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MAQUIAVEL * / V / / * / ’ ' r 7 ' R I 0 S s W C O M E N T A A í f Y />* r/J. <//* B R E v x : i P R D 3 $ - '. / y y 1 0 :»* *v V -: / % < K . . > 5' M E C A "*> /'S V* D E V /r / v , * .# -fr ,* ✓ * / A v y > A 0 X#' / . i f j f **r.# v : L í V I EDITORA B H UnB COMENTÁRIOS SOBRE A PRIMEIRA DÉCADA DE TITO LÍVIO FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA Reitor: João Cláudio Todorov Vice-Reitor: Sérgio Barroso de Assis Fonseca EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA Conselho Editorial Alexandre Lima Cristovam Buarque Emanuel Araújo (Presidente) Euridice Carvalho de Sardinha Ferro Orlando Ayrton de Toledo Roque de B acros Laraia Sylvia Ficher Venício Arthur de Lima Volnei Garrafa A Editora Universidade de Brasília, instituída pela Lei ne 3.998, de 15 de dezembro de 1961, tem como objetivo "editar obras científicas, técnicas e culturais, de nível universitário". Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio "2)iscorsi Tradução de Sérgio Bath 3® edição, revista EDITORA BB UnB Este livro ou qualquer parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização escrita do Editor. Impresso no Brasil Editora Universidade de Brasília Campus Universitário — Asa Norte 70.919-970 — Brasília — Distrito Federal Tradução: Sérgio Fernando Guarischi Bath Capa: Elisa de Sousa Direitos exclusivos para esta edição: Editora Universidade de Brasília EQUIPE TÉCNICA Editores: Lúcio Reiner, Manuel Montenegro da Cruz, Maria Rizza Baptista Dutra e Maria Rosa Magalhães. Supervisão Gráfica: Antonio Batista Filho e Elmano Rodrigues Pinheiro Supervisor de Revisão: José Reis Controladores de Texto: Antônio Carlos Ayres Maranhão, Carla Patrícia Frade Nogueira Lopes, Claricc Santos, Laís Serra Bátor, Maria dei Puy Diez de Uré Helinger, Maria Helena Miranda, Mônica Fernandes Guimarães, Patrícia Maria Silva de Assis,Thelma Rosane Pereira de Souza,Wilma G. Rosas Saltarelli 32 Machiavelli, Niccolò, 1469-1527. Ml 49c Comentários sobre a primeira dccada de Tito Lívio. Trad. de = 690 Sérgio Bath, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1994, 3- ed. 440 p. Título original: Discorsi sopra la prima deca di Tito Lívio. Nos seus “Discorsi”, Maquiavel analisa a história rom ana em função dos pro blemas da Itália do seu tempo. A o contrário do historiador contemporâneo, M a quiavel não se preocupa em fundam entar afirm ativas ou em docum entar suas m ui tas referências. Procura, em vez disso, acontecimentos, ou seqüências de eventos, na história da Roma republicana segundo Tito Lívio, que confirmem suas convic ções acerca de qual a política que a Itália — então dividida em várias cidades- estado e enfrentando graves problemas por causa de conflitos intestinos — deveria seguir para alcançar a cura dos seus males e para chegar a unificar-se e assim au m entar o seu poderio. Não se pode, pois, considerar os “Discorsi” como sendo ape nas uma obra acerca de um tema histórico. Os “Discorsi” são uma obra política no seu enfoque e, na medida em que indicam um curso de ação a ser seguido, são tam bém uma obra norm ativa, à semelhança de “O Príncipe”. Esta edição dos “Discorsi”, pois, amplia as possibilidades de o leitor brasileiro se aprofundar na obra de Maquiavel e de apreciar, através do seu estudo, a contri buição deste autor p ara a evolução do pensamento político. A esta, e às obras já pu blicadas, seguir-se-ão outras de relevante im portância para ciência política, no m arco da Coleção Pensamento Político, da Editora Universidade de Brasília. Sumário A presentação 11 C arta de Nicolau M aquiavel a Lenóbio Buondelm onti e Cosmo R uccellai 13 LIV RO PRIMEIRO (Capítulos Prim eiro a Sexagésimo) 15 LIV RO SEGUNDO (Capítulos Prim eiro a Trigésimo Terceiro) 187 LIVRO TERCEIRO (Capítulos Prim eiro a Quadragésimo Nono) 299 APRESENTAÇÃO Maquiavel é um antigo e contínuo sucesso editorial: do século XVI a nossos dias tem sido um autor com público certo. Escrito em 1513, O príncipe só foi editado em 1532, cinco anos após a sua morte, mas antes disso já circulava em manuscrito. Neste fim do século XX, em quase todo o mundo suas edições ainda se esgotam regularmente, o que acontece também com as várias edições brasileiras, dentre elas a da Editora Universidade de Brasília. Não será surpreendente se, passados mais alguns séculos, esse pequeno manual de política e também de psicologia tiver ainda um público garantido, quem sabe já exclusivamente em algum meio eletrônico. A Mandrágora, de 1518, peça bem mais antiga que as de Shakespeare (escritas setenta e mais anos depois), ainda hoje é representada para um público interessado. No Brasil, os Discorsi, obra mais extensa e menos conhecida, foi um lançamento pioneiro da Editora Universidade de Brasília, uma iniciativa de Carlos Henrique Cardim, em 1979. Provocou uma dessas redescobertas cíclicas de Maquiavel, e nos meses subseqüentes o noticiário político nacional foi colorido por citações maquiavélicas. Esgotada a primeira edição, a segunda veio a público em 1982 e agora, doze anos depois, surge a terceira, porque as livrarias não têm mais exemplares para atender à demanda. O historiador romano Tito Lívio nasceu em Patavium (Pádua) em 59 a.C.; passou a maior parte da sua vida em Roma e retornou à cidade natal para morrer, em 17 A.D., na época do imperador Tibério. Sua história de Roma compreende 142 livros, abrangendo um largo período, da fundação da cidade até a morte de Druso, no nono ano antes de Cristo. Dessa obra, habitualmente dividida em décadas, isto é, conjuntos de dez livros, só conhecemos o texto integral de 35 deles, inclusive a primeira década, que vai da fundação (ab urbe condita), por volta de 750 a.C. — oficialmente a data é 21 de abril de 753 a.C. — até o ano 294 a.C. Trata-se de período fundamental para a formação do Estado romano. Os Discorsi — Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio, como preferi traduzir, pois se trata efetivamente de comentários — foram escritos entre 1513 e 1517 e constituem uma digressão sobre os dez primeiros livros da obra de Tito Lívio, lidos à luz dos problemas da Itália renascentista. Maquiavel não se preocupa em fundamentar afirmativas ou documentar suas referências. Em vez disso, identifica no passado acontecimentos ou seqüências de eventos que ilustrem e confirmem suas 12 Maquiavel convicções acerca do presente, e em especial da política a ser seguida pelas cidades italianas, imersas em divergências e conflitos. Na verdade a história romana é a matéria-prima, o modelo e a fonte de inspiração para um tratado sobre os problemas políticos da sua época. A pretexto de comentar fatos pretéritos, os Discorsi são uma obra política, que contém mensagem para os contemporâneos. Nela o autor faz filosofia política e psicologia da conduta política, revelando-se por outro lado republicano, preferência que não se depreende da leitura de O Príncipe — simples manual prático de operação política, para uso do monarca. Num período de crise política como a que há tanto tempo estamos vivendo, é uma boa notícia saber que o público brasileiro continua a demandar os Discorsi. Eles permitirão uma reflexão profunda sobre a nossa atualidade, análoga à que fez o secretário Florentino sobre o seu tempo, a partir da história de Tito Lívio. Brasília, 1994 Sérgio Bath Carta de Nicolau Maquiavel a Zenóbio Buondelmonti e Cosmo Ruccellai Envio a Vossas Senhorias um presente que, se não corresponde à m agnitude das m inhas obrigações, é o que tenho de m ais precioso. T rata-se do registro de tudo o que sei, tudo o que m e ensinaram um a longa experiência e o estudo contínuo das coisas do m undo. N em Vossas Senhoriasnem q ualq uer outra pessoa p oderiam esperar de m im m ais do que tenho a oferecer aqu i; com o não poderiam queixar-se de que não lhes dei objeto de m aior valor. A pobreza do m eu espírito poderá aborrecê-los com a aridez de certos relatos; poderá feri-los a falsid ad e do m eu ju lgam en to , quando e n contrarem algum erro, no m eio da exposição de tantos assuntos. M as, m esm o neste caso, não sei quem p oderia queixar-se: Vossas Senhorias, por não lhes d ar este livro com pleta satisfação; ou eu, por ter sido obrigado a desenvolver um tem a que jam ais teria escolhido voluntariam ente. R ogo, portanto, que aceitem este presente com o tudo o que vem de um am igo — considerando menos o valor do que é dado do que a intenção de quem o oferece. Estejam certos de que sinto neste m om ento um a satisfação genuín a ao pensar que, tendo com etido tantos erros, acertei ao escolher as pessoas a quem ofereço es tes “ Com entários” . Com tal escolha penso ter dem onstrado reconhecim ento pelos Benefícios recebidos, e tam bém ter desprezado o cam inho seguido em geral pelos escritores que dedicam seus livros a algum príncipe, a quem atribuem , com p ro fu são de elogios banais, todas as virtudes — cegos à sua am bição e avareza — , q u an do deveriam fazê-lo corar pelos seus vícios. P ara não cair neste erro com um , escolhi não um príncipe, m as pessoas que m ereceriam sê-lo, pelas suas belas q ualidades; não quem m e pudesse cum ular de t í tulos, honrarias e riquezas, m as quem , não podendo fazê-lo, tem pelo menos o d e sejo de me prodigalizar tais vantagens. P ara um ju lgam en to sadio, os hom ens d e vem saber discernir entre os que são verdadeiram ente generosos e os que têm ap e nas o poder m ateria l de ag ir com libera lid ad e; entre os que deveriam d irig ir o E sta do e os que, sem esta cap acitação , se acham às vezes à testa de um im pério. Os his 14 M aqu iavel toriadores sentem m ais atração por H íeron, c id ad ão de S iracusa, do que por Per- seu, rei da M acedôn ia, porque o prim eiro , p ara ser príncipe, só precisaria do poder suprem o; m as Perseu tinha só um dos atributos do rei — a realeza. A proveitem , portanto, o bem e o m al que Vossas Senhorias m esm as p ro cu ra ram . E se chegarem a aceitar com benevolência os m eus com entários, esforçar-m e- ei por continuar esta h istória, cum prindo assim a prom essa que fiz ao com eçar a escrevê-la. Saudações. LIVRO PRIMEIRO Introdução Em bora os hom ens, por natureza invejosos, tenham tornado o descobrim ento de novos m étodos e sistem as tão perigoso quanto a descoberta de terras e m ares des conhecidos — pois se inclinam por essência m ais à crítica do que ao elogio — , to m ei a decisão de seguir um a senda ainda não trilh ada, m ovido pelo natu ra l desejo que sem pre me levou sem receios aos em preendim entos que considero úteis. Se vier a encontrar dificuldades e aborrecim entos, espero colher tam bém re com pensa na aprovação dos que lançarem um olhar benevolente aos objetivos deste esforço. E se a tentativa for falh a e de escassa utilidade, devido à pobreza do do m eu espírito, à insuficiente experiência das coisas de hoje ou ao pouco conhecim en to do passado, terá ao menos o m érito de abrir cam inho a quem , dotado de m aior vigor, eloqüência e discernim ento, possa a lcan çar a m eta. Enfim , se este trabalho não me der a glória, tam bém não me servirá de condenação. N ão posso d eixar de me espantar — e de queixar-m e — quando considero, de um lado, a veneração que inspiram as coisas antigas (bastaria lem brar com o se com pra, a peso do ouro, um fragm ento de estátua que se deseja ter ju n to a si, como adorno da casa: m odelo p ara os que se deliciam com a sua arte, esforçando-se por reproduzi-la); de outro, os atos adm iráveis de virtude que a história registra, nos antigos reinos e repúblicas, envolvendo m onarcas, capitães, cidadãos, legisladores, todos os que trabalh aram pela grandeza da p átria . Atos m ais friam ente adm irados do que im itados (longe disto, todos parecem evitar o que sugerem , de m odo que é pouco o que resta da sua antiga virtude). Com m aior espanto ainda vejo que, nas causas que agitam os cidadãos e nos m ales que afetam os hom ens, sem pre se recorre aos conselhos e rem édios dos a n ti gos. As leis, por exem plo, não são m ais do que sentenças dos jurisconsultos p retéri tos, as quais, codificadas, orientam os m odernos ju ristas. A própria m edicina não passa da experiência dos m édicos de outros tem pos, que ajud am os clínicos de hoje a fazer seus diagnósticos. Contudo, quando se trata de ordenar um a república, m anter um Estado, governar um reino, com andar exércitos e adm in istrar a guerra, ou de d istribuir justiça aos cidadãos, não se viu ainda um só príncipe, um a só rep ú blica , um só capitão, ou cidadão , apoiar-se no exem plo da A ntigu idade. 18 M aquiavel A causa disto, na m inha opinião, está m enos na fraqueza em que a m oderna re lig ião fez m ergulh ar o m undo, e nos vícios que levaram tantos Estados e cidades da C ristandade a um a form a orgulhosa de preguiça, do que na ignorância do espí rito genuíno da h istória. Ignorância que nos im pede de aprender o seu sentido real, e de nutrir nosso espírito com a sua substância. O resultado é que os que se dedicam a ler a história ficam lim itados à satisfação de ver desfilar os acontecim entos sob os olhos sem p rocurar im itá-los, ju lgan d o tal im itação m ais do que d ifícil, im possível. Com o se o sol, o céu, os hom ens e os elem entos não fossem os mesmos de outrora; com o se a sua ordem , seu rum o e seu poder tivessem sido alterados. Resolvido a salvar os homens deste erro, achei necessário red igir, a propósito de cada um dos livros de T ito L ívio que resistiram à in júria do tem po, um a com pa ração entre fatos antigos e contem porâneos, de m odo a facilitar-lhes a com preen são. Deste m odo, meus leitores poderão tirar daqueles livros toda a u tilidade que se deve buscar no estudo histórico. E um a em presa difícil que espero, contudo, condu zir longe o bastante p ara que fique faltando pouco cam inho a quem queira levá-la a term o. É o que procurarei fazer, com a assistência dos que me induziram a assu m ir este encargo. Capítulo Primeiro Com o com eçaram as cidades, de m odo geral; e com o R o m a , em p articu la r , teve o seu início. Os que estudarem o que foi o início de R o m a, seus legisladores e a ordem p ú b lica que institu íram , não se espantarão de saber que tantas virtudes tenham sido ali cu ltivadas durante séculos, e que aquela cidade se tenha tornado centro de im enso im pério. P ara com eçar discorrendo sobre a origem das cidades, lem brarei que todas foram fundadas ou por naturais do país onde se situam ou por estrangei ros. O prim eiro caso ocorre quando os habitantes, dissem inados por m uitas vilas de lim itad a p opulação, têm dificu ldade de viver em segurança, já que nenhum a dessas vilas, pela sua localização e reduzido tam anho, pode resistir com as próprias forças à agressão de eventuais atacantes. A aproxim ação do inim igo não há tem po p ara a defesa com um , sendo necessário ceder-lhe a m aior parte das instalações, que são lo go capturad as. Para preven ir este perigo, os habitantes, espontaneam ente ou m ovi dos pela tribo de m aior autoridade, decidem h ab itar em conjunto um local de sua escolha que ofereça m aior com odidade e cu ja defesa seja m ais fác il. Atenas e Veneza são dois exem plos. A p rim eira foi construída, sob a direção de T eseu , p ara acolher a p opulação dispersa pela A tica . A segunda reuniu os num ero sos habitantes que se h aviam refugiad o na constelação de ilhotas situadasna extre m idade do m ar A d riático p ara escap ar às guerras que se sucediam na Itá lia , depois da decadência do Im pério R om ano. Com eçavam as invasões b árb aras, e nenhum príncipe assegurava àquele país um governo com leis que parecessem apropriadas. O em preendim ento foi coroado de êxito , favorecido por um a paz p rolongada e pela sua posição num m ar sem saída, que as lim itações dos navios da época preservavam d a infestação pelos bárbaros que arru inavam a Itá lia . Foi assim que Veneza cons tru iu , sobre fundam entos bem fráge is, a grandeza que hoje adm iram os. O segundo caso é o da cidade fu n d ad a por estrangeiros, hom ens livres ou d e pendentes de outro Estado. Deve-se incluir nesta categoria as colônias fund ad as p e las repúblicas, ou pelos príncipes, p ara receber a população excedente ou p ara m an ter suas novas conquistas de m odo m ais seguro e m enos dispendioso. O povo ro m an o, por exem plo , fundou m uitas destas cidades em toda a extensão do Im pério. 20 M aqu iavel H á ainda um outro tipo de cidade: a construída por um príncipe, não com o propósito de ali fix a r residência, m as exclusivam ente p ara a sua g lória , com o dá exem plo a c idade de A lexan d ria , estabelecida por A lexan d re. Com o estas cidades n ão têm origem n atu ra l, é raro que se desenvolvam plenam ente, chegando a consti tu ir capitais de Estados. Florença nasceu assim; fu n d ad a pelos soldados de Sila ou pelos habitantes de Fiesole (os quais, seduzidos pela longa paz otaviana, teriam d e cidido h ab itar a p lan ície do rio A rno), a verdade é que a sua fu n d ação foi obra do Im pério R om an o. Por isto F lorença, no princíp io da sua vida u rb an a, não pôde expandir-se a não ser m ediante a m unificéncia do príncipe. U m a cidade deve sua existência a hom ens livres quando um povo, m ovido pela doença, a fom e ou a gu erra , deixa a p átria dos seus pais p ara estabelecer-se em ou tro local — espontaneam ente ou sob a direção de um príncipe. O povo im igrante se instala em cidades conquistadas pela força das arm as, com o fez Moisés; ou então edifica um a nova cidade, com o Enéas. Neste últim o caso, m anifestam -se a sabed o ria do fu n d ad o r e a sorte do seu em preendim ento — m elhor ou p ior, conform e seja m aior ou m enor a sabedoria do príncipe. Esta sabedoria se revela em duas coisas: a escolha do local e a natureza das leis prom ulgadas. Com o os homens agem por necessidade ou por escolha, e a coragem sem pre brilh a m ais intensam ente quando a escolha é m ais livre, deve-se considerar se não é m ais vantajoso selecionar, p ara sede de um a cidade, local in fértil, onde os h ab itan tes, constrangidos ao trabalh o , e m enos inclinados ao ócio, possam viver unidos, su jeitos à concórdia pela sua situação de pobreza. T a l é o exem plo de R agu sa , e de m uitas outras cidades construídas em regiões desse tipo. Esta escolha seria sem d ú vida m ais sábia e m ais útil se os hom ens se contentassem em viver com o que têm , e não buscassem am p liar seu território. M as com o estão condenados a garan tir o seu destino exclusivam ente pelo poder, é preciso que fu jam das regiões m uito estéreis, e se fixem em terras fecundas, onde a riqueza do solo perm ita o desenvolvim ento; on- ’ de os habitantes possam defender-se de ataques, dom inando quem se oponha ao seu progresso. Q uanto à fa lta de vigor que um local assim fértil pode provocar nos cidadãos, é preciso que seja evitada pelas leis, que devem im por um a operosidade à qual o solo não obriga de m odo natu ral. É necessário im itar os governantes sábios que, h a b i tando países férteis e risonhos (os quais produzem cidadãos efem inados, incapazes de qualquer esforço generoso), souberam com pensar os inconvenientes devidos ao clim a sensual im pondo aos que se destinavam às arm as a necessidade de contínuo exercício . G raças a tal regra , foi possível form ar soldados m elhores que os de países naturalm ente rústicos e estéreis. Foi o que aconteceu no Egito , onde a in fluência da suavidade da terra foi tão alterad a pelo vigor das instituições que aquele país p ro duziu os homens m ais em inentes em todos os cam pos. E se o curso do tem po não houvesse já extinto a lem bran ça dos seus nom es, perceberíam os que esses homens são m ais dignos de elogio do que o G rande A lexan d re , e tantos outros cu ja m em ória aind a floresce. Com entários Sobre a P rim eira D écada de T ito Lívio 21 Q uem tiver estudado o Im pério do Sudão, a organização dos m am elucos e a d isciplina da sua m ilíc ia , antes da destruição do Sultão Selim , saberá que esses sol dados estavam obrigados a contínuos exercícios; eles tem iam , de fato, o ócio a que a am enidade do clim a poderia levá-los, se não o tivessem neutralizado com as leis m ais estritas. M inha opinião, portanto, é a de que é m ais prudente escolher um a re gião fértil, já que as leis podem conter esta in fluência nefasta dentro de lim ites con venientes. A lexan d re , o G rande, queria construir um a cidade que fosse m onum ento à sua glória . O arquiteto D inocrato m ostrou-lhe que era possível construí-la fa c il m ente sobre o m onte Atos. A lém da força natu ral do lugar, dizia, poder-se-ia escu l p ir a m ontanha com form a hum ana — um projeto m aravilhoso, d igno do seu p o der. A lexan d re perguntou então de que viveriam os habitantes; o arquiteto respon deu que não h avia pensado nisso. O príncipe riu e, deixando de lado o m onte Atos, m andou lan çar os alicerces de A lexan d ria , num local onde os hom ens se fixariam prazerosam ente, seduzidos pela fecundidade do solo e pela dupla vantagem do Nilo e do M editerrâneo. Se nos rem ontarm os à origem de R om a, e considerarm os Enéas seu prim eiro fundador, poderem os dizer que aquela cidade foi institu ída por estrangeiros; m as se seu fun d ad or foi R ôm ulo , terá sido fun d ad a pelos naturais do país. Em qualquer hipótese, sua origem foi livre e independente. Verem os m ais tarde quantas restrições às leis estabelecidas por R ôm ulo foram im postas ao povo por N um a e outros legisladores. Desta form a, nem a fertilidade do solo, nem a com odidade do m ar, nem as vitórias freqüentes, nem m esm o a p ró pria grandeza do Im pério p uderam , no curso de tantos séculos, corrom per seus cos tum es: R om a viu florescer no seu seio m ais virtudes do que qualquer outra rep ú b li ca. E como as grandes coisas que os rom anos produziram , e T ito L ívio celebrou, decorreram de deliberações públicas e particulares, no seio da cidade ou fora dela, com eçarei fa lan d o sobre o que lá aconteceu por decisão pública, detendo-m e no que m erecer, a m eu ju ízo, m aior atenção, e explicando as circunstâncias de cada caso. Este será o tem a dos com entários deste L ivro Prim eiro. Capítulo Segundo Q uantas espécies há de repúblicas, e a qua l p e r ten ceu a república rom ana. V ou abster-m e de fa la r das cidades cuja fundação se deve a um outro Estado; tratarei som ente daquelas que surgiram livres de qualquer dependência estrangei ra , tendo sido autogovernadas, desde o início, com o repúblicas ou com o m o n ar quias — em bora, devido a esta d upla origem , tenham tido leis e constituição d ife rentes. A lgum as receberam legislação de um só hom em , no m om ento da fundação ou pouco tem po depois — como aconteceu com L icurgo , na Laced em ônia . Em o u tras, as leis foram sendo instituídas gradualm ente, de acordo com os acontecim en tos — como em R om a. Feliz é a república à qual o destino outorga um legislador prudente, cujas leis se com binam de m odo a assegurar a tranqü ilid ad e de todos, sem que seja necessário reform á-las. E o que se viu em Esparta, ondeas leis foram respeitadas durante oito séculos, sem alteração e sem desordens perigosas. Infeliz, porém , é a cidade que, não tendo tido um legislador sábio, é ob rigad a a restabelecer a ordem no seu seio. Dentre elas, a m ais infeliz é a que está m ais a fa s tada da ordem ; isto é, aquela cujas instituições se apartam do bom cam inho que pode levá-las ao seu objetivo perfeito e verdadeiro — porque é quase impossível que, nessa situação, ocorra algum acontecim ento feliz que lhe restabeleça a boa o r dem . C ontudo, as cidades cuja constituição é im perfeita, m as que têm príncipes bons, susceptíveis de aprim oram ento, podem , de acordo com os acontecim entos, ch egar à perfeição. M as não há dúvida de que as reform as serão sem pre perigosas, pois a m aioria dos homens não se curva de boa vontade a um a lei inovadora, que estabeleça um a ordenação nova das coias a que não considerem necessário subm eter-se. E com o tal necessidade nunca é im posta sem perigo, pode acontecer facilm ente que um a rep ú blica pereça sem que h a ja atingido a ordem p erfe ita . Em Florença temos disto um a dem onstração m arcante: reorganizada depois da revolta de Arezzo, em 15 0 2 , a c i dade foi revolucionada outra vez após a tom ada de Prato, em 1 5 1 2 . 24 M aqu iavel P ara descrever as form as que assum iu o governo de R o m a, e o-conjunto de c ir cunstâncias que o levaram à p erfeição, lem brarei (como os que escreveram a respei to da organização das repúblicas) que há três espécies de governo: o m onárquico, o aristocrático e o p op ular; os que pretendem estabelecer a ordem num a cidade d e vem escolher, dentre estas três espécies, a que m elhor convém a seus objetivos. Outros, segundo a opinião geral, mais esclarecidos, acham que há seis formas de governo, das quais três são essencialm ente m ás; as três outras são em si boas, mas degeneram tão facilm ente que podem tam bém tornar-se perniciosas. Os bons g o vernos são os que relacionei anteriorm ente; os m aus, suas derivações. E se parecem tanto aos prim eiros, aos quais correspondem , que podem com facilidad e ser con fundidos com eles. Deste m odo, a m on arq u ia se transform a em despotism o; a aristocracia, em o li g a rq u ia ; e a dem ocracia em perm issividade. Em conseqüência, todo legislador que adota p ara o Estado que vai fun d ar um a destas três form as de governo não a m an tém por m uito tem po; não há o que a possa im pedir de precipitar-se no tipo co n trá rio, tal a sem elhança entre a form a boa e a m á. Foi por acaso que surgiu esta variedade de governos. N o com eço do m undo, os habitantes da terra eram pouco num erosos, e viveram por m uito tem po dispersos, com o anim ais. Com o crescim ento da população, os homens se reu n iram e, para m elhor se defender, com eçaram a d istinguir os m ais robustos e m ais corajosos, que passaram a respeitar com o chefes. Chegou-se assim ao conhecim ento do que era útil e honesto, por oposição ao que era pernicioso e ruim . V iu-se que quem p re ju d i cava o seu benfeitor provocava nos hom ens sentimentos de ira — e de piedade pela sua vítim a. Passou-se a detestar os ingratos, a honrar os que dem onstravam g ra t i dão; e, pelo tem or de sofrer as m esm as in júrias que outros tinham sofrido, procurou-se erig ir a b arreira das leis contra os m aus, im pondo penalidades aos que tentassem desrespeitá-la. Estas foram as prim eiras noções de justiça. A p artir de então, quando houve necessidade de escolher um chefe, deixou-se de p rocurar o m ais corajoso p ara buscar o m ais sábio, e sobretudo o mais justo; contudo, com o os príncipes vieram a reinar pelo direito de sucessão, e não pela es colha do povo, em breve os herdeiros d egeneraram ; desprezando a virtude, persuadiam -se de que n ad a m ais tinham a fazer além de exceder seus sem elhantes em luxo, ócio e todos os tipos de vo lúpia. Desde então, a figu ra do príncipe com e çou a provocar ira , que a rodeou de terror; m as não tardou a nascer a tiran ia , que transform ou o m edo em agressão. Estas foram as causas da queda dos príncipes: contra eles foram urdidas conju- ras, não por homens fracos ou pusilâm ines, m as sobretudo pelos que dem onstravam generosidade e grandez d a lm a ; os que tinham riqueza, fid a lg u ia , e não podiam su portar a v ida crim inosa de tais príncipes. Com entários Sobre a P rim eira D écada de T ito Lívio 25 Levada pelo exem plo dos grandes, a m ultidão se arm ava contra o soberano; e depois que este era castigado, obedecia àqueles com o seus libertadores — estes, que detestavam até mesmo o título principesco, organizavam entre si um governo. A princípio , dado o exem plo da tiran ia precedente, conform avam sua conduta às leis que haviam prom ulgado. Preferindo o bem público à vantagem p róp ria, go vern a vam com ju stiça e zelavam com igual em penho pelos interesses com uns e pelos p a r ticulares. Mas o poder passou às mãos dos seus filhos, que ignoravam os caprichos da so r te; como os infortúnios não os tinham subm etido à prova, não queiram respeitar a iguald ad e civil; entregando-se à avareza, à am bição e ao desm ando, tran sfo rm a ram o governo, que até então fora aristocrático, num a o ligarq u ia que deixou de respeitar os direitos dos cidadãos. Em breve, porém , tiveram a m esm a sorte do tira no: a m ultidão, cansada, se fez instrum ento de quem quisesse vingá-la dos seus opressores. Logo surgiu um hom em que, com o apoio do povo, os derrubou do p o der. A lem bran ça do príncipe e dos seus ultrajes continuava viva. A oligarqu ia t i nha sido destruída e não se queria restabelecer o poder de um a só pessoa. O rganizou-se assim o Estado popular, no qual a autoridade não recaía nem no príncipe nem num pequeno núm ero de senhores. Com o todo governo, que ao co m eçar sem pre inspira algum respeito, o Estado popular a princíp io se m anteve — mas por bem pouco tem po, só até extinguir-se a geração que o h avia posto no p o der. N ão tardou a desenvolver-se um a situação de licença em que não se respeitava m ais os cidadãos nem as autoridades. C ada um vivia conform e o seu capricho, e a cada dia ocorriam mil ultrajes. Constrangidos pela necessidade, advertidos pelos conselhos de um sábio, ou m ovidos pela fad iga de tal licença, os hom ens vo ltaram ao im pério de um só, p ara recair de novo, grad ualm ente, da m esm a m aneira e p e las m esm as causas, nos horrores da anarqu ia . Este é o círculo seguido por todos os Estados que já existiram , e pelos que exis tem . M as raram ente se retorna ao ponto exato de p artid a, pois nenhum a república tem resistência suficiente p ara sofrer várias vezes as m esm as vicissitudes. A contece m uitas vezes que, no m eio destes distúrbios, uma rep ública , p rivad a de conselhos e de força, é tom ada por algum Estado vizinho, governado com m ais sabedoria. Se is to não ocorrer, um im pério percorrerá por m uito tem po o círculo das m esm as revo luções. P ara m im , todas estas form as de governo são igualm ente desvantajosas: as três prim eiras, porque não podem durar; as três outras, pelo princíp io de co rru p ção que contêm . Por isto, todos os legisladores conhecidos pela sua sabedoria ev ita ram em p regar exclusivam ente qualquer um a delas, reconhecendo o vício de cada um a. Escolheram sem pre um sistem a de governo de que p artic ipavam todas, por ju lgá-lo m ais sólido e estável: se o príncipe, os aristocratas e o povo governam em conjunto o Estado, podem com facilidad e controlar-se m utuam ente. 26 Maquiavel Entre os legisladores que e lab oraram constituições sem elhantes, o m ais digno de encôm ios é L icurgo . N as leis que deu à E sparta , soube de tal m odo co n trab alan çar o poder do rei, da aristocracia e do povo que o Estado se m anteve em paz d u rante m ais de oitocentos anos, por sua grande glória. O contrário sucedeu a Sólon, legislador de A tenas; por só se servir do governo p opular, deu-lhe existência tão efêm era que ainda vivia quando eclodiu a .tirania de Pisístrato. Em bora os herdeiros do tirano tenham sido expulsos q uaren ta anos depois, recobrando Atenas a liberdade, com o se restabeleceu então o sistem a de Só lon, este só durou um século, não obstante as em endas feitas p ara consolidá-lo, e p ara rep rim ir a insolência dos aristocratas e a licença da m ultidão — dois vícios que não tinham m erecido a atenção de Sólon. Por outro lado, como não participavam da constituição ateniense nem a autoridade do príncipe nem a aristocrática, a c id a de teve um a existência m uito lim itad a, em com paração com a Lacedem ônia. M as, retornem os a R om a. N o princíp io da sua vida, essa cidade não teve um L icu rgo que lhe desse leis, que estabelecesse ali um governo capaz de conservar a l i berdade por m uito tem po. Contudo, devido aos acontecim entos que fizeram nascer no seu seio o ciúm e que sem pre separou o povo dos poderosos, R om a conseguiu o que seu legislador não lhe tinha concedido. Com efeito, se a cidade não se b en efi ciou da p rim eira vantagem que indiquei, teve a segunda; e se suas prim eiras leis ,eram defeituosas, jam ais se a fastaram do cam inho que podia levá-las à perfeição. R ôm ulo e os dem ais reis prom ulgaram num erosas outras leis, excelentes p ara um governo livre. Entretanto, com o o seu objetivo principal tinha sido fun d ar um a m onarquia, e não um a república, quando a cidade recobrou a independência viu- se que a liberdade reclam ava m uitas disposições que os reis não haviam pensado es tabelecer. E em bora estes tivessem perdido a coroa pelas causas e nas circunstâncias que acim a indicam os, os que os expu lsaram institu íram dois cônsules p ara exercer a função real, de m odo que só se baniu de R om a o título, e não a autoridade do rei. A rep ública , retendo os cônsules e o Senado, representou a princíp io a m istura de duas das três form as m encionadas: a m onarquia e a aristocracia. Só fa ltava in troduzir o governo popu lar. A nobreza rom ana, pelos m otivos que vam os exp licar, tornou-se insolente, despertando o ressentim ento do povo; p ara não perder tudo, teve que ceder-lhe um a parte da autoridade. De seu lado, tanto o Senado com o os cônsules g u ard aram bastante desta autoridade p ara m anter a posição que ocu p a vam no Estado. Estas foram as causas que originaram os tribunos do povo, 'instituição que en fraqu eceu a república porque cad a um dos três elem entos do governo recebeu um a porção da sua autoridade. A sorte favoreceu R o m a de tal m odo que, em bora tenha passado da m onarqu ia à aristocracia e ao governo popu lar, seguindo a degradação provocada pelas causas que estudam os, o poder real não cedeu toda a sua au to rid a Com entários Sobre a P rim eira D écada de T ito Lívio 27 de p ara os aristocratas, nem o poder destes foi todo transferido p ara o povo. O equilíbrio dos três poderes fez assim com que nascesse um a rep úb lica p erfe ita . A fonte desta perfeição, todavia, foi a desunião do povo e do Senado, com o dem ons trarem os am plam ente nos dois capítulos que seguem . Capítulo Terceiro Os acon tec im en tos que levaram à criaçao dos tribunos rom anos, institu ição que aperfeiçoou o governo da república . Com o dem onstram todos os que escreveram sobre p olítica , bem com o n u m ero sos exem plos históricos, é necessário que quem estabelece a form a de um Estado, e prom ulga suas leis, p arta do princíp io de que todos os homens são m aus, estando dispostos a agir com perversidade sem pre que h aja ocasião. Se esta m alvadez se oculta durante um certo tem po, isso se deve a algum a causa desconhecida, que a experiência a in d a não desvelou; m as o tem po — conhecido justam ente com o o pai da verdade — vai m anifestá-la . Depois da expulsão dos T arqu ín ios, parecia re inar a m aior concórdia entre o povo e o Senado; os nobres, despojados do seu orgulho, p areciam revestir-se de d is posição p op ular, o que os tornava aceitáveis m esm o às classes m ais m odestas. Esta aparente união durou, sem que se soubesse porquê, enquanto os T arq u ín ios vive ram . A nobreza, que os tem ia, tinha m edo tam bém de que o povo, ofendido, dela se afastasse; por isto o tratava com m oderação. T o d avia , logo que os T arq u ín ios m orreram , e os nobres perderam o m edo, co m eçaram a d erram ar sobre o povo o veneno que gu ard avam no coração, agredindo-o com todas as vexações que podiam conceber. O que prova seguram en te o que disse antes: os homens só fazem o bem quando é necessário; quando cada um tem a liberd ad e de agir com abandono e licença, a confusãp e a desordem não tardam a se m an ifestar por toda p arte . Por isto se diz que a fom e e a m iséria desper tam a operosidade, e que as leis tornam os hom ens bons. Q uando um a causa q u a l qu er produz boas conseqüências sem a interveniência da lei, esta é inútil; m as quando tal disposição p rop íc ia não existe, a lei é indispensável. Assim , quando os T arq u ín ios (os quais refreavam os aristocratas pelo terror que lhes inspiravam ) d eixaram de existir, foi preciso buscar novas instituições que os substituíssem , com o m esm o efeito. Em conseqüência, só depois dos distúrbios, das contínuas reclam ações e dos perigos provocados pelos longos debates entre n o 30 Maquiavel bres e plebeus é que se institu íram os tribunos, p ara a segurança do povo. A au to ri dade desses novos m agistrados foi cercada de tantas prerrogativas e prestígio que p uderam m anter o equilíbrio entre povo e Senado, oferecendo um obstáculo às p re tensões insolentes da nobreza. Capítulo Quarto A desunião entre o povo e o Senado f o i a causa da grandeza e da liberdade da repúb lica rom ana. N ão quero silenciar sobre as desordens ocorridas em R om a, entre a m orte dos T arquín ios e o estabelecim ento dos tribunos. M as não aceitarei as a firm ativas dos que acham que aquela foi um a república tum ultuada e desordenada, in ferior a to dos os outros governos da m esm a espécie a não ser pela boa sorte que teve, e pelas virtudes m ilitares que lhe com pensaram os defeitos. N ão vou negar que a sorte e a disciplina tenham contribuído p ara o poder de R om a; m as não se pode esquecer que um a excelente disciplina é a conseqüência necessária de leis apropriad as, e que em toda parte onde estas reinam , a sorte, por sua vez, não tard a a brilhar. Exam inem os, porém , as outras p articu laridades de R om a. Os que criticam as contínuas dissensões entre os aristocratas e o povo parecem desaprovar justam ente as causas que asseguraram fosse conservada a liberdade de R o m a, prestando m ais atenção aos gritos e rum ores provocados por tais dissensões do que aos seus efeitos salutares. N ão querem perceber que há em todos os governos duas fontes de oposi ção: os interesses do povo e os da classe aristocrática. T odas as leis p ara proteger a liberdade nascem d i^ sua desunião, com o prova o que aconteceu em R o m a, onde, durante os trezentos anos e m ais que transcorreram entre os T arq u ín ios e os Gracos, as desordens havidas produziram poucos exilados, e m ais raram ente ainda fizeram correr o sangue. N ão se pode, portanto, considerar estas dissensões com o funestas, nem o E sta do com o inteiram ente d ividido, pois durante tantos anos tais d iferenças só cau sa ram o exílio de oito ou dez pessoas, e a m orte de bem poucos cidadãos, sendo alguns outros m ultados. N ão se pode de form a algum aacusar de desordem um a república que deu tantos exem plos de virtude, pois os bons exem plos nascem da boa ed u ca ção, a boa educação das boas leis, e estas das desordens que quase todos condenam irrefletidam ente. De fato , se se exam in ar com atenção o m odo com o tais desordens rerm inaram , ver-se-á que nunca provocaram o exílio , ou violências prejudiciais ao bem público, m as que, ao contrário, fizeram nascer leis e regulam entos favoráveis à liberdade de todos. 32 M aquiavel E se alguém perguntar: mas não é um a conduta extrao rd in ária, e por assim d i zer selvagem , o correr todo o povo a acusar o Senado em altos brados, e o Senado o povo, precipitando-se os cidadãos pelas ruas, fechando as lojas e abandonando a c i dade? A descrição apavora . Responderei, contudo, que cada Estado deve ter costu mes próprios, por m eio dos quais os populares possam satisfazer sua am bição, so bretudo nas cidades onde os assuntos im portantes são decididos com a interveniên- cia do povo. Dentre os Estados desta categoria , Rom a tinha por hábito ver os p o p u lares entregues a um com portam ento extrem ado com o o que descrevi, ou recusando-se à m obilização p ara a guerra, quando queriam que se fizesse algum a lei. De tal sorte que, p ara acalm á-los, era necessário satisfazer a sua vontade. O desejo que sentem os povos de ser livres raram en te pre jud ica a liberdade, porque nasce da opressão ou do tem or de ser oprim ido. E se o povo se engana, os discursos em praça pública existem justam ente p ara retificar suas idéias; basta que um hom em de bem levante a voz p ara dem onstrar com um discurso o engano do m esm o. Pois o povo, com o disse C ícero, m esm o quando vive m ergulhado n a ign o rância, pode com preender a verdade, e a adm ite com facilid ad e quando alguém da sua confiança sabe ind icá-la. Sejam os, portanto, avaros de críticas ao governo rom ano; atentem os p ara o f a to de que tudo o que de m elhor produziu esta república provém de um a boa causa. Se os tribunos devem sua origem à desordem , esta desordem m erece encôm ios, pois o povo, desta form a, assegurou p artic ipação no governo. E os tribunos foram os guard iães das liberdades rom anas, com o verem os no capítulo seguinte. Capítulo Quinto A q u e m se p o d e con fiar com m ais segurança a defesa da liberdade: aos aristocratas ou ao povo? Quais são os que tê m mais m otivos p a ra instigar desordens: os que q u erem ad q u irir ou os que qu erem conservar? A queles que agiram com m aior tino ao fu n d ar um Estado inclu íram entre suas instituições essenciais a sa lvaguard a da liberdade; e os cidadãos p uderam viver em liberdade um tem po m ais ou menos longo, segundo tal sa lvaguard a tenha sido m ais ou menos bem form u lad a. Com o em todos os Estados existem aristocratas e p le beus, pode-se bem p ergu n tar em que m ãos a liberdade estaria m elhor savalguarda- da. Em outros tem pos, os lacedem ônios a con fiaram aos nobres, com o o fazem em nossos dias os venezianos: já em R o m a, ela estava nas m ãos do povo. E necessário, portanto, exam in ar qual dessas repúblicas fez m elhor escolha. Se considerássem os os seus m otivos, teríam os m uito a dizer em favor de cada lado; exam rnjm do os re- sultados, contudo, dar-se-á a preferência à nobreza, porque em Esparta e em V en e za a liberdade teve v ida m ais longa do que em R om a. N o entanto, p ara chegar aos m otivos, e tom ando os rom anos com o exem plo, d irei que se deve sem pre confiar um depósito a quem tem por ele menos avidez. De fato , se considerarm os o objetivo da aristocracia e do povo, perceberem os na p r i m eira a sede do dom ínio; no segundo, o desejo de não ser degrad ad o — portanto, um a vontade m ais firm e de viver em liberdade, porque o povo pode bem m enos do que os poderosos ter esperança de usurpar a autoridade. Assim , se os plebeus têm o encargo de zelar pela sa lvaguard a da liberdade, é razoável èsplerar que o cum pram com menos avareza, e que, não podendo apropriar-se do poder, não perm itam que outros o façam . Por outro lado, os defensores da ordem estabelecida em Esparta e em Veneza pretendem que confiar este depósito aos m ais poderosos dá ao Estado duas va n ta gens; a prim eira ê contem plar, em parte , a am bição dos que exercem im portante in fluência na república e que, tendo em m ãos as arm as que protegem o poder, por 34 M aquiavel isto m esm o têm m ais m otivos de satisfação com a sua p artilh a ; a segunda é im pedir que o povo, de índole inquieta, use o poder que lhe facu ltaria o p rovocar dissensões e distúrbios capazes de levar a nobreza a algum gesto de desespero, cujos efeitos fu nestos se fariam sentir um dia. Cita-se a própria R o m a com o exem plo. Q uando os tribunos foram instituídos, o povo não se contentou com um cônsul p lebeu : quis logo dois. Depois, exigiu a censura; em seguida a pretoria ; m ais tarde todas as dem ais funções de governo. M ais ainda: m ovido sem pre pela m esm a ânsia de poder, veio com o tem po a id o la trar os hom ens que considerava capazes de re b a ixar a nobreza. Esta foi a origem do p od er de M ário , e da ru ína de R om a. C onsiderando todos os aspectos desta questão, seria d ifícil decidir a quem con fia r a gu ard a da liberd ad e, pois não se pode determ inar com clareza que espécie de hom em é m ais nociva num a rep ública : a dos que desejam ad quirir o que não pos suem ou a dos que só querem conservar as vantagens já alcançadas. E possível que um exam e aprofund ad o nos leve à seguinte conclusão: ou se trata de um a república que quer ad qu irir um im pério — com o R o m a, por exem plo — ou de um a rep ú b li ca que tem com o fim exclusivo a sua p róp ria conservação. N o prim eiro caso, é p re ciso fazer com o se fez em R o m a; no segundo, pode-se im itar Esparta e Veneza, p e los m otivos sobre os quais vam os fa la r no capítu lo seguinte, e do m odo ali indicado. Q uanto a saber quais as pessoas m ais perigosas num a república — as que q u e rem ad qu irir ou as que não querem perder o que já possuem — lem brarei o caso de M arco M enênio e de M arco Fúlvio. T end o sido os dois, plebeus que eram , n om ea dos p ara investigar um a conspiração urdida em C áp u a contra a rep úb lica rom ana, o povo os investiu tam bém com autoridade p ara exam in ar, na cap ita l, a conduta de todos os que, por m eios escusos, am bicionavam apoderar-se do consulado e ou tros cargos públicos. Convencida de que este poder delegado ao d itador era dirigido contra ela, a nobreza d ifundiu em R om a a notícia de que quem assim agia não eram os nobres, m as os plebeus; estes, sem confiança na posição fam ilia r ou no p ró prio m érito, procuravam insinuar-se no governo, usando m eios ilegais. Era sobretu do ao d itad or que os nobres visavam em seus discursos. Esta acusação influenciou de tal m odo o espírito de M enênio que o levou a re n un ciar à d itad u ra, após um discurso em que se queixou am argam ente das calúnias dos nobres. M enênio pediu p ara ser ju lgad o , tendo sido d eclarado inocente. Nos debates que precederam o ju lgam en to , considerou-se m ais de um a vez quem seria o m ais am bicioso: o que não quer perder ou o que quer ad quirir — duas paixões que podem ser causa dos m aiores desastres. N o entanto, as d ificuldades são criadas m ais freqüentem ente pelos que já pos suem ; o tem or de perder o que se tem provoca p aixão igu al à causada pelo desejo de ad qu irir. E natu ral dos homens não se considerarem proprietários tranqüilos a não Com entários Sobre a P rim eira D écada de T ito Llvio 35 ser quando podem acrescentar algo aos bens de que já dispõem . É preciso considerar, tam bém , que quanto m ais um indivíduo possui, m ais aum enta o seu poder; é mais fác il p ara ele provocar alterações da ordem . E, o que é bem m ais funesto, sua am bição desenfreada acende o desejo de posse no coração dos que não o tinham , se ja como vingança, para despojar os inim igos, seja p ara com partilh ar as honrarias e riquezas de que querem fazer uso ilícito. Capítulo Sexto Se seria possível insta lar em R o m a u m governo que extinguisse a in im izade entre o povo e o Senado. Expusem os jã os efeitos das divergências èntre o povo e o Senado. C onsideran do que elas d uraram até o tempo dos Gracos, quando provocaram a perda da lib e r dade, é n atu ral que se creia desejável que R om a tivesse podido realizar seus grandes feitos sem a perturb ação causada por sem elhante inim izade. Contudo, vale a pena exam inar se seria possível fu n d ar em R om a um governo que evitasse essas dissensões. N aturalm ente, p ara fazer um ju lgam ento seguro, é preciso passar os olhos sobre as repúblicas que, sem discórdia e inim izade, gozaram longam ente da liberdade; ver qual a form a do seu governo, e se o m esm o poderia ter sido introduzido em R om a. Tom em os como exem plos Esparta, entre os antigos, e Veneza entre os m od er nos, com o já tivemos ocasião de fazer. Esparta foi governada por um reino e um Senado pouco num eroso. Veneza não dividiu o poder sob denom inações diferentes; todos os que dele participavam t i nham o m esm o título: “ G entiluom ini” . É à sorte, m ais do que à sabedoria dos seus legisladores, que Veneza deve esta form a de governo. Com efeito, foi fu n d ad a pelos m uitos habitantes expulsos das regiões vizinhas, devido às razões a que an terior mente me referi, e que se refugiaram nos escolhos onde hoje está situada. V endo o seu núm ero aum entar, os cidadãos form ularam leis que lhes perm itissem viver em coletividade. E como se reunissem com freqüência p ara deliberar sobre os assuntos de interesse da cidade, refletiram que já tinham núm ero suficiente p ara com pletar sua existência política, recusando, a todos que im igrassem depois disto, a facu ld ad e de p artic ip ar do governo. Em conseqüência, com o estes últim os tivessem au m en ta do consideravelm ente, passou-se a ch am ar “gentiluom ini” aos que governavam a cidade, e aos outros, “ popolani” . Esta form a de governo nasceu e se m anteve sem distúrbios porque, o r ig in a l m ente, todos os habitantes da cidade foram cham ados ao poder, de m odo que nin- 38 M aqu iavel guém podia queixar-se; os que vieram depois encontraram o governo já com pleta m ente organizado, e não tiveram a possibilidade, ou o desejo, de instigar tum ultos. Faltou-lhes o desejo, porque nada lhes tinha sido retirado; a possibilidade, porque os governantes os controlavam com pulso firm e, não lhes confiando jam ais q u a l quer cargo que pudesse conferir-lhes a m enor autoridade. Por outro lado, os que vieram se estabelecer em Veneza não eram bastante num erosos p ara rom per o eq u i líbrio entre governantes e governados: os nobres eram seus iguais em núm ero, ou m esm o superiores. Deste m odo, Veneza pôde fund ar um governo, e m an ter sua unidade. Esparta , com o já disse, governada por um rei e Senado pouco num eroso, su b sistiu tam bém durante vários séculos. Sua p eq uen a população, a sua recusa de rece ber estrangeiros, a subm issão às leis de L icu rgo , tudo isto h avia afastado as desor dens, e perm itido por m uito tem po um a existência un id a . Com suas instituições, L icu rgo tinha estabelecido em Esparta m ais iguald ad e de substância do que de g rau ; h avia ali um a pobreza generalizada e ig u alitá ria . Q uanto o povo, este não era am bicioso, porque as honrarias do Estado beneficiavam poucos cidadãos e a condu ta destes não era de m olde a d espertar a inveja dos populares. A seus reis Esparta devia esta vantagem . Do trono, no m eio da nobreza, só t i n h am um m eio p ara conservar toda a força da sua d ignidade: defender o povo de q u alq u er insulto. Por isto o povo nem tem ia nem alm ejava o poder — pelo que d e sapareciam os germ es de tum ulto, e todos os pretextos de discórdia entre ele e a n o breza; p uderam assim viver por m uito tem po na união m ais perfe ita . Esta con cór d ia teve duas causas principais: a reduzida população de E sparta , que tornava pos sível o governo, por poucos m agistrados; e a rejeição dos estrangeiros, o„que afastava do povo toda causa de corrupção, e im pèdia a população de aum entar além do l i m ite im posto pelos governantes. Q uando exam inam os todas estas dificuldades, cònvencem o-nos de que os legisladores rom anos, p ara m an ter sua cidade tão p a c íf i ca quanto as repúblicas que m encionam os, deveriam ou desobrigar o povo do servi ço m ilitar, com o os venezianos, ou n egar aos estrangeiros a c id ad an ia , com o os la- cedem ônios. Contudo, fizeram as duas coisas, o que aum entou o núm ero e a força do povo, m ultip licando em conseqüência as fontes de distúrbio. M as se a república rom ana tivesse sido m ais p acífica , o resultado teria sido inconveniente: sua d eb ili dade teria aum entado, e ela talvez ficasse im possibilitada de trilh ar os cam inhos da grandeza que m ais tarde seguiu. De m odo que, se os rom anos tivessem querido preservar-se de tum ultos, d eixariam de ter todos os m eios p ara desenvolver-se. Se refletirm os com atenção sobre o que acontece neste m undo, ficarem os p er suadidos de que não é possível rem ed iar um inconveniente sem p rovocar algum o u tro. Assim , se se quiser um povo guerreiro e num eroso, que estenda o dom ínio do Estado, será necessário im prim ir-lhe um caráter tal que o to m ará d ifíc il de gover n a r; se se quer restringi-lo dentro de lim ites estreitos, ou m antê-lo desarm ado a fim de m elhor governá-lo , ele não poderá conservar suas conquistas, ou se tornará tão Com entários Sobre a P rim eira D écada de T ito Lívio 39 covarde que será presa fác il do prim eiro agressor. É preciso exam in ar, portanto, em todas as nossas resoluções, qual apresenta m enos inconvenientes, abraçando-a com o a m elhor — porque jam ais se encontrará n ad a que seja perfeitam ente puro, isento de quaisquer vícios ou perigos. Seguindo o exem plo de E sp arta , R o m a p odia perfeitam ente instituir um rei eletivo, um Senado pouco num eroso; m as não podia, com o E sparta , im pedir que sua popu lação crescesse, porque queria assegurar um am plo território; um rei com m andato vitalício , e um núm ero reduzido de senadores, não teriam contribuído m uito p ara m an ter a união entre os cidadãos. Assim, se alguém quiser fu n d ar um a nova rep ública , deverá decidir se o seu objetivo é com o o de R om a, aum entar o im pério e o seu poder, ou ao contrário, m antê-los lim itados dentro de justos lim ites. N o prim eiro caso, seria preciso organizá-la com o R o m a, deixando as desordens e dissensões gerais seguirem seu curso da m aneira que p areça m enos perigosa; sem um a população im portante, bem arm ad a, nenhum a república poderá jam ais crescer. No segundo caso pode-se im itar a constituição de Esparta ou de Veneza. C o n tudo, com o p ara as repúblicas deste tipo a sede de crescim ento é um veneno, o fu n dador do novo Estado deverá p ro ib ir as conquistas com todos os meios ao seu a lc a n ce. T o d a conquista de um Estado fraco term ina por arru iná-lo : Esparta e Veneza são exem plos m uito claros. E sparta, após ter conquistado quase toda a G récia, d e monstrou, no prim eiro revés, a fraqueza dos fundam entos do seu poder; depois da revolta de T eb as, provocada por Pelópidas, as outras cidades se levantaram , d erru bando aquela república. Veneza tam bémse tinha apossado de um a gran de parte da Itá lia , antes pela sua riqueza e política do que pelas arm as. Q uando quis prová- las, perdeu, num só com bate, todos os Estados que possuía. A credito que, p ara estabelecer um a república cuja existência se possa p ro lo n gar por m uito tem po, o m elhor seria organizá-la com o Esparta ou Veneza, num lo cal protegido, tornando-a forte o bastante p ara que ninguém pensasse poder vencê- la. M as este poder não deveria ser suficientem ente gran de p ara fazê-la tem ida p e los vizinhos. Deste m odo seria possível assegurar ao seu governo um a longa vida. Pois só dois motivos levam a a tacar um a rep úb lica : o desejo de apoderar-se d ela , ou de im pedir que venha a se apoderar do país atacante. O m eio que indicam os reme- dia estes dois inconvenientes. Se é d ifícil vencê-la por assalto, e se ela está sem pre pronta a defender-se, com o estou sugerindo, raram en te acontecerá (se acontecer) que alguém tente dom iná-la. Se a república se m antiver dentro dos seus lim ites, se a experiência dem onstrar que não dá ouvido à am bição, o m edo jam ais levará os vizinhos a declarar-lh e a 40 M aquiavel gu erra. C onfian ça que será ainda m aior se a constituição a proibir de alterar seus lim ites. Estou seguro de que se este equilíbrio puder ser m antido, teremos a vida co letiva m ais perfeita , e a paz m ais desejável p ara um a cidade. T o d avia , com o não há n ad a que seja perm anente entre os m ortais, e nad a é estável, é natu ral que as coisas m elhorem ou piorem . A necessidade, por sua vez, m uitas vezes nos obriga a em preendim entos que a razão nos fa r ia rejeitar. Assim , depois de fun d ar um a re p ú b li ca ad ap tad a a se m anter sem conquistas, se surgisse a necessidade de fazê-la cres cer, ela logo desm oronaria, pdr fa lta da base necessária. Por outro lado, se o céu a favorecesse poupando-lhe os desastres da guerra, o ócio criaria no seu seio a discórdia ou o langor: estes dois flagelos (se um só não b a s tasse) seriam a causa da sua perdição . Entretanto , como a m eu ju ízo não se pode m anter esta b alan ça em repouso, ou em equilíbrio perfeito, é preciso, ao fun d ar um a república, escolher o cam inho m ais honroso, organizando-a de m an eira tal que, se surgir a necessidade de crescer, e la possa conservar as possessões que vier a ad qu irir. E , p ara voltar ao m eu prim eiro raciocínio , penso que se deve im itar a constituição de R om a e não a das outras re públicas que consideram os; não creio que seja possível escolher um term o in term e diário entre estes dois m odos de governo. A cho que é preciso to lerar as discórdias que possam surgir entre o povo e o Senado^ considerando-as com o um m al necessá rio p ara a lcan çar a grandeza rom an a. A lém dos motivos já alegados, pelos quais dem onstrei que a autoridade dos tribunos era indispensável à conservação da lib e r dade, é fácil perceber a vantagem que trazia p ara as repúblicas o poder de acusar — parte das atribuições dos tribunos — com o se exp licará no capítu lo seguinte. Capítulo Sétimo Com o o direito de acusação pú b lica é necessário para m a n ter a liberdade n u m a república N ão se pode dar aos guard iães da liberdade num Estado direito m ais útil e ne cessário do que o de poder acusar, perante o povo, ou diante de um m agistrado ou tribunal, os cidadãos que tenham atentado contra esta liberdade. Esta m edida tem, num a rep ública , dois efeitos extrem am ente im portantes: o prim eiro é que os c id a dãos, tem endo ser acusados, não ousam investir contra a segurança do Estado; se tentam fazê-lo, recebem im ediatam ente o castigo m erecido. O outro é o de se cons titu ir num a válvula de escape à p a ixão que, de um m odo ou de outro, sem pre fe r m enta contra algum cidadao. Q uando esta p aixão não encontra um m eio legal de vir à superfície, assume um a im portância extrao rd in ária , que ab ala os fun d am en tos da rep ública . N ad a a en fraquecerá tanto, todavia, quanto organizar-se o E sta do de m odo tal que a ferm entação de paixões possa escapar por um canal autoriza do. E o que se prova com m uitos exem plos, e sobretudo pelo que T ito L ívio re la ta a propósito de Coriolano. T ito L ívio conta que a nobreza rom ana estava indisposta contra o povo, que lhe parecia ter adqu irid o dem asiada autoridade desde a instituição dos tribunos. R o m a sofria, nessa época — como acontecia com freqüência — , gran de escassez de alim entos, e o Senado tinha m andado com prar na Sicília os cereais de que a p op u lação necessitava. Foi quando C oriolano, inim igo do partido p opular, fez sentir que era chegado o m om ento de castigar o povo, retirando-lhe a autoridade que havia usurpado à nobreza. P ara isto, queria fazê-lo passar fom e, recusando a distribuição do trigo. Com o esta proposta tivesse chegado a ouvidos populares, levantou-se gran de ind ignação contra o seu autor, que teria sido m orto se os tribunos não o houvessem citado p ara que com parecesse diante deles, a defendeT sua causa. Este acontecim ento fundam enta o que disse acim a: é útil e necessário que as leis da rep úb lica concedam à m assa um m eio legítim o de m anifestar a cólera que lhe possa insp irar um cid ad ão ; quando este m eio regu lar é inexistente, ela recorre a m eios extraord inários: e não há dúvida de que estes últim os produzem m ales m aio res do que os que se p oderia im pu tar aos prim eiros. De fato , se um cid ad ão é puni- 42 Maquiavel do por m eios legais, a inda que injustam ente, isto pouca ou nenhum a desordem causa na rep ú b lica , por ter ocorrido a punição sem recurso à força p articu lar, ou de estrangeiros, causas ord inárias da ruína da liberdade. E um a punição baseada apenas na força d a lei e da ordem pública , cujos lim ites são conhecidos, e cu ja ação nunca é violenta o bastante p ara subverter a república. Para ap o iar m inha opinião com exem plos, basta-m e o de Coriolano, entre os antigos. Que se considere, com efeito, todos os m ales que teriam resultado p ara a rep úb lica rom ana se tivesse ocorrido um m assacre, com o resultado da com oção p o p u lar. T e ria havido um crim e; ora , o crim e provoca o m edo; o m edo busca m eios de proteção; estes reclam am partidos; e os partidos criam as facções que dividem as cidades, e orig in am a ru ína dos Estados. M as se a ação for com etida pela au to rid a de legítim a, prevenir-se-á o desenvolvim ento de todos os m ales que poderiam n as cer do sim ples uso da força p articu lar. Vim os em nosso tem po as inovações introduzidas na república de Florença p e la im possibilidade em que se encontrava a m ultidão de a tacar legalm ente Frances- co V alo ri, c id ad ão cuja autoridade era sem elhante à de um príncipe. A m aioria do povo suspeitava da sua am bição , acusando-o, por sua au d ácia , de querer elevar-se acim a das leis. A república não tinh a outro m eio de resistir-lhe senão o de opor-lhe um a opin ião contrária. M as V a lo ri, que só respeitava os m eios extraordinários, procurou cercar-se de cúm plices que o defendessem . Os que o cam batiam , não p o dendo dom iná-lo pela força das leis, em p regaram então m eios ilegais, vencendo-o pelas arm as. O m étodo, que ob rigava a lu tar com recursos que a le i não outorgava, fez com que V alori arrastasse em sua queda_m uitos cidadãos dignos. Estas reflexões ad qu irem força nova quando se pensa no que sucedeu em F lo rença com Pedro Soderini — exclusivam ente porque não existia na república um m odo ad eq uado de conter a am b ição dos cidadãos que ad qu iriam excessivo poder. Pode-se, de fato , considerar ad eq u ad a a facu ld ad e de acusar um hom em poderoso p erante tribunal com posto apenas por oito juizes? Os ju izes devem ser m uitos, p o r que o pequeno núm ero se curva facilm ente à vontade dos poderosos. Com efeito, se o Estado tivesse tido m eios de defesa, e se Soderini fosse cu lpado, os cidadãos teriam podido satisfazer sua anim osidade sem ter que im plo rar a assistência do exército es panh ol. Se, ao contrário , sua conduta fosse legítim a, não teriam ousado processá- lo , pelo tem or de term inarem com o réus. E assim se extin gu iria o fu ror deste ressen tim ento que foi causa de tantas desordens. De onde se conclui que todas as vezes que um dos partidos que dom inam um a cidade pede socorro a forças estrangeiras, deve-se atribu ir isto aos defeitos da sua constitu ição, e ao fato de não existir no seio d aquela rep ú b lica um a institu ição que favoreça a explosão regu lar dos ressentim entos que agitam com tanta freqüência os indivíduos. Com entários Sobre a P rim eira D écada de T ito Lívio 43 Seria possível preven ir tais inconvenientes se se estabelecesse um tribunal b a s tante num eroso p ara tom ar conhecim ento de todas as acusações. Em R o m a, esta institu ição era tão bem ordenada que, no m eio de longas dissensões entre o povo e o Senado, nunca um ou outro — nem um sim ples cidadão — pensou em ch am ar em seu socorro forças estrangeiras. Com o possuíam em casa o rem édio p ara o m al, não tinham necessidade de ir buscá-lo em outra parte. Em bora os exem plos precedentes sejam suficientes p ara dem onstrar o que a f ir m ei, quero re latar um outro, fornecido tam bém pela “ H istória” de T ito L ívio . C o n ta aquele autor que em Chiusi, um a das cidades m ais renom adas da T o scan a, um certo Lucum o tinha violado a irm ã de A runte; este, não podendo vingar-se, pois o inim igo era poderoso, procurou os gauleses que ocupavam a região hoje conhecida com o L o m b ard ia , propondo-lhes o envio de um a expedição contra a cidade, fazen do ver que seria vantajoso tom ar a si aquela vingança. Está claro que se A runte t i vesse podido vingar-se de acordo com as leis da sua p átria , não teria recorrido às forças dos bárbaros. T o d av ia , em bora as acusações sejam úteis num a república, as calúnias são d a ninhas, e inúteis, com o veremos no capítulo que se segue. Capítulo Oitavo A s calúm as são tão perniciosas às repúblicas q uan to são úteis as denúncias. Em bora C am ilo Furius, cuja coragem libertara R o m a do ju go dos gauleses, t i vesse pelo seu m érito obrigado todos os cidadãos a reconhecê-lo com o superior, sem que se considerassem por isto rebaixados, M ânlio C apitolino sofria com im p aciên cia a atribu ição àquele gran de hom em de tantas h onrarias. Salvador do C apitólio , pensava ter contribuído tanto quanto C am ilo p ara a defesa da cidade, e não se con siderava em coisa a lgum a in ferior ao rival, no concernente aos outros talentos m ili tares. D evorado pela inveja, irritado com a g ló ria de C am ilo , e vendo que não con seguiria sem ear a discórdia entre os senadores, lançou-se aos braços do povo, espa lhando entre os cidadãos suspeitas as m ais ignóbeis. D izia, entre outras coisas, que os tesouros reunidos p ara saciar a avidez dos gauleses (tesouros que, a fin al, não lhes tinham sido entregues) haviam sido divididos entre alguns cidadãos; que se fossem recuperados, dando-se-lhes um a destinação p ú b lica , seria possível aliviar o povo de um a parte dos tributos, ou p agar algum as das suas dívidas. Estes discursos tiveram bastante in fluência sobre o povo, levando-o a se reunir, e a com eter desordens pela cidade. Irritados, os senadores, ju lg an d o o Estado em perigo, nom earam um d ita dor p ara tom ar conhecim ento do que se passava, e rep rim ir a au d ácia de M ânlio. C itado pelo d itador, os dois se encontraram em p raça p ú b lica : o d itador cercado de todos os nobres, M ânlio no m eio do povo. O rdenou-se a M ânlio d eclarar onde se encontrava o tesouro a que se referia , pois o Senado tinha tanto desejo de localizá-lo quanto o povo. Sem ter n ad a a dizer de positivo, M ânlio respondeu, de m odo evasi vo, que era inútil dizer o que todos sabiam tão bem quanto ele; por esta resposta, o d itador o fez prender em seguida. Este episódio m ostra claram ente que a calún ia deve ser detestada, nas cidades que vivem sob o im pério da liberdade — e com o é im portante criar instituições c a pazes de reprim i-la . P ara isto, o m elhor m eio é ab rir cam inho às denúncias. Q uan to m ais estas denúncias são propícias à rep ública , m ais as calúnias se tornam in ju riosas. E preciso atentar p ara o fato de que a calúnia dispensa testem unhos e p ro vas: qualquer um pode ser ca luniado por qualquer um . M as as acusações exigem provas exatas, com a indicação de circunstâncias precisas, que dem onstram fatos. 46 M aquiavel Acusa-se os cidadãos perante m agistrados, perante o povo, ou os tribunais; calunia-se nas praças públicas, em reuniões particu lares. A calún ia é m ais em p re gad a sobretudo nos Estados onde a acusação é menos h ab itu al, e cujas instituições não se harm onizam com este sistem a. Por isto, o fund ad or de um a república deve estabelecer o princíp io de que todo cid ad ão poderá ser acusado, sem qualquer tem or ou perigo; um a vez estabelecido e bem observado este d ireito, os caluniadores devem ser punidos rigorosam ente; não poderão queixar-se de tal punição, um a vez que existam tribunais abertos p ara o u vir acusações contra os que p referirem calun iar em reuniões particu lares. Em toda p arte onde esta disposição não está perfeitam ente estabelecida, sem pre nascem grandes desordens. A calún ia , de fato , irrita os homens e não os corrige; os que se irritam só pensam em seguir seu cam inho, porque detestam a calún ia m ais do que a tem em . Esta era um a das m edidas bem ordenadas em R o m a, m as foi sem pre m al o rg a nizada em Florença. Com o a ordem estabelecida em R o m a teve grandes m éritos, assim tam bém em Florença a desordem contrária provocou m ales dos m ais funes tos. Q uem ler a história desta c idade verá com o a calúnia sem pre perseguiu os c i dadãos que se envolveram em q u alq u er assunto de im portância . Dizia-se de um , que h avia desviado fundos do Estado; de outro, que por corrupto não a lcan çara a v itó ria ; de outro ainda, que a sua am bição causara esta ou aquela desgraça. Com o resultado, surge a anim osidade e o rom pim ento aberto de facções, levando o faccio- sism o à ruína do Estado. Se houvesse em Florença um a lei que perm itisse acusar os cidadãos, e pun ir os caluniadores, não teria havido todas as desordens ocorridas nesta cidade. C o n d en a dos ou absolvidos, os cidadãos acusados não se teriam tornado perigosos p ara o'Es- tado. De todo m odo, o núm ero dos acusados teria sido sem pre m uito in ferior aos dos caluniados. Com o disse, pode-se acusar tão facilm ente quanto calun iar. A ca lú n ia foi sem pre um dos m eios utilizados pelos am biciosos p ara chegar à grandeza, e não dos menos eficazes. Foi em pregada contra os poderosos que se opunham à a v i dez dos caluniadores, servindo m aravilhosam ente aos desígnos destes. De fato , to m ando o p artido do povo, e acirrando o seu n atu ral ciúm e contra tudo o que é e le vado, o calu n iad or conseguia facilm ente o seu apoio. Poderia citar m uitos exem plos p ara ilustrar a tese que avancei, m as m e con tentarei com um só. O exército de Florença assediava Lu ca , sob o com ando de Jo ã o G uicciard in i, com issário da rep ública . Seja pela im perícia do com ando m ilitar, seja por sim ples m á sorte, não foi possível tom ar a cidade. Q ualquer que tenha sido a causa do in Com entários Sobre a P rimeira D écada de T ito Lívio 47 fortúnio, lançou-se a cu lpa sobre Jo ã o , acusando-o de se ter deixado corrom per p e los habitantes de L u ca . Seus inim igos ecoaram esta ca lú n ia , levando-o quase ao d e sespero. P ara se ju stificar, ofereceu-se em vão com o prisioneiro ao capitão do povo, e não conseguiu jam ais se ju stificar integralm ente, porque não h avia nesta rep ú b li ca um m odo próprio de fazê-lo. Disto resultou p rofun d a irritação entre os am igos do calun iad o — a m aioria dos aristocratas de F lorença — e entre os que a lm ejavam um a m od ificação no g o verno. T a is inim izades, atiçadas d iariam ente por estes e outros m otivos, acenderam enfim um incêndio, que devorou toda a rep ública . M ânlio C apitolino foi um calun iad or, e não denunciante; no episódio que o envolveu, os rom anos deram um exem plo claro da m aneira com o a calúnia deve ser reprim ida: obrigando o calun iador a agir com o acusador, p ara recom pensá-lo — ou, pelo m enos, deixá-lo sem p unição — se a acusação for fu n d ad a. M as, no caso de falsidade, p ara puni-lo , com o foi punido M ânlio Capitolino. Capítulo Nono É preciso estar só para fu n d a r um a nova república , ou para reform á- la de m odo to ta lm en te novo. Talvez se possa pensar que avancei m uito na história rom ana sem ter m encio nado os que estabeleceram a república e as instituições relativas à re lig ião e à d isci plina m ilitar. N ão quero m anter em suspenso por m ais tem po a atenção dos q ae d e sejam ver o assunto exposto; direi, portanto, que m uitos consideram com o um m al exem plo o fato de que o fundador de um governo livre, com o foi R ôm ulo , tenha prim eiram ente assassinado seu irm ão , tendo concordado em seguida com a m orte de T ito T ác io Sabino, com quem com partilh ava o trono. Pensam alguns que os c i dadãos, encorajados pelo exem plo do príncipe, poderiam — por am bição ou sede de poder — forçar os que a eles se opusessem. Esta opinião seria bem fundam entada se não se levasse em conta o m otivo que conduziu R ôm ulo àquele hom icídio. E por assim dizer um a regra geral a de que as repúblicas e os reinos que não receberam as suas leis de um único legislador, ao se rem fundados ou durante algum a reform a fund am ental que se tenha feito, não possam ser bem organizados. É necessário que um só hom em im prim a a form a e o espírito do qual depende a organização do Estado. Deste m odo, o legislador sábio, anim ado do desejo exclusivo de servir não os seus interesses pessoais, m as os do público: de trabalh ar não em favor dos próprios herdeiros, m as p ara a p átria com um , não p ou p ará esforços p ara reter em suas mãos toda a autoridade. E nenhum espírito esclarecido reprovará quem se tenha valido de um a ação extrao rd in ária p ara institu ir um reino ou um a rep ública . A lguém p o de ser acusado pelas ações que com eteu, e ju stificado pelos resultados destas. E quando o resultado for bom , como no exem plo de Rôm ulo , a ju stificação não fa lta rá. Só devem ser reprovadas as ações cuja violência tem por objetivo destruir, em vez de rep arar. U m príncipe deve ter bastante sabedoria e virtude p ara não legar a outrem a autoridade da qual se apossou; de fato , com o os homens se inclinam m ais ao m al do 50 M aquiavel que ao bem , seu sucessor poderá em pregar am biciosam ente o poder do qual o p r i m eiro príncipe só se serviu de m an eira virtuosa. Por outro lado, se um só hom em é capaz de estabelecer norm as p ara um Estado, este d urará bem pouco tem po, se um só hom em tam bém continuar a suportar todo o seu peso. N ão acontece o mesmo quando sua gu ard a é confiada a um grande núm ero de pessoas. E , da m esm a form a que um grupo de hom ens será incapaz de fu n d ar um a institu ição, se não lhe reco nhecer as vantagens, porque a d iversidade de opinião obscurece o seu ju lgam ento , depois que lhe adm itam a utilidade, jam ais poderão pôr-se de acordo para abandoná-la. O que dem onstra que R ôm ulo m erece ser absolvido da m orte do seu irm ão e do seu colega, e que agiu não p ara satisfazer um a am bição pessoal, m as em prol do bem com um , é o estabelecim ento im ediato do Senado, cujo conselho procurou, tom ando-o com o gu ia. Exam inando-se com atenção a autoridade que R ôm ulo guard ou p ara si, ver-se-á que ele se lim itou ao com ando do exército, em tem po de gu erra, e ao direito de convocar o Senado. Foi o que se viu claram ente quando R o m a, depois da expulsão dos T arq u ín ios, recobrou a liberdade. Foi desnecessário, então, alterar o antigo governo; tudo o que se fez foi criar dois cônsules anuais em lu gar do rei vitalício : prova evidente de que as prim eiras instituições daquela c id a de estavam m ais a justadas a um governo livre e pop u lar do que a um governo abso luto e tirânico. P ara sustentar esta opinião, poderia citar inúm eros exem plos, tais com o os de Moisés, L icurgo , Sólon, e de alguns outros fundadores de reinos e de repúblicas; to dos puderam form ular leis favoráveis ao bem público porque obtiveram do povo a autoridade m ais com pleta. A band ono porém esses exem plos, porque são de todos bem conhecidos. Vou contentar-m e com um só célebre, m as que deve provocar re flexão em todos os que quiserem tornar-se legisladores. Eis o exem plo: Á gis, rei de E sparta , pretendeu revigorar entre os lacedem ônios as leis que L icu rgo lhes h avia outorgado. Pensava que, ao se afastar daquela legisla ção, Esparta só h avia perdido suas antigas virtudes e, em conseqüência, sua força e poder. N um a das prim eiras tentativas foi m assacrado pelos éforos, que o acusavam de p rocurar estabelecer um a tiran ia. Cleôm enes, seu sucessor, tinha o m esm o propósi to. A dvertido , porém , pelas instruções de Á gis e pelos escritos nos quais o príncipe tinha desenvolvido suas idéias, percebeu que não poderia d ar à p átria tal benefício se não reunisse nas m ãos toda a autoridade do Estado — convencido de que a a m b i ção dos homens não perm ite a realização do bem geral quando o interesse de um a m inoria a isto se opõe. A proveitando um a oportun idade favorável, fez m atar todos os éforos, ju n ta m ente com os que se p oderiam opor ao seu projeto. Em seguida, pôs em vigor as leis de L icurgo . Com entários Sobre a P rim eira D écada de T ito Lívio 51 Este episódio poderia ter soerguido o poder de E sparta , dando a Cleôm enes íló ria igual à de L icurgo , se o poder dos m acedônios e a fraqueza das dem ais rep ú blicas gregas não o tivessem feito fracassar. Logo após sua reform a, Cleôm enes foi atacado pelos lacedem ônios, a cu ja for- ;a era interior. N ão sabendo a que apoio recorrer, foi vencido; seu objetivo, em bo ra justo e louvável, não pôde ser realizado. Depois de ter pesado bem estas considerações, creio poder concluir do seguinte rr.odo: p ara instituir um a república é preciso a ação de um só hom em ; e Rôm ulo , em vez de ser condenado pela m orte de R em o e de T á c io , deve m erecer nossa absol ução. Capítulo Décimo Os fu n d a d o re s de u m a república ou de u m reino são dignos de elogio, tan to q uan to m erecem recrim inação os que fu n d a m u m a tirania. Dentre todos os m ortais que já m ereceram elogios, os m ais dignos são os chefes ou fundadores de religiões. Depois vêm os fundadores de rep úb lica ou de reinos. Em seguida os que, à frente de exércitos, estenderam os dom ínios da sua p átria . A estes devem os acrescentar os letrados; e com o destes há várias espécies, cada um a l cança a glória reservada à categoria a que pertence. En fim , no núm ero infin ito dos homens, nenhum deles deixa de receber a fra çã o de elogio a que
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