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Heraclito e Parmenides no apeiron de Ana


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 HERÁCLITO E PARMÊNIDES NO ÁPEIRON DE ANAXIMANDRO 
Rafael Silva 
UNIRIO 
 
INTRODUÇÃO 
Parmênides de Eléia e Heráclito de Éfeso foram dois grandes filósofos da 
antiguidade grega do século VI a.C que, para alguns pensadores, tais como Hegel, 
Nietzsche e Heidegger, se dispuseram para além do naturalismo da physis 
(realidade primeira, material, originária e fundamental) com a qual os pensadores 
chamados pré-socráticos estavam envolvidos, para se aventurarem sobre um chão 
metafísico, até então inexistente, que se consolidaria definitivamente com Platão e 
Aristóteles. Todavia, há pensadores, como Giovanni Casertano, que afirmam não 
haver dimensão metafísica nestes filósofos pré-socráticos, pois todos estariam, 
ainda que através da questão do Ser e do devir, teorizando de fato sobre existência 
da physis. Para Casertano, as investigações de Parmênides são as mesmas dos 
primeiros filósofos da Grécia, pois o filósofo “concebe fisicamente o que é, 
confirmando que fala não de um ser metafísico, mas do cosmo entendido em sua 
totalidade” (CASERTANO, 2011, 88). Se o pensamento do eleata não representa uma 
aventura metafísica na concepção de Casertano, a do efésio menos ainda, visto que 
o seu elemento primordial, qual seja, o fogo, o atrela sobremaneira à tradição de 
atribuir a algum elemento físico a constituição da realidade. Todavia, a 
interpretação acerca do escopo filosófico dos dois pré-socráticos aqui defendida 
será a hegeliana-nietzschiana-heideggeriana que toma Parmênides e Heráclito 
como autênticos pensadores metafísicos. 
Para melhor compreender a metafísica do eleata e a do efésio se faz 
importante a justa contemplação de um antecessor dos dois pensadores: 
Anaximandro de Mileto, o primeiro grego que, antes de Heráclito e Parmênides, 
desconsiderou uma causa material determinada à formação do universo. 
Doravante, haverá o esforço de comparar as ideias de Heráclito e Parmênides com 
a teoria de Anaximandro acerca do ápeiron (indeterminado), para propor que 
aqueles dois, cada um ao seu modo, contribuiu no sentido de determinar novas 
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dimensões ao “necessário não-lugar” (BOCAYUVA, 2010, 402) fundamental e infinito 
do milesiano. Nesse sentido, caminharemos através dos conceitos de cada um dos 
três acerca do Ser e do devir. 
 
 O ÁPEIRON DE ANAXIMANDRO 
Para Anaximandro, tudo que vem a ser ou deixa de ser o faz por adquirir ou 
perder alguma característica particular no movimento de disjunção ou conjunção 
em relação ao todo. O Ser anaximândrico é eterno, infinito e não predicável, e 
prepondera sobre o vir-a-ser, justamente por este último carregar consigo 
predicações sempre imerecidas que, não obstante, nascem e morrem em suas 
próprias inconsistências. De acordo com Nietzsche, o milesiano vê todo “vir-a-ser 
como uma emancipação do Ser eterno, digna de castigo, como uma injustiça que 
deve ser expiada pelo sucumbir. Tudo o que alguma vez veio a ser, também perece 
outra vez” (1987, p.9). Nietzsche não se privou de dramatizar os termos “castigo”, 
“injustiça” e “expiação”, usados pelo milesiano para tratar da relação entre devir e 
Ser, salientado que Anaximandro via o devir como um pecador prestes a pagar a 
penitência devida. Talvez o filósofo alemão assim tenha interpretado as ideias do 
grego por ser um defensor do devir. Entrementes, a grandeza de Anaximandro 
reside na sua pressuposição de que o “fluxo incessante do haver pode acontecer de 
tal modo que o momento do nascimento de cada ente coincide com a sua morte 
que, por sua vez, coincide com a emergência de outro ente” (BOCAYUVA, 2010, 403). 
Anaximandro foi o precursor de um perscrutar diferenciado em relação ao 
Ser e o devir por ter inicialmente desconsiderado ser algum elemento material 
específico o princípio estruturador da realidade, como havia feito Tales, 
conterrâneo seu, para quem a água era o elemento primordial. Para o milesiano, o 
princípio universal seria o ápeiron (indeterminado, infinito, ilimitado) que “estaria 
animado por um movimento eterno, que ocasionaria a separação dos pares de 
opostos [que] pagam entre si as injustiças reciprocamente cometidas” (SOUZA, 1978, 
20). Estes “pares de opostos” seriam, de um lado, as partes predicadas, e de outro, o 
próprio ápeiron, o essencialmente indeterminado. Nota-se a absoluta abertura do 
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pensamento de Anaximandro por ele ter “determinado” como indeterminado o 
princípio investigado, e como injusto tudo o que ganha determinação. Vale a pena 
ressaltar que, para um grego antigo, a palavra “injustiça” referia-se à desmedida 
mais do que à desigualdade. O ápeiron de Anaximandro, enquanto “ser originário 
desprovido de qualidades definidas [e] destituído de atributos determinados” 
(BITTENCOURT, 2011, 138), a partir do qual os particulares predicados devém, é o 
ilimitado que contempla conjuntivamente o Ser e o devir, pois ambos são 
constituintes do todo, embora, para o milesiano, o Ser fosse hierarquicamente 
superior em respeito ao devir, permitindo-lhe existência, ainda que efêmera e 
“injusta”, ou seja, desmedida. 
Heráclito de Éfeso e Parmênides de Eléia seguiram nesta esteira metafísica 
que lida com o Ser e o devir; porém, reestruturando, cada qual ao seu modo, essa 
relação. Para o efésio, o Ser não seria reduzido ou corrompido pelo devir; ao 
contrário, o devir em sua totalidade era a medida – logos - precisa do Ser. Portanto, 
a indeterminação de Anaximandro foi o fundo perfeito para o devir de Heráclito 
ser; outrossim, para o Ser do efésio devir. Heidegger reitera posteriormente esta 
abertura heraclítea em um “conceito unitário de ser que autoriza indicar estes 
diversos modos de ser como modos [logos] do ser” (2002, 250 – grifos auxiliares). Já a 
teoria de Parmênides encontra uma incompatibilidade diametral com ápeiron 
anaximândrico, porquanto o devir autorizado pelo milesiano destrói, a partir de 
dentro, a univocidade e indivisibilidade do Ser parmenídico. No fragmento 8, onde 
é dito que “Nem a força da confiança consentirá que do que não é nasça algo ao pé 
dele”, Parmênides recusa-se a permitir e a locar o não-ser, ainda mais no seio do 
Ser, como permitia Anaximandro. Em relação à indeterminação do milesiano, o 
eleata a nega ainda no mesmo fragmento: “pois [o Ser] é igual por todo o lado, e 
fica igualmente nos limites”. 
 
 HERÁCLITO NO ÁPEIRON 
Heráclito enfrentou o Ser e o devir de forma menos dramática que 
Anaximandro, corroborando a possibilidade de ambos coexistirem 
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harmoniosamente na constituição do cosmos, pois “o devir é uma ordem que, por 
ser permanente, perpétua, jamais deixa de ser o que é em sua essência: Ordem” 
(SANTOS, 1990, 8). Essa ordenação do caos é evidente para Heráclito, como podemos 
perceber no seu fragmento 8: “o contrário é convergente e dos divergentes nasce a 
mais bela harmonia, e tudo segundo a discórdia”. Séculos mais tarde, Hegel 
sustentou a posição heraclítea ao afirmar que “o ser não é mais que o não-ser, nem 
é menos” (1816, apud SOUZA, 1978, 110). Em relação ao contemporâneo eleata, para 
quem o devir era impensável, e ao antecessor milesiano, que considerava 
conjuntamente Ser e devir, o efésio a um só tempo contrariou o eleata, cedendo a 
berlinda ao devir, como também o milesiano, invertendo a hierarquia 
anaximândrica entre Ser e devir. Para Nietzsche, “Heráclito descobria que 
maravilhosa ordenação, regularidade e certeza manifestam-se em todo vir-a-ser; 
daí concluía ele que o vir-a-ser não poderia ser injusto nem criminoso” (1987, 16). 
No artigo “O absoluto enquanto processo em Heráclito e Hegel”, é afirmado 
que em Heráclito há duas formas complementaresde pensar: 
“uma, apreende as coisas de imediato representando-as para si [devir]; e 
a outra, compreende as coisas como desdobramento do comum [ser], ou 
seja, do Logos. Colocando em categorias da filosofia clássica, para ele é 
preciso mergulhar nas aparências e na multiplicidade [devir] e delas 
perceber o que há de essência, de unidade [ser]. Essa unidade para 
Heráclito dá-se no devir” (CORIOLANO, 2005, 33 – grifos auxiliares). 
 
Nessa passagem fica clara a inversão que Heráclito promoveu entre Ser e devir em 
relação à superioridade eterna do Ser em Anaximandro. O milesiano havia 
atribuído ao devir um desequilíbrio efêmero a ser sanado, cobrado pelo ser; 
enquanto Heráclito fez do devir o perpetuum mobile fundamental que constitui 
tudo que é, intuindo que “o que garante a tensão intrínseca às coisas é aquilo 
mesmo que as sustenta” (SOUZA, 1978, 32). O logos heraclíteo consistia precisamente 
na “unidade profunda que as oposições aparentes ocultam e sugerem: os 
contrários, em todos os níveis da realidade, seriam aspectos inerentes a essa 
unidade” (SOUZA, 1978, 31). Porquanto a realidade é formada pela convivência dos 
opostos, “O mesmo é vivo e morto, desperto e dormindo, novo e velho; pois estes, 
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tombados além, são aqueles e aqueles de novo, tombados além, são estes” 
(HERÁCLITO, frag.88 – grifos meus).. 
 Evidenciada a inversão hierárquica entre as concepções de Anaximandro e 
Heráclito acerca do Ser e do devir, considerando que o efésio recebeu os opostos 
do milesiano, todavia trabalhando-os ao seu modo, é sugerido aqui que Heráclito 
atribuiu uma determinação temporal ao indeterminado de Anaximandro. Nessa 
investigação consideraremos primeiramente alguns conceitos sobre o tempo em 
Anaximandro. Hipólito disse que para o milesiano a “natureza não envelhece” (Ret., 
I, 6,1-2; DK 12-11 apud KIRK;RAVEN, 1996, 103), o que implica que o ápeiron não estivesse 
submetido ao tempo. Outrossim, Pseudoplutarco escreveu que Anaximandro 
“declarou que a destruição, e muito antes a geração, acontecem desde idades 
infinitas, pois todas ocorrem em ciclos” (Strom. 2; DK12-10 apud KIRK;RAVEN, 1996, 103); 
essa passagem sugere que, se há uma ideia de tempo nas concepções do milesiano, 
esta é mítica, e não histórica. Kirk e Havem reiteram que “o indefinido [ápeiron de 
Anaximandro] não está em movimento contínuo” (KIRK;RAVEN, 1996, 103); ou seja, 
não se move, espacial nem temporalmente; ideia que confrontará diretamente o 
mobilismo pressuposto na teoria de Heráclito. 
Refletindo sobre estas considerações acerca do tempo em Anaximandro, as 
particularidades predicadas, que não obstante ocorrem no núcleo desse todo 
indeterminado, acontecem miticamente. Isso porque, para o milesiano, o final do 
devir deve coincidir exatamente com o seu princípio, para assim não alterar - nem 
envelhecer - o Ser em sua eternidade perfeita, ainda que tal perfeição eterna esteja 
povoada de devires efêmeros. Uma afirmação forte de Anaximandro, qual seja, a de 
que “o tempo regulamenta o prazo para o pagamento” da injustiça que é todo 
devir, deve ser interpretada como se esse juiz temporal fosse mítico, pois o que ele 
exige é que o devir deixe de ser, exatamente como veio a ser, para que o todo 
permaneça o que é. 
 Essa concepção de tempo mítico não encontra propriedade na teoria de 
Heráclito, pois este “considera o Tempo como o processo necessário no qual todo 
tipo de forma de vida, ainda que se transforme por uma necessidade natural, 
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manifesta a potência criadora da natureza” (BITTENCOURT, 2011, 149 – grifo auxiliar). O 
efésio, portanto, ao fazer do Ser o devir em sua eterna mobilidade criadora, carece 
de um tempo histórico, pois se, como em Anaximandro, o tempo existisse apenas 
para medir o retorno da parte ao todo, criação alguma subsistiria nesse todo. Por 
conseguinte, para que a criação heraclítea permaneça, sua destruição deve ser 
suspensa. Podemos pensar o Ser de Heráclito como um resultado positivo, 
constituído a partir do incessante fluxo do devir. Ora, há evolução em Heráclito, e 
não a manutenção do Ser, como em Anaximandro. O tempo heraclíteo, portanto, 
não poder ser mítico, mas sim histórico; ou do contrário o Ser é sobrelevado em 
relação ao devir, e o que temos então é novamente o velho ápeiron de 
Anaximandro. Logo, estas diferentes concepções temporais são fundamentais para 
distinguir o modo como os dois filósofos relacionavam Ser e devir. 
Heráclito historiciza o mítico ápeiron anaximândrico ao abrir no cosmos 
indeterminado um caminho para devir sobre o qual não há necessidade alguma de 
retorno. No tempo histórico subjacente às ideias o efésio há apenas o livre “devir” 
do devir, sem Ser algum injustiçado; pois o Ser, para o efésio, é antes algo 
resultante, não primário. Para Heráclito, o ser não teria posição inicial 
determinada para onde suas emanações devessem necessariamente retornar, pois 
é “o sol novo a cada dia” (frag.6). Ademais, se existe algum Ser, este é surgido na 
medida – logos - do devir. Em vez do regresso penitente do que devém por sobre o 
caminho desgarrado, preconizado pelo milesiano, justamente porque este pensava 
que “o processo de individualização [era] uma afronta ao princípio de ordenação 
do universo” (BITTENCOURT, 2011, p.139), Heráclito ofereceu ao devir a riqueza e a 
liberdade de um percurso temporal histórico, criativo, enriquecedor e 
complexificador. “O tempo é o primeiro que se oferece como o devir, é a primeira 
forma do devir, [...] sua essência é ser e não-ser, [...] a abstrata contemplação desta 
mudança” (HEGEL, 1816, apud SOUZA, 1978, 115). Portanto, para Heráclito, os “nascidos 
querem viver e deter suas partes, ou antes repousar, e atrás de si deixam filhos a se 
tornarem partes” (frag.22 – grifos auxiliares) no processo de criação e movimento do 
universo. 
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Inversamente, para Anaximandro toda parte que angaria alguma 
determinação deve voltar ao Ser indeterminado, abdicando necessariamente da 
determinação que a fez devir, retornando assim, miticamente, ao estádio ideal 
aonde nenhuma predicação subsiste. É esse processo de vir-a-ser, e 
necessariamente deixar-de-ser - aventura insólita da parte desgarrada - que faz 
brilhar um tempo Anaximandro. Todavia, esse tempo é mítico, pois no final do 
devir o Ser retoma a si mesmo. Ora, caso o Ser indeterminado do milesiano 
possuísse uma determinação temporal intrínseca, ele estaria em contradição 
consigo mesmo, pois qualquer determinação é tudo menos ápeiron. Por 
conseguinte, o ápeiron não é, não tem, e não pode ter tempo. Antes, é o devir que 
cria efemeridades temporais, necessariamente míticas, que começam na predicação 
inicial de uma parte e finda no instante em que esta predicação cede à 
indeterminação necessária do Ser. Dado que em Anaximandro o Ser é o senhor do 
que há - senhorio este que dispensa ulterioridades -, o devir nada constrói; não 
podendo, portanto, experimentar tempo histórico algum; apenas circular 
miticamente no justo espaço de ida e volta que o Ser lhe concede e impõe. 
Apesar de haver uma inversão hierárquica entre Ser e devir em 
Anaximandro e Heráclito; aquele fazendo do Ser senhor, e do devir escravo; e este, 
ao contrário, assenhorando o devir e deixando o Ser como o escravo resultante do 
processo; ambos garantem substância tanto ao Ser quanto ao devir. Heráclito, 
contudo, ao ter feito do devir a essência ativa do Ser, não pode prescindir do tempo 
histórico, coisa que comprometeria o Ser do milesiano. Logo, de Anaximandro à 
Heráclito, saímos do tempo mítico para entrarmos no tempo histórico. 
 
 PARMÊNIDES NO ÁPEIRON 
Na questão do Ser e do devir coloca-se Parmênides,para quem o Ser é uno, 
imutável, em nada redutível nem acrescentável. Para o eleata, o vir-a-ser, isto é, o 
devir da multiplicidade, decorre das ilusões dos sentidos e do intelecto sem 
comprometer a imutabilidade inabalável do seu Ser eterno e uno. Parmênides 
negativa o devir sobremaneira, a ponto de negar-lhe existência, denominando-o 
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não-ser, como fica claro no seu fragmento 2: “o outro que não é, que tem de não-
ser, esse te indico ser caminho em tudo ignoto, pois não poderás conhecer o que 
não é, não é consumável nem mostrá-lo”; e também na passagem do fragmento 7: 
“Pois nunca isto será demonstrado: que são coisas que não são”. Para Parmênides, 
só mantém o direito de propriamente ser, aquilo que já-é desde sempre e que 
nunca-deixará-de-ser. O Ser parmenídico, diferente do indeterminado 
anaximândrico, é pleno de determinações: eterno, imóvel, finito, imutável, pleno, 
contínuo, homogêneo e indivisível. Parafraseando Aristóteles, o ser do Eleata se diz 
de muitas maneiras. 
Ao contrário de Anaximandro, que não determinou o seu Ser, Parmênides, 
determinou o seu “em equilíbrio, em todos os pontos igualmente perfeito como 
uma esfera” (NIETZSCHE, 1987, 19). Fica evidente uma diferença entre o Ser do 
milesiano e o do eleata: aquele, absolutamente indeterminado; este 
determinadamente esférico. Por conseguinte, na teoria de Parmênides duas ideias 
parecem contraditórias, quais sejam, aquela que diz que o ser é uma esfera e outra 
que afirma nada haver além do Ser. Ora, se Parmênides determina o seu Ser como 
esférico, sobrevém inevitavelmente a ideia de um espaço no qual esta esfera paira 
imóvel e incorruptível. Então, é inconsistente propor tão rígido limite sem revelar 
um além-limite. Porém, Parmênides mantém que qualquer espaço já é o Ser todo 
em si mesmo, sequer podendo haver descolamento entre o ser e o espaço que ele 
ocupa: lugar e ser coincidem e subsumem-se necessariamente um no outro. 
Se Parmênides nega locação espacial ao Ser, muito menos ao não-ser lugar 
foi determinado. O que resta então ao devir parmenídico? Segundo o filósofo, o 
devir, isto é, a “gênese e destruição foram afastadas para longe” (frag.8 – grifo 
auxiliar). Por um lado o monismo parmenídico não reserva espaço para nada que 
não seja o Ser eterno e indivisível, pois se há um espaço, esse já é o ser mesmo; mas 
por outro, ao afastar para longe o devir, sugere um lugar para tudo que não-é. 
Portanto, neste “longe” - em relação ao Ser esférico - habitam a mobilidade, a 
infinidade, a incompletude, a heterogeneidade e a divisibilidade, ou seja, toda a 
sorte de indeterminação. Já estas encontram lugar no ápeiron anaximândrico sem 
corrompê-lo irreversivelmente; mas de forma alguma no Ser do eleata. Talvez 
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assim se dê, pois Parmênides, “em momento algum apela para uma explicitação do 
que se passa com o ente” (BOCAYUVA, 2010, 406), afirmando que se trata de coisas dos 
mortais que nada sabem, dos que vagueiam com duas cabeças (frag. 6). “Todas as 
percepções dos sentidos, pensa Parmênides, dão apenas ilusões; e sua ilusão 
fundamental é simular que o não-ser é, que o vir-a-ser tem um ser. (NIETZSCHE, 1987, 
19) 
Entretanto, alcançando o afastado longe aonde vagueiam os devires, 
estamos distantes do ser esférico parmenídico. Mas que lugar é esse? O ápeiron do 
milesiano se oferece em sua indeterminação, pois se o Ser de Parmênides é essa 
esfera bem determinada, o que não é Ser é indeterminação absoluta, portanto, 
ápeiron; lá onde o as injustas particularidades surgem, para em seguida justamente 
deixarem de Ser. O ápeiron de Anaximandro, portanto, é a locação possível a tudo 
que em Parmênides é proibido. Em uma interpretação propositalmente pervertida 
do fragmento 4 de Parmênides, em benefício da especulação acima lançada, pode-
se visualizar o lugar indeterminado para onde o eleata afastou o devir: “Nota 
também como o que está longe pela mente se torna firmemente presente: pois não 
separarás o ser da sua continuidade com ser, nem dispersando-o por toda a parte 
segundo a ordem do mundo, nem reunindo-o” (frag. 4 – grifos auxiliares). 
O Ser de Parmênides é proposto volumetricamente, “visto que tem um limite 
extremo, e completo por todos os lados, semelhante à massa de uma esfera bem 
rotunda, em equilíbrio do centro a toda a parte” (frag. 8 – grifos auxiliares). Já o devir é 
tratado como ilusão contingente, indigna de existência, e a ele é negado inserir-se 
na, ou pertencer à, rígida superfície hiperbólica imposta pelo filósofo. Para o sábio 
de Eléia, o não-ser é aquilo que é centrifugado para longe da sua unidade monista 
perfeita e estática. É o universo de mobilidade, pluralidade e particularidades da 
vida dos homens que é excluído da esfera precisa e radicalmente seletiva que 
delimita o Ser do pensador de Eléia. Desse universo em devir falou Heidegger, em 
“Ser e Tempo”: “a integralidade do ente pode ser subdividida [sim] em âmbitos 
particulares (a história, o espaço, a natureza, a vida, a linguagem...)” (2002, 188); e 
também em “Introdução à Metafísica”: “nós conhecemos o nada, mesmo que seja 
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apenas aquilo sobre o que cotidianamente falamos inadvertidamente” (HEIDEGGER, 
1969, 5). 
Do ponto de vista do devir, o Ser parmenídico é tudo aquilo que se retira 
para dentro da esfera cuja superfície, não obstante, faz-lhe fronteira. O limite 
esférico veementemente precisado pelo filósofo de Eléia comporta-se como o 
átomo singular que existe intangível e imiscível com qualquer outra coisa que não 
seja ele mesmo. Já o espaço circundante que envolve esse Ser, ou seja, o lugar de 
todos os não-seres parmenídicos, somado ao próprio Ser do eleata, é o ápeiron de 
Anaximandro que a tudo abarca, criado para absorver harmoniosa e 
indiscriminadamente Ser e devir. Porém, o que Parmênides faz ao ápeiron de 
Anaximandro é espacializá-lo, determinação que o ápeiron necessariamente não 
possuía no conceito do milesiano. 
 
CONCLUSÃO 
 O ápeiron concebido pelo pensador de Mileto recebeu as ideias do efésio e 
as do eleata, pois ambos “viam repetidamente aquele mesmo mundo que 
Anaximandro tão melancolicamente condenara, explicando-o como o lugar do 
crime e simultaneamente da expiação para a injustiça do vir-a-ser” (NIETZSCHE, 
1987, 16), pois, “uma vez que do momento em que um elemento prevalece sobre o 
outro no ato de confronto ontológico dos contrários” (BITTENCOURT, 2011, 139), o 
devir é inegável, tanto quanto o Ser. No entanto, cada um dos três filósofos pré-
socráticos fez a sua equação a partir do Ser e do devir. Para Anaximandro, o Ser era 
necessário e o devir contingente, porém, ambos faziam o ápeiron. Heráclito 
inverteu a hierarquia do milesiano e pensou o devir como necessário e o Ser como 
contingente em relação a esse devir, mantendo uma relação fundamental – logos – 
entre eles. Já Parmênides absorveu a hierarquia do Ser sobre o devir conforme 
Anaximandro, porém, radicalizou-a, fazendo do Ser a necessidade absoluta, ao 
preço de dessubstancializar absolutamente o devir. 
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Em respeito às inovações que Heráclito e Parmênides trouxeram ao 
conceito de ápeiron de Anaximandro investigados aqui, podemos dizer que o efésio 
transformou o tempo mítico do devir – o único tempo em Anaximandro - em tempo 
histórico, desenhado pela livre, criativa e positiva ação do devir no mesmo 
ilimitado preconizado pelo pensador de Mileto. Parmênides também transformou 
a indeterminação do ápeiron ao fazer do seu Ser algo espacialmente determinado, 
desenhando colateralmente um espaço infinito e indeterminado aonde tanto o Ser 
quanto o devir habitariam. Esse espaço que envolve o perfeito Ser esférico de 
Parmênides, considerando o Ser incluso nele, éo ápeiron ele mesmo, todavia, com 
duas diferenças: a primeira é que para o milesiano o devir é apenas uma 
desmedida (injustiça), enquanto que para Parmênides é ilusão desnecessária; já a 
segunda diferença é que o antagonismo entre Ser e devir para o eleata parece ser 
um negativo em relação ao do milesiano. Isso porque em Anaximandro, ao passo 
que o Ser é o indeterminado ilimitado, o devir é algo que “pipoca” efemeramente 
dentro dele, como que o brotar de alguma determinação distinta, que é, mas que 
em seguida paga o preço por ter sido, para então não mais sê-lo. Em Parmênides, 
todavia, há uma inversão dessa arquitetura proposta por Anaximandro, pois o Ser 
do eleata localiza-se no mesmo lugar do devir pontual de Anaximandro, locado no 
cerne do ápeiron; e o “espaço” que subsiste em torno do ser esférico de 
Parmênides - a locação de todos os devires - se parece com o Ser anaximândrico, 
pois ilimitado e indeterminado. 
Para finalizar, é proposta uma analogia em homenagem à tragédia em meio 
a qual Nietzsche colocou a filosofia pré-socrática grega. Para Anaximandro, o 
ápeiron seria o grande Odeon indeterminado no qual o Ser é a figura Hor Concours, 
dona do palco, mas que dá voz, e por que não dizer, dialoga com o devir irrequieto 
e inconstante sentado na plateia, deixando o devir ser, pelo tempo mítico de sua 
efemeridade, até que ele acabe em sua insustentabilidade determinada, e vá 
embora, ofuscado pela diva necessária e eterna do Ser. Heráclito, inversamente, 
coloca o devir no palco dramático, pois só ele age, é e constrói, historicamente, o 
espetáculo da existência; e o Ser, na plateia, é como que a ideia-logos que se forma 
à medida do espetacular devir. Já Parmênides, em sua rigidez monista, reservou a 
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centralidade da arena para o Ser imóvel e impenetrável - musa intocável e alheia 
aos sentidos -, espacializando tridimensionalmente o eufórico e populoso devir 
para bem longe, lá nas distantes fileiras da plateia das múltiplas opiniões humanas. 
 
BIBLIOGRAFIA 
 
Fontes principais: 
 
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Anaximandro e Heráclito. Rio de Janeiro: Nearco UERJ– Revista Eletrônica da 
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Horizonte: Revista Kriterion - nº 122, p. 399-412 - Dez., 2010. Disponível em (último 
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-HERÁCLITO. Fragmentos (Sobre a Natureza). Trad. de José Cavalcante de Souza. 
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-KIRK, G.S., RAVEN, J.E. Os filósofos pré-socráticos. Lisboa, 1996. 
-NIETZSCHE, Friedrich. A Filosofia na era Trágica dos Gregos. Lisboa: Ed.70, 
1987. Disponível em (último acesso: 14/05/2014): 
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-PARMÊNIDES. Fragmentos (Da Natureza). Trad. Jose Gabriel Trindade Santos. 
Disponível em (último acesso: 14/05/2014): <http://charlezine.com.br/wp-content/uploads/Da-
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-SANTOS, Maria C. A. dos. A lição de Heráclito. São Paulo. Trans/Form/Ação. São Paulo: 
13:1-9,1990. Disponível em (último acesso: 14/05/2014): 
<http://www.scielo.br/pdf/trans/v13/v13a01.pdf> 
-SOUZA, José Cavalcante de (Sel. textos). Os pré-socráticos: fragmentos, 
doxografia e comentários (Col. Os Pensadores). São Paulo: Abril Cultural, 1978. 
Disponível em (último acesso: 14/05/2014): 
<http://blogdocafil.files.wordpress.com/2009/04/os-pre-socraticos-colecao-os-
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Fontes auxiliares: 
 
-ARAÙJO, Paulo A. de. A questão do ser em geral em Ser e Tempo, de Martin 
Heidegger. Juiz de Fora: Revista Ética e Filosofia Política – Número XVI – Volume II, 
2013. 
-CÉSAR, Constança M. Crítica e diferença em Heidegger. Uberlândia: Revista 
Educação e Filosofia. v5. n9. p.49-55, jul./dez. 1990. 
-CORDERO, Nestor L. Em Parmênides, ‘tertium non datur’. Anais de Filosofia 
Clássica, Vol. 1 nº 1, 2007. 
-COSTA, Alexandre. O sentido histórico-filosófico do Poema de Parmênides. 
Anais de Filosofia Clássica, Vol. 1 nº 1, 2007. 
-FIGUEIRA, Markus. O atomismo antigo e o legado de Parmênides. Anais de 
Filosofia Clássica, Vol. 1 nº 2, 2007 
-FRANCALANCI, Carla. O diálogo Sofista à sombra de Parmênides. Anais de 
Filosofia Clássica, Vol. 1 nº 1, 2007 
-PESSOA, Fernando. Entre pensar e ser, Heidegger e Parmênides. Anais de 
Filosofia Clássica, Vol. 1 nº 1, 2007. 
-KAHN, Charles. Algumas questões controversas na interpretação de Parmênides. 
Anais de Filosofia Clássica, Vol. 1 nº 2, 2007. 
-WARSCHAUER, Paulo. Heidegger e o Nada. SÃO PAULO. Dissertação de 
Mestrado - Faculdade de São Bento 2011. 
 
 
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