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223 MARGEM, SÃO PAULO, NO 15, P. 223-236, JUN. 2002 CONTRIBUIÇÕES DA ETOLOGIA COMPARADA Contribuiçıes da etologia comparada para uma nova percepçªo da comunicaçªo humana Resumo A observaçªo dos padrıes de comuni- caçªo nos animais evidencia a importân- cia do corpo como forma primÆria de mí- dia. Tendo em vista que, em geral, a estrutu- ra e os hÆbitos de todos os animais evoluí- ram gradativamente, atravØs da seleçªo na- tural, Ø possível, para as ciŒncias sociais, encontrar novos significados para a comu- nicaçªo humana, atravØs da comparaçªo com padrıes de comportamento de outros animais. A etologia comparada surge, por- tanto, como ferramenta essencial para se pensar a relaçªo entre natureza e cultura. Palavras-chave: comunicaçªo; mídia; etologia; linguagem; comportamento. Abstract The observation of animal communication patterns evidences the importance of the body as a primary media mode. Knowing that, in general, the structure and the habits of all the animals evolved gradually, through natural selection it is possible for the Social Sciences to find new meanings to human communication, through the comparison of behavior patterns in other animals. The compared etiology appears, therefore, as an essential tool to understand the relation between nature and culture. Key-words: communication; media; ethnology; language; behavior. RAFAEL ARAÚJO RICARDO PINHEIRO LIMA MARGEM, SÃO PAULO, No 15, P. 223-236, JUN. 2002 224 MARGEM No 15 – JUNHO DE 2002 Aos que desprezam o corpo quero dar o meu parecer. O que devem fazer nªo Ø mudar de preceito, mas simplesmente despedirem-se do seu próprio corpo e, por conseguinte, ficarem mudos. Nietzsche As diferentes espØcies animais se comunicam atravØs do corpo. O ho- mem, no entanto, ao criar e desenvol- ver meios de comunicaçªo, parece ter perdido a consciŒncia de si. A adapta- çªo dos padrıes de comportamento de um organismo ao seu meio ocorre de maneira anÆloga à de seus órgªos, ou seja, atravØs das informaçıes que a es- pØcie acumulou, ao longo de sua evolu- çªo, pelo mØtodo da seleçªo natural e mutaçªo. Isso quer dizer que alguns padrıes de comportamentos foram abandonados ao longo do tempo para ganhar novas formas, mais adaptadas ao ambiente. Vale fazer o exercício e retomar, em linhas gerais, a história da evoluçªo dos padrıes de comunicaçªo do homem. O primeiro meio de comunicaçªo foi o corpo, atravØs de gestos, sons e ex- pressıes. Depois, alguns aparatos foram adotados para a emissªo da informa- çªo. O homem passou a se pintar e a usar roupas e mÆscaras que adiciona- ram significado à corporeidade. As ima- gens mentais dos sonhos passaram para as paredes das cavernas e depois para cerâmicas, madeiras ou pedaços de pe- dras, podendo, assim, ser transporta- das para qualquer lugar. A informaçªo vencia o espaço. Com o tempo, os su- portes se tornaram mais leves e prÆti- cos e, em vez de inscrever imagens em rochas, o homem passou a sobrescrever imagens em papØis e tecidos. A imagem evoluiu para a escrita. Com a criaçªo de um código capaz de representar sons, a comunicaçªo ganhou horizontes. Surgi- ram os livros e a imprensa escrita. Com a eletricidade, a informaçªo tambØm venceu o tempo, e passou a estar simul- taneamente em vÆrios espaços. Ao compararmos o homem com outras espØcies animais, estamos am- pliando a possibilidade de encontrar novos significados para determinados comportamentos que, à primeira vista, parecem ter uma origem exclusivamen- te cultural, mas que tambØm podem ser hereditÆrios, herdados de um ancestral. Expressıes como o arrepiar dos ca- belos sob a influŒncia de terror extre- mo ou mostrar os dentes quando em estado de fœria, dificilmente, podem ser compreendidas sem a crença de que o homem existiu um dia numa forma mais inferior e animalesca. A coincidŒncia de certas expressıes em espØcies diferen- tes, ainda que próximas, como a con- traçªo dos mesmos mœsculos faciais durante o riso pelo homem e por vÆ- rios grupos de macacos, torna-se mais inteligível se acreditarmos que ambos descendem de um ancestral comum. Ao admitir que, no geral, a estrutura e os hÆbitos de todos os animais foram evo- luindo gradualmente, a questªo da co- municaçªo pode ser encarada a partir de uma perspectiva mais ampla.1 1. DARWIN, C. (2000), A expressªo das emoçıes no homem e nos animais. Sªo Paulo, Companhia das Letras, p. 22. 225 MARGEM, SÃO PAULO, NO 15, P. 223-236, JUN. 2002 CONTRIBUIÇÕES DA ETOLOGIA COMPARADA Comportamento animal A comunicaçªo entre dois animais pode ser definida como um comporta- mento de um indivíduo que tem efeito sobre o comportamento de outro.2 Um determinado comportamento pode ou nªo ser alterado por outro indivíduo, e apenas pode-se considerar comuni- caçªo se esse comportamento altera a resposta de um outro indivíduo.3 É praticamente impossível imaginar qualquer espØcie de animal que nªo estabeleça uma comunicaçªo com ou- tros indivíduos, seja de forma intra- específica (entre indivíduos da mesma espØcie) ou interespecífica (entre indi- víduos de espØcies diferentes). A ne- cessidade que os animais tŒm de se inter-relacionar para sobreviver torna impossível que qualquer um deles pos- sa viver isoladamente. Por isso, quase sempre existe uma interaçªo social en- tre os animais.4 Um exemplo da importância da co- municaçªo para a sobrevivŒncia e, atØ mesmo, para a evoluçªo das popula- çıes animais, Ø o aprendizado. Em al- guns animais, muitos comportamentos sªo passados de uma geraçªo a outra, de forma a se tornarem durÆveis ou permanentes. Tais traços de compor- tamento fixados determinam uma ca- racterística que se perpetua atravØs da observaçªo dos indivíduos mais velhos pelos mais novos. Dethier e Stellar5 fri- sam que, em muitos casos, o aprendi- zado pode nªo estar ligado à observa- çªo, mas sim à maturaçªo orgânica do indivíduo. Em um experimento com- portamental para diferenciar aprendi- zado de maturaçªo,6 dois gŒmeos idŒn- ticos foram separados. Um deles foi submetido a uma experiŒncia de subir escadas, enquanto o outro foi subme- tido a caminhar apenas por superfícies planas. Sem que um tivesse contato com o outro, as experiŒncias foram inverti- das, e o segundo gŒmeo conseguiu su- bir escadas de forma tªo eficiente quan- to o primeiro. Isso ilustra que a capaci- dade de subir escadas nªo estÆ rela- cionada com o aprendizado mas, sim, com a maturaçªo orgânica do indiví- duo. Por isso, hÆ dificuldade para se definir, em muitos casos, se alguns com- portamentos sªo realmente fruto de aprendizado ou se sªo inerentes à es- pØcie. Qualquer espØcie animal tem algu- ma forma de comunicaçªo, desde um simples sinal-estímulo que provoca um padrªo de comportamento apenas ins- 2. DAWKINS, M. S. (1989), Explicando o compor- tamento animal. Sªo Paulo, Ed. Manole, p. 102; DEAG, J. M. (1980), Social Behaviour of Animals. London, E. Arnold Publishers, p. 1; ALCOCK, J. (1993), Animal Behavior. Sunderland: Sinauer Associates Inc., 1993, pp. 215. 3. Essa definiçªo de comunicaçªo Ø contestada por alguns autores da semiótica da cultura, que apostam que ocorre comunicaçªo com a simples presença do corpo, uma vez que ele nunca passa desapercebido a um indivíduo que o nota, cau- sando sempre alguma reaçªo, mesmo que seja a indiferença. 4. DEAG, J. M., op. cit., p. 2; DETHIER, V. G. e STELLAR, E. (1970), Animal behavior. New Jersey, Prentice Hall Inc, p. 130. 5. DETHIER, V. G. e STELLAR, E., op. cit., p. 105. 6. Ibid. MARGEM, SÃO PAULO, No 15, P. 223-236, JUN. 2002 226 MARGEM No 15 – JUNHO DE 2002 tintivo, atØ processos comunicativos extremamente elaborados como a vo- calizaçªo. A comunicaçªo pode ser uma exibiçªo de saudaçªo, como o ar- rulhar de pombos e rolas ou atØ mes- mo a reduçªo de sinais agressivos, como a resposta de rendiçªo em cªes, lobose roedores, por exemplo. Esse comportamento Ø adotado pelo animal que, durante uma briga, acaba por se entregar: deita de bruços dei- xando o ventre à mostra ao seu opo- nente. Nesses casos, o vencedor nªo mais ataca, pois parou de ser estimu- lado pelos sinais que despertaram o ataque. Esse mesmo comportamento nem sempre pode se aplicar ao homem, que, dependendo de seu estado psí- quico ou emocional, pode nªo parar o ataque quando seu oponente deixa cla- ro que estÆ vencido. A comunicaçªo entre os animais nªo Ø necessariamente visual ou auditiva. Pode ser uma comunicaçªo química. Um cªo macho demarca seu território com urina para que, num tempo futu- ro, um possível intruso se aperceba do aviso. Sagüis fazem o mesmo, esfregan- do as glândulas odoríferas dos genitais em galhos e troncos de Ærvores. VÆrias espØcies de insetos produzem feromô- nios como forma de comunicaçªo, como a mariposa da seda; o macho Ø capaz de detectar uma fŒmea a vÆrios quilô- metros de distância se a concentraçªo do feromônio for de 1 molØcula para cada 1015 molØculas de ar,7 uma forma extremamente eficiente de se comuni- car. Esse tipo de comunicaçªo se tor- na possível a partir do momento em que outro indivíduo tem condiçıes de receber a mensagem. Nos humanos a comunicaçªo química seria extrema- mente desastrosa, pois seus sentidos nªo sªo tªo apurados a ponto de ter sucesso como nos cªes, sagüis ou in- setos. Entretanto, o homem recØm- nascido pode identificar sua mªe pelo cheiro dos seios. Ao passar uma gaze no seio da mªe e dar à criança para cheirar, prontamente ela demonstra reconhecimento. Conforme a criança vai crescendo, ela vai desenvolvendo seus outros sentidos e o olfato perde importância. Gestos e expressıes corporais tam- bØm sªo uma importante forma de co- municaçªo para o homem. Na impossi- bilidade de vocalizar ou emitir sinais químicos precisos, certos animais pro- duzem uma variedade tªo grande de expressıes corporais que a comunica- çªo se torna eficiente. Abelhas operÆ- rias que localizam alimento avisam suas companheiras atravØs de uma comple- xa dança na qual cada movimento tem um significado diferente. Usando pon- tos do ambiente como referŒncia, uma abelha que nunca esteve no local onde estÆ o alimento pode encontrÆ-lo com assustadora exatidªo apenas vendo outra abelha realizar a dança. Os estí- mulos sonoros tambØm fazem parte dessa composiçªo comunicativa. Segun- do Dethier e Stellar,8 uma certa cadeia 7. SCHMIDT-NIELSEN, K. (1996), Fisiologia ani- mal - adaptaçªo e meio ambiente. Sªo Paulo, Santos Editora, p. 526. 8. DETHIER, V. G. e STELLAR, E., op. cit., p. 139. 227 MARGEM, SÃO PAULO, NO 15, P. 223-236, JUN. 2002 CONTRIBUIÇÕES DA ETOLOGIA COMPARADA de sons produzida pela operÆria que achou o local determina a distância a que se encontra o alimento. Quando a colmØia Ø importunada, as abelhas que a guardam balançam as pernas emitin- do sinais a cada intervalo de tempo, o que altera o padrªo de zumbido da colmØia. Segue-se outro tipo de som emitido pelas operÆrias (que Ø mais fra- co) atØ que a agitaçªo diminua. A es- pectografia sonora revela que esses sons sªo diferentes em freqüŒncia, in- tensidade e padrªo, o que pode estar relacionado com o comportamento de defesa das abelhas. Dethier e Stellar9 afirmam que, para uma comunicaçªo sonora ser conside- rada uma forma de linguagem, Ø ne- cessÆrio que a espØcie tenha uma pro- duçªo articulada de sons, uma discri- minaçªo auditiva refinada, capacidade cerebral para identificar processos sim- bólicos e uma organizaçªo social em que a linguagem Ø usada para se co- municar segundo um padrªo de regras que se perpetua. A fantÆstica articula- çªo vocal do papagaio nªo Ø uma for- ma de linguagem, pois suas vocaliza- çıes nªo sªo simbólicas, sªo apenas repetiçıes de sons momentâneos. No caso de primatas nªo-humanos, a vo- calizaçªo, embora pouco desenvolvida se comparada à humana, Ø dotada de significados. Em verdade, ela tem im- portante papel comunicativo em todas as espØcies de primatas, atØ mesmo nos lŒmures e tÆrsios. No bugio-gritador (Alouatta sp.) a vocalizaçªo evoluiu de forma impressionante. O osso hióide se transformou numa incrível caixa de ressonância que emite sons que alcan- çam atØ cinco quilômetros de distância floresta adentro. Nos primatas, alØm da vocalizaçªo, o padrªo de cores tam- bØm Ø uma importante forma de co- municaçªo, haja vista serem animais de visªo bem desenvolvida.10 Nas aves canoras, a emissªo sono- ra tambØm tem importante funçªo co- municativa. Considerando o ambien- te, esses animais podem ter o som de seu canto distorcido por fatores exter- nos. Se o som for atenuado, o receptor pode nªo detectÆ-lo por conta dos ruí- dos de fundo; se o som for degradado durante a propagaçªo, o receptor pode confundi-lo.11 Assim, em uma floresta densa, os sons devem ser de baixa fre- qüŒncia ou terem notas muito bem es- paçadas a fim de evitar as reverbera- çıes. Em ambientes abertos, o canto pode ser mascarado pelo vento, deven- do ter notas curtas a serem repetidas rapidamente e poderem ser detectadas em pequeno espaço de tempo. Essa ne- cessidade de se encaixar as notas no curto espaço de tempo entre duas raja- das de vento pode ter selecionado fa- voravelmente as aves que emitem sons de alta freqüŒncia em hÆbitats abertos. As aves que emitiam sons de baixa fre- qüŒncia nesse tipo de ambiente podem ter sido extintas por apresentarem di- 9. Ibid., p. 139. 10. AURICCHIO, P. (1995), Primatas do Brasil. Sªo Paulo, Terra Brasilis Editora, p. 31. 11. KREBS, J. R. e DAVIES, N. B. (1993), An introduction to behavioural ecology. Londres, Blackwell Science, p. 355. MARGEM, SÃO PAULO, No 15, P. 223-236, JUN. 2002 228 MARGEM No 15 – JUNHO DE 2002 ficuldades na comunicaçªo. Com baixa freqüŒncia e energia concentrada numa faixa estreita, os cantos na floresta atin- gem distâncias maiores que os de alta freqüŒncia dos hÆbitats abertos.12 A linguagem humana, por ter um padrªo de articulaçªo vocal enorme e por ser detectada por um cØrebro de poder associativo bastante generoso, Ø talvez o mais eficiente sistema de co- municaçªo conhecido.13 O chimpanzØ nªo possui a capacidade de articular palavras, e por isso se utiliza de gestos para a transmissªo de conhecimento e aprendizagem.14 A linguagem humana Ø, sem dœvida, a mais complexa. A ar- ticulaçªo das palavras depende de uma sØrie de fatores, tais como lÆbios, filei- ras uniformes de dentes, musculatura lingual, cordas vocais e câmaras de res- sonância. No homem, todos esses fa- tores atingem o grau mÆximo de espe- cializaçªo,15 promovendo uma elabora- çªo vocal altamente complexa. A im- portância da linguagem falada no ho- mem Ø ainda maior se a compararmos ao padrªo de comunicaçªo em outros animais, que produzem apenas silvos ou rugidos ao expulsar o ar violenta- mente atravØs da glote.16 Embora a lin- guagem humana seja de todas a mais complexa, em muitos casos estÆ próxi- ma à de animais sem muito poder cog- nitivo. Em Andorra, nas Ilhas CanÆrias e em certas regiıes do MØxico e da Turquia, os camponeses desenvolve- ram um sistema de linguagem atravØs de assobios, em vez de palavras.17 Com um vocabulÆrio relativamente bem ela- borado, tais sistemas foram criados para comunicaçªo a longas distâncias, jÆ que essas regiıes sªo montanhosas. Os paredıes íngremes, precipícios gi- gantescos e vales rochosos existentes dificultavam a comunicaçªo verbal quando o receptor se encontrava fora do alcance da articulaçªo vocal do emis- sor. Por vezes, as distâncias nem sªo muito grandes, mas o esforço para transpô-las Ø excessivamente alto. Es- ses padrıes de linguagem concentram a energia sonora do assobio numa fai- xa estreita de freqüŒncia e, como nas aves de floresta, estªo aptas a serem detectadas a grandes distâncias. Homem inserido, homem exclusivoA comunicaçªo estÆ intimamente ligada à produçªo de cultura, Ø ela que distingue o homem dos demais animais por sua capacidade de vincular o tem- po, que somente ocorre atravØs de pro- cessos comunicativos.18 Uma vez que 12. Ibid. p. 355. 13. Lembramos que a precisªo da comunicaçªo humana pode ser questionada por envolver sub- jetividade na recepçªo e, às vezes, ardileza na emissªo. Nesses casos podem surgir conseqüŒn- cias desastrosas. 14. DETHIER, V. G. e STELLAR, E., op. cit., p. 140. 15. ROMER, A. S. e PARSONS, T. S. (1985), Ana- tomia comparada dos vertebrados. Sªo Paulo, Atheneu Editora, p. 299. 16. Ibid. p. 299. 17. KREBS, J. R. e DAVIES, N. B. op. cit., p. 356. 18. Ashley Montagu entende por cultura o pro- cesso de criar, transmitir e manter o passado no presente capacidade que o semanticista Alfred Korzybsky denominou vinculadora do tempo. As plantas vinculam substâncias químicas, os ani- 229 MARGEM, SÃO PAULO, NO 15, P. 223-236, JUN. 2002 CONTRIBUIÇÕES DA ETOLOGIA COMPARADA se colocou em dœvida que a produçªo de conhecimento nªo Ø exclusividade do homem e nem tampouco a passa- gem desse conhecimento de indivíduo para indivíduo, notamos uma incessan- te busca de critØrios capazes de dife- renciar o homem dos outros animais. Isso revela uma curiosa resistŒncia, es- sencialmente por parte dos chamados cientistas moles,19 em aceitar o ho- mem como um ser simultaneamente cultural e biológico. Macacos abrem frutos duros com o auxílio de ferramentas rudimenta- res como pedras e madeira. ExperiŒn- cias, como a realizada com a gorila Koko,20 comprovam a capacidade de antropóides em aprender linguagens gestuais e visuais com resultados que eliminam a hipótese de simples con- dicionamento. A capacidade de abs- traçªo e vinculaçªo do tempo influi direta e indiretamente na vida dos ho- mens e oferece uma especificidade no que diz respeito à sua comunicaçªo. Algumas das descobertas científicas proporcionadas pelas ciŒncias aplica- das somente foram possíveis com o conhecimento da aceleraçªo, que, por sua vez, somente foi possível atravØs do desenvolvimento de um mecanis- mo de marcaçªo de tempo. Galileu, ao estudar a gravidade, usou madeiras polidas e inclinadas, com sulcos por onde deslizavam esferas de metal. Para medir o tempo em que uma esfera per- corria os diversos espaços delimitados do plano inclinado, Galileu usou um balde de Ægua com um furo pelo qual se deixava a Ægua escorrer para um recipiente graduado; com isso, pôde marcar a quantidade de Ægua que es- corria em cada percurso da esfera. Ao verificar que ao primeiro trecho do plano correspondia mais Ægua que ao segundo de tamanho idŒntico, pôde concluir que a esfera percorreu o se- gundo trecho mais rÆpido que o pri- meiro e, portanto, seguiu em movimen- to acelerado. O dispositivo que quan- tificava a Ægua permitiu uma abstra- çªo do tempo atravØs de uma demar- caçªo espacial, assim como ocorre nos relógios de ponteiro. A influŒncia di- reta do tempo Ø sentida pelos homens de diversas formas no controle de suas açıes, voluntÆria e involuntariamente. Essa seria uma importante relaçªo en- tre natureza e cultura.21 mais vinculam o espaço, mas somente o homem seria capaz de vincular o tempo. (MONTAGU, A. In: BAITELLO JUNIOR, N. (1997), O animal que parou os relógios. Sªo Paulo, Annablume, p. 96.) 19. As ciŒncias humanas sªo conhecidas por ciŒn- cias moles, em oposiçªo às chamadas ciŒncias duras. A analogia baseia-se na flexibilidade me- todológica das ciŒncias humanas ao lidar com seus objetos de estudo, ao contrÆrio do que ocorre com as ciŒncias exatas e biológicas, que primam pela precisªo e a parecença com o mØtodo mate- mÆtico. Ironicamente, encontramos nas ciŒncias humanas a resistŒncia em tratar o homem como ser cultural e biológico, o que nªo ocorre com a biologia. 20. Koko aprendeu uma linguagem de gestos e possui um vocabulÆrio bastante extenso, tªo com- plexo quanto o de um homem. Resultados como a expressªo de sentimentos e a criaçªo de novas palavras abalam o antropocentrismo nos estudos de comunicaçªo. Cf. www.koko.org. 21. Cf. ELIAS, N. (1998), Sobre o tempo. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, pp. 85-92. MARGEM, SÃO PAULO, No 15, P. 223-236, JUN. 2002 230 MARGEM No 15 – JUNHO DE 2002 A comunicaçªo mais embrionÆria e tambØm a mais importante Ø a que se dÆ atravØs do corpo. Partimos aqui de Harry Pross.22 O autor confere à mídia trŒs classificaçıes: primÆria, se- cundÆria e terciÆria. A mídia primÆria corresponde à primeira forma de co- municaçªo nªo exclusiva dos homens , que Ø a comunicaçªo pelo corpo, atravØs de gestos, sons ou da simples presença. A mídia secundÆria Ø a que requer um aparato emissor da infor- maçªo. Aqui se encontram, por exem- plo, os livros e jornais impressos. A mídia terciÆria surge com a eletricida- de e requer a utilizaçªo de um aparato codificador emissor e de um aparato decodificador receptor. Aqui se inse- rem, por exemplo, o telefone e a tele- visªo. Os trŒs tipos de mídia existem segundo duas leis bÆsicas, quais sejam, a cumulatividade e a retroatividade, de modo que a mídia terciÆria contØm a secundÆria e a primÆria. Assim, para o estudo de qualquer meio de comuni- caçªo de massa, Ø necessÆrio, antes de qualquer coisa, o estudo do corpo. Uma abordagem biológica Ø insuficiente para compreender sua complexidade. Uma vez que o corpo estÆ em sociedade e Ø comunicativo, muitos fatores sªo rele- vantes para o seu entendimento, como os significados do movimento desse corpo, a sua memória e o seu tempo social. O tempo biológico do corpo Ø reprimido pelo tempo social atravØs de sincronizadores como a luz, por exem- plo, e, principalmente, a mídia. Existe, portanto, um constante diÆlogo entre os corpos biológico, cul- tural e social. A interaçªo Ø sempre mœltipla. Em uma comunicaçªo primÆ- ria, estÆ em jogo a memória do indiví- duo, que Ø um somatório do corpo bio- lógico com o cultural, e a memória do gesto, que pode ser futura ou passa- da, pois pode significar um fato, um desejo ou uma intençªo, alØm de um significado social específico resultan- te de comunicaçıes gestuais que um corpo passa a outro de geraçªo para geraçªo. Quando um indivíduo toca um objeto, ele o contamina com hu- manidade, com complexidade cultu- ral, com subjetividade. Quando um corpo toca ou Ø tocado, ele Ø contami- nado com significados históricos. Para Norbert Elias,23 o conceito de tempo tal qual o conhecemos hoje re- quereu um alto grau de abstraçªo por parte da humanidade. O tempo social difere do tempo físico, por conta de uma sØrie de fatores. O fator crucial de imposiçªo do tempo social Ø a mídia, principalmente após o advento e a dis- seminaçªo da mídia eletrônica. Nesse sentido, sistemas comunicativos tŒm uma funçªo ordenadora da sociedade. Marcamos encontro após a novela, jan- tamos na hora do jornal, dormimos depois do filme. No limite, podemos tomar o exemplo dos reality shows transmitidos em tempo integral indi- víduos que o assistem nªo tŒm tempo para fazer qualquer outra coisa. A mídia gera e transmite informa- çıes em uma operaçªo sincronizadora. 22. PROSS, H. (1980), Estructura simbólica del poder. Barcelona, Gustavo Gili. 23. ELIAS, N., op cit. 231 MARGEM, SÃO PAULO, NO 15, P. 223-236, JUN. 2002 CONTRIBUIÇÕES DA ETOLOGIA COMPARADA Se a cultura Ø o conjunto das informa- çıes nªo herdadas geneticamente, mas transmitidas socialmente, Ø possível encarar a mídia como um exemplo de coexistŒncia no homem de aspectos naturais, porque o corpo Ø a cellula-mater da comunicaçªo, e culturais, porque Ø capaz de vincular o tempo, podendo criar, transmitir e manter o passado no presente.24 Comportamento humano: entre a natureza e a cultura A expressªo das emoçıes no homem e nos animais, de Charles Darwin,25 Ø o resul- tado de uma exaustiva pesquisareali- zada sobre as diversas expressıes e reaçıes corporais em diferentes gru- pos humanos. A partir das informaçıes que obteve, concluiu que um mesmo estado de espírito exprime-se ao redor do mundo com impressionante uniformidade; e esse fato Ø ele mesmo interessante como evidŒncia da grande similaridade da estrutura corporal e da conformaçªo mental de todas as raças humanas.26 A criaçªo da linguagem teve im- portância capital para a comunicaçªo entre os homens. A articulaçªo de sons propiciou, igualmente, um amplo de- senvolvimento na capacidade de enten- dimento entre os indivíduos. Os mo- vimentos expressivos do corpo prin- cipalmente da face tiveram seu pa- pel primeiro na comunicaçªo, enquan- to ainda nªo havia um vocabulÆrio so- noro; posteriormente, os gestos vieram a ter o papel de concordar ou negar a fala, aumentando as possibilidades de comunicaçªo. Esse código gestual tem uma ori- gem natural e cultural. Darwin, ao com- parar as expressıes de inœmeros gru- pos sociais, nªo só pôde levantar a hi- pótese da existŒncia de um ancestral comum entre os primatas como encon- trar evidŒncias para a hereditarieda- de de alguns gestos que se repetem24. BAITELLO, N. (1997), O animal que parou os relógios. Sªo Paulo, Annablume; aqui o autor dis- tingue trŒs tipos de cultura, de acordo com um padrªo de tempo: a cultura messiânica, que bus- ca uma sociedade utópica; a cultura tecnicista, que comemora a superaçªo de uma sociedade de dificuldade, e a cultura heróico-mítica, que Ø vol- tada a um tempo passado e estabelece um tempo circular. Segundo ele, em geral, a sociedade da mídia reœne características dos dois primeiros ti- pos. Apregoa um futuro de glórias, conquistas e facilidades que jÆ se vislumbra nos feitos do pre- sente. O passado Ø deixado de lado. No entanto, quando surgem figuras heróicas, como políticos ou esportistas, essas figuras míticas podem ser consideradas fruto de uma exorcizaçªo de um passado, promovido pela própria mídia. 25. DARWIN, C., op. cit. 26. Ibid., p. 26. Darwin atribui a certos grupos de humanos, com traços físicos semelhantes, a cate- goria taxonômica raça, o que hoje encontra discordância em diversos cientistas. Uma raça animal pode ser definida por um grupo de caracteres físicos e comportamentais que nªo va- riam, mas no homem isso nªo faz o mesmo senti- do. O conceito de raça pura, tirado de animais domØsticos, por exemplo, nªo esclarece a diversi- dade humana. Por isso, muitos cientistas negam a existŒncia de raças humanas. Fernando Ortiz, em sua obra El engaæo de la raza (Habana, Editora Paginas, 1946), Ø um dos pensadores que nega veementemente a existŒncia de raças humanas. MARGEM, SÃO PAULO, No 15, P. 223-236, JUN. 2002 232 MARGEM No 15 – JUNHO DE 2002 em primatas humanos e nªo humanos. Alguns gestos podem ser adquiridos culturalmente atravØs da imitaçªo consciente ou inconsciente. Um indi- víduo pode criar um gesto a partir de uma necessidade qualquer e a sua con- tínua repetiçªo poderÆ perpetuÆ-lo pela imitaçªo e aceitaçªo dos outros indivíduos. Algumas expressıes po- dem ter sido iniciadas por um œnico indivíduo e posteriormente tornadas universais atravØs da imitaçªo. Mas essa hipótese nªo dÆ conta de algu- mas das manifestaçıes mais peculia- res dos primatas, como o riso e a ex- pressªo do medo, que coincidem nos homens e nos demais antropóides. Nesse caso, a origem das expressıes encontra-se em um ancestral comum a todos os primatas. Outras parecem ter uma origem eminentemente huma- na, como Ø o caso do derramamento de lÆgrimas. Nossos ancestrais de- monstravam a fœria e o sofrimento in- tenso com grunhidos, contorçıes no corpo e o cerrar de dentes, mas nªo teriam exibido as feiçıes expressivas que tambØm estªo presentes nos ho- mens porque nªo teriam o mesmo de- senvolvimento dos órgªos circulató- rios e respiratórios e de alguns mœs- culos faciais. Essa hipótese Ø tirada da observaçªo de alguns primatas próxi- mos ao homem, que nªo produzem lÆ- grimas, de modo que a origem das lÆ- grimas jÆ estaria num ancestral de li- nhagem exclusivamente humana. No entanto, Darwin alerta que algumas espØcies de macacos distantes do ho- mem tambØm produzem lÆgrimas, de modo que essa característica tambØm pode ter se desenvolvido em um an- cestral comum.27 JÆ a expressªo de tris- teza e ansiedade sªo características ex- clusivamente humanas, que somente puderam surgir quando nossos ances- trais aprenderam a lutar para conter o choro.28 A produçªo de sons nªo Ø exclusi- vidade da espØcie humana. Os símios inferiores, por exemplo, tambØm pro- duzem sons, mas nªo possuem um vo- cabulÆrio complexo e diversificado co- mo o homem. Nesse caso, a funçªo do som Ø simplesmente chamar a atençªo, e a comunicaçªo se completa com ges- tos e expressıes. Os gestos sªo a prin- cipal forma de comunicaçªo para os antropóides. No chimpanzØ, por exem- plo, a expressªo de hierarquia depen- de de um gesto. Na presença de um indivíduo com posiçªo social superior, 27. Segundo o sistema de classificaçªo cladística, a presença de caracteres ancestrais compartilha- dos recebe o nome de simplesiomorfia. O fato de o homem ser capaz de produzir lÆgrimas, assim como alguns macacos distantes dele, pode repre- sentar uma simplesiomorfia entre eles. Uma simplesiomorfia nªo significa nada em termos de grau de parentesco, mas pode ajudar a esclarecer quais caracteres sªo realmente sinal de proximi- dade evolutiva, o que se conhece por Lei de Hennig (HENNIG, W. (1966), Phylogenetic systematics. University of Illinois Press, Urbana). 28. Vale lembrar que Darwin estÆ analisando os animais com bases fisiológicas, identificando, por exemplo, os mœsculos responsÆveis por cada uma das expressıes que estuda. Assim, nªo podemos dizer que um cachorro expressa a tristeza com a face, ainda que esteja triste, porque nªo possui os mœsculos responsÆveis por essa expressªo. O fato de olharmos para um cachorro e julgarmos sua aparŒncia estar triste pode ser explicado pela pro- jeçªo que fazemos de uma interpretaçªo a partir de outros gestos e atitudes do animal. 233 MARGEM, SÃO PAULO, NO 15, P. 223-236, JUN. 2002 CONTRIBUIÇÕES DA ETOLOGIA COMPARADA o chimpanzØ inferior inclina-se, abaixa a cabeça e, algumas vezes, chega a bei- jar a mªo do dominante. Quando em situaçªo de conflito, o apaziguamento se dÆ atravØs de um abraço seguido de beijo, na boca ou em qualquer outra parte do corpo. Pela semelhança entre os compor- tamentos dos primatas, o estudo com- parado pode fornecer pistas preciosas para o entendimento das complexas relaçıes sociais. A importância dos ges- tos para estudos de comunicaçªo, de modo geral, passa desapercebida. A valoraçªo fica restrita aos meios de comunicaçªo de massa, e, mesmo as- sim, a idØia de cumulatividade da ges- tualidade na construçªo da informaçªo Ø deixada de lado. Por exemplo, a origem do beijo na boca estaria na alimentaçªo. As fŒme- as primatas, na intençªo de variar a ali- mentaçªo de suas crias durante o des- mame, usualmente mastigavam alimen- tos e os transferiam aos filhotes pela boca. TambØm entre os gregos seme- lhante alimentaçªo acontecia, e, nªo raro, encontraremos a prÆtica em ou- tras sociedades. Vale fazer a analogia da origem do beijo na boca com a fun- çªo sexual adquirida em nossa socie- dade atravØs do beijo os amantes se alimentam de ternura e desejo. Os rituais de acasalamento dos an- tropóides tambØm trazem semelhanças com os homens. Quando em período de acasalamento, o corpo da fŒmea an- tropóide se modifica exibe um in- chaço em sua zona ano-genital , alØm de apresentar uma alteraçªo nítida de comportamento. Em algumas espØcies de babuínos, nesse período, as mudan- ças comportamentais sªo tªo visíveis que permitem a aboliçªo temporÆria de qualquer restriçªo social existente para as fŒmeas. Essa mudança detempera- mento garante à fŒmea uma posiçªo tal que ratifica o acasalamento e a conse- qüente manutençªo da espØcie. Pode- mos fazer a comparaçªo com as mu- lheres na busca de uma explicaçªo fun- cional para a alteraçªo de temperamen- to durante o ciclo menstrual. Sabe-se que o que determina a du- raçªo e freqüŒncia desse período de receptividade das fŒmeas sªo fatores hormonais, mas tambØm fatores so- ciais. Ou seja, quanto mais uma fŒmea primata estiver inserida em um grupo socialmente equilibrado, cujas fŒmeas se encontram nesse período receptivo, mais facilmente ela estarÆ apta a apre- sentar a mesma condiçªo. É possível supor que nossas antepassadas tambØm apresentavam um período restrito de receptividade ao acasalamento. Daí surgir o questionamento sobre os mo- tivos que fizeram a seleçªo natural pro- piciar às mulheres a extinçªo da restri- çªo do período de receptividade para as relaçıes sexuais. Uma explicaçªo poderia ser encontrada na observaçªo do comportamento dos bonobos, es- pØcie mais semelhante ao homem. As- sim como as mulheres, as fŒmeas bono- bo tambØm consentem em relaçıes se- xuais fora do período de acasalamento. Essa característica tem uma funçªo so- cial de propiciar um pacto entre os in- divíduos baseado na sexualidade. A prÆtica sexual constante dos bonobos funciona como um redutor de violŒn- MARGEM, SÃO PAULO, No 15, P. 223-236, JUN. 2002 234 MARGEM No 15 – JUNHO DE 2002 cia e tensªo do grupo. Essa explicaçªo funcional tambØm pode ser aplicada aos homens e coloca a sexualidade tambØm como prÆtica de manutençªo de víncu- los sociais. A ostentaçªo do pŒnis Ø outra for- ma de comunicaçªo bastante freqüen- te entre os primatas e tambØm nos per- mite uma comparaçªo curiosa. Alguns mamíferos demarcam o seu território atravØs da micçªo; Ø o caso, como jÆ dito, do cªo. Nos primatas, essa fun- çªo Ø pouco usual porque possuem o olfato pouco desenvolvido, ao contrÆ- rio da audiçªo e visªo. Somente algu- mas poucas espØcies de símios ainda utilizam a marcaçªo de território pela urina. O pŒnis ganha uma nova funçªo que permite a determinadas espØcies uma outra forma de comunicar os li- mites do seu território. O macho esco- lhe um local alto e visível, agacha-se e, de coxas afastadas, exibe seus órgªos genitais aos possíveis intrusos. Essa Ø uma típica demonstraçªo de poder que tambØm Ø muito comum hoje em dia entre os homens, veja-se o exemplo de habituais piadas sobre a sexualidade e a comparaçªo dos órgªos genitais como símbolo de masculinidade. É preciso questionar a diversidade dos comportamentos e atØ que ponto a cultura influencia a aquisiçªo de expres- sıes, gestos e hÆbitos. Distinguir natu- reza e cultura tem causado algumas confusıes na apreensªo de hÆbitos que parecem ter sua origem exclusivamen- te nas relaçıes sociais. É comum ver- mos nas ciŒncias sociais o tratamento de particularidades humanas como fru- to do aprendizado do indivíduo no tra- to com a sociedade. Muitas vezes, es- sas particularidades sªo produto da alta capacidade cognitiva humana; ou- tras vezes, elas sªo inatas e podem ser observadas em qualquer grupo social, como pôde constatar Charles Darwin em sua pesquisa sobre as expressıes do homem.29 O trabalho para se iden- tificar essas características Ø minucioso e delicado, exige a comparaçªo das observaçıes de distintos indivíduos e demanda imensa sensibilidade do ob- servador. Para as ciŒncias sociais, a importân- cia da identificaçªo dos reflexos here- ditÆrios do homem reside na possibili- dade de se fazer uma arqueologia das origens de gestos e expressıes que hoje possuem funçıes relevantes, na finali- dade de entendŒ-los com maior pro- fundidade. Para o estudo da comu- nicaçªo, especificamente, a descoberta de gestos hereditÆrios e o estudo de sua funçªo primordial permitem am- pliar o entendimento de sua significa- çªo. Essa arqueologia Ø igualmente importante para os comportamentos culturais. Ao observarmos algumas expres- sıes em crianças recØm-nascidas, po- deremos crer que o riso, por exemplo, Ø uma expressªo adquirida por imita- çªo atravØs do trato com outras pes- soas, principalmente com a mªe. Essa observaçªo parece óbvia, mas estudos comprovam que uma criança que tenha entre 3 e 6 meses sorri para tudo o que lhe apresentam à frente, e somente com 7 ou 8 meses Ø que a criança saberÆ 29. DARWIN, C., op. cit. 235 MARGEM, SÃO PAULO, NO 15, P. 223-236, JUN. 2002 CONTRIBUIÇÕES DA ETOLOGIA COMPARADA identificar e corresponder apenas aos rostos sorridentes.30 Outro indício de que o riso Ø uma expressªo inata Ø a constataçªo de sua presença em crian- ças cegas e surdas. Somente conforme vªo crescendo Ø que as crianças porta- doras dessas deficiŒncias começam a sorrir com menor freqüŒncia. Essa com- paraçªo permite atestar a origem na- tural dessa expressªo e tambØm a in- fluŒncia do ambiente e da cultura em seu desenvolvimento. Os movimentos expressivos do rosto e do corpo, qualquer que seja sua origem, sªo por si mesmos muito importantes para o nosso bem-estar. Eles sªo o pri- meiro meio de comunicaçªo entre a mªe e seu bebŒ; sorrindo, ela encoraja seu filho quando estÆ no bom caminho; se nªo, ela franze o semblante em sinal de desaprovaçªo. Nós facilmente per- cebemos simpatia nos outros por sua expressªo; nossos sofrimentos sªo as- sim mitigados e os prazeres, aumenta- dos, o que reforça um sentimento mœ- tuo positivo. Os movimentos expressi- vos conferem vivacidade e energia às nossas palavras. Eles revelam os pen- samentos e as intençıes alheios melhor do que as palavras, que podem ser fal- sas.31 O comportamento do homem mo- derno Ø a culminância do comporta- mento de milhares de geraçıes. Ao constatar a importância da expressªo e da gestualidade, a observaçªo dos hÆ- bitos e atitudes dos outros animais pode ser de grande utilidade para o entendimento da comunicaçªo entre os homens. Nosso comportamento nªo Ø, por- tanto, somente fruto de aprendizagem. É tambØm a resultante de instintos na- turais. O conhecimento de códigos uni- versais de comunicaçªo representa um instrumento potencial de poder. As agŒncias de propaganda podem confe- rir a um produto uma visualidade tal que instigarÆ uma reaçªo desejada, que por sua vez vai gerar o desejo de con- sumo. Um político em campanha po- derÆ usar determinado tom de voz para provocar comoçªo em uma pla- tØia de eleitores. Um pai poderÆ ele- var sua voz e tensionar sua face para desaprovar uma postura de seu filho. Esses sªo alguns exemplos de atitudes de poder que podem ser verificados em diferentes sociedades. Nªo queremos com isso dizer que a importância da etologia comparada estÆ eminentemente nas possibilidades que o conhecimento de códigos gestuais traz para a prÆxis. Pelo contrÆrio, sua relevância estÆ principalmente na iden- tificaçªo de novas pistas para a inves- tigaçªo e o entendimento das açıes humanas. Os padrıes de comunicaçªo animal sªo os mais diversos possíveis. Todos eles evoluem conjuntamente com o ambiente e com os animais que os pro- duzem, porque a sobrevivŒncia de qualquer espØcie animal se baseia mui- to na sua capacidade de se comunicar, seja prevendo um perigo, avisando como encontrar recursos, localizando 30. SPITZ, R. A. e WOLF, K. M. (1946), The smiling response: a contribution to the ontogenesis of social relations in Gen. Psychol. Monogr. n” 34. 31. DARWIN, C., op. cit., p. 339. MARGEM, SÃO PAULO, No 15, P. 223-236, JUN. 2002 236 MARGEM No 15 – JUNHO DE 2002 parceiros para acasalamento ou, no caso do homem, articulando conheci- mento e desenvolvendo tecnologias. De uma forma ou de outra, nªo hÆ am- biente que proporcione uma sobrevi- vŒncia segura e a possibilidade de per- petuaçªo da espØcie a animais que nªo se comuniquem. Recebido em 30/4/2002 Aprovado em 30/6/2002 Rafael Araœjo, cientistasocial, pesquisador do Nœcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política. E-mail: rafa77@uol.com.br Ricardo Pinheiro Lima, biólogo e analista ambiental do Ibama.
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