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O DIREITO INTERNACIONAL NA TEORIA PURA DO DIREITO DE HANS KELSEN

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O DIREITO INTERNACIONAL NA TEORIA PURA DO DIREITO DE HANS KELSEN
Hans Kelsen nasceu em Praga, no ano de 1881. Lecionou na Universidade de Viena, antes e depois da queda da dupla monarquia (Áustria-Hungria), desde 1917 até 1930. Depois, dirigiu-se a Colônia, onde permaneceu até 1933, quando, com o advento do governo nacional-socialista na Alemanha, foi expulso da Universidade. Foi então para Genebra e dali para os Estados Unidos, onde lecionou nas Universidades de Harvard e Berkeley (Califórnia), desde 1940. Morreu em 19 de Abril de 1973, depois de ter se aposentado como professor em 1952. 
Considerado um dos maiores pensadores do direito deste século, Kelsen deixou uma vasta obra, da qual se destaca principalmente - por ser uma espécie de condensação dos seus estudos a respeito do direito - a "Teoria Pura do Direito". Esse trabalho tem quatro edições fundamentais, sendo na verdade quatro versões distintas da mesma obra . 
Reine Rechtslehre foi a primeira edição alemã, publicada em 1934 na cidade de Viena. A segunda foi a inglesa, editada pela Universidade de Harvard em 1945 com o nome de General Theory of Law and State (com tradução portuguesa de Luís Carlos Borges, Teoria Geral do Direito e do Estado, São Paulo, 1992). A terceira foi a edição francesa publicada na Suiça em 1953, chamada Théorie Pure du Droit. A quarta e definitiva edição foi a chamada segunda edição alemã de Reine Rechtslehre, editada em Viena no ano 1960 e reimpressa em 1967 (com tradução portuguesa de João Baptista Machado, Coimbra, 1990). 
A teoria pura do direito de Kelsen fundamenta-se na possibilidade de se encontrar na realidade um aspecto que seja puramente jurídico, e como tal suscetível de ser objeto da ciência jurídica. Daí o nome de teoria pura, que poderia chamar-se também teoria do direito puro, como fica claro nestas palavras do seu autor: 
"Quando se designa a si própria (sic) como ‘pura’ teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir desse conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito" . 
Mas, da mesma forma que para os neokantianos, Kelsen vê uma relação íntima entre o objeto e a ciência, de tal forma que a "pureza" fundamental é a do seu método. Trata-se, pois, de considerar o direito tal como o jurista deve vê-lo, na perspectiva própria da ciência jurídica, sem interferência de nenhuma outra ciência, como a Ciência Política, a Ética, a Psicologia . 
Assim, chega Kelsen à conclusão de que a realidade reveste-se de um aspecto puramente jurídico quando uma norma empresta significado jurídico a essa realidade, de modo que esta possa ser interpretada de acordo com aquela. O direito é, então, a norma, e só a norma, pois esta é a única capaz de emprestar um significado que possa ser qualificado de jurídico aos atos humanos. 
Essa norma, segundo Kelsen, é um dever ser a respeito de uma conduta humana, em contraposição ao ser da mesma conduta. Em outras palavras, a norma prescreve que uma determinada conduta deve ser de um determinado modo. Essa distinção entre ser e dever ser é um dos pontos centrais da teoria pura de Kelsen. É a partir dela que se faz outra distinção importante, entre validade e eficácia, e chega-se enfim ao fundamento de validade das normas jurídicas. 
Partindo desse ponto de vista, Kelsen chega à conclusão de que o direito é uma ordem da conduta humana, um sistema de normas. Como ordem normativa, o direito procura dar lugar a um determinado comportamento humano, associando à ausência desse comportamento um ato de força socialmente organizado. Aí temos a diferença, para Kelsen, entre o direito e outros sistemas de normas - a reação à violação do dever ser por meio de um ato de força que seja socialmente organizado, de uma maneira centralizada como nos Estados modernos, ou descentralizada como sucedia nas ordens jurídicas primitivas. 
Definido o objeto da ciência jurídica, as normas, Kelsen acrescenta que estas não se confundem com a ciência jurídica mesma. A ciência jurídica é constituída não por normas, mas por proposições jurídicas, vale dizer, "juízos hipotéticos que se expressam...que sob determinadas condições devem produzir-se determinadas consequências" . As proposições são expressões ou descrições das normas de dever ser, por isso (já que é impossível a derivação lógica entre ser e dever ser) são e têm de ser proposições de dever ser. 
Kelsen parte então para o centro de sua teoria pura, a questão do fundamento de validade, dentro do que ele chamou de "Dinâmica Jurídica". Um sistema de normas é dinâmico quando umas normas fundamentam-se nas outras em virtude de uma delegação de autoridade das normas superiores para as inferiores, determinando o modo como serão produzidas, e não o seu conteúdo. O direito, como ordem normativa, composta por normas de dever ser, é um sistema dinâmico porque o fundamento de validade de uma norma (de um dever ser) só pode ser outra norma (outro dever ser), por força da já mencionada impossibilidade de derivação lógica entre ser e dever ser . 
As normas vão se fundamentando umas nas outras até chegar em uma norma que seja o fundamento de validade de todas as outras, pois essa busca do fundamento de validade não pode prolongar-se até o infinito. A essa norma Kelsen chama "norma fundamental" (Grundnorm), não posta por uma autoridade, como as demais, mas pressuposta e hipotética (recte: fictícia, segundo o próprio Kelsen in Teoria Geral das Normas), quer dizer, "pressuposta para interpretar o sentido subjetivo dos atos humanos que dão origem às normas postas como seu (da norma fundamental) sentido objetivo" . 
Estas breves considerações iniciais destinam-se mais a ilustrar o panorama da teoria pura do direito com a qual vamos trabalhar nas páginas seguintes do que a estabelecer uma análise rigorosa dessa teoria. Seria possível estender muito a análise - não é o caso de fazê-lo nesta sede. A nós interessa primordialmente o estudo do direito internacional nessa perspectiva, ou seja, como Kelsen e a sua teoria pura entendem o direito das gentes.
2. O caráter jurídico do direito internacional 
Durante a História do direito internacional, muitas foram as vozes que se levantaram para negar o seu caráter jurídico. Os mais destacados desse processo foram Hobbes, Spinoza e Austin, este que pode ser considerado um dos pais do positivismo jurídico. No século XX, notadamente após a II Guerra Mundial, alguns jusfilósofos, principalmente os objetivistas da escola de Uppsala (Suécia), ou escola escandinava, cujo início deu-se com os trabalhos de Axel Hägeström (1868-1939), prosseguiram na negação . 
É característico do positivismo a negação do caráter jurídico do direito internacional, pois para esta corrente o único direito realmente válido é o direito positivo do Estado, que, sustentam, não pode entrar nunca em conflito com uma ordem superior - que é a natureza própria reinvidicada pelos internacionalistas. 
Hans Kelsen, ele mesmo um positivista, não somou esforços com aqueles que pretendiam negar ao direito internacional a sua natureza de direito. Para ele, como fica claro na sua teoria pura, o direito internacional é direito, sobretudo porque há um ato de força socialmente organizado, autorizado pela comunidade jurídica "mundial", ligado à inobservância de um dever ser, ato esse traduzível principalmente pela represália e pela guerra . 
Quer dizer, quando um Estado tem seus interesses ofendidos por um outro Estado, o primeiro está autorizado a estabelecer uma situação que, em circunstâncias normais, não seria permitida. Pode, portanto, reagir à violação perpetrada por outro Estado. Segundo Kelsen, a violação dos interesses constitui-se delito internacional e a reação, uma sanção, cuja aplicação é delegada ao próprio Estado ofendido, por faltar na comunidade internacional um órgão que seja encarregado dessa tarefa, como os existentes nas ordens jurídicas nacionais. 
Mas como se não bastasse, o direito internacionalainda é uma ordem normativa das condutas humanas, obrigando, mediata ou imediatamente, pessoas em concreto. Isso acontece quando o direito internacional impõe aos Estados os deveres, ocorrendo que: "o Direito Internacional delega à ordem jurídica estadual a competência para determinar os indivíduos através de cuja conduta são cumpridos ou violados os deveres por ele estatuídos, ou são exercidos os direitos também por ele estatuídos" ; ou seja, imposição de deveres e direitos mediatizada por cada ordem jurídica estadual. Ou também quando, por exceção, as normas de direito internacional "impõem deveres diretamente aos indivíduos em singular, na medida em que das normas de Direito Internacional já resulta imediatamente , não só o que deve ser feito ou omitido, mas também qual o indivíduo que tem de adotar a conduta prescrita pelo Direito Internacional" . 
Uma das mais interessantes construções de Kelsen é a que diz respeito ao direito internacional como um sistema de normas escalonado, a exemplo das ordens jurídicas nacionais. Ao distinguir entre o direito internacional geral consuetudinário e o direito internacional particular pactício, diz Kelsen que a norma fundamental do segundo está contida no primeiro, e pode ser expressa pela fórmula consagrada pelo costume (e por isso integrante do direito internacional geral) pacta sunt servanda. 
Mas segundo Truyol y Serra, o fator determinante da teoria de Kelsen é o processo de formação do direito internacional. Este é elaborado principalmente pela reunião de vontades de dois ou mais Estados, enquanto o direito nacional depende da vontade de um único Estado. Como já vimos, o direito internacional prescreve condutas tanto a Estados quanto a indivíduos (mediata ou imediatamente quanto a estes), assim não se distinguindo do direito interno de cada país em função dos seus destinatários, como sustenta a teoria clássica do direito das gentes, mas pela forma de sua elaboração. 
As conseqüências advindas dessa posição levam Kelsen a considerar que o direito internacional "acha-se ainda no começo de uma evolução que o direito estadual já percorreu há muito", pois não há uma centralização da criação e da aplicação do direito na ordem jurídica internacional. É uma ordem jurídica primitiva, cujo último estágio de evolução tende para a formação de um Estado mundial, nos moldes dos Estados nacionais contemporâneos .
3. O monismo jurídico 
A opinião mais difundida entre os estudiosos do direito internacional é a que considera este e o direito nacional como dois sistemas de normas diferentes, independentes um do outro. Chama-se a essa posição de dualista, em contraposição àquela que vê a unidade entre as duas ordens jurídicas, o denominado monismo. 
Kelsen toma partido aberto da segunda posição. Em sua teoria pura, é pressuposto epistemológico a unidade cognoscitiva de todo o direito. Como já pudemos verificar, o direito internacional tem caráter jurídico, ou seja, é direito. Decorre necessariamente dessa conclusão que direito internacional e direito interno só podem formar um todo, uma unidade. 
Não é possível, em boa lógica, que existam dois sistemas de normas diferentes igualmente válidos como querem os dualistas, diz Kelsen. Se existe uma norma que prescreve "A deve ser", válida, não pode haver outra, igualmente válida, prescrevendo "A não deve ser". São proposições mutuamente incompatíveis, pois o princípio de identidade vale tanto para a esfera normativa quanto para a realidade empírica . 
Surge imediatamente um problema, quanto ao conflito entre os dois sistemas. A questão é saber se é possível a existência de conflitos insolúveis entre o direito internacional e o direito nacional. A resposta de Kelsen é negativa. Tomemos por exemplo uma lei do Estado que está em desconformidade com um tratado de direito internacional: Kelsen afirma que a norma desconforme não significa que haja um conflito, mas um ilícito, ou seja, um pressuposto ao qual o direito liga conseqüências específicas - não há, pois, entre o ilícito e o direito qualquer contradição no plano lógico . 
Nenhum obstáculo, portanto, a uma posição que admita a unidade entre o direito internacional e o direito Interno na teoria pura do direito. E Kelsen, seguindo o seu postulado epistemológico da unidade cognoscitiva do direito, passa a analisar os dois sistemas de normas sob essa perspectiva de unidade.
4. As duas posições de Kelsen 
Do ponto de vista de uma construção monista do direito, é possível analisar os dois sistemas de normas que a integram de dois modos diferentes. Ou se tem uma relação de coordenação, ou a relação é de subordinação. Para que seja de coordenação, é necessário supor que os dois ordenamentos estejam em um mesmo nível, e que haja um outro ordenamento, superior aos dois, de onde provenha a norma fundamental destes. 
Para Kelsen, a relação é de subordinação, uma vez que não existe esse terceiro ordenamento superior tanto ao direito internacional quanto ao direito nacional. Por conseguinte, o fundamento de validade de um sistema inferior deriva de outro, superior. A questão é saber se tal ordenamento superior é o direito internacional ou o direito nacional. 
Kelsen teve duas posições sobre o assunto. Em princípio, sustenta não ser possível para a ciência jurídica definir qual das duas construções é a mais apropriada, pois a diferença entre elas diz respeito somente "ao fundamento de validade do Direito Internacional, não ao seu conteúdo" . Depois admite a primazia do direito internacional, fundado em argumentos jurídicos. Nos seus últimos trabalhos, volta à posição inicial . 
Entretanto, a posição que pode ser tida como a definitiva é a expressa na segunda edição alemã. Lá, Kelsen reafirma a liberdade de se escolher entre qualquer construção monista. Apenas faz uma ressalva, comparando o jurista que fixa-se na ordem jurídica nacional como soberana (por isso, com a primazia), com o filósofo que adota uma posição subjetivista diante da realidade, interpretando o mundo como vontade e representação do seu Eu. O que coloca a primazia na ordem jurídica internacional teria uma postura objetivista . Não obstante isso, ambas seriam igualmente válidas do ponto de vista da ciência do direito, à qual não cabe formular um juízo.
5. Conclusão 
Ao escrevermos este artigo, pretendíamos apresentar as idéias de Kelsen sobre direito internacional com fundamento na sua Teoria Pura do Direito. Como esperamos ter apresentado, a visão internacionalista de Kelsen está toda baseada em sua teoria; por isso, cremos que, em virtude da lógica poderosa que empresta uma coerência impressionante ao pensamento de Kelsen, a única crítica possível é quanto aos princípios da teoria pura. 
Um filósofo é livre para escolher os seus princípios. Uma vez definidos, torna-se escravo deles pelo pensamento, que obriga à coerência interna. Kelsen procurou, em notável esforço, responder às principais questões do pensamento jurídico de todos os tempos, elaborando uma teoria geral do direito, denominada teoria pura, fundada na compreensão de que só é possível estudar o direito a partir da perspectiva da ciência jurídica, com os métodos próprios desta. 
Entretanto, podemos falar com Michel Villey que essas questões das quais Kelsen ocupou-se - quid jus? (o que é o direito?) - pertencem ao domínio da filosofia do direito, cujos métodos não podem ser os mesmos da ciência jurídica, pois isto seria "um olhar narcisista da arte do direito sobre si mesma" . 
Não é de se estranhar, portanto, o normativismo extremo de Kelsen. O ponto de partida da ciência do direito (?) é a norma, e a norma positiva, assinala Karl Engisch . De tal forma que o impossível seria não chegar, com esse método, à identificação do direito com as normas.

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