dos acontecimentos) e fortuna (circunstâncias que o príncipe não controla) são recorrentemente citados ao longo desta obra. 10 Assim, o príncipe maquiavélico é alguém flexível diante da realidade concreta. Não há separação entre teoria e prática em Maquiavel, sendo este um autor que abandonou as ideias utópicas de governantes perfeitos e circunstâncias ideais de governo. Nesta obra, o príncipe é o governante do principado, ou seja, aquele que adquire o poder de nascença. Não se trata, portanto, de uma discussão sobre os processos de governo republicanos, como o próprio autor afirma no início da obra: “Não cogitarei aqui das repúblicas porque delas tratei longamente em outra oportunidade. Voltarei minha atenção somente para os principados, irei delineando os princípios descritos e discutirei como devem ser eles governados e mantidos” (MAQUIAVEL, 2005. p. 11). Assim, o autor apresenta diversos exemplos concretos e discute a política com base na materialidade dos fatos disponíveis em sua época. Estes exemplos vão desde Moisés, na condução do povo judaico (conforme o Velho Testamento), até os exemplos (contemporâneos do autor) dos povos turco e francês, dentre outros. Segundo Chauí, a respeito da obra em questão: “Esta obra funda o pensamento político moderno porque busca oferecer respostas novas a uma situação histórica nova, que seus contemporâneos tentavam compreender lendo os autores antigos, deixando de lado a observação direta dos acontecimentos que ocorriam diante de seus olhos.” (CHAUÍ, 2004, p. 368) O príncipe, para Maquiavel, precisa estar atento às circunstâncias de seu governo e não deve ser odiado por seu povo. Neste sentido, precisa conduzir com força e vontade, além de sabedoria, cada uma das inúmeras decisões que se apresentam cotidianamente. A virtú do príncipe, para o autor, está mais relacionada à capacidade de adaptar-se às situações novas sem perder a condução do governo do que às virtudes propriamente éticas (ou seja, justificáveis perante a coletividade social). A este respeito, segundo Chauí (2004, op. cit., p. 370), “Maquiavel inaugura a ideia de valores políticos medidos pela eficácia prática e pela utilidade social, afastados dos padrões que regulam a moralidade privada dos indivíduos”. Com base na análise do texto de Maquiavel, pelo autor Aluizio Alves Filho (2009), pode- se chegar à conclusão de que a teoria proposta pelo autor florentino, para a manutenção do poder político, se baseia em três pilares fundamentais: 1 – Legitimidade (trata-se de um poder usualmente adquirido, o que significa que não é qualquer pessoa que pode ocupar esta posição); 2 – Organização (capacidade de tratar de muitas coisas e com muitas partes a todo o tempo); 3 – Flexibilidade (capacidade de tomar as decisões corretas, em termos pragmáticos, no momento em que as diversas situações se apresentam). Aula 05: A constituição da dicotomia “público x privado” A modernidade e o pensamento político Algo que caracteriza não somente os processos políticos (mas também os artísticos), na modernidade, foi a retomada da cultura greco-latina. Deste modo, a noção de política, tal como nos gregos, volta a ser discutida pelos pensadores modernos. Porém, adaptada a um novo contexto histórico. 11 Então, a noção do que era política para os gregos e sua relação com a ordenação dos grupos (as demos) em um território comum, volta a ser pensada. A noção de bem comum (to agathon) grega, ou da coisa pública (res publica) romana voltam a ser cada vez mais importantes a partir do século XVI, ou seja, do Renascimento. Se Maquiavel foi fundamental para a compreensão do papel do príncipe enquanto um condutor pragmático e capaz de se adaptar aos acontecimentos vigentes em sua época, foi o inglês Thomas Hobbes que escreveu uma obra capaz de pensar a figura do Estado (comparando-o metaforicamente a um ser bíblico poderoso) como fundamental para reconfigurar a vida dos homens no espaço público. A distinção “público X privado” Neste sentido, é fundamental compreender esta distinção: “público x privado”, uma dicotomia (ou seja, oposição de termos) que apresenta uma interessante e complexa polissemia (multiplicidade de significados) entre os séculos XVI e XXI. Para a compreensão desta oposição, é necessária uma retomada do sentido da política para os gregos, tal como já fora analisado por diversos autores do pensamento político moderno e contemporâneo. A vida política como “vida em comum” Sobre o sentido da política para os gregos, nas palavras de Hannah Arendt (2007, p. 35-36): “O ser político, o viver numa polis, significava que tudo era decidido mediante palavras e persuasão, e não através de força ou violência. Para os gregos, forçar alguém mediante violência, ordenar ao invés de persuadir, eram modos pré-políticos de lidar com as pessoas, típicos da vida fora da polis, característicos do lar e da vida em família, na qual o chefe da casa imperava com poderes incontestes e despóticos, ou da vida nos impérios bárbaros da Ásia, cujo despotismo era frequentemente comparado à organização doméstica”. Ou seja, o político (o comum) se opunha ao particular, ao familiar. A vida em família era regida pela necessidade de sobrevivência e pela desigualdade nas funções domésticas. Já a vida na polis, as atividades constituintes do “bios político”, eram atividades entre iguais e baseadas na liberdade e na conquista da eudaimonia (felicidade, “bem viver”). A autora discute,em seu livro A condição humana, o quanto a oposição inicial entre o político e o não político vai se transformando na distinção entre o público e o privado. Não haveria, de fato, o termo privado na Grécia antiga. Porém, nos últimos períodos da civilização romana, a ideia de privado remetia literalmente às privações pelas quais cada pessoa e suas famílias deveriam passar. A partir da noção de socius (ou social), que também não era grega, mas latina, as coisas foram se modificando. Ao pensar em sociedade, palavra que remete já ao período moderno, tanto o público quanto o privado estão englobados nesta esfera social. Ou seja, já não se trata mais de uma simples oposição entre a “vida em comum” como vida política e a vida doméstica 12 enquanto vida não política. Na modernidade, tanto a vida privada quanto a pública fazem parte da vida social. A constituição dos Estados Nacionais, entre os séculos XVI e XIX, fortaleceu a noção de sociedade enquanto forma de organização coletiva, em que a centralidade do Estado organiza e efetua a manutenção da esfera social. A esfera pública como esfera do comum Arendt (2007, p. 59-60) apresenta dois sentidos para o termo público: 1) É aquilo que tornamos visível a outras pessoas; 2) É o próprio mundo constituído pelo homem, ou seja, a realidade comum que partilhamos enquanto seres sociais. Pode-se concluir, portanto, que, na concepção de Arendt, a esfera pública também se constitui a partir da “vida em comum” (seja pela partilha simbólica ou concreta entre os indivíduos que pertencem a uma determinada coletividade). A esfera privada como esfera do particular No que se refere ao termo privado, Arendt (op. cit., p. 68) afirma, correlacionando aos sentidos já apresentados de público: “É em relação a esta múltipla importância da esfera pública que o termo ‘privado’, em sua acepção original de ‘privação’, tem significado. Para o indivíduo, viver uma vida inteiramente privada significa, acima de tudo, ser destituído de coisas essenciais à vida verdadeiramente humana: ser privado da realidade que advém do fato de ser visto e ouvido por outros, privado de uma relação ‘objetiva’ com eles decorrente do fato de ligar-se e separar-se deles mediante um mundo comum de coisas, e privado da possibilidade de realizar algo mais permanente que a própria vida”. Porém, a mesma autora chama a atenção para o fato de que o crescimento da importância do termo “social” como algo que engloba tanto a esfera pública quanto a privada fez com que a noção de privado fosse cada vez mais valorizada. Isto reside no fato de que a propriedade particular passa também a ser valorizada como algo sagrado e capaz de permitir a ascensão social. O fortalecimento da burguesia e a Reforma Protestante, a partir do século XVI, contribuíram para esta transformação simbólica. Concluindo, Arendt (op. cit. p. 78-83), reflete sobre o fato de que nem tudo que é privado é fútil ou inútil. O público e o privado são dois âmbitos distintos da existência em sociedade. Cada um possui o seu lugar adequado na vida social contemporânea. 13 A dicotomia público X privado no pensamento de John B. Thompson Em seu livro A mídia e a modernidade, Thompson (2008, p. 109-133) também analisa a distinção “público X privado”. Assim como Arendt, este autor reafirma a polissemia (multiplicidade sentidos) desta dicotomia. Para Thompson, na Modernidade Ocidental da formação dos Estados Nacionais, entre os séculos XVI e XIX, esta oposição adquire o seguinte sentido: 1) Público: O que é de todos e, portanto, necessita da presença do Estado enquanto representação dessa coletividade. Um exemplo é a praça pública, espaço de convivência aberto à coletividade e mantido pelo Estado (no que se refere à limpeza e à segurança). 2) Privado: O que é particular, familiar. Um exemplo é o do espaço privado, uma propriedade particular cuja limpeza, dentro dos limites da propriedade, é de responsabilidade de seus donos. Nas palavras do próprio autor (THOMPSON, 2008, p. 110): “O primeiro sentido da dicotomia tem a ver com a relação entre o domínio do poder político institucionalizado, que cada vez mais era exercido por um Estado soberan o, por um lado, e o domínio da atividade econômica e das relações pessoais, que fugiam do controle direto do poder político, por outro lado. Assim, a partir de meados do século XVI em diante, ‘público’ começou a significar atividade ou autoridade relativa ao estado e dele derivada, enquanto ‘privado’ se referia às atividades ou esferas da vida que eram excluídas ou separadas daquela”. Mas Thompson também apresenta, neste mesmo livro, a ideia de que o sentido mais usual da dicotomia nos dias atuais, por conta da presença dos meios de comunicação de massa contemporâneos, como a televisão (em que o caráter audiovisual é predominante), é o seguinte: 1) Público: aquilo que é visível a um número grande de pessoas; 2) Privado: o que é invisível a um número maior de pessoas, o que permanece na esfera da intimidade. Nas palavras do próprio autor (THOMPSON, 2008, p. 112), “Neste sentido, a dicotomia tem a ver com publicidade versus privacidade, com abertura versus segredo, com visibilidade versus invisibilidade. Um ato público é um ato visível, realizado abertamente para que qualquer um possa ver; um ato privado é invisível, realizado secretamente atrás de portas fechadas”. O pensamento político na modernidade: Hobbes e o Leviatã A discussão sobre a dicotomia “público x privado” é um elemento fundamental para o desenvolvimento das práticas e do discurso político moderno. Nesta discussão, fica evidente a presença cada vez mais proeminente do Estado enquanto instância de deliberação e manutenção da vida social. 14 A este respeito, a obra de Thomas Hobbes, escrita no século XVII, constitui uma importante ferramenta conceitual para a compreensão do papel do Estado moderno e sua importância crescente a partir do século XVI. Publicado em 1651, o livro intitulado Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil, esta obra é importante para o pensamento político até os dias atuais, pois trata da soberania do Estado como forma de administração da coletividade. Hobbes foi um pensador prolífico, que viveu mais de 90 anos e escreveu bastante. Nascido na Inglaterra, viajou por diferentes países e chegou a conhecer Galileu Galilei, por quem foi influenciado. Neste sentido, sendo matemático e seguindo a concepção do universo a partir de pensadores como Galileu (dando valor à Física), Hobbes trata da matéria como algo essencial para a definição do que é real. Deste modo, a noção de corpo é importante em sua obra. Existe o corpo natural (corpo material dos seres humanos) e o corpo político (materializado institucionalmente). Hobbes vivenciou um longo período de guerra e foi um pensador pessimista com relação à natureza humana. Acreditava que os seres humanos surgiam em um estado natural ou de natureza, constituído pela barbárie dos desejos e paixões individuais. Cada homem consegue tudo aquilo que pode obter através da força e da astúcia e mantém estas coisas pelo tempo que consegue. Trata-se, na concepção deste pensador, de uma guerra constante de todos contra todos, em que o “homem é o lobo do homem”. A evolução do próprio homem, que se dedica ao intelecto e ao conhecimento e não apenas às próprias paixões corpóreas exige a mudança para um estado em que é necessário um “contrato social”. Mais do que a felicidade, Hobbes preocupava-se com a conquista da paz (ou viver sem o medo cotidiano dos ataques alheios). O contrato verbal entre os homens não é suficientemente forte (visto que são maus e egoístas por natureza) para manter esta paz social.É preciso, portanto, de um corpo artificial e coercitivo que materialize institucionalmente a lei justa e o direito de cada habitante daquela sociedade. É preciso que este corpo artificial seja suficientemente forte para manter a organização social coesa. Manter a ordem só é possível através da força. Se Maquiavel já havia apresentado a figura do príncipe como capaz de governar através da força (quando necessário), Hobbes trata deste corpo potente, ou seja, o Estado, como um corpo capaz de dispor da força de modo institucionalizado. Este Estado soberano é comparado pelo autor inglês à figura bíblica do Leviatã, para que fique evidente sua força e seu tamanho. Este Estado centralizador, em Hobbes, pode ser atribuído às monarquias absolutistas de sua época. Porém, o autor define o soberano tanto como uma pessoa quanto como uma assembleia constituída. Nas palavras do próprio autor (HOBBES, s/d, p. 91): 15 “Em todos os Estados o legislador é unicamente o soberano, seja este um homem, como em uma monarquia, ou uma assembleia, como em uma democracia ou em uma aristocracia. Porque o legislador é aquele que faz a lei. E só o Estado prescreve e ordena a observância daquelas regras a que chamamos leis, portanto o Estado é o único legislador. Mas o Estado só é uma pessoa, com capacidade para fazer seja o que for, através do representante (isto é, o soberano), portanto o soberano é o único legislador. Pela mesma razão, ninguém pode revogar uma lei já feita a não ser o soberano, porque uma lei só pode ser revogada por outra lei, que proíba sua execução”. Aula 06: Da modernidade à contemporaneidade: a midiatização dos processos políticos Os processos políticos e suas mediações Para compreender melhor a transição dos processos políticos entre a Modernidade e a Contemporaneidade, é preciso conhecer as mediações fundamentais para as práticas políticas. O autor John B. Thompson, em seu texto intitulado “A transformação da visibilidade”, realiza uma análise dos processos de mediação das práticas políticas ao longo dos tempos. Uma mediação é uma espécie de “ponte”, de elo entre duas partes. No texto em questão, Thompson discute a transformação da visibilidade dos processos políticos ao longo dos tempos, apresentando três tipos de eventos relacionados à política que possuem características próprias: 1) Os eventos de copresença; 2) Os eventos de publicidade mediada; 3) Os eventos de publicidade mediada pela televisão. 1) Os eventos de copresença: Os eventos copresenciais são aqueles em que a presença de todos os envolvidos ocorre simultaneamente (em conjunto). Trata-se, por exemplo, das discussões na ágora grega, na qual o orador político fala ao mesmo tempo em que todos os participantes estão reunidos. Outro exemplo seria, nos dias atuais, um comício político ou uma reunião partidária, em que todos os participantes estão presentes ao mesmo tempo em determinado recinto, praça pública etc. 16 Os eventos copresenciais, em princípio, não são mediados por qualquer tipo de meio de comunicação a distância. Eles não foram completamente suplantados pela evolução dos meios de comunicação humana, mas hoje existem outros tipos de eventos políticos. É possível afirmar que os eventos de copresença predominaram na política até a Modernidade, pois, mesmo com o advento da escrita, a oralidade constituía um elemento fundamental dos processos políticos. A partir do advento da prensa tipográfica, na Europa do século XV, as coisas começaram a se modificar neste sentido. A Modernidade é o período em que a comunicação a distância adquiriu proporções até então inéditas, chegando mesmo à noção de uma comunicação de massa (já pensando nos veículos como os jornais impressos do século XIX). Segundo Thompson (2008, p. 114), “Antes do desenvolvimento da mídia, a publicidade dos indivíduos ou dos acontecimentos era ligada ao compartilhamento de um lugar comum. Um evento se tornava público quando representado diante de uma pluralidade de indivíduos fisicamente presentes à sua ocorrência – como, por exemplo, uma execução pública na Europa medieval, realizada diante de um grupo de espectadores reunidos na praça do mercado público. Descreverei isto como “publicidade tradicional de copresença”. Este tipo tradicional de publicidade serviu-se, e se constituiu, da riqueza de deixas simbólicas características da interação face a face.” 2) Os eventos de publicidade mediada Os eventos de publicidade mediada são aqueles em que passa a existir a mediação através de algum tipo de meio de comunicação a distância. Em princípio, pode até se tratar da escrita, mas o fato é que estes eventos passaram a ocorrer sistematicamente a partir da Modernidade europeia e do advento dos impressos. A velocidade de difusão e a fidedignidade com relação às mensagens originais dos impressos eram tamanhas (se comparadas às dos manuscritos) possibilitando, por exemplo, que diversos eventos políticos fossem influenciados por palavras e oradores que não estavam necessariamente presentes ao evento. Em alguns casos, houve (e ainda há) até mesmo a influência do discurso de pessoas que já haviam falecido em eventos políticos de grande importância, tal como a Revolução Francesa. Nos eventos de publicidade mediada, aquele que proferiu o discurso político não está presente no momento em que suas palavras estão sendo passadas adiante. Não há portanto, a visibilidade direta com relação ao orador. Além disso, é preciso a mediação do código escrito (mesmo no caso dos impressos), ou seja, apenas os indivíduos alfabetizados conseguem ler e interpretar corretamente os escritos/impressos. Posteriormente, já no século XX, o uso cada vez mais comum das gravações sonoras e das transmissões radiofônicas estendeu as possibilidades dos eventos políticos de publicidade mediada. Segundo Thompson (2008, p. 114), “O desenvolvimento da mídia criou novas formas de publicidade que são bem diferentes da publicidade tradicional de copresença. A característica fundamental destas novas formas é que, com a extensão da disponibilidade oferecida pela mídia, a publicidade de indivíduos, ações ou eventos, não está mais limitada à partilha de um lugar comum. Ações e eventos podem se tornar públicos pela gravação e transmissão para outros fisicamente distantes do tempo e do espaço de suas ocorrências.” 17 3) Os eventos de publicidade mediada pela televisão A partir de meados do século XX, o advento da televisão fez com que fosse inaugurado um novo tipo de evento político: a publicidade mediada pela televisão. Embora seja, de fato, uma publicidade mediada, esta nova modalidade, para Thompson, exibe algumas características que fazem dela bastante distinta. O espectador televisivo pode ter acesso audiovisual ao orador político, de modo que este tipo de evento cria, por vezes, uma impressão de copresença. Assim como o cinema, a televisão acentua o sentido da visão, elevando-o a um novo patamar em termos históricos. Os eventos de publicidade mediada pela televisão: Assim como na copresença, as deixas simbólicas causadas pela observação audiovisual entre público e orador permitem uma relação que lembra a interação face a face. Nas palavras do autor (THOMPSON, 2008, p. 117): “A televisão assim permite aos receptores a visão de pessoas, ações e eventos, bem como a audição de palavras faladas e de outros sons. A publicidade de eventos, ações e pessoas é religada à capacidade de serem vistas e ouvidas por outros. Na idade da televisão, a visibilidade no estreito sentido de visão – a capacidade de ser visto com os olhos – é elevada a um novo nível de significado histórico.” Porém, Thompson (op. cit., p. 117-118) apresenta algumas diferenças fundamentais entrea publicidade tradicional de copresença e a publicidade mediada pela televisão. Segundo o autor, esta nova forma de evento político: 1) Faz com que o alcance do próprio evento seja ampliado em termos dos contextos espacial e/ou temporal; 2) Altera o campo de visão do espectador. Este campo passa a ser gerado e controlado artificialmente pelos produtores do conteúdo difundido. Desta forma, para o espectador, este é um campo de visão mais extenso em termos de alcance e mais restrito em termos de escolha. 3) Há uma unidirecionalidade no processo visual. Ao contrário dos contextos copresenciais, em que todos os presentes podem ver e ser vistos simultaneamente, neste tipo de evento, o orador é visto, mas não vê os espectadores e suas reações. A midiatização dos processos políticos O processo de midiatização em curso, no mundo globalizado, desde a segunda metade do século XX, amplia, cada vez mais, o número de eventos de publicidade mediada pela televisão (incluindo hoje, também, as possibilidades mais recentes de difusão audiovisual trazidas pelas mídias digitais). A midiatização constitui um processo complexo e cada vez mais estudado por diversos autores do campo da Comunicação Social. Dentre eles, o autor Muniz Sodré apresenta a ideia 18 de que é necessário, para uma melhor compreensão da contemporaneidade, admitir a existência de um “bios midiático”, retomando a teoria aristotélica (vista na aula 2). Segundo Sodré (2002, p. 21-28), trata-se de uma quarta bios, ou seja, um novo gênero qualificativo da vida em sociedade. Este bios, por sua vez, é regido pela tecnocultura do mundo globalizado, o que implica necessariamente em sua subordinação à esfera dos negócios capitalistas contemporâneos. O processo de midiatização consiste em um conjunto de mediações específicas do mundo contemporâneo. Este conjunto de mediações é fruto do desenvolvimento midiático, o que compreende tanto o conjunto de tecnologias de comunicação e informação quanto as próprias empresas de comunicação que produzem e difundem conteúdo informativo e de entretenimento. O autor John Thompson (2008, p. 132-133) chama a atenção para o fato de que se vive, no mundo contemporâneo, uma espécie de “escrutínio global”. Isto significa que a vida dos políticos está devassada pelos meios de comunicação. Deste modo, vive-se o paradoxo de que os políticos nunca tiveram tantos artifícios à sua disposição para constituir de modo cuidadoso uma imagem pública, ao mesmo tempo em que nunca estiveram tão frágeis diante das possibilidades de reconfiguração desta mesma imagem pelos meios de comunicação de massa. Assim, Thompson discute a importância da administração da visibilidade pelos políticos na contemporaneidade. Embora sempre tenha havido algum tipo de administração da imagem pública (no caso dos reis medievais, por exemplo, que controlavam suas aparições diante da população, restringindo-as a momentos e modos específicos), o mundo contemporâneo ampliou a complexidade desta administração pelos agentes políticos. Thompson, então, apresenta quatro tipos de ocorrências que podem abalar a imagem pública de um agente político nos dias atuais: 1) Gafes e acessos explosivos; 2) O desempenho de efeito contrário; 3) O vazamento; 4) O escândalo. 1) Gafes e acessos explosivos Constituem momentos em que os agentes políticos demonstram, aos olhos do público, certo despreparo para a função que exercem. Espera-se dos políticos conhecimento e domínio das situações diplomáticas, além de controle emocional na tomada de decisões. 2) O desempenho de efeito contrário Pode ser muito prejudicial para a imagem do agente político. Demonstra falta de cuidado ou excesso de confiança ao calcular suas ações e decisões públicas. 19 3) O vazamento Demonstra falta de coesão interna na equipe do agente político. 4) O escândalo Trata-se da pior ocorrência possível para a imagem do agente político. O escândalo necessariamente está ligado à descoberta de ações e procedimentos que contrariam a moralidade vigente no país ou região em que o político reside e atua (e, consequentemente, representa). Aula 07: O pensamento de Michel Foucault: análise das práticas de poder na modernidade O pensamento conceitual contemporâneo e a obra de Michel Foucault Nascido na França, Michel Foucault (1926-1984) foi um misto de filósofo, historiador e filólogo, constituindo-se como um pensador interdisciplinar. A obra de Michel Foucault é de grande importância para o pensamento contemporâneo. Trata-se, sem nenhuma dúvida, de um autor muito exaltado e/ou criticado, mas estudado em diversos campos do saber. Na segunda metade do século XX, Foucault se destaca como um dos autores mais importantes e mais estudados. A pluralidade de seus escritos impressiona, além das mudanças que os mesmos trouxeram para o modo como a análise social é feita atualmente. Constituindo-se enquanto teórico a partir de influências diversas, seu pensamento, dependendo da obra, recebe distintas classificações, tais como: estruturalista, pós-estruturalista, e pós-moderno. Embora não aceitasse nenhuma destas classificações, Foucault foi um grande crítico do pensamento moderno, rompendo com (ou repensando) conceitos como: identidade, sujeito e poder. Alguns dos temas que tratou ao longo de sua vida, a partir de uma perspectiva (em princípio) histórica: a sexualidade, a constituição das práticas de saber, a constituição das práticas de poder, a loucura, a prisão etc. Os diferentes temas citados são abordados por Foucault, ao longo de sua obra, de forma articulada e interligada, de modo que, por exemplo, o autor necessariamente relaciona as práticas de poder e de saber como constituintes dos modos de controle sociais. Foucault, ao longo de sua obra, efetuou a proposição de duas vertentes metodológicas inovadoras: 20 a arqueologia e a genealogia. São termos metafóricos, mas que apresentam proposições importantes do ponto de vista da constituição dos saberes. Estas proposições metodológicas fundamentam sua crítica às práticas de saber modernas. No caso da arqueologia, o autor propõe “escavar” as evidências “subterrâneas”, “soterradas”, de modo a fazer emergir saberes pouco estudados pelas instituições legitimadoras das práticas de saber (tal como a Universidade). Foucault preocupava-se, por exemplo, com aquelas vozes pouco ouvidas socialmente, vozes silenciadas pelas próprias instituições enquanto legitimadoras de determinadas práticas de poder e de saber. O autor considerava estas duas práticas de natureza distinta muito importantes no que se refere à organização social e à formação ordenada de um discurso institucionalmente legitimado a respeito das normas que regem a sociedade. Portanto, enquanto a sociedade buscava a fala dos médicos para discutir a loucura, Foucault estava interessado na voz silenciada do próprio paciente, do louco. Enquanto a sociedade estava interessada na fala da polícia e dos juízes para discutir as prisões, Foucault estava interessado nas falas e evidências relacionadas aos presos. Não se trata de defender estes agentes sociais, mas de garantir visibilidade também às suas falas e vivências, aos seus registros e existência. Isto pode ser feito através da análise destes discursos socialmente invisíveis, tornando- os visíveis. Como afirma Danilo Marcondes (2007, p. 276-277), “A arqueologia como método de análise do discurso de um determinado saber ou ciência consiste em uma tentativa de tornar explícitos os elementos implícitos e subjacentes a este saber e ao conjunto de práticas que estabelece”. No caso da genealogia,Foucault realiza (a partir da influência de Nietzsche) uma crítica à História enquanto disciplina, visto que esta legitimaria a cronologia e ordenação dos acontecimentos e períodos temporais a partir da fala dos vencedores dos principais conflitos ocorridos. Assim, o autor defendia que é preciso substituir a História pela genealogia, que seria a reconstituição geral dos fatos, acontecimentos e características das estruturas sociais a partir das relações cotidianas, daquilo que é mais próximo, invertendo a lógica moderna. Ao invés de narrar os fatos de cima para baixo (a partir dos vencedores e das instâncias de legitimação valorizadas, tais como o Estado), dever-se-ia proceder de baixo para cima, a partir 21 das microrrelações cotidianas para a constituição mais geral da compreensão das práticas sociais e sua relação com as instituições legitimadoras. Trata-se de um movimento que pode ser, de fato, comparado ao da constituição de uma árvore genealógica, na qual uma família pensa a sua existência a partir da geração atual para as anterioes. Assim, no que se refere à genealogia foucaultiana enquanto método, Marcondes (2007, p. 277) afirma que : “A genealogia consiste assim em uma análise histórica da formação de determinados discursos que constituem um saber, ou saberes, relacionando-os com formas de exercício do poder em um contexto social e cultural específico. Não se trata tanto do poder institucional, de uma análise política do Estado, por exemplo, mas sobretudo de como o poder se exerce de forma difusa através de certas práticas em uma cultura e em um momento histórico determinados”. Ainda conforme as palavras de Danilo Marcondes (2007, p. 276), a respeito da obra do pensador francês: “A obra de Michel Foucault – por sua originalidade, suas hipóteses ousadas, seu caráter contestador de valores e práticas estabelecidas e sua análise inovadora – teve grande importância nos anos 1970 e 1980, influenciando muitas vertentes, inclusive no Brasil, a partir da metodologia que propôs, a arqueologia e a genealogia. Conforme ele próprio afirma, as influências que o marcaram inicialmente foram Freud, Marx e Nietzsche, sobretudo a leitura feita por Heidegger de Nietzsche”. As sociedades disciplinares No que se refere às questões políticas propriamente, o pensamento de Foucault é importante, pois o mesmo realiza, na obra intitulada Vigiar e punir, uma análise das práticas de poder na Modernidade. O autor assume uma posição clara a respeito de sua análise das questões referentes ao poder: 1)Em primeiro lugar, relaciona as práticas de poder e saber ao longo da história, pois percebe que determinadas práticas de poder legitimam as práticas de saber e vice-versa. O autor não trata o poder (assim como o saber) como algo abstrato, mas como práticas institucionalizadas, reafirmadas local e cotidianamente. Ou seja, Foucault não acredita no “poder” como algo absoluto e abstrato. O autor está mais interessado nas práticas de poder que permeiam as microrrelações (ou microfísicas) cotidianas. Segundo o autor, ninguém detém o “poder” de modo perene. Para o pensador francês, as práticas de poder, por serem concretas, se inscrevem nos corpos dos indivíduos (de diferentes formas, dependendo do período histórico). No que se refere à Modernidade, Foucault situa as práticas de poder a partir de seu caráter disciplinar. O nome sociedade disciplinar (ou sociedades disciplinares) é atribuído ao modo como as práticas de poder se constituem na modernidade europeia, principalmente entre o século XVIII e meados do século XX. Foucault define que é o conjunto de regras (caráter disciplinar) referente à necessidade de ordenação racional deste novo espaço urbano (que se está constituindo como decorrência do crescimento das cidades e da Revolução Industrial) a característica fundamental para a compreensão das práticas de poder modernas. 22 Em todas as sociedades humanas, há algum tipo de norma ou disciplina a ser seguida. Portanto, caracterizar as práticas de poder da modernidade europeia enquanto disciplinares relaciona-se ao fato de que não apenas existe disciplina, mas há uma crescente relação entre a necessidade de disciplinar os corpos humanos e o crescimento do sistema capitalista. Como se verá na próxima aula, no entendimento de Foucault, a prisão passa a ser um modelo exemplar de estrutura arquitetônica disciplinar moderna. O objetivo de grande parte das práticas de poder modernas é o de disciplinar os corpos, tornando-os dóceis para o trabalho fabril. Ao realizar sua análise das práticas de poder modernas, Foucault as compara às práticas de poder medievais, denominando estas de sociedades de soberania. As sociedades de soberania possuem, segundo o autor, práticas de poder centradas na figura de um soberano (reis e papas). Nas sociedades de soberania, aquele que desrespeita alguma norma importante é excluído da sociedade pelo soberano. Pode ser trancado em uma masmorra escura (longe dos olhos alheios) ou expulso do reino. Existe ainda a execução em praça pública, para que sirva de exemplo a outros. Já nas sociedades disciplinares, aquele que desrespeita alguma regra deve ser punido de modo a poder, novamente, ser socializado no mundo do trabalho. É preciso, devido ao aumento populacional e a uma série de decorrências do próprio processo de urbanização, obter de modo eficaz a e racional a punição dos indivíduos. Nas palavras do próprio Foucault (1979, p. 188): “Este novo tipo de poder, que não pode mais ser transcrito nos termos da soberania, é uma das grandes invenções da sociedade burguesa. Ele foi um instrumento fundamental para a constituição do capitalismo industrial e do tipo de sociedade que lhe é correspondente; este poder não soberano, alheio à forma da soberania, é o poder disciplinar”. Aula 08: O dispositivo panóptico como prática de poder disciplinar O Panoptismo Como visto na aula anterior, o autor Michel Foucault efetuou uma análise das práticas de poder na Modernidade europeia. Apesar do caráter reflexivo desta análise, o autor buscou uma série de evidências empíricas para chegar a algumas conclusões. Segundo Danilo Marcondes (2007, p. 277), a respeito do método de Foucault: “Seu método de análise se pretende crítico em um sentido diverso do que encontramos na filosofia crítica de Kant à Escola de Frankfurt, já que visa explicitar o implícito e mostrar relações entre os saberes e as formas de exercer o poder em nossa cultura até então não detectadas. Seu trabalho se define, portanto, mais como história das ideias ou da cultura, como ele mesmo admite, do que como vinculado à filosofia em seu sentido estrito ou tradicional, uma 23 vez que envolve um conhecimento profundo de história, uma análise documental, e uma pesquisa de campo, que normalmente não pertencem a uma à metodologia filosófica. Entretanto, esse tipo de análise se caracteriza exatamente por sua natureza interdisciplinar e por romper com as fronteiras tradicionais das disciplinas e áreas do saber.” Uma das características fundamentais das Sociedades Disciplinares seria, para Foucault, o panoptismo enquanto instrumento disciplinar. Trata-se de uma relação de poder que ganha forma através de dispositivos arquitetônicos construídos para garantir uma determinada relação de visibilidade entre os que exercem a prática de poder e os que são alvo desta mesma prática. O panoptismo é uma relação diretamente ligada à centralidade do dispositivo panóptico. O significado desta palavra/conceito seria: a) Pan = Total b) Óptico = Visão c) Panóptico = Visão total. Deste modo, o panoptismo é uma relação de visão total (ou global) entre um vigilante e um vigiado. Comoa Modernidade passou a racionalizar o espaço social, foi preciso encontrar mecanismos que disciplinassem os corpos para o trabalho fabril. Neste sentido, a violência utilizada nas sociedades de soberania era muito custosa e difícil de ser aplicada em um contexto cada vez mais massivo. Era preciso utilizar dispositivos que pudessem servir para um número grande de pessoas ao mesmo tempo. O panoptismo seria esta relação de vigilância e punição característica da organização política moderna. Foucault percebe uma correspondência no modo como a medicina, a educação e a repressão social se transformam a partir do período Moderno, tendo em comum esta relação de visibilidade disciplinar. No livro intitulado Vigiar e Punir, o terceiro capítulo é dedicado à explicação da relação panóptica e do dispositivo panóptico. O capítulo é intitulado justamente “O panoptismo”. Foucault inicia o texto em questão com uma comparação entre as distintas abordagens para a contenção da Lepra, no século XIV, e da peste, no século XVII. O autor percebe que o sistema usado no século XVII envolvia uma racionalização da observação sobre os doentes, na qual a regularidade do exame se fazia notar. Tratava-se de um tipo de quarentena em que era possível reintegrar, através da observação sistemática, alguns doentes à sociedade, mediante a visibilidade de sua melhora. Trata-se de um sistema onde os doentes ficavam confinados em suas casas, mas as mesmas eram observadas (através das janelas) diariamente. Este sistema ordenado e passível de um registro diário começa a constituir, segundo o autor, uma relação cada vez mais características da Modernidade europeia. Conforme as palavras do próprio Foucault (1987, p. 163): “Esse espaço fechado, recortado, vigiado em todos os seus pontos, onde os indivíduos estão inseridos em um lugar fixo, 24 onde os menores movimentos são controlados, onde todos os acontecimentos são registrados, onde um trabalho ininterrupto de escrita liga o centro e a periferia, onde o poder é exercido sem divisão, segundo uma figura hierárquica contínua, onde cada indivíduo é constantemente localizado, examinado e distribuído entre os vivos, os doentes e os mortos – isso tudo constitui um modelo compacto do dispositivo disciplinar.” Para o autor francês, a evolução das práticas disciplinares fez com que, no século XIX, vários espaços sociais institucionalizados estivessem usando mecanismos disciplinares de vigilância similares ao usado no tratamento da peste do século XVII. Segundo Foucault (op. cit., p. 165): “O asilo psiquiátrico, a penitenciária, a casa de correção, o estabelecimento de educação vigiada, e por um lado os hospitais, de um modo geral todas as instâncias de controle individual funcional num duplo modo: o da divisão binária e da marcação (louco-não louco; perigoso-inofensivo; normal- anormal); e o da determinação coercitiva, da repartição diferencial (quem é ele; onde deve estar; como caracterizá-lo, como reconhecê-lo; como exercer sobre ele, de maneira individual, uma vigilância constante, etc.). A prisão panóptica A relação panóptica possui, como modelo exemplar, a prisão panóptica definida pelo filósofo utilitarista inglês Jeremy Bentham (1748-1832): O Panoptismo como elemento de ordenação política A análise que Michel Foucault realiza a respeito das práticas de poder modernas coloca a estrutura de caráter panóptico enquanto arquitetura que dispõe os corpos no espaço de determinado modo. O panoptismo como mecanismo de poder é a constatação foucaultiana de que o poder de um soberano está agora dividido e menos permanente. Aula 09: Gilles Deleuze e as sociedades de controle O Pensamento de Gilles Deleuze Gilles Deleuze (1925-1995) foi contemporâneo de Michel Foucault. Porém, se Foucault possuiu uma obra radicalmente nova em termos de metodologia, a obra de Deleuze está mais associada à reflexão filosófica. Na segunda metade do século XX, a obra de Gilles Deleuze teve impacto em diversos países e em campos do saber que valorizam a filosofia. Ele foi um pensador contemporâneo que se dedicou a pensar o ser humano e as novas subjetividades em meio às tecnologias digitais e à pluralidade de sentidos deste período denominado Pós-Moderno. Deleuze possui muitos escritos importantes a respeito da obra de filósofos como Spinoza, Nietzsche e Kant. 25 Também escreveu livros bastante originais, em que tratou da filosofia como possibilidade ética e estética de reinvenção da subjetivação. Se a filosofia não possui a mesma potência do dinheiro, da televisão e de outras instâncias sociais (o que este autor francês admite), ainda assim ela pode travar uma guerra subjetiva, uma conversação com estas potências a partir do pensamento, reinventando as possibilidades de viver em meio a elas. Assim, Deleuze atribui à Filosofia a criação de conceitos (e não de verdades) que devem ser usados de modo criativo. Além disso, a obra de Deleuze dialoga com a arte. O cinema, por exemplo, foi um dos seus objetos de reflexão. Sobre a obra de Deleuze, Marcondes (2007, p. 277-278) afirma que: “Deleuze publicou inicialmente uma série de estudos de filósofos que na modernidade podem ser considerados, se não marginais, pelo menos críticos de tendências dominantes, como Spinoza, Leibniz, Hume e Nietzsche, apesar de ter escrito também um estudo sobre Kant. Aula 10: Guy Debord e a sociedade do espetáculo O pensamento de Guy Debord Guy Debord (1931-1994) foi um pensador francês, cujo conceito de Sociedade do Espetáculo é hoje um dos mais usados nas críticas ao capitalismo contemporâneo e sua relação com os dispositivos midiáticos. Particularmente no campo da Comunicação Social, Debord é uma referência fundamental, embora sua contribuição se restrinja a este único conceito e ao seu livro homônimo. Publicado em 1967, A Sociedade do Espetáculo constitui-se como uma das obras do pensamento crítico mais importantes do século XX. Guy Debord foi um pensador e ativista político. Sua principal obra é uma mistura de elaboração teórica e panfleto político, pois se trata de uma obra intrinsecamente ligada à atividade política de Debord enquanto membro-fundador do grupo intitulado Internacional Situacionista (I.S.). Debord nunca foi professor universitário. Além de ativista político, foi artista, tendo dirigido seis obras fílmicas experimentais. Escreveu também diversos artigos de cunho político para a Revista da Internacional Situacionista. O grupo existiu entre 1957 e 1972. Formado por um grupo de ativistas políticos e artistas, a I.S. constitui uma experiência política importante e controversa, visto que seus métodos incluíam a reflexão e a ação política, mas não defendiam necessariamente uma ação não-violenta. A I.S. Possui duas fases principais: 1) Uma fase artística (que vai até o início dos anos 1960), em que os temas de arte e cultura predominavam em suas discussões e havia a presença de muitos artistas; 2) Uma fase política (que vai do início dos anos 1960 até a sua dissolução, no início dos anos 1970). O livro de Debord, A Sociedade do Espetáculo (1967) constituiu uma importante síntese teórica do ativismo político da I.S. Influenciados pelo trabalho das vanguardas artísticas modernas, a I.S. efetuou uma forte crítica ao sistema vigente na França dos anos 1950, em que o capitalismo industrial do pós- 26 guerra começa a gerar uma sociedade de consumo veloz e efêmera, nas quais as relações humanas parecem ficar em segundo plano. Além de todo lado artístico da I.S., visto que esta teve influência de um movimento anterior intitulado Internacional Letrista, o caráter marxistada obra de Debord e seus colegas acentuou-se a partir da segunda fase deste movimento. O estudo das lutas proletárias em diversos países e a influência não apenas do Comunismo, mas dos movimentos anarquistas fez com que o trabalho da I.S. se constituísse enquanto referência no que se refere às lutas políticas contra-hegemônicas na segunda metade do século XX. O livro de Debord foi usado como panfleto político nas manifestações de maio de 1968, na França, quando estudantes ocuparam as universidades. Sobre a Internacional Situacionista (2002, p. 12-13): “foi criada em julho de 1957, em Cosio d’Arroscia, na Itália, a partir da fusão de três grupos: a Internacional Letrista (de onde veio Debord e Michèle Bernstein), o Movimento Internacional por uma Bauhaus Imaginista (de onde vinha, entre outros, os artistas Pinot-Gallizio e Asger Jorn, este integrante também do grupo COBRA) e a Associação Psicogeográfica de Londres (que foi criada no próprio encontro em Cosio d’Arroscia e se resumia a um só integrante, Ralph Rumney). Era um grupo pequeno no início e sempre ficou assim. Teve (...) um total de setenta integrantes (63 homens e 7 mulheres), de 16 nacionalidades diferentes. Mas devido às constantes exclusões (45 dos 70 foram excluídos), a IS poucas vezes teve mais de 10 integrantes ao mesmo tempo.” A sociedade do espetáculo A concepção de uma Sociedade do Espetáculo é a síntese de uma crítica ao modo de produção capitalista contemporâneo, sobretudo relacionando a origem da sociedade espetacular ao momento em que a forma-mercadoria penetra em todos os setores da vida social. Debord coloca as modernas condições de produção (capitalismo industrial) como fonte do espetáculo, na medida em que passa a ocorrer uma alteração na relação dos seres humanos com o tempo e com o espaço. A produção de mercadorias de modo industrial inicia o processo de separação entre o homem e suas reais necessidades, o que Debord aponta como a condição fundamental para a criação do espetáculo. O livro é todo escrito em pequenas teses, que podem ser lidas separadamente ou em conjunto. Ao longo de nove capítulo, Debord expõe uma reflexão crítica que continua uma tradição de Teoria Crítica iniciada pela Escola de Frankfurt. O conceito de Espetáculo é ainda mais abrangente do que o de Indústria Cultural (de Adorno e Horkheimer). Porém, ambos trabalham com a ideia de uma degradação cultural contemporânea como decorrência do desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção (termos marxianos) contemporâneas. Se a preocupação frankfurtiana parte da constatação da massificação dos produtos artísticos como elemento que retira a função crítica da arte e, consequentemente, cria uma sociedade de “divertimento distraído” (o que prejudica o desenvolvimento do indivíduo), a 27 preocupação debordiana é com o caráter expansivo da ordem espetacular, que produz uma realidade de espectadores passivos e pouco críticos em termos de atitude política. Debord formula sua Teoria Crítica da Sociedade do Espetáculo, colocando ênfase no fato de que a economia moderna subordinou todos os outros setores da sociedade. A respeito do conceito de espetáculo, Debord (1997, p. 13) afirma na Sobre o conceito de Sociedade do Espetáculo, é importante ressaltar: 1) Trata-se de uma crítica às modernas condições de produção e à maneira como a sociedade se organiza sob este modo de produção; 2) Ao usar o nome Espetáculo para caracterizar toda uma maneira de viver, Debord acentua o caráter ilusório (ideológico) do capitalismo contemporâneo; 3) Além disso, a noção de Espetáculo também aponta para a passividade contemplativa dos indivíduos contemporâneos; 4) O livro é afirmativo e provocativo, pois se trata de uma obra de cunho político, ativista; Apesar da crítica ao capitalismo contemporâneo, Debord também critica, no livro, as experiências concretas de organização socialista/comunista. Neste sentido, o autor apresenta uma tipologia do espetáculo: a) Espetacular concentrado: A questão ideológica está baseada na figura central do Estado e/ou de um líder que ocupa esta centralidade. A repressão do aparato policial é permanente; b) Espetacular difuso: Trata-se da capitalismo avançado das sociedades que foram sendo conhecidas também como sociedades de consumo, onde um sistema apologético e acrítico ocorre de forma difusa através da propaganda, dos meios de comunicação e de outros aparatos privados e/ou estatais. O conceito sociedade do espetáculo e suas implicações políticas Contudo, a obra em questão ainda é considerada atual, por apontar algumas características fundamentais da política contemporânea: 1) A subordinação da política à economia, principalmente nos países de capitalismo avançado; 2) A constatação do capitalismo atual como um sistema ideológico em que as imagens (publicitárias, televisivas, cinematográficas) são cada vez mais potentes em termos de seus efeitos reais na sociedade (incluindo as questões de caráter político). 3) A provocação a respeito de uma sociedade cada vez mais contemplativa e passiva, o que pode não representar uma verdade absoluta, mas é um tema importante, atual e passível de discussão. Aula 11: Os desdobramentos do conceito de espetáculo no mundo contemporâneo Os desdobramentos da sociedade do espetáculo 28 O Conceito de Sociedade do Espetáculo não serviu apenas para as manifestações políticas do grupo ativista denominado Internacional Situacionista. Ao longo das últimas décadas, mesmo após o fim deste grupo, o conceito de Guy Debord tornou-se cada vez mais influente no pensamento crítico do campo da Comunicação Social. Um dos motivos desta relação entre o conceito de Espetáculo e o campo da comunicação é o fato da Sociedade do Espetáculo, segundo Debord, ser baseada na construção de uma aparência (ideológica) que assume o lugar de realidade através das imagens publicitárias dos meios de comunicação social. Como características fundamentais do Espetacular Integrado, Debord apresenta em Comentários sobre a Sociedade do Espetáculo: 1) a incessante renovação tecnológica; 2) a fusão econômico-estatal; 3) o segredo generalizado; 4) a mentira sem contestação; 5) o presente perpétuo. Douglas Kellner e a cultura da mídia Esta ideia de uma sociedade midiatizada, defendida por Sodré, é também defendida por autores como Dênis de Moraes, Lucia Santaella e o norte-americano Douglas Kellner, dentre outros. Kellner trabalha com o conceito de uma Cultura da Mídia, o que significa que a mídia não é simplesmente uma parte do desenvolvimento cultural contemporâneo, mas que se trata de um elemento central deste mesmo desenvolvimento. No caso da autora brasileira Lucia Santaella, esta utiliza o conceito no plural: Cultura das Mídias. Neste caso, a autora, cujo trabalho é fortemente influenciado metodologicamente e epistemologicamente pela semiótica, está acentuando a pluralidade de signos midiáticos diversos no mundo contemporâneo. Ao definir a Cultura da Mídia, Kellner (2001, p. 9) afirma que: “Há uma cultura veiculada pela mídia cujas imagens, sons e espetáculos ajudam a urdir o tecido da vida cotidiana, dominando o tempo de lazer, modelando opiniões políticas e comportamentos sociais, e fornecendo o material com que as pessoas forjam sua identidade. (...) As narrativas e as imagens veiculadas pela mídia fornecem os símbolos, os mitos e os recursos que ajudam a constituir uma cultura comum para a maioria dos indivíduos em muitas regiões do mundo de hoje. A cultura veiculada pela mídia fornece o material que cria as identidades pelas quais os
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