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1 A EDUCAÇÃO DE CRIANÇAS AUTISTAS: DIFICULDADES E POSSIBILIDADES Aluna: Luciana Gonçalves de Oliveira Orientador: Marcelo Andrade Introdução Iniciei no GECEC (Grupo de Estudos sobre Cotidiano, Educação e Culturas) em março de 2015, como bolsista de iniciação científica, vinculada ao Edital Universal (CNPq). Desde então, tenho sido responsável, junto com os demais bolsistas, pela organização do acervo bibliográfico do grupo, que auxilia professores, mestrandos e doutorandos em suas pesquisas. Além disso, participo semanalmente das reuniões da equipe ajudando a elaborar as atas das mesmas, nas quais procuro sintetizar informações e debates sobre os textos estudados por todos e as atividades acadêmicas. O GECEC privilegia como temática central de seus estudos e pesquisas as relações entre educação e culturas em diferentes contextos educativos, buscando pensar e propor uma educação que contribua para o reconhecimento das diferenças e igualdade de direitos entre os seres humanos, defendendo a luta contra todas as formas de preconceito e marginalização. Envolvendo pesquisas sobre os temas de raça, gênero e sexualidade, identidades religiosas e os diversos tipos de deficiências, o grupo tenta entender as possíveis interações entre os estudos sobre multiculturalismo e o campo de ensino-aprendizagem, a partir de distintas perspectivas para uma prática pedagógica mais sensível às diferenças. Para isto o grupo se organiza em cinco subgrupos, cada um com sua temática específica, a fim de promover um trabalho interdisciplinar e aprofundar os temas para melhor atender a nossa proposta central de estudo. Cabe ressaltar que estes subgrupos foram formados livremente, onde cada membro integrou-se de acordo com os seus interesses pessoais de estudo. Deste modo, os subgrupos estão organizados assim: Gética (moral, ética e luta por reconhecimento), Gefé (religião e intolerância religiosa), Gepret@s (questões étinico-raciais e racismo), Gesexy (questões de gênero e sexualidades e sexismo e homofobia) e Gedefi (deficiências e capacitismo). Assim, cada subgrupo é responsável por dedicar-se sobre as suas questões de estudo, que são partilhadas com todo o grupo. Desde o início de 2016, integro o subgrupo Gedefi que trata de questões sobre as diversas deficiências, o capacitismo e busca pensar alternativas, que favoreçam a inclusão dessas pessoas no contexto social e escolar, a fim de garantir-lhes os direitos que deveriam lhes ser atribuídos, mas que nem sempre acontecem na prática. Dentre as diversas deficiências pesquisadas pelo meu subgrupo, uma despertou meu maior interesse: o autismo. Temática que pretendo aprofundar de agora em diante. 2 Apresentação do tema O autismo, pela perspectiva patológica, é definido como um transtorno do desenvolvimento, marcado pela característica da inabilidade para interagir socialmente, assim como a dificuldade no domínio da linguagem para comunicar-se ou lidar com jogos simbólicos e padrão de comportamento restritivo ou repetitivo. O comprometimento causado pelo autismo é considerado de intensidade variável, partindo de “quadros mais leves”, caracterizados pela síndrome de Asperger, podendo chegar a níveis graves em que o sujeito se mostra “incapaz” de manter qualquer tipo de contato interpessoal, e possui comportamento agressivo e “retardo mental”. Entretanto, Ortega (2009), em seu artigo “O sujeito cerebral e o movimento da neurodiversidade”, lança-nos uma pergunta dispositivo: seria o autismo uma doença ou uma diferença? Segundo o autor, é possível identificar dois movimentos que defendem diferentes respostas para esta pergunta. Esses dois movimentos emergem principalmente do abandono das explicações psicanalíticas para a questão do autismo e consequente “desculpabilização” dos pais para com o funcionamento “atípico” ou diferenciado dos filhos. De um lado temos o movimento intitulado “Neurodiversidade”, que afirma que o autismo antes de ser uma categoria patológica é uma forma diferente de funcionamento cerebral que identifica os sujeitos e deve ser respeitada como se respeitam as demais diferenças identitárias, ou seja, negros, homossexuais, gays, canhotos. O principal argumento desse movimento é de que “a terapia reprime a forma de expressão natural dos autistas” (DAWSON apud ORTEGA, 2008). Com o objetivo de promover a conscientização acerca da temática, tem-se comemorado desde 2005 o Dia do Orgulho Autista (dia 18 de junho). No outro pólo, temos o chamado “movimento pró-cura” que defende o caráter patológico do autismo e o consequente sofrimento para os que “padecem desse mal”. Assim, essas pessoas cobram maior subsídio para terapias que tenham a direção de uma cura do autismo. Nos últimos anos foi observada uma intensificação do debate político entre ativistas e organizações de pais e mães de ambos os movimentos, isto é, o movimento de neurodiversidade e o movimento pró-cura. No campo específico da educação e da educação especial, os modelos tradicionais orientados para o modelo da deficiência tendem curar, reparar, remediar ou adequar as “deficiências” das crianças ao ambiente escolar. Nesses modelos, os autistas são aproximados o máximo possível de uma norma ou são ajudados a enfrentar as deficiências da melhor maneira possível (ORTEGA, 2008). Um modelo educativo baseado na neurodiversidade, em contrapartida, terá um profundo respeito pela diferença de cada criança, retirando, assim, o autismo do campo da deficiência. 3 Objetivos A pesquisa tem como objetivo geral analisar como o conteúdo das produções teóricas acerca dos conceitos normalidade e deficiência contribuem no processo de ensino-aprendizagem das crianças autistas no ambiente escolar. Como objetivos específicos, propõem-se: 1) Identificar as principais características sobre a educação de crianças autistas, tanto na perspectiva do movimento neurodiversidade quanto do movimento pró- cura. 2) Articular os conceitos de normalidade e deficiência junto à discussão acerca da diversidade dos movimentos autistas. 3) Examinar na literatura acadêmica os dilemas em torno da inclusão da criança autista no ambiente escolar. Metodologia A metodologia desta pesquisa consistiu, num primeiro momento, em um levantamento bibliográfico no portal Scielo, no qual utilizei algumas combinações de palavras-chave a fim de alcançar os objetivos propostos. Estas palavras-chaves funcionaram como buscadores combinados de trabalhos acadêmicos, na temática que pretendo aprofundar. Com essa perspectiva, utilizei diferentes combinações, obtendo os resultados apresentados na tabela apresentada a seguir. BUSCADORES Nº DE ARTIGOS Autismo + Educação 36 Deficiência + Educação + Escola 85 Movimento + Neurodiversidade 03 Deficiência + Inclusão + Escola 51 Mediação Escolar + Inclusão 08 TOTAL 183 artigos 4 Dentre os 183 artigos encontrados, considerando o tema de pesquisa e a leitura dos resumos, foram selecionados os seguintes trabalhos, a saber: 1. CAMARGO, Síglia Pimentel Höher; BOSA, Cleonice Alves. Competência social, inclusão escolar e autismo: revisão crítica da literatura. Revista Psicologia e Sociedade. Vol. 21, 2009, p. 65-74. 2. LAPLANE, Adriana Lia Friszman de. Condições para o ingresso e permanência de alunos com deficiência na escola. Cadernos CEDES. Vol. 34, 2014, p. 191-205. 3. LEMOS, Emellyne Lima de Medeiros Dias; SALOMÃO, Nádia Maria Ribeiro; AGRIPINO-RAMOS, Cibele Shírley. Inclusão de Crianças Autistas: um Estudo sobre Interações Sociais no Contexto Escolar. Revista Brasileira de Educação Especial. Vol. 20, 2014, p. 117-130. 4. MAGALHÃES, Rita de Cássia Barbosa Paiva; RUIZ, Erasmo Miessa. Estigma e Currículo Oculto. Revista Brasileira de Educação Especial. Vol. 17, 2011, p. 125-141. 5.NUNES, Sylvia da Silveira; SAIA, Ana Lucia; TAVARES, Rosana Elizete. Educação Inclusiva: Entre a História, os Preconceitos, a Escola e a Família. Revista Psicologia Ciência e Profissão. Vol. 35, 2015, p. 1106-1119. 6. ORTEGA, Francisco. Deficiência, autismo e neurodiversidade. Revista Ciência & Saúde Coletiva. Vol. 14, p. 67-77. 7. ORTEGA, Francisco. O sujeito cerebral e o movimento da neurodiversidade. Revista Mana. Vol. 14, 2008, p. 477-509. 8. PIMENTEL, Ana Gabriela Lopes; FERNANDES, Fernanda Dreux Miranda. A perspectiva de professores quanto ao trabalho com crianças com autismo. Revista Audiology – Communication Research. Vol. 19, 2014, p. 171-178. 9. SILVEIRA, Kelly Ambrosio; ENUMO, Sônia Regina Fiorim; ROSA, Edinete Maria. Concepções de professores sobre inclusão escolar e interações em ambiente inclusivo: uma revisão da literatura. Revista Brasileira de Educação Especial. Vol. 18, 2012, p. 695-708. 10. SOBRINHO, Reginaldo Célio; ALVES, Edson Pantaleão. A relação família e escola em um contexto de escolarização do aluno com 5 deficiência: reflexões desde uma abordagem sociológica figuracional. Educar em Revista, Nº 49, 2013, p. 323-338. A partir da leitura desses trabalhos foi possível identificar dois grandes grupos temáticos. O primeiro versa sobre as tensões entre deficiência e normalidade. Neste sentido, analisamos como o autismo tem sido disputado por dois tipos de compreensão teórica; ora como deficiência; ora como diferença. O segundo grupo temático apresentado é sobre os desafios da inclusão de autistas no contexto escolar. Este desafio tem sido tratado no campo de estudos com diferentes perspectivas. Veremos, a seguir, cada um desses grupos temáticos. 1- Autismo, Deficiência e Normalidade Como mencionado na introdução, o autismo vem enfrentando significativas lutas ao longo do tempo, em diversas vertentes, tais como a luta identitária, cultural, patológica e, até mesmo, semântica, visto que há diferente maneiras de nomeá-lo. A respeito de tais lutas, considero essencial trazê-las de forma mais explicativa. Assim, para que possamos entendê-las, faz-se necessário apresentar as caracterizações do autismo, a fim de, posteriormente, compreendermos como ele é visto no contexto escolar; desde a sua inserção até a importância da escola no desenvolvimento social e cognitivo da criança autista. De acordo com a conceituação patológica, o anteriormente descrito como Transtorno do Espectro Autista (TEA) e agora Desordens do Espectro Autista (DEA), engloba diferentes síndromes marcadas por perturbações do desenvolvimento neurológico com três características fundamentais que podem manifestar-se em conjunto ou isoladamente. São elas: (i) dificuldade de comunicação por deficiência no domínio da linguagem e no uso da imaginação para lidar com jogos simbólicos, (ii) dificuldade de socialização e (iii) padrão de comportamento restritivo e repetitivo. O termo "espectro" é devido ao envolvimento de situações e apresentações muito diferentes umas das outras, obtendo diversas gradações de intensidade, estando todas essas gradações relacionadas com as dificuldades de comunicação e relacionamento pessoal. Conforme a nomenclatura clínica, as Desordens do Espectro Autista podem ser classificadas de três maneiras: “Autismo Clássico”, “Autismo de Alto Desempenho” e “Distúrbio Global do Desenvolvimento sem Outra Especificação”. Segundo Camargo e Bosa (2009), o autismo se caracteriza pela presença de um desenvolvimento acentuadamente atípico na interação social e comunicação, assim como pelo repertório marcadamente restrito de atividades e interesses. Estas características podem levar a um isolamento contínuo da criança e de sua família. No entanto, essas características que são consideradas no caráter patológico, muitas vezes levam a preconceitos, estigmas, rótulos em relação à criança, prejudicando-a no desenvolvimento afetivo, intelectual e interativo; pois ela não atende 6 a criança em seus aspectos sociais, deixando de respeitar a sua singularidade e subjetividade através de sua classificação limitadora. É na luta pelo reconhecimento de suas identidades e subjetividades que foi fundado o movimento da neurodiversidade. Segundo Ortega (2008), o termo neurodiversidade foi cunhado pela socióloga australiana e portadora da síndrome de Asperger, Judy Singer, em 1999, em um texto com o sugestivo título de “Por que você não pode ser normal uma vez na sua vida? De um “problema sem nome” para a emergência de uma nova categoria de diferença”. Mas o que é a neurodiversidade e quem são os indivíduos aos quais esse termo se refere como critério de identificação? Os indivíduos autodenominados “neurodiversos” consideram-se “neurologicamente diferentes” ou “neuroatípicos”. Pessoas diagnosticadas com autismo, e mais especificamente portadoras de formas mais brandas do transtorno — os chamados autistas de “alto funcionamento” e frequentemente diagnosticados com a síndrome de Asperger – são a força motriz por trás do movimento. Para eles, o autismo não é uma doença, mas uma parte constitutiva do que eles são. Segundo Ortega (2009), procurar uma cura implica assumir que o autismo é uma doença, não uma “nova categoria de diferença humana. Segundo esta perspectiva de análise, assumir o autismo como diferença libera os indivíduos do desejo ou da necessidade da cura, o que resulta muito importante em uma época na qual existem grandes chances de dispormos, em breve, de testes genéticos que poderão impedir crianças autistas de nascer. O objetivo fundamental do movimento da neurodiversidade é promover a conscientização e o empoderamento da cultura autista, o que inclui a comemoração do “Dia do Orgulho Autista” (Autistic Pride Day), que é festejado no dia 18 de junho, como celebração da neurodiversidade dos autistas. A proliferação nos últimos anos dos movimentos da neurodiversidade e o aumento de sua exposição na mídia têm intensificado o embate político entre os ativistas do movimento autista e as organizações de pais e profissionais dos grupos pró-cura. Ortega (2009) explica que para compreendermos o surgimento do movimento chamado de “neurodiversidade”, devemos nos remeter ao campo dos chamados “estudos da deficiência” (disability studies), os quais, nas últimas décadas, vêm desenvolvendo uma área de reflexão sobre a deficiência (disability) que escapa ao discurso de médicos, educadores e especialistas diversos. O campo acadêmico dos estudos da deficiência surge no mundo anglo-saxão no fim dos anos setenta do século passado, coincidindo com o movimento anti-psiquiátrico, o surgimento do feminismo organizado e dos movimentos raciais, tais como o black power. Desde sua constituição, a área dos estudos da deficiência tem efetuado um deslocamento desde uma abordagem marxista inicial, no começo dos anos setenta, para posições mais recentes próximas do pós-estruturalismo e do construtivismo social. 7 Trata-se de um deslocamento análogo aos efetuados nas áreas de estudos de gêneros, sexualidades e raças, nas quais os estudos da deficiência se inspiram (ORTEGA, 2009). Devemos lembrar que a cobrança pela perfeição física está presente em praticamente todos os tempos. No curso da história, o tratamento dado às pessoas com deficiência sofreu a influência de questões culturais e religiosas. Na antiguidade, assim como através dos séculos da era cristã (como na Inquisição e na luta eugenista), as pessoas com deficiência foram objeto de eliminação direta ou indireta, ora em função de sua “inutilidade funcional”, ora porque eram consideradas manifestação do demônio ou de castigo divino (NUNES, SAIA e TAVARES, 2015). Com o passar do tempo, os povos das mais diversas nações passaram a praticar o assistencialismo ou a promover a readaptação da pessoa com deficiência. SegundoOrtega (2009), em 1975, a Union of the Physical Impaired against Segregation (UPIAS) publica um texto seminal, Fundamental Principles of Disability, que lançará as bases do chamado “modelo social da deficiência”. A novidade teórica fundamental é a divisão entre “lesão” (impairment) e “deficiência” (disability). Enquanto a primeira remete à condição física da pessoa, a deficiência por sua vez faz referência a um vínculo imposto por uma sociedade sobre o indivíduo com alguma lesão. Basicamente, o modelo social da deficiência surge como alternativa ao modelo hegemônico médico-individual com sua ênfase no diagnóstico e que constrói o indivíduo deficiente como sujeito dependente. Para os teóricos do modelo social, a deficiência não é uma tragédia pessoal; é um problema social e político. Para eles, só existem atributos ou características dos indivíduos considerados problemáticos ou desvantajosos em si, por vivermos em um ambiente social que considera esses atributos como desvantajosos. Assim, por exemplo, andar de cadeira de rodas é um problema apenas por vivermos em um mundo cheio de escadas, e consideramos deficientes indivíduos que não olham nos olhos quando se comunicam, como é o caso dos autistas, apenas porque nossa sociedade estabelece o contacto visual como um elemento básico da interação humana (ORTEGA, 2009). A influência de autores como Derrida e Foucault neste campo de estudos permite compreender como a normalização pressupõe a deficiência para sua própria definição: o indivíduo só pode ser considerado “normal” por oposição ao indivíduo considerado “deficiente”. A deficiência aparece como construção cultural. Para Lennard Davis (apud ORTEGA, 2009), a deficiência é um processo social que corresponde a uma maneira hegemônica de pensar sobre o corpo. A afirmação “sou deficiente” (surdo, cego, autista, entre outros) constitui uma afirmação de auto-categorização, um processo de subjetivação e de formação de identidade. Para os teóricos dos estudos da deficiência, essa afirmação permite um deslocamento do discurso dominante da dependência e anormalidade, para a celebração da diferença e o orgulho da identidade deficiente. O argumento básico é o seguinte: se a 8 deficiência é um fenômeno criado socialmente e perpetuado culturalmente, então também a cura e os valores a ela associados são igualmente socialmente construídos. Para Ortega (2009), se você não acreditar que há deficiência, se não acreditar que há algo que necessita ser “curado” ou prevenido geneticamente – então você será igualmente libertado da necessidade de cura. 2- Deficiência, autismo e escola: os desafios da inclusão A inclusão de alunos com algum tipo de deficiência no sistema regular de ensino tem sido tema de uma série de debates desde que, em 1994, a Declaração de Salamanca foi assinada, divulgando uma série de diretrizes básicas para a formulação e reforma de políticas e sistemas educacionais, a partir do conceito ampliado de necessidades educacionais especiais (NEE) e da necessidade da educação especial aplicar-se ao princípio “educação para todos”, iniciado a partir dos anos 90 (UNESCO, 1994). A partir da Declaração de Salamanca, o conceito de NEE passou a incluir, além das pessoas com deficiência, aquelas com dificuldades temporárias ou permanentes, oriundas de situações como exclusão social e abusos sofridos. Nas últimas duas décadas, a garantia dos direitos das pessoas com deficiência tem ocupado espaço crescente no debate e na política, com destaque para o ano de 2009, em que a ratificação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência gerou uma multiplicidade de novas ações e ajudou a redimensionar as já existentes. O envolvimento da maioria dos ministérios e o grande número de ações e programas específicos para melhorar a qualidade de vida das pessoas com deficiência indicam que a questão saiu da órbita restrita da atenção às minorias para tornar-se um assunto de interesse geral. Esse movimento revela, também, a compreensão de que a inclusão escolar é o produto de um processo que envolve inúmeros fatores intra e extraescolares e que ela não se efetivará se eles não forem contemplados. Assim, os programas e projetos devem, ainda, ajustar-se à dinâmica das práticas escolares para que resultem em uma participação bem-sucedida no sistema de ensino (LAPLANE, 2014). Como visto na definição do autismo, a criança que tem a DEA (Desordens do Espectro Autista) possui o desenvolvimento de fatores como a linguagem e a socialização de forma atípica, limitada, podendo causar o seu isolamento, assim como o de sua família. No entanto, acredita-se que a escola pode proporcionar a essas crianças oportunidades tanto de socialização, quanto de aprendizagem. Por isso faz-se imprescindível o contato escolar para elas. Camargo e Bosa (2009) apontam a importância da competência social como fator primordial na construção do “Eu”. É no contexto das relações sociais que emergem a linguagem, o desenvolvimento cognitivo, o autoconhecimento e o conhecimento do outro. 9 Segundo Camargo e Bosa (2009), o conceito de competência social tem sido frequentemente utilizado como sinônimo de habilidades sociais. Embora sejam conceitos intimamente relacionados, as autoras fazem a distinção entre ambas. A habilidade social se refere à totalidade dos desempenhos do indivíduo perante as demandas de uma situação em sentido amplo. Já a competência social é a qualidade da performance individual em uma determinada situação. Assim, elas afirmam que crianças com maiores habilidades sociais são consideradas socialmente mais competentes. Nesse sentido, a competência social é, de um modo geral, um construto psicológico que reflete múltiplas facetas do funcionamento cognitivo, emocional e comportamental . Entretanto, os autistas são considerados indivíduos que possuem um desenvolvimento social de risco. Nesse sentido, a escola atua no processo de ultrapassar tais "déficits" sociais dessas crianças, pois ela possibilita as experiências socializadoras permitindo o desenvolvimento de novos conhecimentos e comportamentos. É importante ressaltar que de acordo com Camargo e Bosa (2009), a ausência de respostas das crianças autistas deve-se, muitas vezes, à falta de compreensão do que está sendo exigido dela, ao invés de uma atitude de isolamento e recusa proposital. Nesse sentido, julgar que a criança é alheia ao que acontece ao seu redor restringe a motivação para investir na sua potencialidade para interagir. Nesse contexto podemos questionar até que ponto o retraimento social das crianças com autismo não é resultado da falta de oportunidades oferecidas, mais do que resultado da síndrome. Desse modo, acredita-se que a convivência compartilhada da criança com autismo na escola, a partir da sua inclusão no ensino comum, possa oportunizar os contatos sociais e favorecer não só o seu desenvolvimento, mas o das outras crianças, na medida em que estas últimas convivam e aprendam com as diferenças. Quando privamos os outros estudantes – os ditos “normais” – de conviverem com outras crianças com dificuldades visuais, motoras, auditivas, intelectuais ou com outras diferenças marcantes, tais como classe social, lugar de origem, religião, opção sexual etc., falhamos na sua formação, porque, quando adultas, talvez terão menor facilidade de lidar com essas mesmas pessoas. Enfim, conhecendo diferentes modos de ser, facilitamos a nossa própria vida, pois flexibilizamos nosso olhar para o mundo e podemos superar a lógica do preconceito que tanto conhecemos. Porém, esse convívio com a diferença é um esforço coletivo: família, escola, poder público, comunidade, todos precisam dar sua contribuição. No entanto, a inclusão de crianças deficientes ainda está ligada àquelas possibilidades que não alteram uma mudança, um novo olhar,uma nova adaptação ou reestruturação da instituição de ensino. Com isso, crianças com déficits cognitivos 10 acentuados, como psicóticos e autistas, não suas habilidades educativas levadas em consideração. Camargo e Bosa (2009) fazem referências a outras pesquisas que examinaram o relacionamento entre professores de escola comum e 12 alunos com autismo de segunda e terceira séries, e observaram que o acolhimento, e a aceitação de forma positiva na atuação do professor com esses estudantes melhorou o índice de problemas no comportamento deles, e ajudou para que fossem socialmente incluídos na sala de aula. Neste sentido foi concluído que a atuação junto ao professor é fundamental para que aconteça uma inclusão escolar satisfatória. Afirmamos assim que outros fatores como: a instituição e os professores demandam tanta atenção quanto a criança no processo de inclusão escolar. Mesmo apresentando muitas falhas, o ensino inclusivo traz benefício para todos os envolvidos, porém, profissionais despreparados e desmotivados são alvos de críticas na sociedade quando o assunto é a inclusão de “portadores de necessidades especiais” na rede pública. Atualmente, o sistema escolar brasileiro busca encontrar soluções que respondam ao acesso e à permanência dos alunos com deficiência nas escolas regulares. Algumas instituições públicas e particulares já mudaram sua organização pedagógica, valorizando e reconhecendo as diferenças, sem discriminar os alunos e/ou segregá-los. Ainda existe resistências, porém, as redes de ensino, escolas, professores, pais e instituições dedicadas à inclusão de pessoas com deficiência estão buscando aceitar a inclusão e vivendo novas experiências. Em todas as dificuldades, apontadas pelos professores, com relação ao processo de inclusão de alunos com deficiência, sejam elas quais forem, é encontrada sempre a insatisfação quanto a ausência de determinados fatores: orientação, formação especializada, estruturação adequada da escola, turmas com menos quantidade de alunos, recursos, contribuição de outros profissionais e melhores materiais pedagógicos. Silveira, Enumo e Rosa (2012) mencionam que o professor é o agente facilitador e mediador dos processos de ensino-aprendizagem. Assim, pode-se entender que a trajetória escolar tem sido beneficiada a partir do conhecimento recebido e dos níveis acadêmicos alcançados pelos estudantes. Isto reafirma a importância das experiências escolares iniciais e o papel preventivo da atividade dos professores sobre os problemas apresentados por seus alunos. Os professores, com a prática, aprendem a lidar com o aluno com deficiência, porém, não contam com conhecimento teórico que apóie essa prática. Existe um despreparo para lidar com alunos com DEA, bem como para educá-los e ensiná-los. Tal despreparo, aparentemente, é causado pela formação profissional insuficiente nas áreas especiais e pela falta de informação sobre DEA e suas manifestações. 11 Em pesquisa feita no artigo de Pimentel e Fernandes (2014) percebeu-se que os professores acreditam interferir menos no desenvolvimento da criança e do adolescente com DEA, principalmente na aprendizagem e no desenvolvimento neuropsicomotor, confirmando a visão dos professores analisados em um trabalho, que viam a escola apenas como um veículo para a socialização. De certa forma, isso indica falta de conhecimento e descrença no desenvolvimento escolar de crianças com DEA. As escolas, de maneira geral, segundo a percepção dos professores estudados na pesquisa de Pimentel e Fernandes (2014), chegou-se a conclusão de que as escolas, de maneira geral, segundo a percepção dos professores, não têm estrutura adequada para apoiar o desenvolvimento escolar, social, cultural e emocional do aluno com DEA. Não têm base para acolher a família, nem tecnologia e infraestrutura apropriadas, nem professores especializados. A escola, para os professores, seria apenas um veículo para a socialização e, segundo eles, a inclusão deveria ser realizada em turmas menores. Relatam dificuldades para dedicar-se aos alunos especiais, pelo fato das salas serem muito populosas, além de não estarem devidamente preparados - nem eles, nem a escola - para receber esses estudantes. Silveira, Enumo e Rosa (2012) trazem a importância da discussão em torno dos professores que veem o aluno como incapaz de aprender, bem como as atitudes de exclusão da escola, uma vez que elas podem ajudar a reafirmar o papel de incapaz ou de doente do estudante. Este, por sua vez, ainda é considerado o responsável pelo interesse que terá na escola. Tal visão pode prejudicar a relação professor-aluno e a mediação do docente no processo de ensino-aprendizagem. No contexto de uma análise sobre estigmas e preconceitos na escola, um olhar sobre o currículo demanda investigar os mecanismos de controle social e de produção/reprodução da hegemonia presentes na escola, consubstanciados no denominado corpus formal de conhecimento escolar (conteúdos curriculares), nas ações cotidianas da escola (currículo em ação) e no denominado currículo oculto. Os desdobramentos ideológicos e a legitimação são sedimentados em aspectos explícitos e implícitos do currículo e situam-se em sua materialidade e no domínio do simbólico (Magalhães e Ruiz, 2011). Segundo Magalhães e Ruiz (2011), quando encontramos um professor com comportamento diferente, podemos não reconhecer nele a “postura” ou papel de professor. Em sentido inverso, professores austeros podem exigir determinados comportamentos dos alunos como silêncio absoluto em sala de aula, supersocialização e adaptação cega às regras impostas dentro e fora da sala de aula. Aqueles que se contrapõem, podem receber pechas derivadas de um discurso moralista ou clínico: “preguiçosos”, “indolentes”, “indisciplinados”, “hiperativos”, “disléxicos”, “digráficos”, etc. De forma geral ignoramos esta “tendência” em exigir de determinadas pessoas padrões de comportamento cristalizados, de exigir que assumam papeis segundo nossos 12 “modelos” construídos socialmente. Entretanto, esta questão está sempre presente na vida social, fazendo-se sentir unicamente quando encontramos indivíduos ou grupos que atuam de modo diferente daquele esperado. Quando existe um indivíduo com quem nos relacionamos, através das “possíveis” evidências, podemos categorizá-lo de acordo com atributo(s) que o tornam diferente de outros da mesma categoria. Portanto, alguém pode ser tido como menos desejável ou “desacreditável”, nos termos dos estudos de Ervin Goffman (MAGALHÃES e RUIZ, 2011). Tal característica revela-se um estigma, especialmente quando seu efeito de descrédito social sobre o status do individuo é muito grande. Em linhas gerais, a partir das pesquisas de Magalhães e Ruiz (2011), podemos traçar dois grandes objetivos da escola, como instituição. De um lado, trata-se de uma instituição cuja pretensão é ensinar as novas gerações o conhecimento socialmente construído e acumulado pela humanidade. Por outro lado, a este objetivo, sempre explícito, soma-se outro: a função da escola como espaço ideológico, onde há reprodução social e cultural. Estes dois “objetivos” constituem uma trama chamada currículo, na qual, historicamente, existe a imposição de padrões, normas, conceitos. Muitas vezes, o conteúdo formal aprendido se embrenha na teia de normas disciplinares. Neste sentido, há uma relação entre conhecimento, formas de transmissão e controle social. Assim, na escola aqueles que não se adaptam aos métodos, rebaixados pelos critérios de avaliação cognitiva e/ou comportamental, correm o risco de ser, por excelência, objeto da ação dos preconceitos e estigmas. É o caso de alunos com alguma deficiência. Silveira, Enumo e Rosa (2012) apontaram que os padrões massificadores do desenvolvimento se estruturam mais comoprática social e compensadora do que como formadora do aluno. Nesse contexto, é necessário que a inclusão não seja apenas um processo maior de criar vagas. Para a sua real efetivação, ela deveria proporcionar recursos materiais e criar oportunidades a todos os alunos, contando com professores capacitados e compromissados, uma vez que o simples ingresso dos alunos em sala de aula não parece ser suficiente para mudança de concepções. Para uma inclusão eficiente, é fundamental a atuação do professor e o preparo dele como mediador e o papel da escola como o espaço propício para isso. São diversos os aspectos que necessitam ser melhorados para que a educação de alunos com DEA se torne mais efetiva. Um desses aspectos envolve uma rede específica de apoio aos professores, a presença de monitores ou professores, adaptações curriculares e medidas para facilitar a comunicação e o trabalho entre os profissionais envolvidos. 13 Conclusões e produtos esperados Ao estudar a temática sobre a educação de crianças autistas, buscando compreender as dificuldades e as possibilidades do campo, tornou-se necessário um maior aprofundamento sobre as discussões teóricas que estão sendo produzidas nos últimos anos em âmbito das pesquisas acadêmicas.Por isso, recorremos a artigos publicados com resultado de pesquisas. Buscando tecer um diálogo teórico entre as temáticas, surgiram os seguintes questionamentos norteadores da pesquisa: (1) O que as pesquisas apontam sobre as temáticas acerca de “normalidade e deficiência” e “educação de crianças autistas”? (2) Quais os principais dilemas e soluções que a literatura aponta para a educação de crianças autistas? A pesquisa encontra-se em andamento. No entanto, alguns resultados foram encontrados através do levantamento bibliográfico feito no portal Scielo, tais como o estabelecimento de uma correlação entre as teorias educacionais sobre a inclusão de crianças autistas e o (re) conhecimento de alternativas que possam auxiliar na reflexão sobre a prática educativa em contextos educacionais. De acordo com as leituras realizadas, também foi possível concluir que a inclusão escolar de crianças com DEA é algo possível, desde que fundamentada no conhecimento, garantindo os recursos necessários e a clareza acerca do papel da escola. (CAMARGO; BOSA, 2009). Referências CAMARGO, Síglia Pimentel Höher; BOSA, Cleonice Alves. Competência social, inclusão escolar e autismo: revisão crítica da literatura. Revista Psicologia e Sociedade. Vol. 21, 2009, p. 65-74. LAPLANE, Adriana Lia Friszman de. Condições para o ingresso e permanência de alunos com deficiência na escola. Cadernos CEDES. Vol. 34, 2014, p. 191-205. LEMOS, Emellyne Lima de Medeiros Dias; SALOMÃO, Nádia Maria Ribeiro; AGRIPINO-RAMOS, Cibele Shírley. Inclusão de Crianças Autistas: um Estudo sobre Interações Sociais no Contexto Escolar. Revista Brasileira de Educação Especial. Vol. 20, 2014, p. 117-130. MAGALHÃES, Rita de Cássia Barbosa Paiva; RUIZ, Erasmo Miessa. Estigma e Currículo Oculto. Revista Brasileira de Educação Especial. Vol. 17, 2011, p. 125-141. 14 NUNES, Sylvia da Silveira; SAIA, Ana Lucia; TAVARES, Rosana Elizete. Educação Inclusiva: Entre a História, os Preconceitos, a Escola e a Família. Revista Psicologia Ciência e Profissão. Vol. 35, 2015, p. 1106-1119. ONU. DECLARAÇÃO DE SALAMANCA. Sobre Princípios, Políticas e Práticas na Área das Necessidades Educativas Especiais, 2004 ORTEGA, Francisco. Deficiência, autismo e neurodiversidade. Revista Ciência & Saúde Coletiva. Vol. 14, p. 67-77. ORTEGA, Francisco. O sujeito cerebral e o movimento da neurodiversidade. Revista Mana. Vol. 14, 2008, p. 477-509. 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