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Para não dizer que não falei do samba - RESUMO

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Para não dizer que não falei do samba: os enigmas da violência no Brasil
 Alba Zaluar
	O crime tornou-se cada vez mais parte de processos globais econômicos e socioculturais, sem que isso trouxesse mudanças em políticas públicas de segurança e de prevenção e tratamento nas práticas sociais mais associadas à violência. Os efeitos acumulados do desconhecimento e da falta de políticas estratégicas redundaram do medo e dos preconceitos. 
Entre as explicações para a violência está a direção paroquial, quando se culpa a presença de nordestinos em São Paulo ou de pobres favelados. Os pobres tornam-se os mais temidos e os mais acusados, justificando a violenta e injusta repressão que sofrem. Nos tempos de globalização, em que local e global estão em permanente contato, significados podem ser transmitidos pelo contágio de ideias em fluxos às vezes tão rápidos que permitem falar em epidemia, hábitos podem ser lentamente interiorizados, o que faz necessária uma reconstituição histórica de longa duração. Na sociologia atual não se busca mais a explicação numa visão sequencial de causa e efeito nem nas determinações a estrutura da produção que transformam as pessoas em meros fantoches do econômico. Antes, opta-se pelo modelo interacional, já presente na ideia do fato social total, feito do entrelaçamento de eventos e interpretações, coisas e representações, construídos por pessoas que vivem, ou seja, participam de tais fatos, sentem-nos e os pensam. Em vez de sistemas internamente solidários, um conjunto de fatos cruzados forma “configurações” ou “constelações”, nas quais se mantêm as tensões e disparidades internas e nas quais a ordem e a desordem são sempre relativas. Esses arranjos sempre renovados mobilizam a exterioridade e interioridade, o objetivo e o subjetivo, e não permitem pensar apenas em termos das “vítimas” da estrutura nem os atores meramente calculistas e plenamente conscientes, ou seja, culpados pelas consequências de seus atos. No modelo interacional, a causalidade flui entre os fatos sociais resultantes de variadas ações e carregados de diferentes sentidos, o que permite falar em complexidade. Esta ideia é cada vez mais parte do idioma dos que pensam os novos desenvolvimentos em curso nas sociedades, ora caracterizados como pós-modernas, ora como de risco, ora como de alta modernidade. Entre as transformações sociais recentes, estariam nos novos processos mundiais de difusão cultural, seja de novos estilos de consumo, seja de padrões comportamentais, inclusive o do uso de drogas ilegais e o dos novos hábitos de violência. A caracterização da sociedade no pós-guerra resultaria cada vez mais nas atividades de lazer e consumo na definição das novas identidades. Fazem parte desse cenário, os riscos caracterizados como as inseguranças advindos da própria modernização. Não tão visíveis quanto a miséria do século XIX nas cidades europeias, fugindo à percepção direta mas provocando destruição e ameaças principalmente à população mais pobre. Pois, se a riqueza se acumula no topo da pirâmide, os riscos invisíveis dos desastres ecológicos, do desemprego, dos efeitos perversos da revolução sexual, do uso disseminado de produtos químicos na agricultura e nas casas, dos remédios adulterados, falsificados e fora de prazo, assim como do uso abusivo de “drogas” ou mesmo de armamentos, inflam-se embaixo. Daí que a correlação entre a pobreza, a falta de informação e o baixo nível educacional adquiriu contornos ainda mais sinistros neste fim de milênio, permitindo formas extremas de exploração na selvageria de um capitalismo que tenta fugir dos controles coletivos, seja na forma da lei, seja na forma das negociações informais, em que as palavras são fundamentais. Por isso, é tão difícil entender a violência e lidar com ela: ela está em toda parte, ela não tem atores sociais permanentemente reconhecíveis, nem “causas” facilmente delimitáveis. Os críticos dessa situação costumam apontar como saída as associações de diversos tipos que fortalecem o social e são alternativas para o mercado e o Estado. O ETOS GUERREIRO NO CRIME E SEU ENIGMA Hoje, os trabalhadores pobres, que criaram essas variadas organizações vicinais (sambas, etc.) e nelas conviveram, assistem ao esfacelamento de famílias e associações, tão importantes na criação de cultura e na conquista de autonomia moral e política. O processo de globalização de cultura, efetivado pela rápida difusão dos novos estilos de cultura jovem, transformou em parte os jovens em consumidores de produtos especialmente fabricados para eles: vestimentas, estilos musicais, drogas ilegais. A família não vai mais junta ao samba, e o baile funk não reúne gerações diferentes no mesmo espaço, a avó negra e mãe-de-santo não pode frequentar a casa dos seus filhos e netos pentecostais porque estaria “carregada pelo demo”. A família está partida, a classe social está partida, as organizações vicinais estão paralisadas e esvaziou-se o movimento social. Mais ainda, o processo civilizador retrocedeu, tornando preferenciais os comportamentos violentos nos conflitos dentro da classe social, da família, da vizinhança. A fragmentação das organizações vicinais e familiares facilitou o domínio dos grupos de traficantes no poder local, que, por sua vez, aprofundou a ruptura dos laços sociais no interior da família e entre as vizinhanças, acentuando o isolamento, a atomização e o individualismo negativo. Atraídos por essa identidade masculina, os jovens, nem sempre os mais destituídos, incorporam-se aos grupos criminosos em que ficam à mercê das rigorosas regras que proíbem a traição e a evasão de quaisquer recursos. Entre esses jovens, no entanto, são os mais destituídos que portam o estigma de eternos suspeitos, portanto incrimináveis, quando são usuários de drogas, aos olhos discriminatórios das agências de controle institucional. Muitos deles acabam tornando-se membros de quadrilhas, seja para pagar dívidas, seja para se sentirem mais fortes diante dos inimigos criados. O principal motivo de orgulho advém do fato de que fazem parte da quadrilha, portam armas, participam das iniciativas ousadas de roubos e assaltos, adquirem fama por isso e podem, um dia, caso mostrem “disposição para matar”, ascender na hierarquia do crime.
	 Declarações a pesquisadores e jornalistas revelam os motivos pelos quais alguns jovens resolvem aceitar os convites de algum grupo armado para assaltar: “pela sensação”, “pela emoção”, para exibir -se, “para parecer no jornal”. A busca da imortalidade para eles está agora vinculada à fama mediática assim obtida. Na circularidade do bolso cheio de dinheiro fácil que sai do bolso, ficam compelidos a repetir sempre o ato criminoso, como se fosse “um vício”, conforme eles próprios dizem. Não se trata, pois, de nenhuma guerra civil entre pessoas de classes sociais distintas nem mesmo uma guerra entre polícia e bandidos. Na região metropolitana do Rio de Janeiro, uma pesquisa afirma que 57% dos homicídios cometidos contra jovens tinham relação com o tráfico de drogas. Nessas mortes, os pobres não estão cobrando os ricos, nem perpetrando alguma forma de vingança social, pois são eles as principais vítimas da criminalidade violenta, pela ação ou da polícia ou dos próprios delinquentes. Vivem, de fato, segundo as regras da vingança privada, graças à predominância de um etos guerreiro e à ausência de uma instância jurídica, estatal ou não, na resolução de conflitos. Junto a outras crianças e adolescentes, morrem numa “guerra” pelo controle do ponto de venda, mas também por quaisquer motivos que ameacem o status ou o orgulho masculino dos jovens em busca de uma virilidade – do “sujeito homem”,
como afirmam – marcado como resposta violenta ao menor desafio, por conta de rixas infantis, por um simples olhar atravessado, por uma simples desconfiança de traição ou ainda apenas porque estavam lá no momento do tiroteio. Despojado dos hábitos de civilidade que já haviam penetrado o cotidiano das classes populares, um homem, nesse etos, não pode deixar provocações ouofensas sem respostas, e deve defender sua área, pois a tentativa de invasão pelo inimigo também é interpretada como emasculação. Exatamente por estar num meio social pobre, no qual a solidariedade e a necessidade de cooperar sempre foram marcas, a quadrilha, enquanto um dos centros de reprodução de criminalidade como meio de vida
 – 
 transmissão de valores
 – 
 opõe-se à família e com ela compete, bem como com outras formas de organização vicinal: os times esportivos, os blocos de Carnaval e as escolas de samba. A quadrilha é uma
“escola do crime”. Contou um aluno de Duque de Caxias sobre o seu lazer:
 
P: L., o que você faz para se divertir? R: Eu vou para qualquer baile que tiver por aí, eu vou. P: E você tem galera? R: Tenho [...] [Menciona o nome dos colegas] Moleque que sai na porrada mesmo, não peida não. Eles batem muito. Até eu, eles não me bate, não. Mas até eu eu, às vezes, quando sai porrada, moleque quebrar a gente, eu: Ah, Geovani, vamos embora quebrar aqueles moleque ali. Aí a gente vai, faz o maior galerão no baile, e sai dando bico. Até eu fico com medo às vezes. Mas eu sou acostumado. Antigamente, eu não sabia brigar [...] o meu apelido, antigamente, era Galinha. Não sabia brigar. Patinho, Cu-
d’Água. Ficavam me esculachando: “Qual é Mané?”
 Agora não, agora, qualquer coisa eu saio na porrada. Quando eu vejo que não dá na mão comigo, deixo passar. Mas também, não quero só que me implica comigo. Moleque bota pilha, eu [...] melhor uma pedra logo. Moleque quer me encarar, eu dou logo um tecão [tiro] nele. P: Então você aprendeu a brigar na rua? R: Na rua. Dentro de casa não aprendi brigar, não. Dentro de casa aprendi lavar louça, fazer tudo de mulé. Na rua, não. Antigamente eu lavava louça, agora é ruim eu lavar louça. Quem lava é minha irmã. Fazia... mas também foi bom, agora eu seu fazer arroz, feijão, canjica, qualquer coisa que mandar eu fazer, eu faço. Ovo. P: Você gosta de fazer isso? R: Gosto, aprendi com a minha mãe...
	A referência a dois mundos cada vez mais opostos, o da casa e o da rua, este redefinido como espaço da violência incontrolada, é a maior transformação da vida privada nos últimos vinte anos. Dados comprovam a imagem da rua como o local do perigo e do mal, em razão da presença nela de traficantes, ladrões, assaltantes que pressionam os meninos e os atraem. Por isso mesmo, o pior medo em relação à escola é o de se repetir o que acontece na rua nos locais menos vigiados do seu interior, como os banheiros. Daí a recorrência das demandas de vigilância dentro dela e fora. Encontramos no imaginário dos próprios jovens, argumentos da sociologia da juventude que entende esta como a fase do hiperconformismo a seu grupo de pares da iniciação sexual, na música partilhada, no uso de drogas ilegais, na adoção de diferentes etos guerreiro. Além disso, destaca-se o aspecto festeiro das galeras, cuja atividade principal não é a luta entre si, mas o baile. A galera guarda algo das manifestações culturais populares encontradas no Brasil, especialmente o seu caráter festivo, no qual a catarse das emoções, inclusive da rivalidade e do orgulho masculino, faz-se de modo competitivo porém regrado. Por isso mesmo, o processo civilizatório pôde ser retomado nos bailes, por meio dos concursos e a apresentação controlada do agonismo (tensão competitiva) entre pessoas e grupos. Por que tão poucos se juntam a quadrilhas; por que muitos outros (mas nem todos) formam galeras funk, por que, apesar do novo fascínio das armas, do chamado “dinheiro fácil” e da fama mediática, tantos outros optam ainda pelos times esportivos, pelas escolas de samba, pelos pagodes e outras formas de lazer que, por não constituírem nenhum tipo de organização juvenil, reúnem adultos e jovens da mesma camada social? Essa questão escapa às determinações da pobreza e da exclusão. Para além de qualquer nexo de causalidade objetiva, algum desses jovens, e não todos submetidos às mesmas condições, “delegam ao mundo o poder de seduzi - los para a criminalidade”, mundo no qual participam como sujeitos de suas ações. Delimitando esse pequeno espaço de liberdade estão as mudanças rápidas, derivadas de muitas ações anteriores, na organização familiar, nas relações sexuais, na aceitação dos valores associados ao consumo, especialmente o consumo de “estilo”, mudanças que provocaram o que se poderia chamar de anomia social difusa. Além do mais, o enraizamento do crime organizado nas instituições, mediante as estratégias de corrupção dos atores, o funcionamento desigual do sistema de justiça, em razão das práticas organizacionais criadas e mantidas pelos agentes que nele atuam, assim como o Código Penal obsoleto, resultado de políticas públicas adotadas na República, criaram “ilhas de impunidade”, que desfazem as ideias de justiça e de bem, tão necessárias aos jovens em formação. OS NÓS DO SISTEMA DE JUSTIÇA NO BRASIL As atividades econômicas ilegais por estarem libertas do imposto, nossa principal relação com o Estado nacional, tendem a ser muito lucrativas. Fica fácil corromper policiais e, como não há lei para proteger os negócios desse setor da economia, quaisquer conflitos e disputas são resolvidos por meio da violência. A corrupção e a política institucional, predominantemente baseada em táticas repressivas da população pobre, adicionam mais efeitos negativos à já atribulada existência dos pobres. Os preconceitos, corrupções e dificuldades, bem como a construção moral da pessoa do acusado, surgem como elementos fundamentais na condução do processo judicial e na construção do que será apresentado como os “fatos” dos autos.
	 O jovem que se encaminha para a carreira criminosa enriquece, não a si próprio, mas a outros personagens, que quase sempre permanecem impunes e ricos. Embora seja um fato reconhecido pelos juízes, promotores e defensores entrevistado que tanto os usuários como os traficantes vêm de todas as classes sociais, ou seja, não se trata apenas de pobres, os acusados cuja qualificação profissional foi registrada exerciam sobretudo ocupações de baixa renda. A despeito do enorme esforço repressivo e das crescentes despesas com os homens quase todos jovens e pobres processados e mantidos em prisões superlotadas e violentas, o crime não diminuiu na cidade. Pelo contrário. Apesar dos esforços da defensoria pública e das poucas entidades que se propõem a atender gratuitamente o pobre, na justiça criminal ainda predominam diferenças cruciais entre os que conseguem pagar advogados e os que apenas contam com um defensor público sobrecarregado.
	Essas diferenças relativas à condição de defesa devem, portanto, ser combinadas com outras registradas entre os réus, tais como gênero e cor da pele, que mostram clemência a grupos específicos, respectivamente mulheres e pessoas classificadas como brancas. Nesse novo cenário, a pobreza adquire novos significados, novos problemas e novas divisões. A privação não é apenas de bens materiais, até porque muitos deles têm mais valor simbólico do que necessidade para sobrevivência física. A privação é material e simbólica a um só tempo e, por isso, é de justiça, é institucional. E a exclusão também tem que ser entendida nesses vários planos. As drogas, por exemplo, são usadas por grupos profissionais bem remunerados e prestigiados, ou por estudantes universitários de famílias prósperas. A grande diferença, e aqui está outra manifestação da desigualdade, é que os usuários pobres não têm acesso a serviços para tratá-los no caso de abuso, nem para defendê-los, no caso de problemas com a justiça. Em suma, sem uma política pública que modifique a atual criminalização do uso, nem uma política de redução do risco no uso de drogas na área de saúde, nem prevenção do uso na educação do jovem, não conseguiremos modificar o atual cenário de violência e injustiça existente no país. Na sociedade globalizada, em coletividades organizadas do tipo empresa, fábrica, sindicato e partido perdem a importância que tinham no passado, a educação adquire novas funções e novo escopo.Em vista do descrédito institucional, a saída estaria em um processo educativo generalizado. Nele, portanto, as políticas públicas deveriam se ocupar mais em prevenir a exclusão do que em reinserir os excluídos, mais em criar uma sociabilidade positiva do que em remediar a negativa. Os atores desse projeto seriam diferentes: uma série de associações de diversos tipos, junto às quais o Estado ainda seria o principal ator do social, criando nova legitimidade para a sua intervenção. Para isso, é imprescindível a recuperação das redes de sociabilidades vicinal e o fortalecimento das organizações vicinais e o fortalecimento das organizações vicinais, com a participação efetiva dos moradores no espaço público construído pela crítica social que desenvolveram no passado, assim como no processo recente de decisão sobre a urbanização de favelas, sobre a distribuição dos serviços e recursos do Estado, revitalizando sua tradição política baseada no associativismo, na produção e crítica cultura, bem como na festa. Essa prática social é indispensável para de desconstruir a violência difusa, que está em toda parte porque tomou conta de corações e mentes, principalmente dos homens mais jovens que se trata de reconquistar.

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