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TEXTO PROVA - 25-03-2014 Por que não ensinar gramática na escola


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Por que (não) ensinar gramática na escola
 Sírio Possenti
 (Resumo feito por Marcos Paulo Cruz)
Introdução 
	O sistema educacional brasileiro apresenta sérias falhas que impossibilitam aos alunos atenderem, satisfatoriamente, às necessidades exigidas pelo mundo globalizado do qual a principal característica é a robotização da capacidade intelectual humana. Criou-se, pois, um padrão selvagem de concorrência – compete melhor quem tem como principal ferramenta a posse do conhecimento.
	Indubitavelmente, a primeira consiste no modo como a língua portuguesa é ensinada nas escolas. Crivo da compreensão de qualquer atividade intelectual, a língua tem a função de decodificar o mundo que se apresenta aos indivíduos. Ensiná-la, pois, deficitariamente, é privá-los do meio de que necessitam para alcançar o desenvolvimento.
	
	Este texto se propõe a (re)conceituar gramática e língua a partir da análise critica de como ambas são abordadas pela escola, do papel que os atores do processo ensino-aprendizagem têm assumido em relação à aquisição e ao desenvolvimento das habilidades linguísticas e dos aspectos sociais que refletem. Concluída esta fase, será apresentado um conjunto de princípios metodológicos cuja função é denunciar a ineficiência do ensino da língua portuguesa em nosso país, propondo mudanças pela adoção de novos paradigmas. Por fim, um possível direcionamento aplicativo, baseado nas argumentações defendidas, perora este trabalho, no intuito de resgatar a função primordial da escola – oferecer aos alunos os meios de acesso a um tipo de liberdade que só se conquista pela educação.
Parte 1 – Aspectos do ensino da língua portuguesa no Brasil 
A dura realidade
	É fato comprovado o baixo nível do domínio da língua portuguesa pelos brasileiros. Mesmo após anos e anos de estudo diário nas escolas, são poucos os que utilizam – ou acreditam utilizar – corretamente a língua padrão. Erros os mais inacreditáveis possíveis são cometidos em textos e discursos não só por alunos de primeiro e segundo graus, mas, principalmente, por estudantes universitários e profissionais já graduados, o que comprova a existência de um processo enraizado e que tende a se perpetuar caso não seja adotada uma solução efetiva. 
	Surgem, pois, questionamentos: por que a maioria dos brasileiros não fala nem escreve corretamente a língua materna? A quem é atribuída esta deficiência – à escola, à família, ao próprio aluno, ou seja, como detectar a gênese do problema de modo a repensar o papel destes atores no processo? Uma vez detectadas as causas, que propostas adotar para mudar esta realidade? Os atores estão preparados para romper com a estrutura tradicionalmente ineficaz e migrar para um plano de mudanças? Assim será analisada e questionada a realidade do ensino da língua portuguesa no Brasil.
	Todos os argumentos do texto fundamentam-se numa análise profissional crítica do que há muito se percebe, em se tratando do ensino da língua portuguesa no Brasil. Conclui-se, portanto, que:
Ensinar gramática é algo totalmente distinto de ensinar língua; 
Aprender uma língua constitui-se num processo relativamente complexo, mas, ao mesmo tempo, natural. A escola inverte este processo pela adoção de uma metodologia arcaica e estéril; 
A família transfere para a escola a responsabilidade que tem na educação dos filhos; 
O aluno não aprende pelo fato de o método não lhe oferecer condições suficientes para tal;
Para que o ensino (e, consequentemente, a aprendizagem) da língua portuguesa mude, não basta “remendar” alguns aspectos senão promover uma verdadeira “revolução”, rompendo com a estrutura atual pela adoção de uma nova concepção de ensino.
Gramática e Língua, universos que se complementam 
	Propor uma mudança no ensino da língua portuguesa requer, sobretudo, uma reflexão do que vem a ser, de fato, gramática e língua, quais relações ambas estabelecem entre si e por que a escola propõe uma relação de subordinação desta para com aquela.
	Há três variedades de gramática cuja concomitância é fundamental para a composição de um conjunto metodológico eficiente ao ensino da língua, mas que, infelizmente, a escola dá prioridade a uma, apenas:
A Gramática Normativa apresenta um conjunto de regras que “devem ser seguidas”. É a gramática da escola, dos professores e dos livros didáticos, cujo objetivo é fazer com que as pessoas “falem e escrevam corretamente” por meio da exposição de regras. 
A Gramática Descritiva engloba o conjunto de regras que “são usadas”. É a gramática dos linguistas, cujo objetivo é descrever e/ou explicar a língua em suas mais diversas formas, tais como são faladas, desconsiderando normas padronizadas e tomando por base os contextos sociais dos falantes. 
A Gramática Internalizada refere-se ao conjunto de “regras” que o falante domina, pelo menos intuitivamente, por meio de associações. Consiste no capital linguístico que as pessoas têm e usam quando falam, compreendem leem e escrevem. Do ponto de vista pedagógico, ela representa o maior indicador do processo ensino-aprendizagem da língua.
	Língua transcende o conceito técnico que a gramática carrega. É o conjunto de todas as interações que os indivíduos, unidos pelos mesmos laços culturais, estabelecem entre si por meio de quatro habilidades: fala, compreensão, leitura e escrita. A língua carrega toda a diversidade humana que pode ser expressa nestas habilidades – idade, sexo, credo, valores, humor, região e etnia, classe social e profissão, preconceitos. É inegável, pois, o caráter social da língua. Dá origem à fala, que consiste na sua utilização de forma pessoal, influenciada por todos os contextos supracitados.
	Neste contexto, gramática e língua assumem tanto uma lógica própria de surgimento quanto uma relação de complementaridade – grupos de indivíduos que apresentam habilidades linguísticas semelhantes unem-se a outros, constituindo um leque de variedades. Destas, uma é escolhida como padrão a ser seguido e criado, portanto, um conjunto de normas que a expliquem e possibilitem seu ensino. Surge, pois, da língua, a gramática. A regra é, portanto, fruto do domínio das habilidades linguísticas de uma dada variedade.
Inversão do processo natural de aprendizagem
	A língua apresenta um processo natural de aprendizagem que pode ser comparado a uma pirâmide: a base constitui a fala, seguida da compreensão, da leitura e, no ápice, a escrita. Quando uma criança inicia sua vida estudantil, sua base já está fundamentada, ou seja, ela já fala e entende a língua. Cabe, pois, à escola, desenvolver as demais habilidades que, consequentemente, solidificarão as anteriores. Inacreditavelmente, este processo é invertido por cada um dos atores do processo, numa reação em cadeia: 
A escola: desconstrói todo este processo pelo uso de uma metodologia completamente arcaica e ineficiente. Trabalhando apenas na esfera da gramática normativa, ignora as variedades linguísticas (que existem e que são ricas) bem como o capital linguístico dos alunos, impondo-lhes um padrão absolutamente dissociado da realidade fora da sala de aula. Assim, priorizando esta modalidade gramatical em detrimento das outras, condiciona-os à memorização de uma imensa quantidade de regras, desconsiderando o que da língua já dominam, além de não reservar sequer um tempo mínimo ao aprimoramento das habilidades que de fato são necessárias – leitura e escrita. O método de avaliação é frustrante, pois, além de dar margem à fraude, não avalia a vivência dele com a língua senão o conteúdo pronto que lhe foi dado durante um curto espaço de tempo. Enfim, a escola não o estimula a utilizar a língua como instrumento de expressão da sua capacidade de argumentar o que pensa, aprende, concorda ou discorda. Forma, consequentemente, uma legião de analfabetos funcionais, ou seja, pessoas que sabem soletrar as palavras de um texto, mas que não compreendem absolutamente nada dele.
A família:tende, pela falta de tempo, formação e até mesmo vontade, a transferir a responsabilidade que lhe compete de educar os filhos à escola, inclusive em se tratando das esferas moral, cívica e doméstica. Muitas sequer percebem que a educação é o maior bem que podem deixar aos filhos. Como não têm o hábito de ler, escrever e dialogar com eles, não os incentivam a esta prática. Assim, priorizam o carro, o clube, as roupas, os brinquedos, o balé, a natação, tudo, exceto os livros.
O aluno: é vítima sem se dar conta, uma vez que é sujeito passivo desta inversão. Sem ter acesso a um método de ensino eficaz e desprovido de qualquer estímulo externo a desenvolver suas habilidades linguísticas, principalmente leitura e escrita, ele não tem como atingir um desenvolvimento intelectual satisfatório, tornando-o, pois, limitado, uma vez que o código de acesso ao conhecimento lhe é estranho. Como, na maioria dos casos, não parte dele uma proposta de mudança, tende a permanecer neste ciclo de inaptidão ao domínio da língua.
O caráter social da língua padrão
	Língua padrão consiste na variedade adotada como modelo a ser seguido pela sociedade, tanto na forma oral como escrita. Este conceito não empresta ar algum de simplicidade, uma vez que traz consigo questionamentos profundos: por que esta variedade foi escolhida em vez de outra? Quem a escolheu? Por quais motivos? Quais as consequências desta escolha? O que muitos desconhecem manifesta-se, claramente, na fala e/ou escrita – a língua reflete não somente os aspectos culturais de uma sociedade, mas também suas disparidades, principalmente as de ordem econômica. Torna-se, pois, um instrumento de seleção. É uma imposição das elites – os que não a dominam encontram sérias barreiras à ascensão social, que vão desde o simples preconceito pelo fato de não a utilizarem corretamente no cotidiano à segregação, no mercado de trabalho, pela falta de qualificação profissional decorrente do seu uso inadequado.
Parte 2 – Princípios metodológicos fundamentais ao ensino da língua portuguesa
A cada ator do processo, um conjunto específico de atribuições 
	O insucesso no ensino da língua portuguesa está, em sua maior parte, associado à falta de uma proposta metodológica que contemple: 
Um programa de ensino que priorize a abordagem dos conteúdos da língua a partir da prática da leitura e da produção textual, estimulando o aluno a vivenciar o idioma em vez de apenas memorizar regras isoladas; 
O ensino da língua associado às diversas realidades dos alunos, ou seja, trabalhar o idioma de modo a contextualizá-lo no cotidiano, em situações reais;
 A adequação dos conteúdos ao capital linguístico de cada aluno, levando em consideração que, numa mesma sala, há diversos níveis de domínio da língua; portanto, não se deve padronizar a sequência dos conteúdos a serem ensinados, mas sim adaptá-los à evolução dos alunos; 
Conscientizar os pais de que a escola deve ser uma extensão do lar, ou seja, boa parcela da educação dos filhos (principalmente a moral e a doméstica) é de responsabilidade da família;
Despertar, nos alunos, uma atitude proativa em relação à própria educação, por meio da conscientização tanto do valor dos estudos para o seu desenvolvimento, como pelo fato de eles serem a razão existencial da escola. 
	Nesta linha de pensamento, para alcançar o sucesso pretendido, é de fundamental importância estabelecer, pois, o papel que cada um dos atores do processo de ensino e aprendizagem deve assumir:
Escola: sua função é ensinar a língua padrão, mas não da forma que o faz, como já citado anteriormente. Deve, com base numa análise prévia do capital linguístico dos alunos: a) definir qual o nível de domínio da língua que cada um tem e, inclusive, caso haja uma heterogeneidade acentuada, relocá-los em grupos mais homogêneos para, só então, estabelecer uma proposta metodológica; b) ensinar gramática a partir da língua, ou seja, trabalhar a norma culta como a variedade padrão inserida num universo de possibilidades linguísticas, contextualizando-a o mais próximo possível da realidade; c) reservar a maior parte do tempo para a leitura, compreensão e escrita e d) avaliar o aluno sempre de forma integral, nunca exclusivamente por meio de uma mera prova, considerando, pois, a participação em sala, o relacionamento com professores e colegas de classe, as produções que faz em casa, etc.
Família: O papel da família é de fundamental importância. O aluno reflete toda a dinâmica familiar, incluindo os erros! Cabe a ela reservar tempo para ser parte ativa no processo educativo. Exemplo e disciplina constituem a melhor forma de educar. Os pais devem semear no coração dos filhos o hábito da leitura e do estudo em casa, além dos princípios básicos de educação moral, cívica, etiqueta, solidariedade e respeito. Ainda sobre o exemplo: as crianças não são tão inocentes quanto pensamos, pois percebem tudo, inclusive nosso falso moralismo. Por fim, pai e mãe devem manter relações estreitas com a escola no que se refere ao acompanhamento da evolução dos filhos. As confraternizações escolares devem ser o complemento da relação dos pais com a escola e não o único meio de contato.
Alunos: o papel de cada aluno é desenvolver os meios educacionais que a escola ofertar, visando à aquisição de conhecimentos. Ele é o objeto da educação – e precisa saber disso. Assim, deve ser valorizado, estimulado e conscientizado de que a escola é um local de trabalho a serviço dele, e que ele deve ser, pois, responsável por sua parte neste trabalho. É difícil estabelecer atribuições aos alunos, pois muitos são crianças, ainda em processo de desenvolvimento físico e mental. Todavia, diante de um método eficaz, certamente esse objetivo será alcançado.
Texto: fonte da gramática e da língua 
	O texto é a melhor forma de se abordar e, consequentemente, aprender gramática e língua, ou melhor – gramática a partir da língua. É nele que as possibilidades linguísticas se fazem presentes e a gramática, nelas inserida, decodificada sem a necessidade de um emaranhado de regras que a explique. É por meio do texto que o aluno tem acesso às diversas formas de conhecimento e a oportunidade de absorvê-lo. É nele que se aprende a ler e, consequentemente, a escrever e desenvolver a fala e a compreensão. Por que, então, a escola o trabalha tão pouco se é ele a mola-mestra da aquisição dos conteúdos? Se, das quatro habilidades linguísticas, duas delas (fala e entendimento) já são dominadas, precisando apenas de aperfeiçoamento, por que não reservar a maior parte do tempo à leitura e à escrita?
	Quem tem o hábito da leitura escreve melhor, fala melhor e sabe mais, ainda que intuitivamente, de gramática do que quem passa anos e anos somente estudando regras. Por quê? Simples – sem contar os benefícios à saúde mental, no texto, tudo é trabalhado simultaneamente – gramática, variedades linguísticas, vocabulário, compreensão, modalidades da escrita, conteúdos diversos, tudo contribuindo para o desenvolvimento da capacidade de raciocínio e argumentação, tanto oral como escrita. 
	
	Textos bem escolhidos para leitura exemplificam o que é a língua nas suas mais diversas modalidades. Quando produzidos pelos alunos em seus cotidianos refletem de maneira ímpar seus níveis de aprendizagem. Trabalhados diariamente na sala de aula provam que a língua não é um sistema estático, arcaico e de difícil aprendizagem senão um universo de expressão humano no qual as possibilidades de pensamento, expressão, compreensão e assimilação são inúmeras. É pelos textos, portanto, que a língua deixa de ser um “bicho de sete cabeças”.
Não há línguas fáceis ou difíceis
	 Um dos maiores erros do europeu ao longo da história da humanidade foi impor, a todo custo, seus valores, crenças, usos e costumes às outras culturas. Essa atitude etnocêntrica se fez presente também na língua (por que não falamos o tupi-guarani em lugar do português?). Tudo aquilo cuja origem não era europeia beiravaao atrasado, inculto, profano, algo gritante por mudanças instantâneas. Com a língua o mesmo ocorreu – as modalidades linguísticas diferentes das impostas pelo “branco civilizado” eram consideradas ininteligíveis e associadas até mesmo aos grunhidos dos gorilas. Puro preconceito! Pura ignorância! Pura arrogância! Como considerar primitiva uma língua cuja estrutura interna não se conhece senão somente sua fonética?
	
	Afirmar que há línguas primitivas é um equívoco. De fato, todas as línguas são estruturas de igual complexidade. Assim, não há nem línguas primitivas ou desenvolvidas muito menos línguas fáceis ou difíceis. O que há são línguas diferentes! O fato de um povo ser menos desenvolvido em alguns aspectos não implica, de forma alguma, em dizer que, em outros, ele também o seja, como, por exemplo, na língua. Esta justificativa funciona, muitas vezes, como margem de explicação para o baixo desempenho dos alunos de língua portuguesa no Brasil, atribuindo o fato à complexidade da língua – cheia de regras, exceções e armadilhas. 
	O português é uma língua tão fácil como são o inglês, o alemão, o francês e assim por diante. Prova disso é que, com exceções de ordem fisiológica, a maioria das crianças brasileiras – atente para isso – inicia a vida escolar já falando, inclusive compreendendo também a fala dos adultos. O exemplo vale para as demais línguas, pois, apesar das variações existentes na fala e na escrita, todas apresentam uma estrutura semelhante. 
Respeito à oralidade
	 As elites transferem, de forma impositiva, à sociedade, seu universo unilateral de comportamento, inclusive o linguístico, gerando dois tipos de julgamento: indivíduos que não dominam a norma culta não sabem nem falar nem escrever. Já os que a dominam, submeter-se a qualquer tipo de variação seria migrar para o mundo dos incultos. Julga-se, pois, a diferença, como erro gravíssimo. 
	Considerando o entendimento como uma das quatro habilidades linguísticas, conclui-se, pois, que todos os falantes, quando bem compreendidos, sabem falar, pois falar nada mais é do que a utilização pessoal da língua. Cada indivíduo tem uma forma própria de se comunicar oralmente, influenciada pelo contexto social no qual está inserido. Seria insano defender a padronização da oralidade entre as pessoas, como, por exemplo, de um advogado e de um feirante. Apesar das diferenças marcantes de vocabulário, entonação, ritmo, sintaxe, ambos falam a mesma língua, pois prova disso é que compreendemos perfeitamente a mensagem principal de suas falas. É assim que as escolas agem e transferem esse modo de agir à sociedade – padronizam uma única variedade linguística e a impõem como absoluta, como se todas as outras formas de se falar fossem, num passe de mágica, apagadas por uma borracha.
 	
	A escola recebe pessoas que já possuem uma identidade linguística, ou seja, um modo pessoal de lidar com a língua. Este fato não pode simplesmente ser descartado, assim como a diferença do dinamismo entre as modalidades oral (recheada de entonação, repetição, ritmo) e escrita (a qual os recursos são mais parcos, como, por exemplo, a pontuação para representar as características orais citadas) da língua. 
	A escola deve, portanto, ensinar língua considerando e respeitando as diferenças de oralidade apresentadas pelos alunos, mostrando que, além das existentes, há uma forma oral padrão que deve ser priorizada de acordo com a situação, com o contexto.
 Não à uniformidade – ensinemos a variedade
	 É utópica a forma como a escola concebe a língua – um sistema uniforme, compartimentalizado. Toda língua apresenta variações que não são casuais, pois há vários fatores em jogo: região, classe social, idade, sexo, etnia, profissão. Assim, a língua torna-se, pela fala, um meio de identificação e distinção entre os indivíduos. É nítida, por exemplo, a diferença entre a fala dos paraibanos e a dos paulistas, médicos e pescadores, crianças e adultos, homens e mulheres. As gírias, por exemplo, configuram-se como meios de distinção usados por certos grupos que adotam uma modalidade oral diferenciada como forma de protesto, afirmação social e, até mesmo, para codificar atos criminosos. E a internet? Sem comentários. Há quem diga ser o “internetês” a língua do futuro, dada à sua praticidade. 
	A fala das mulheres é, geralmente, mais culta que a dos homens e, para muitos desses, falar corretamente é como usar uma saia. O mais estranho é que, em função das variedades linguísticas estarem cada vez mais enraizadas no cotidiano, a norma culta falada tem soado, aos ouvidos de muitos, tão estranha que, muitas vezes, gera até mesmo preconceito – uma inversão total dos valores tradicionais. Basta alguém se propor a falar como a norma culta obriga para ser, no mínimo, taxado de prepotente, metido, arrogante etc.
	 Nesse contexto, fica claro que a escola não pode fazer vista grossa aos fatos linguísticos. Ensinar variedades linguísticas, na escola, além de trazer à sala de aula a realidade, faz com que estas se prestem a ser instrumento tanto de compreensão da diversidade cultural do país, como de questionamento das realidades indesejáveis, como, por exemplo, o machismo.
A língua reflete a evolução da sociedade.
	Não existem línguas imutáveis, pois as pessoas, que a elas dão origem, não o são. Assim, toda língua tende a mudar de modo a acompanhar a evolução da sociedade à qual pertence. Verbos transitivos indiretos estão perdendo suas respectivas preposições, a mesóclise foi, praticamente, banida, o futuro do presente perde força a cada dia e assim por diante. Construções como “assistir o filme” em vez de “assistir ao filme”, “falarei a verdade a você” no lugar de “falar-te-ei a verdade”, “eles vão ter” em vez de “eles terão” são usadas constantemente, inclusive em textos técnicos, científicos, jornalísticos. São erradas? Não, só não foram oficializadas. O que não se pode negar é a sua existência. 
		
	A escola tem contribuído como meio de resistência à adaptação da língua aos novos contextos sociais, pois insiste em ensinar um padrão linguístico que, a cada dia, tende ao arcaísmo. Enquanto espera o aval das “autoridades linguísticas” para ensinar o que há muito já é usado, desconsidera os fatos linguísticos. A escola, portanto, tem a obrigação de ensinar a norma padrão inserida na realidade linguística da sociedade, ou seja, ensinando as novas tendências da língua nas diversas modalidades de textos.
Não erramos tanto quanto pensamos
	 Muitos acreditam que, por não dominarem certas estruturas da norma culta, desconhecem por completo a língua materna. Esta é uma ideia carregada de preconceito e baixa autoestima. A escola nos ensinou a pensar assim. O que ocorre, de fato, é uma generalização dos erros – não se sabe nem contá-los nem corrigi-los. O número de erros cometidos pelas pessoas é bem maior do que o de tipos de erros. Por exemplo: alunos que falam ou escrevem “os livro”, “as casa” e “os amigo” não cometem três erros, mas sim apenas um – o de concordância.
	
	Retomando o exemplo dos erros citados, a escola, no seu método tradicional, os corrigiria da seguinte forma: a) convencendo-os de que cometeram erros em número de três; b) estigmatizando estes erros como inaceitáveis e, para piorar a situação, c) apresentando várias regras descontextualizadas para explicar como funciona o que eles ainda não dominaram. Resultado: não aprenderem, de fato, o que lhes foi explicado e ainda sentirem-se culpados por isto. Uma verdadeira injustiça. 
	O correto seria, em primeiro lugar, apresentar os três erros aos alunos, dizendo-lhes que, de fato, só cometeram um – o de concordância. Em seguida, explicar a eles que a forma como falaram ou escreveram estará correta ou incorreta dependendo do contexto, pois existem grupos de pessoas que falam desta forma e, como são compreendidos, não cometeram, necessariamente, erros. Já em outras situações, seria necessário usar a concordância proposta pela norma culta. Assim, os alunosnão só aprendem de fato e sem o uso de regras e mais regras a explicação, como também percebem em que situações podem ou não se expressar daquela forma.
Língua não se ensina, aprende-se 
	Como se aprende a falar? Falando! Como se aprende a ler? Lendo! Como se aprende a escrever? Escrevendo! Como se aprende gramática? Primeiro, aprendendo todas as habilidades anteriores! Um método tão óbvio, mas, ao mesmo tempo, natural, voluntário, constante, contextualizado e significativo. Qual o erro da escola? Transgredir este método. Como é possível pretender ensinar gramática sem antes dominar a fala, a compreensão e, principalmente, a leitura e a escrita? Chega de regras, de exercícios descontextualizados, provas cuja única função é não avaliar. Língua não é ensinada, mas aprendida e depois entendida – primeiro o aluno adquire o domínio das habilidades linguísticas para, posteriormente, entender o seu funcionamento.
Ensinar língua é ensinar o que dela é primordial
	 Leitura e escrita são prioridades no ensino da língua, devendo haver, pois, o maior tempo possível reservado à prática destas duas habilidades. A escola não faz isso! É prioridade, na leitura, a apresentação de textos os mais diversificados possíveis – gibi, jornal, revista, artigo científico, bula de remédio, nota fiscal, romance, comédia, drama, suspense, tudo o que possa contribuir para o aumento tanto da diversidade de conteúdos como do capital linguístico. Já na escrita, é prioridade o desenvolvimento da capacidade de raciocínio, argumentação e exposição dos conteúdos nas mais variadas formas possíveis: prosa, verso, paráfrase, resumo, carta, parecer, explorando, ao máximo, a potencialidade do capital linguístico do aluno.
Ensinar língua ou ensinar gramática?
	 Conhecer uma língua é uma coisa e conhecer sua gramática é outra. Saber uma língua é uma coisa e saber analisá-la é outra. Saber usar suas regras é uma coisa e saber explicitamente quais são essas regras é outra. Assim, pode-se, muito bem, falar, entender, ler e escrever uma língua sem saber “nada” sobre ela, ou seja, os porquês da sua dinâmica. O contrário também vale: há quem tenha estudado a gramática de uma língua estrangeira há anos e não ser capaz de desenvolver o mínimo necessário destas habilidades em situações reais. Por que isso acontece com línguas estrangeiras? Pior ainda: por que isso tem acontecido frequentemente com nossa língua materna, nas escolas? 
	Se as escolas ensinam (de forma descontextualizada e segregada da prática da leitura, da compreensão e da escrita) um montante de regras aos alunos, é apenas isto o que eles saberão. Quando lhes for requerido algo mais, como, por exemplo, uma produção textual simples, eles cometerão, pela falta de aplicação prática dos conteúdos, vários erros os quais aprenderam, por estas mesmas regras, a não cometer. E o ciclo de inaptidão linguística não para por aí: como não leem nem escrevem habitualmente, não falam corretamente. 
	Conclui-se, pois, que a escola, quando não acrescenta prática à teoria, segrega dos alunos a vivência da língua, ou seja, a capacidade de adquirir e guardar informações, resgatá-las e expressá-las em diversas modalidades. A proposta é ensinar gramática a partir da língua, pela vivência das diversas modalidades pelas habilidades, e não o oposto. De que vale, pois, saber regras se não se sabe aplicá-las?
Parte 3 - A aplicação
	Com base no conteúdo analítico-argumentativo a que o texto fez alusão, torna-se, pois, interessante, propor um direcionamento de como a escola pode trabalhar a língua portuguesa sem subordiná-la, como já exposto, à gramática. Não se propõe, portanto, abolir a gramática da sala de aula senão transformar o modo como ela é ensinada.
	O ponto de partida está centrado no capital linguístico dos alunos, ou seja, a bagagem de conteúdos da língua materna que eles possuem. Como ele foi adquirido mediante um processo natural de exposição aos fatos linguísticos, a proposta é: expô-los à classe mediante a prioridade absoluta para a prática da leitura de textos selecionadamente variados, a narrativa oral, o debate e todas as formas de interpretação (resumo, paráfrase etc). 
	Propõe-se, portanto, trabalhar essas habilidades na seguinte ordem: 
Leitura: trazer à realidade do aluno um leque, o mais variado possível, de modalidades da língua, objetivando estabelecer com ela uma relação íntima de vivência. Quanto maior o contato dele com os textos, mais a língua lhe será familiar e maior será o domínio que ele terá, ainda que intuitivamente, do vocabulário, das construções sintáticas, semânticas e formas paralelas de se expressar sobre um mesmo assunto;
Escrita: consolidar, por meio desta prática, o domínio da língua e desenvolver a capacidade de raciocínio, criatividade, conhecimento e argumentação dos diversos assuntos que passou a dominar pelo hábito da leitura. 
	Em se tratando de fala, esta se tornará, ao longo da prática das habilidades anteriores, diversificada e adequada aos mais diferentes contextos. Deste modo, gramática, língua, regra e erro adquirem novas conotações:
Gramática: a prioridade, nesta proposta, não é nem ensinar uma variedade em vez da outra nem mesmo torná-la um modelo estático a ser seguido unilateralmente. Propõe-se a criação de condições para que os alunos possam ter acesso ao maior número possível de variedades da língua materna, pois é assim que ela se apresenta efetivamente. Como, pois, ensinar gramática a partir desta ótica? Pela exploração da forma internalizada, verificando o que já é dominado, de modo a propor mudanças e acréscimos; em seguida, pela exposição constante do aluno à forma linguística, pois esta é a que, de fato, se identifica com a realidade dos diversos grupos de falantes e, por último, agregando aos conteúdos adquiridos, apresentar a forma descritiva, ou seja, a estrutura do que já se domina. Em oposição à metodologia escolar atual, é mais proveitoso ter as variedades linguísticas, inclusive a padrão, primeiramente dominadas, ainda que não descritas, do que apenas descritas.
Língua: saber língua é, sobretudo, ter a habilidade de comunicar-se tanto de forma oral como escrita, o mais diversificadamente possível, adaptando-a ao que pedem as circunstâncias. Assim, antes de descrever a sintaxe e a morfologia das expressões, é importante saber se elas fazem ou não parte do capital linguístico dos alunos, ou seja, se foram consolidadas na modalidade internalizada. É inviável impor-lhes um pseudo-aprendizado do que ainda não foi vivenciado. 
Regra: língua é um universo de variedades que produz um conjunto de regras para explicá-las contextualizadamente. As regras vivem em função da língua e não o oposto. Ensiná-las a partir dessa nova concepção é propor o entendimento das construções a partir de uma análise da lógica contextual da variedade – há regras decorrentes da gramática internalizada, umas cuja aplicação é de natureza linguística e outras que são codificadas pela gramática normativa. Todas têm sua lógica própria, longe de ser uma mais ou menos importante que a outra. Propõe-se, pois, que a escola não priorize um único conjunto de regras, mas as trabalhe à medida que determinada variedade linguística seja abordada.
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Erro: este adquire conotações diferentes em se tratando de fala e escrita. Naquela predominam a oralidade, os recursos gestuais, fisionômicos, a entonação, o ritmo etc, enquanto nesta, a pontuação, adequação e coesão textual, regência, colocação pronominal. Também há concepções variadas sobre erro em se tratando das três modalidades gramaticais.
	Como corrigir pela língua, e não pela gramática, um erro? Partindo da análise de onde ele está inserido – para cada modalidade linguística, uma abordagem.
	A proposta é, diante de um erro cometido, propiciar ao aluno, principalmente pelos textos, meios para que ele o reconheça como tal e descubra como corrigi-lo, despertando nele uma atitude proativa em relação ao próprio processo de aprendizagem.Quando ele reconhece que é parte fundamental deste processo, interessa-se pelo próprio progresso. 
	Assim, hipoteticamente, se o aluno falasse ou escrevesse a expressão “nós foi pescar”, o professor poderia escrevê-la no quadro e discutir com a turma o contexto linguístico no qual o erro está inserido, em vez de estigmatizá-lo verbalmente. Assim, poderia explicá-lo do ponto de vista da aceitabilidade: “nós fomos pescar” e “a gente foi pescar” seriam, pois, variedades utilizadas na língua padrão. A escolha de uma ou outra dependerá da formalidade do texto falado ou escrito. “A gente fomos pescar”, apesar de parecer uma forma estranha, é muito utilizada por escritores (silepse de número). “nós foi pescar” é uma expressão que, apesar de ser entendida, somente poderia ser escrita ou falada dentro de um determinado contexto linguístico, como, por exemplo, o do homem do campo. 
	Desta forma, o aluno aprenderia efetivamente as possibilidades que a língua oferece na comunicação oral e escrita. Sem regras, somente pela vivência. Raramente esqueceria a correção, pois foi vivenciada. Posteriormente adquirirá uma base sólida para compreender as explicações normativas sobre os mesmos fatos línguísticos.
Língua e o padrão dos concursos públicos
	Em se tratando do ensino preparatório para concursos públicos, como transpor a metodologia apresentada para uma realidade na qual o objetivo do processo seletivo não é avaliar o conhecimento da língua senão desenvolver artimanhas que promovam a desclassificação dos milhares de concorrentes às parcas vagas oferecidas?
	A tendência atual de avaliação das instituições responsáveis pelo processo seletivo é cobrar nas provas a língua sempre contextualizada, inserida nos textos, bastante variados, inclusive coloquiais. Alunos cuja formação linguística é baseada principalmente na prática da leitura e compreensão, produção textual de qualidade e aquisição de um capital linguístico diversificado são fortes candidatos à aprovação. Para eles, a gramática não fora ensinada dissociadamente da língua, nem memorizada ou aprendida às pressas, de um dia para o outro, desprovida de uma metodologia efetiva. Têm a convicção de que o mais importante não é saber como funcionam as regras gramaticais, mas sim como elas podem ser aplicadas à medida que o contexto as solicitar. Assim, viveram uma língua real que “flui” correta e naturalmente na resolução das questões.
Conclusão
	Este texto teve como principal objetivo propor uma reflexão crítica dos moldes tradicionais do ensino da língua portuguesa pelas escolas brasileiras – estéreis pela mera transmissão de conhecimentos prontos, muitos arcaicos, preconceituosos quanto às diversas variedades, baseados na memorização superficial e completamente dissociados da realidade contextual que a língua clama. 	Fundamental é propor uma mudança cujo alicerce esteja fundamentado na LEITURA e na ESCRITA. 
	Sejamos, pois, donos de nossa língua materna. Leiamos muito, diariamente, tudo, sem preconceito. Escrevamos mais, melhor, de tudo um pouco – ou muito – mas escrevamos. Um povo que não conhece sua língua, não conhece nem a si próprio nem seu país. 
(Por que (não) ensinar gramática na escola – Sírio Possenti – Mercado das Letras – 15ª reimpressão – 2006)