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1 A prática na teoria é outra coisa1 Júlio Pinto2 Num mundo denominado pela técnica, pensa-se pouco num tipo de saber que é cada vez mais empurrado para dentro do baú de velharias. Não me refiro a um saber enciclopédico, capaz de recitar as capitais do mundo ou os títulos de todas as comédias e tragédias de Shakespeare. Refiro-me a um ato simples: o refletir sobre o que se faz. Com esse intróito, faço alusão ao velho debate entre a teoria e a prática. Todo mundo sabe que não há, na verdade, essa dissociação. Todo mundo sabe que toda prática implica um pensar teórico que nasce, em última análise, do empírico. No entanto, o debate existe e persiste. Nós, os chamados homo sapiens, ou homo semioticus, insistimos em categorizar as coisas, taxonomizar, achar os nichos adequados. Isso é prática e fica ali. Isso é teoria e, quando fica, fica aqui nesse cantinho. E, aqui entre nós, surgiu no horizonte um terceiro elemento nesse debate – a técnica – que emerge, no nosso universo high tech, como uma forma de escamotear a velha tensão entre teoria e prática. A rigor, pensa-se no termo técnica como se fosse sinônimo de prática. Dessa maneira, ouve-se: “Vamos ensinar a técnica: O aluno aprende a técnica e vai ser, quando sair da escola, um cidadão que pertence ao mundo em que vive”.Mas não é bem assim. A técnica, uma técnica, é um instante da prática, e a prática é uma práxis, todo um conjunto de atitudes e comportamentos ligados a e provenientes de um saber abstrato. Colocada a técnica em seu devido lugar, permitam-me usar, à guisa de parábola, uma estorinha contada por Umberto Eco. Dizia um gramático indiano a um barqueiro: “Você sabe gramática? E como o barqueiro tivesse respondido que não, o gramático retorquiu: “Você perdeu a metade de sua vida”.Quando a canoa virou, o barqueiro perguntou ao gramático: “Você sabe nadar?” E tendo o gramático respondido negativamente, o barqueiro disse: “Então você perdeu sua vida inteira”.3 À primeira vista, a história parece mesmo uma apologia da prática. O gramático tem a teoria, mas não a prática. Afoga-se. O barqueiro não sabe gramática, mas sabe nadar. Não se afoga, mas perde metade da vida. Quer dizer, ao fim e ao cabo, o barqueiro levou a melhor. Numa discussão intelectual, o barqueiro talvez fizesse má figura, mas, lá no rio, ele nada e chega à margem. Pragmaticamente, parece certo e parece bastar, em termos do significado, da moral da história. Mas eu sou um gramático e não me conformo com as afirmações muito axiomáticas. Sou um teórico, acostumado a buscar sentidos e, por força do ofício, naturalmente desconfiado das superfícies. Mesmo porque nessa parábola, eu estou levando a pior. Isso não fica assim. Vou ter que fazer uma exegese, uma completa arqueologia da história. Vou fazer isso com duas finalidades: uma para ver se consigo redimir-me; outra, porque sou curioso e quero entender isso bem claramente. Sei que de fato, os sentidos muitas vezes se produzem nas obras dos textos. É verdade que a superfície também tem o seu sentido. Só que há, quase sempre, mais de um. Por isso, peço licença para ir mais em frente. Vou fazer de conta que estou debatendo o assunto com um barqueiro. 1 Artigo publicado na revista “Dois Pontos” – outono/inverno – 1993. 2 Júlio Pinto. M.A., Ph.D., Professor do Curso de Comunicação Social da PUC Minas. 3 ECO, Umberto. Parâmetros da semiologia teatral. In: HELBO, André (org). Semiologia da representação. São Paulo: Cultrix, 1980. p.36. 2 Começo concedendo a meu imaginário interlocutor uma vantagem entendendo que não se aprende a nadar simplesmente através da leitura. Aprende-se nadando. Quem quer ser nadador tem mais é que entrar na água. Por outro lado (e aqui eu dou o troco), não se aprende a pensar apenas assumindo a postura do pensador. Aprende-se pensando. E saber pensar parece-me uma habilidade desejável. Deixe-me, Sr. Barqueiro, contar uma outra historinha. Fim tarde. Um troglodita estava sentado à entrada de uma espaçosa caverna, comendo uma fruta e, ocasionalmente, olhando o céu. As nuvens estavam escuras e baixas, mas ele não se importou. Estava usando a nova pele de mastodonte, comprada a prestação, e ao seu lado tinha uma nova clava com a qual planejava dar uma porretada na cabeça da mulher que ele estava cortejando. Um relâmpago o distraiu, momentaneamente, de seus devaneios amorosos, aos quais voltou logo, imerso em amor. De repente, cai um pé d’água. A pele nova de mastodonte ficou encharcada e, o que é pior, a mulher assomou à porta da caverna, viu-o naquele estado, deu uma risada e deixou-o ali, sem ação e arrasado. Insistente, contudo, o nosso troglodita não desistiu. Passou o dia seguinte olhando o céu, desconfiado. Nas névoas de seu cérebro, formou-se o vislumbre de uma associação: parece que, quando há nuvens baixas e escuras, chove. E assim, com a observação de dados empíricos, isto é, de índices naturais, o nosso amigo derivou uma lei, criou um símbolo: nuvem é sinal de chuva. Em outras palavras, teorizou. Raciocinou por indução e do concreto derivou uma lei abstrata. Certamente, a sua lei o ajudou a controlar as suas variáveis. Deixou para ficar à entrada da caverna quando o céu estivesse limpo e levou a sua corte a bom termo, como o atestam os dois trogloditazinhos que ficam tropeçando em suas pernas. THE END. Acho que é desnecessário elaborar essa história. Por isso, vamos voltar a natação e a gramática. O que é gramática? Talvez pudesse dizer que é um conjunto de leis, uma sintaxe, no sentido lato, que procura descrever comportamentos de fenômenos de ordem lingüísticas. Nesse sentido, qualquer gramática pressupõe uma lingüística e nasce dela. Inversamente, a natação supõe uma estruturação simbólica superordenada a ela, estruturação que dita ao nadador que movimentos fazer, como e quando fazê-los, isto é, quais as técnicas adequadas para tais e tais situações. Aliás, se não houvesse essa superordenação simbólica não seria possível ensinar a nadar a cada um teria que descobrir o melhor processo na base do ensaio – e – erro. A mesma coisa acontece com gramática. Na verdade, o que estamos chamando de gramática é apenas a explicitação de algo que todos nós aprendemos. Todos termos, embutidos na cabeça, o sistema de leis que rege a nossa comunicação diária. Teoricamente, o símbolo – a abstração – sempre contém o índice – a epítome da prática. O índice não contém o símbolo, mas se deriva dele. Estou chamando, legitimamente, de índice qualquer acidente ou fato isolado que não é explicitamente uma réplica do símbolo. O índice, como na história do troglodita, pode vir a ser ajuntado a outros fenômenos semelhantes e vir, assim, a constituir uma teoria. Nem sempre, porém, isso acontece. Se o nosso troglodita fosse um pouco mais burro, ele talvez não tivesse formulado a sua lei, porque a existência dos índices, em si, não garantem o reconhecimento da abstração que os governa. Se essa lei já tivesse sido dada, isto é, se ele tivesse partido dos símbolos já conhecidos, ou melhor, da teoria, ele teria entrado por um atalho mental e teria agido mais rapidamente. Desse jeito ele não teria de ter tomado aquela primeira chuva, porque ele teria manipulado os índices de antemão. Assim, Sr. Barqueiro, segundo esse ponto de vista, saber gramática é mais vantajoso que saber nadar. Como, no primeiro caso, saber nadar é melhor que saber gramática, conclui-se que é melhor saber as duas coisas. Há só um pequeno detalhe: no meio de muitos nadadores, quem conhece a gramática da natação e um pouco da física, certamente vai tirar vantagem desse conhecimento para nadar mais rápida e eficientemente.
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