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Preservando a Unidade do Espírito no Vínculo da Paz um cursó dê ecumenismo O Autor Gottfried Brakemeier nasceu em 1937, na cidade de Cachoeira do Sul, RS. Doutorou-se em Gòttingen, Alemanha, na área de Novo Testamento; lecionou nessa área de 1968 a 1994, em São Leopoldo. Foi presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), presidente do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC) e presidente da Federação Luterana Mundial (FLM). Atualmente é professor de Teologia Sistemática e Ecumênica na Escola Superior de Teologia (EST) em São Leopoldo. "Preservando a Unidade do Espírito no Vínculo da Paz" A publicação deste livro foi possível graças às contribuições da Evangelisches Missionswerk in Deutschland (Hamburgo, Alemanha) e das Igrejas Protestantes Unidas na Holanda - Ministérios Globais (Utrecht), às quais a Associação de Seminários Teológicos Evangélicos agradece. Associação de Seminários Teológicos Evangélicos Presidente: Prof. Jose' Carlos de Sowça (São Bernardo do Campo) Vice-Presidenle: Prof. Dr. Nelson Kilpp (São Leopoldo) Secretário: Prof. Manoel Bernardino de Santana Filho (Rio de janeiro) Tesoureiro: Prof. Gerson Correia de Lacerda (São Paulo) Vogais: Prof. Dr. Werner Wiese (São Bento do Sul) Prof. Dr. Paulo D. Siepierski (Recife) Prof. Gerson Luis Linden (São Leopoldo) Secretário Geral Prof. Fernando Borlo/lelo Filho M LÍBER i ilíliflfff^ GOTTFRIED BRAKEMEIER "Preservando a Unidade do Espírito no Vínculo da Paz" U M C U R S O D E E C U M E N I S M O BS14 p São Paulo 2004 Seminário Concórdia Biblioteca st. CKj a«3J934 3qroQ43CAaC )3 TU Copyright © Gollfried Brakemeier Todos os direitos reservados Direção Editorial Hernando Bortolleto Filho Revisão Hernando Bortolleto Filho Capa Marcos Gianelli Composição e arle final Comp System - Tel.: (II) 3106-3866 reginonogucira@uol.com.br Diagramação Pr. Regino da Silva Nogueira Cícero J. da Silva Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Brakemeier, Gottfried "Preservando a unidade do espírito no vínculo da paz" : um curso de ecumenismo / Gottfried Brakemeicr. - São Paulo : ASTE. 2004. 136 páginas; 16x23 cm. Bibliografia. ISBN: 85-87565-08-7 1. Ecumenismo I. Título. 04-1783 CDD-262.0011 índices para catálogo sistemático: I. Ecumenismo : Eclesiologia 230 2004 Associação de Seminários Teológicos Evangélicos Rua Rego Freitas, 530 F.13 Cep 01220-010 - São Paulo. SP Brasil Tel.: (11) 3257-5462 - Fax (II) 3256-9896 aste@uol.com.br www.astc.org.br ÍNDICE GERAL Apresentação 7 I . Ecumenismo: Definição, significado, abrangência 9 II. Unidade e pluralidade da Igreja conforme o Novo Testamento.. 17 III. Diversidade religiosa e parceiros ecumênicos no Brasil 23 IV. Os inícios do movimento ecumênico moderno - pioneirismo protestante 31 V. Breve história do Conselho Mundial de Igrejas 39 VI. A Igreja Católico-Romana e o ecumenismo 49 VII. Ecumenismo na América Latina 57 VIU. A unidade da Igreja na visão de Igreja da Reforma 71 IX. O ecumenismo de consenso 77 X. O ecumenismo prático 85 XI. Pcntecostalismo e movimentos transconfessionais 91 XII. Ecumenismo e contextualidade 99 Xm. Modelos de unidade eclcsial 105 XIV. Diálogo inter-religioso - macroecumenismo? 113 XV. Multireligiosidade e o futuro do ecumenismo 123 APRESENTAÇÃO Sociedade democrática está comprometida com a liberdade reli- giosa. Também o é a Igreja de Jesus Cristo. Está proibida de exercer tirania cm nome do evangelho. Tornou-se culpada sempre que o fez. Jesus Cristo rejeita a violência religiosa. Aposta no poder da palavra, busca a adesão voluntária, cria paz entre inimigos. Reservou exatamen- te este mandato também à sua Igreja. "Bem-aventurados os pacificado- res, porque serão chamados filhos dc Deus" (Mt 5.9). Eis a promessa a quem se engaja nesta nobre tarefa. O mundo do século XXI se ressente dc aguda carência de "pacifi- cadores/as". Proliferam os conflitos, muitos dos quais com fortes ingre- dientes religiosos. Ao lado do relativismo de uma sociedade hedonista, perplexa com respeito a valores normativos, renascem os fundamenta- lismos, espalhando terror. As "guerras santas" dc modo algum são lem- branças do passado. A paz, premissa da sobrevivência, está ameaçada de dissolver-se em miragem no horizonte. Terá chance somente, se for pos- sível construir convivência sustentável na pluralidade e multiculturali- dade da sociedade globalizada. É para tanto que o ecumenismo quer contribuir. Oferece-se como alternativa ao fanatismo fundamentalista, dc um lado, e ao descompro- misso relativista, dc outro. Procura evitar tanto a colisão do diferente quanto a sua coexistência estanque. Está a serviço da construção de comunhão. Isto em primeiro lugar entre as Igrejas e as pessoas que car- regam o nome de Jesus Cristo. Ecumenismo é um projeto eclesiológico. Quer superar divisões internas da Igreja. Mas vai além. Não pode excluir o resto da humanidade dc sua perspectiva. O objetivo último consiste na aprendizagem da glorificação conjunta dc Deus nas alturas e da constru- ção da paz na terra entre as pessoas a quem Ele quer bem (Lc 2.14). 8 PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCUI.O DA PAZ - Gottfried Brakemeier O texto que apresentamos foi colocado sob a palavra de Efésios 4.3, escolhido como lema pela Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (LECLB) para o ano em curso. Pretende oferecer uma visão panorâmica de significado, história, objetivos e implicações do ecume- nismo. Nasceu da preparação do curso sobre essa matéria, constante como disciplina no currículo da Escola Superior de Teologia, em São Leopol- do, RS. É esta a razão do subtítulo. Também no mais foram conservadas características da origem em classe de aula, principalmente as indica- ções bibliográficas ao final de cada capítulo. Estas se restringem à lite- ratura em português e espanhol. Mesmo assim, não pretendem ser com- pletas, aplicando-se o mesmo às referências bíblicas. O texto poderá ser usado para ministração de cursos correspondentes, dirigindo-se não só aos especialistas na área, como também a membros leigos nas comuni- dades, confrontados de perto com o desafio da unidade na pluralidade religiosa. Pareciam-nos faltar subsídios para essa finalidade, que fossem sucintos, informativos e motivadores. Esperamos preencher uma lacuna. Um livro sobre ecumenismo tem o dever de ser "ecumênico". Mesmo assim, será escrito a partir de determinada posição, perspectiva e percepção. Trata-se, no nosso caso, da confissão luterana, aliás inseri- da na tradição protestante c, por extensão, católica, cristã. Exatamente essa consciência compromete com ambas, a objetividade científica e a verdade evangélica. Esperamos que elas estejam em evidência cm nos- sas reflexões. Agradecemos à Associação de Seminários Teológicos Evangélicos (ASTE) pelo apoio à publicação. No mais relembramos o célebre princípio a prevalecer no diálogo ecumênico que diz: "In necessariis unitas - in dubiis libertas - in omnibus caritas' "No que é necessário: unidade; no que é dúbio: liberdade; em tudo: caridade." ECUMENISMO: DEFINIÇÃO, SIGNIFICADO, ABRANGÊNCIA 1.0 termo "ecumene" (ecumênico, ecumenismo) provém do gre- go "oikoumene". Trata-se do participio passivo feminino do verbo "oikein" que significa "habitar". Ecumene, em tradução literal, significa "habitada", subentendendo-se tratar da "terra". Portanto, "oikoumene" designa a terra habitada. Na raiz está a palavra "oikos" (casa). "Ecume- ne" tem a mesma origem etimológica de "ecologia", "economia", "eco- sistema" coutras. Diz respeito à nossa "casa" que é o mundo, no qual nós habitamos. 2. O sentido original de "ecumene", pois, é de ordem geográfica. Refere-sc ao espaço de vida do ser humano. E assim que aparece já no Antigo Testamento grego (SI 24.1, etc.) e, sobretudo, no Novo Testa- mento (cf. Lc 4.5; At 11.28; Rm 10.18; etc) . Já muito cedo, porém, se associam outros significados a este. Sob o aspecto político, ecumene designa o império romano (Lc 2.1), na perspectiva cultural o mundo unido pelo helenismo, sendo que para a primeira cristandade a ecumene passa a ser vista como o campo de sua missão (Mt 24.14). Muito em breve, porém, o adjetivo "ecumênico" seria aplicado à própria Igreja, difundida por toda a terra. Torna-se sinônimo de "Igreja toda", isto é, "católica", de "Igreja inteira", "Igreja universal". O termo adquire signi- ficado eclesiológico. Passa a caracterizar, enfim, determinada mentali- dade, a saber, a da consciência da unidade em Cristo e por isto a de abertura c de amplitude. Ecumene ultrapassa as fronteiras de uma insti- tuição. Tem cm vista o corpo de Cristo em sua integralidade, nos hori- 1 0 PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA I'AZ - Gottfried Brakemeier zontcs de toda a "terra habitada". Possui proximidade ao que hoje se chama "global". 3. Nos primeiros séculos a Igreja "global", "universal", era uma realidade. Seus Concílios eram de fato "ecumênicos", e como tais são reconhecidos. São representativos de toda a cristandade e suas resolu- ções têm validade para as Igrejas em todo o mundo. Decorridos dois milênios, porém, e após tantas divisões, a ecumenc precisa ser restabe- lecida. É o que diz o termo "ecumenismo". Identifica uma tarefa "mo- derna". Embora não tenha equivalente bíblico exato, é de indiscutível legitimidade teológica. Expressa o esforço por recuperação da uni- dade visível da Igreja de Jesus Cristo. Ecumenismo pretende superar divisões, sanar feridas e unir o povo cristão no cumprimento comum de sua missão. Prevalece hoje o significado teológico c cclesiológico do termo. 4. No fundo, porém, "ecumenismo" quer mais. Almeja a unidade não só da Igreja. Quer também a unidade da humanidade, respectiva- mente a da sociedade. E o que o Conselho Mundial de Igrejas (CMI) sempre enfatizou. A unidade dos/as cristãos/ãs é prioritária. Mas não é um fim em si. Deus quer a unidade de toda a sua criação. Sem esta, a ecumene não está completa. Num mundo dilacerado por conflitos sociais, culturais, militares c outros também a comunidade cristã não poderá viver em paz. Ainda assim, fortes grupos do protestantismo, c, sobretudo, a Igreja Católica continuam a restringir o "ecumenismo" à sua dimensão eclesiológica. Seu objetivo consistiria exclusivamente na recuperação da unidade cristã. Trata-se de uma questão de conceituação, devendo-se convencionar um uso comum do termo. Há consenso de que a busca da unidade da Igreja deva constar no topo da agenda cristã. Per- gunta-se, porém, se as dimensões da ecumene não extrapolam a "comu- nhão dos santos". Embora o termo tenha adquirido conotação teológica específica, vale lembrar que elc designava originalmente não o conjunto das Igrejas, e sim a orbe terrestre habitada. 5. Ecumenismo quer reverter divisões. Fraccionamento é prejuí- zo. Infelizmente as divisões começaram cedo. Existem vestígios já no ECUMENISMO: DEFINIÇÃO, SIGNIFICADO, ABRANGÊNCIA 1 1 Novo Testamento (cf. 1 Co l.lOs). Houve grupos sectários, ameaças de heresias na Igreja antiga, a exemplo da gnóstica, pelagiana e outras. Em 1054 d.C. separam-se a Igreja do ocidente c a do oriente. No século XVI acontece a Reforma Protestante, em decorrência da qual surgem mais outras divisões (luteranos, anglicanos, calvinistas, etc) . Quatrocentos anos depois, o processo da pluralização da Igreja de Jesus Cristo de modo algum está concluído. A cristandade se apresenta dividida, necessi- tando, pois, do esforço ecumênico. Diversidade como tal c mal nenhum. O que causa danos à Igreja e à sua missão é o conflito, a con- corrência, a mútua condenação e exclusão. 6. Os credos básicos da fé cristã, a exemplo do Credo Apostólico e do Niceno-Constantinopolitano, afirmam ser a Igreja de Jesus Cristo essencialmente uma. Está fundamentada no evangelho que é o mesmo ontem e hoje c cm todos os lugares. A unidade faz parte de sua essência. Jesus não quis diversas Igrejas, rivalizantes entre si. Quis apenas uma. Mesmo assim, existem muitas. Também isto, em si, não seria nenhum problema. O apóstolo Paulo escreve já no seu tempo "às Igrejas da Galá- cia" (Gl 1.2; cf. 2 Co 11.28). Cada uma das comunidades locais é repre- sentação da Igreja toda. Elas podem ter identidades próprias, específicas, decorrentes da pluriculturalidadc de seus membros, de particularidades contextuais ou de evoluções históricas. São numerosos os fatores diver- sificantes da Igreja de Jesus Cristo. Ela sempre vai se apresentar multi- forme, desdobrando-sc em Igrejas. Resulta daí que ecumenismo não deve querer uniformizar. Deve, isto sim, reconciliar, conjugar, criar comunhão eclesial. Diversidade é legítima, enquanto capaz da comple- mentação mútua. 7. Para tanto é fundamental reconhecer que a unidade da Igreja é anterior ao que a divide. Antes des sermos católicos/as, luteranos/as, metodistas, e tc , somos cristãos. A fé, o batismo, a invocação do nome de Jesus Cristo são vínculos que estabelecem a comunhão dos santos. Isto significa: Ecumenismo não tem por meta produzir (!) a unidade cristã. Isto é obra do Espírito Santo que chama e cria a fé. O objetivo do ecumenismo é bem mais modesto: Pretende fazer visível (!) a unidade que "em Cristo" já existe. Trata-se de concretizar a comunhão dos 1 2 PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Rrakemeier discípulos de Jesus, de dar-lhe foiTna, estrutura e expressão. Mas tam- bém nessa perspectiva a tarefa ecumênica é nada fácil. 8 . 0 esforço ecumênico é promovido por diversos grupos e aconte- ce em muitos níveis. Existe o ecumenismo intereclesiástico, o ecumenis- mo dos movimentos, o ecumenismo de base (e de "cúpula"), existe um ecumenismo prático e outro doutrinal, um ecumenismo em liturgia em oração, um ecumenismo espontâneo e outro organizado, ecumenismo em nível local, regional, nacional e internacional. Não é recomendável jogar um tipo de ecumenismo contra o outro ou então monopolizar o ecumenismo para apenas uma de suas formas. Ecumenismo é um fenô- meno multifacetado, e vários são os seus métodos, seus jeitos c sujeitos. 9. Apesar de procurar a unidade e de promover a boa causa, o ecumenismo encontra múltiplas resistências. Provoca temores. E sen- tido como ameaça à própria identidade. Sofre sob a suspeita de promo- ver o sincretismo ou então a relativização da verdade. O antiecumenis- mo encontra-se predominantemente em grupos "conservadores", exclusivistas. Não raro resulta da desinformação. Pois o bom ecumenis- mo jamais renuncia à verdade. Não nivela as diferenças nem as ignora. Ele pressupõe, isto sim, uma atitude de abertura e de disposição para o diálogo. Pretende solucionar conflitos mediante o auscultar mútuo e o recurso comum ao evangelho. Não abre mão da mútua prestação de con- tas. Todas as Igrejas permanecem responsáveis frente ao evangelho. Comunhão é assim: Não aniquila identidades, antes as compatibiliza e possibilita vida comunitária. 10. Para o bom êxito dessa causa importa esclarecer a relação entre ecumenismo e missão. A Igreja de Cristo é, a um só tempo, mis- sionária e ecumênica. Parece residir aí um conflito: Quem pretende a amizade cclcsial, deve desistir de fazer missão, e quem procura atrair novos membros não pode ser ecumênico. Ora, não há como endossar tal lógica. Missão sofre prejuízo quando praticada como feroz concorrên- cia entre as Igrejas e se manifestar em condenação mútua. A boamissão não é "captura" de membros. Repudia o "proselitismo". E convite, isto sim, para abraçar a fé e integrar a comunidade. Vai dirigir-se preferen- Ecu.MENiSMO: DEFINIÇÃO, SIGNIFICADO, ABRANGÊNCIA 1 3 cialmentc à gente sem Igreja, à procura de uma comunidade de fé. Natu- ralmente, postura convidativa acompanhará também o esforço ecumênico. E no entanto, não há como confundir. Ecumenismo trata de superar a rivalidade e de possibilitar a missão comum. Divergências não anulam o ecumenismo, antes o exigem. 11. Jesus Cristo quer a comunhão de seus discípulos. O mesmo vale para o Espírito Santo: Ele congrega os crentes em comunidade. Cria comunhão (2 Co 13.13). Eis porque a busca da unidade da Igreja é nada opcional. E imperativo inalienável e compromisso irrenunciável. Igreja cristã é por excelência ecumênica ou não é Igreja. A rejeição do ecumenismo ameaça transformar a Igreja em "seita". A cristandade perde credibilidade através de brigas e desavenças internas. As guerras religiosas, não por último aquelas entre os próprios cristãos, acumula- ram culpa nas Igrejas diante de Deus e diante da humanidade. Em sentido abrangente, ecumenismo persegue o objetivo da paz na terra mediante a recondução de todos os povos à adoração do mesmo Deus, criador e redentor (cf. Is 2.2-5; Mt 8.11). 12. Convém distinguir "ecumenismo" como dimensão da teolo- gia e como disciplina no currículo: a. Toda teologia, na verdade, é ecumênica. Relaciona-se com o pensar teológico do passado, da história da Igreja, bem como com o pensar teológico nas Igrejas irmãs contemporâneas. O conhecimento da teologia de Lutero ou de Calvino, por exem- plo, requer o estudo no pano de fundo da teologia escolástica da Idade Média e da Igreja antiga. Também hoje não podemos ignorar a História da Igreja, a teologia cm outros continentes, em outras Igrejas e outras entidades. Isto vale para a exegese, a dogmática, a teologia prática, para todo fazer teológico. Sem os horizontes ecumênicos será pobre qualquer teologia cristã. b. E, todavia, faz bom sentido tratar do ecumenismo em discipli- na especial. Pois o ecumenismo tem uma história que épreciso conhecer. É tarefa a ser refletida. Quer ser di vulgado e ensaiado. Justamente numa época cm que a disputa religiosa reaparece 14 PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeier vigorosa, é importante a lembrança da unidade que Deus quer. Em tempos de globalização somos obrigados a conviver com o diferente. Não o podemos manter à distância. Logo devemos achar formas de convivência pacífica. E o que o ecumenismo se propõe. 13. Houve épocas de verdadeira euforia ecumênica. Achava-se que a unidade das Igrejas estaria próxima. Foi um engano. O caminho ecumênico se revelou como sendo bem mais pedregoso do que previsto. As dificuldades, porém, não justificam a resignação. A tarefa sc apre- senta hoje com a mesma urgência como ontem. Devemos, isto sim, despe- dir-nos de ilusões. Pelo que tudo indica, a cristandade terá rosto multi- denominacional também no futuro. Mesmo assim, será possível viver a "comunhão dos santos". O empenho por esta meta tem a promessa de bênção. Algo desta bênção é muito palpável. Nos últimos decênios, o ecumenismo tem logrado substanciais melhoras no relacionamento dos/as cristãos/ãs. 14. Um dos entraves continua sendo a notória dificuldade na defi- nição dos objetivos. Falta uma "utopia" ecumênica, respectivamente uma visão do que seja unidade. Ecumenismo deverá pretender o quê? Deverá promover a fusão de todas as Igrejas em uma só instituição? Ou será suficiente uma "Federação de Igrejas"? Deverá ser privilegiada uma "ecu- mene da justiça", isto é, um ecumenismo prático com base num projeto de ordem social? E as religiões não cristãs, porventura permanecerão fora da "ecumenc"? As perguntas serão discutidas oportunamente. Elas denunciam que os termos "ecumene" e "ecumenismo" necessitam de explicação. Queremos a unidade e a paz. Mas como alcançar o objetivo? Literatura: - BARROS, Marcelo. O Sonho da Paz. Petrópolis: Ed. Vozes, 1996,2 a ed., p. 37s. - BRAKEMEIER, Gottfried. Ecumenismo: Repensando o significado e a abrangência de um termo. In: Perspectiva Teológica, Ano 33, Belo Hori- zonte, 2001, p. 195-216. ECUMENISMO: DEFINIÇÃO, SIGNIFICADO, ABRANGÊNCIA 15 - CAMBON, Enrique. Fazendo Ecumenismo. Uma exigência evangélica e uma urgência histórica. São Paulo: Ed. Cidade Nova, 1994. - CONSELHO NACIONAL DE IGREJAS CRISTÃS / CONSELHO LATI- NO-AMERICANO DE IGREJAS NO BRASIL. Diversidade e comunhão. Um convite ao ecumenismo. São Leopoldo: Ed. Sinodal / São Paulo: Ed. Paulinas, 1998. - HORTAL, Jesus. E haverá um só rebanho. São Paulo: Ed. Loyola, 1989, p. l is . - MEYER, Harding. Motivação e alvo do esforço ecumênico: integridade e indivisibilidade do movimento ecumênico. Diversidade reconciliada - o projeto ecumênico. São Leopoldo: EST/ Ed. Sinodal, 2003, p. 25-45. - NAVARRO, Juan Bosch. Para Compreender o Ecumenismo. São Paulo: Ed. Loyola, 1995. - SANTA ANA, Júlio de. Ecumenismo e Libertação: Reflexões sobre a uni- dade da Igreja e o Reino de Deus. Coleção Teologia e Libertação IV/14, São Paulo: Ed. Vozes, 1991, 2 a ed., p. 15s. - VERCRUYSSE, Jos. Introdução à teologia ecumênica. São Paulo: Ed. Loyola, 1998. - WOLFF, Elias. Caminhos do ecumenismo no Brasil. História - Teologia - Pastoral. São Paulo: Ed. Paulus, 2002. UNIDADE E PLURALIDADE DA IGREJA CONFORME O NOVO TESTAMENTO 1. A unidade está na raiz do próprio ser da Igreja de Jesus Cristo. Juntamente com a santidade, a apostolicidade e a catolicidade, perfaz um de seus essenciais atributos. Já o rápido exame do Novo Testamento o comprova. Jesus ora pelos seus discípulos para que todos sejam um (Jo 17.21). O rebanho c um só, c um só c seu pastor (Jo 10.14). "Há somente um corpo e um Espírito (...) há um só Senhor, uma só fé, um só batismo, um só Deus e Pai de lodos..." (Ef 4.4s). Que Jesus Cristo esteja dividido (1 Co 1.13), é pensamento inconcebível para a primeira cristandade. Todos os batizados são um "em Cristo Jesus" (Gl 3.28). E quem come pão na mesa do crucificado e ressusci- tado constitui um só corpo com ele, o doador da ceia, e os demais participantes (1 Co 10.16). Cristo derruba paredes de separação. Ele não divide, ele une (Ef 2 . l i s ) . 2. Ainda assim, observa-se surpreendente diversidade de formas na Igreja das origens. O próprio NT é um livro plural, no qual se faz ouvir extraordinária variedade de vozes. A proposta de Taciano, teólogo cristão do segundo século, harmonizando os quatro evangelhos median- te fusão, que chamou de "Diatéssaron" (= através dos quatro), acabou rejeitada. A Igreja de Jesus Cristo preferiu canonizar o lado a lado, às vezes tenso, de Mateus, Marcos, Lucas e João. Resistiu à uniformiza- ção. Sempre se apresentou "multicolorida". Isto se aplica, não por último, à eclesiologia. A primeira cristandade ensaiou diversos mode- los. Não se trata nisso de sinal de fraqueza, e sim de força. A Igreja de 18 PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeier Jesus Cristo, em sua historia, mostrou ser capaz de adaptarse a varia- dos ambientes e novas exigencias, desenvolvendo estruturas eclesiais correspondentes. 3. São múltiplos os fatores diversificantes da mensagem do evan- gelho, bem como da piedade e da vivência da fé: a. Na origem da fé cristã está o testemunho de um grupo de pes- soas, não de um só indivíduo. Os apóstolos eram muitos. Ora, o testemunho de um grupo necessariamente é plural. Evidente- mente, Jesus c o fundamento da Igreja. Mas nós temos notícia a seu respeito somente da boca de uma "nuvem dc testemunhas" (Hb 12.1). b. A Igreja das origens se alojou de imediato em dois ambientes culturais distintos, o hebraico e o helenístico. Os primeiroscris- tãos se compunham dc judeus (exemplo: os doze apóstolos), de judeus helenísticos (exemplo: Paulo) e de gente pagã (exem- plo: Tito [Gl 2.Is]). E claro que isto acarretou enormes diferen- ças na articulação da fé. A notícia de Jesus, de sua mensagem, práxis e história, tinha que ser traduzida do idioma e do pensa- mento aramaico para o grego. A variedade daí decorrente inevi- tavelmente provocou tensões. Houve dificuldades com a vida cm comunhão, como bem o ilustra o conflito entre Pedro e Paulo na cidade da Antioquia (Gl 2.l is) . c. Além destes fatores diversificantes naturalmente Iiá outros. A biografia individual costuma imprimir marcas específicas no testemunho. Ou então a classe social, o gênero, a etnia exercem influência. Qualquer tentativa de compreender fenômenos his- tóricos está obrigada a verificar os elementos condicionantes que estão em sua origem. 4. A despeito da pluralidade do testemunho, porém, o Novo Testa- mento, bem como a Bíblia cm seu todo, de modo algum se reduz a uma "colcha de retalhos". Não é um amontoado aleatório de textos religio- sos, nem apregoa um ideal de pluralidade caótica. A canonização dos textos neotestamentários é expressão de um consenso básico da cristan- U.NiDADF. E PLURALIDADE DA IGREJA CONFORME O NOVO TESTAMENTO dade. Seriam estes os escritos "fundamentais" da Igreja de Jesus Cristo. Afirma-se que são expressão autêntica do evangelho e por isto canóni- cos. Em outros termos, o Novo Testamento tem um centro, um eixo gravitacional, um ponto referencial. E o próprio Jesus Cristo que man- tém unida a variedade. E este o paradigma válido também para a unida- de da Igreja: E unidade na pluralidade centrada em Jesus Cristo, é plu- ralidade concêntrica. 5. Isto significa que a idéia de um início homogêneo da cristanda- de deve ser sepultada. E isto é salutar. Pois diversidade é a marca da criação. Ela é até mesmo pressuposto de unidade. O corpo não funcio- na sem a diversidade de seus membros. Ninguém pode imaginar-se um corpo composto somente de mão (1 Co 12.12s). O que é absolutamente igual não tem condições de servir-se mutuamente. Um cego não pode guiar outro cego (Mt 15.14). Pode receber auxílio, sim, da parte de um surdo. Somente o diferente é capaz da complementariedadc c da cons- trução de comunhão. Consequentemente, o ecumenismo está proibido de suprimir legítima variedade, de padronizar e nivelar as expressões de fé. 6. O desafio ecumênico, com o qual se defrontam as Igrejas, tem réplica em qualquer convívio social. Diversidade é riqueza. Mas ela o é somente enquanto se dispor a cooperar e enquanto se alicerçar num consenso básico. Caso as diferenças conduzirem à agressão e aca- barem em desavenças, pretendendo os grupos aniquilar o diferente ou eliminar o "estrangeiro", a sociedade se autodestrói. Desde sempre a Igreja queria ser agente da paz. O partidarismo entre os cristãos de Corinto mereceu severas críticas por parte de Paulo. Viu nele a rivalida- de de interesses corporativistas, aniquiladora da comunidade (1 Co 1. lOs). O fundamento capaz de sustentar a comunhão humana deverá ser cons- tituído por parâmetros objetivos e universais. A primeira cristandade pro- clamou Jesus Cristo como quem aproximou "judeus c gregos", os de longe c os dc perto, constituindo a família de Deus (cf. Ef 2.14). Cristo acabou com a inimizade. Dele a Igreja herdou a tarefa ecumênica, sendo que antes de mais nada compete "fazer as pazes" entre os próprios cris- tãos e as próprias Igrejas. 2 0 PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried iirakemeier 7. O compromisso com a paz, porém, seria mal-entendido como pleito em favor de ilimitada tolerância. Paz não tolera o ódio, por exem- plo. Pela mesma razão, ecumenismo não pode trair o evangelho. Exis- tem verdades irrenunciáveis. Mostra-o o fenômeno da heresia, bem conhecido e combatido pelo Novo Testamento. Heresia não é a variante da fé. É, isto sim, a sua descaracterização e perversão. Nesses termos o apóstolo Paulo defendeu o evangelho frente aos "hereges" que haviam penetrado nas comunidades da Galácia. Quem faz depender a graça de Deus de condições a serem cumpridas pelo ser humano, sejam elas de natureza cultural, ética ou étnica, merece o anátema (Gl l.ós). Ecume- nismo precisa do compromisso com a verdade. Não pode fazer-se cúm- plice da confusão religiosa nem protagonista de superficial irenismo. 8. Da mesma forma, porém, necessita do compromisso com o amor. Pois somente quem ama cumpre a vontade de Deus (Rm 13.8- 10). Enquanto o saber ensoberbece, o amor edifica (1 Co 8.1-3). Foi a misericórdia que fez com que Jesus dirigisse a sua atenção aos diferen- tes, aos pecadores, bem como aos discriminados em termos religiosos, culturais c sociais, a samaritanos e até mesmo pagãos (Mt 8.5s; e tc) . Não diminuiu a vontade de Deus. Mas também não esperou que as pes- soas se convertessem e acorressem arrependidas. Foi à sua procura para manifestar-lhes, a um só tempo, a exigência c o amor de Deus, a lei e o evangelho. Decorre daí que, com relação à unidade, há dois princípios a observar: a. Está aí, em primeiro lugar, a verdade, a doutrina da fé, o credo. De certa forma cia c excludente. Não existem duas verdades. Jesus Cristo c o caminho, a verdade c a vida. Afirma-se exclu- sividade. Da mesma forma, a fé estabelece parâmetros para a conduta. A Igreja tem o compromisso dc zelar pela coerência com o evangelho, em discurso c prática. Deve assumir posição que nega possíveis "oposições". E o que se aplica também ao ecumenismo. Ele está proibido de diluir a verdade evangélica. b. E, no entanto, a verdade não pode divorciar-se do outro princí- pio que é o amor. Amor sempre tem natureza inclusiva. Quer abraçar o outro. Procura compreendê-lo e com ele aprender. UNIDADE F. PLURALIDADE DA IGREJA CONFORME O NOVO TESTAMENTO 21 Não condena precipitadamente nem se conforma com o pre- conceito. No trato do outro, "não se alegra com a injustiça" (cf. 1 Co 13.6). Por isto mesmo, amor autêntico possui elementos "autocríticos". Vai escandalizar-se com as divisões. Examina a eventual co-responsabilidade própria nas mesmas. Quer a comu- nhão com o diferente. 9. Ecumenismo, pois, deve conjugar a paixão pela verdade com a paixão pelo amor. Está compromissado a unir ao exclusivismo dou- trinal o inclusivismo fraternal. São esses os dois poios do afazer ecumê- nico que o protegem de desfigurações. Amor sem insistência na verdade será fraqueza. Vai redundar em sentimentalismo c cair em ficções. Por sua vez, verdade sem amor será cruel e desumana. Costuma provocar resistências e até mesmo o ódio. Em Jesus nós vemos ambas as coisas: a insistência na vontade de Deus c sua verdade, bem como o amor que não larga o outro nem o violenta ou o entrega a seu destino. 10 .0 Novo Testamento oferece bonitos exemplos de empenho pela unidade da Igreja sem com isto suprimir a pluriformidade. Seja lembrado o assim chamado Concílio dos Apóstolos (At 15; Gl 2). Teve por assun- to a unidade da Igreja, formada por judaico-cristãos, observadores da lei judaica, e gentílico-cristãos, não observadores da "torá". Encontraram-se, na oportunidade, Paulo e Barnabé de um lado e as "colunas" da comuni- dade dc Jerusalém, Pedro, João c Tiago (irmão de Jesus), de outro. O conclave teve o mérito dc ter impedido o surgimento de duas Igrejas cristãs, uma judaica c outra gentílica. Teria sido um cisma "mortal" para a cristandade, confinando Pedro c os demais integrantes do grupo dos doze apóstolos a uma facção cristã do judaísmo e privando a missão entre os gentios de sua raiz histórica em Jesus de Nazaré. A manutenção do "sola gratia " (somente por graça) para tanto tem sido decisiva. É Cri sto quem salva, e somente ele. Isto não proibe observar tradições culturais. Mas elas já não possuem força salvífica. Doravante nãohaveria necessidade de cumprir a lei judaica como premissa para abraçar a fé em Cristo. 11. Outro exemplo de esforço por unidade é o projeto da coleta que o apóstolo Paulo levanta nas comunidades gcntílico-cristãs em 22 PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeier favor dos cristãos judaicos em Jerusalém (2 Co 8-9). Esta coleta, na verdade, era um determinação do Concílio dos Apóstolos (Gl 2.10). Mas o apóstolo mostra particular engajamento nessa causa. Ela simboliza o débito dos gentílico-cristãos com relação aos judaico-cristãos. Pois é deles que partiu o evangelho para todo o mundo. Não há como contestar que a "salvação vem dos judeus", como se lè no evangelho de João (4.22). Conseqüentemente existe um vínculo entre todos os cristãos, quer venham de fora, quer venham de dentro. A Igreja de Cristo é uma só, composta de muitas nações. Seus membros vivem todos da graça de Deus, não do que herdaram ou do que produzem. A justificação por graça e fé é o mais poderoso fator ecumênico. 12. Ecumenismo precisa do consenso na fé e na prática. Mesmo assim, e também isto está em evidência no NT, tal consenso será "dife- renciado". Não será uniforme. Deixa espaço para articulações próprias e para a diversidade que é característica dos dons do Espírito Santo. E um assunto a ser retomado mais abaixo. Literatura: - BRAKEMEIER, Gottfried. O cânon do Novo Testamento - paradigma da unidade da Igreja? In: Estudos Teológicos, v. 37, São Leopoldo: EST, 1997/ 3, p. 205-222. - GALLAZI, Sandro. O projeto e o lugar da unidade na Igreja. Estudos Bí- blicos, n° 12: Unidade e conflitos na Igreja à luz do Novo Testamento. Petrópolis: Ed. Vozes, 1986, p. 7-14. - HORTAL, Jesus. E haverá um só rebanho. São Paulo: Ed. Loyola, 1989, p. 133-157. - KÀSEMANN, Ernst. Diversidade e unidade no Novo Testamento. Conci- lium, n° 191, Petrópolis: Ed. Vozes, 1984/1, p. 80-90. - SANTA ANA, Júlio de. Ecumenismo e Libertação: Reflexões sobre a uni- dade da Igreja e o Reino de Deus. Coleção Teologia e Libertação IV/I4, São Paulo: Ed. Vozes. 1991, 2 a ed., p. 177-216. - TAPPENBECK, Heinrich. A unidade da Igreja na obra e no pensamento do apóstolo Paulo. In: Estudos Teológicos, Ano 2, São Leopoldo: EST, 1962, n° especial, p. 1-13. DIVERSIDADE RELIGIOSA E PARCEIROS ECUMÊNICOS NO BRASIL 1. Ecumenismo acontece entre grupos, movimentos, entidades e instituições eclesiásticas. É preciso, pois, conhecer os parceiros. De modo algum são iguais. Há os mais próximos e os mais distantes. Há aqueles com os quais o ecumenismo c mais fácil e aqueles com os quais é difícil. Sc a ecumene é família de Deus (cf. Ef 2.19), a existência de parentes de diversos graus não surpreende. Não podemos ter o mesmo tipo de comunhão com todas as pessoas. Importante é que ninguém seja definitivamente excluído. O imperativo do ecumenismo se aplica, ainda que em modalidade diversa, a todos os grupos religisosos. Eis porque ecumenismo exige noções do mapa religioso circundante. 2. Uma das proeminentes características da sociedade brasileira, c por extensão também da latino-americana, consiste na pluralidade reli- giosa. Isto nem sempre tem sido assim. Durante séculos prevalecia a Igreja Católico-Romana na condição de Igreja estatal. Outras formas de religião e de fé cristã estavam interditadas. Se existiam, viviam submer- sas na clandestinidade, a exemplo da religiosidade afro. Até mesmo quan- do o Império, no início do século XIX, atraiu imigrantes ingleses, ale- mães e suíços, sendo obrigado a conceder aos protestantes entre eles o exercício de sua fé, a situação em princípio persistiu. Somente em 1889 foi decretada a liberdade religiosa. A abertura para imigrantes de quase todos os países deste planeta transformou o Brasil em nação multicultu- ral. Aqui aportaram muitas nações, trazendo sua bagagem cultural e religiosa. 2 4 PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried lirakemeier 3. Religião, se livre, sempre se apresentou em multiplicidade de cultos e ritos. Somente ditadura poderia garantir uniformidade. E o que o ecumenismo não pode pretender. Por motivos do próprio evangelho não poderá abrir mão da liberdade religiosa. Mas, como manejar a plu- ralidade? É uma pergunta especialmente candente na atualidade. A glo- balização cultural e a privatização da fé redundaram numa explo- são de religiosidade quase selvagem. Ela traz em seu bojo forte potencial conflitivo. Pode produzir o fundamentalismo, ou seja, a intransigência fanática de grupos, por um lado. O diferente cai sob suspeita e sofre demonização. Ou pode acabar no relativismo que já não mais conhece normatividade. A alternativa a esses dois descaminhos é o ecumenismo, inconformado com o caos religioso e, todavia, adverso a quaisquer méto- dos violentos. Na perseguição de suas metas necessita de estratégias e, sobretudo, da análise do respectivo quadro religioso. Ecumenismo deve trabalhar em estreita cooperação com a ciência da religião. 4. As religiões "originais" neste Continente são as indígenas. Elas foram majoritariamente extintas. Sobraram apenas restos dessas religiões tribais. Em decorrência do "despertar das consciências", porém, e do resgate da herança indígena, elas voltaram a atrair atenção. Os povos indígenas têm o direito ao diálogo interreligioso que lhes ausculte os credos e os valores culturais. Algo semelhante vale para a cultura afro- brasileira. Passou por um processo sincretista com a religião cristã dominante. Mas na umbanda, no espiritualismo, no candomblé, bem como em muitas formas de religiosidade popular, ela sobreviveu às adversidades dos tempos e conseguiu recuperar importância sócio- religiosa. O ecumenismo com essas formas de religosidade requer reflexões especiais. Voltaremos ao assunto ao tratar do macroecume- nismo. 5. Aliás, já muito cedo vieram também judeus ao Brasil, fugindo da perseguição em outros países. Sofreram discriminação também em terras brasileiras. Mesmo assim, ao longo da história, estabeleceu-se no Brasil forte comunidade judaica. Ela representa mais outro desafio ao ecumenismo cristão. Cristãos c judeus, a despeito de suas diferenças, têm muito em comum. Que significa isto para a sua convivência? DIVERSIDADE RELIGIOSA F. PARCEIROS ECUMÊNICOS 2 5 6. O catolicismo que se estabeleceu no Brasil-colônia trazia fisio- nomia ibérica. Sofreu mudanças com a chegada de outros contingen- tes católicos, oriundos da Itália ou da França, por exemplo. Perdeu a exclusividade com a vinda de protestantes. Distingue-se tradicional- mente entre protestantismo de imigração (luteranos, reformados, anglicanos) e protestantismo de missão (metodistas, batistas, presbi- terianos e outros). No caso do primeiro, o protestantismo foi importa- do quase como efeito colateral de interesses econômicos e políticos. Sofreu transplante para as terras brasileiras para criar novas raízes. Inicialmente não desenvolveu dinamismo expansivo. Contentava-se com a permissão para o exercício de sua fé. Enquanto isso, o protes- tantismo de missão, em ofensiva evangelizadora, tratava de recrutar adeptos entre a população. É claro que entrou em colisão com a Igreja Católica dominante. Principalmente após a proclamação da República em 1889, o Brasil veio a ser atrativo campo missionário de muitos grupos evangélicos, vindos predominantemente dos Estados Unidos da América. Hoje as diferenças entre os tipos se confundem. As Igre- jas de missão se tornaram de alguma forma "sedentárias", e as de imi- gração reconheceram sua tarefa missionária. A evangelização do povo brasileiro de modo algum está encerrada. Frente a novos desafios, porém, e na consciência da solidariedade de todas as Igrejas, cumpre conceber uma "missão ecumênica", que evite a rivalidade c venha a somar os recursos. 7. Vale isto, não por último,para as Igrejas pentecostais que experimentaram verdadeiro milagre de multiplicação no Brasil. Tam- bém o pentecostalismo se apresenta multifacetado, sim, altamente com- plexo, estonteante, impossibilitando estatísticas com números exatos. Ao lado de Igrejas pentecostais já há mais tempo radicadas no País, a exemplo da Assembléia de Deus, da Igreja do Evangelho Quadrangu- lar e da Congregação Cristã no Brasil, encontra-se o "neopentecosta- lismo" do tipo da Igreja Universal do Reino de Deus. O fenômeno exige apreciação própria, sendo particularmente constrangedor o pro- blema do ecumenismo com essa ala do cristianismo. Quais seriam as formas de comunhão eclesial entre Igrejas tradicionais c pentecostais. Ademais, juntaram-se ao mosaico religioso brasileiro diversas Igrejas 26 PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeier orientais, ortodoxas. Elas aumentam o exuberante colorido do cristia- nismo brasileiro, espelhando a extraordinária variedade das expres- sões cristãs. 8. E no entanto, a América Latina j á não é "continente cristão" como se preconizava ainda poucas décadas atrás. Mesmo em condição minoritária, muçulmanos, budistas, hindus e adeptos de outros credos não cristãos fazem parte "natural" do quadro religioso brasileiro. O Espi- ritismo goza de ampla aceitação. Difundem-se Nova Era ou então gru- pos como Scicho-no-iê, Perfeita Liberdade e outros. Novos movimentos religiosos integram o quadro e desenvolvem considerável dinâmica. O mercado religioso diversifica a oferta. Dilui o que se tem chamado de "cultura cristã". A tradição cristã se encontra em franco processo de ero- são que instala também na religião a lei da compelividadc. O ecumenis- mo, terá ele chance nessas circunstâncias? Como se correlacionam o ecumenismo c a missão em termos de mercado? 9. Ecumenismo nem sempre terá a mesma face. Está condiciona- do à natureza dos parceiros, às suas afinidades, à sua disposição, à res- pectiva auto-compreensão. O ecumenismo costuma operar com várias categorias. Distingue entre: a. Igrejas. São instituições constituídas como "associações reli- giosas", dando expressão e espaço para a vivência da "comu- nhão dos santos", confessada no Credo Apostólico. Exige-se de "Igrejas" que tenham definida a sua identidade cristã, que tenham certa expressão na sociedade, que possuam estrutura administrativa. Igreja se baseia em amplo consenso dos fiéis enraizado cm fundamento bíblico. Fala-sc cm "Igrejas históri- cas", quando se trata de instituições eclesiásticas com alguma tradição, distinguindo-sc assim de Igrejas recém estabelecidas. Em todos os casos, Igreja é uma instituição, ultrapassando os limites de uma comunidade local e naturalmente a de um movi- mento fugaz. b. Seitas. São grupos cristãos à parte das correntes eclesiásticas principais. O termo se deriva do latim "secare" que significa DIVERSIDADE RELIGIOSA E PARCEIROS ECUMÉNICOS 2 7 "cortar", "separar". Seitas, portanto, seriam entidades "corta- das" do tronco, c por isto marginais. Outra explicação etimoló- gica deduz o termo do verbo latino "sequi" com o significado de "seguir". Uma seita seria um grupo unido em tomo de um mestre, seguindo-lhe os ensinamentos. Seria algo como uma "escola". Falta uma explicação etimológica consensual. O ter- mo adquiriu conotação pejorativa. Evoca a idéia da heresia, do fanatismo, do isolacionismo. Nenhuma comunidade eclesial vai autodenominar-se assim. Recomenda-se cuidado no uso do ter- mo por isto. E injusto aplicá-lo a grupos simplesmente "desvi- antes". Mesmo assim ele faz sentido. Designa determinada postura ou mentalidade que se caracteriza por: Exclusivismo, antiecumenismo, purismo, elitismo, unilateralismo, simplismo. Espírito sectário pode perpassar também as Igrejas c ameaçar a liberdade resultante do evangelho. c. Denominações. O termo surgiu na Inglaterra, mas tomou-se importante de fato nos Estados Unidos para caracterizar os múltilplos grupos protestantes que aí se formaram. O termo é neutro, puramente formal, sem nenhuma carga teológica. Não contém nenhum juízo avaliativo sobre os diversos grupos. Iden- tifica-os tão somente pela sua designação, ou seja, "denomina- ção". É claro que o diálogo ecumênico se trava não somente com Igrejas de diversos nomes, e sim de diversos credos ou confessionalidades. Não obstante, a vantagem do termo con- siste em sua conotação inclusivista, "democrática". Somos todos cristãos, embora com diversos nomes. d. Novos movimentos religiosos. São, como diz o termo, movi- mentos que surgem como expressão da religiosidade contem- porânea. Normalmente possuem natureza sincretista, ou então representam uma religiosidade estranha, "importada", respec- tivamente redespertada após longo tempo submersa. A fasci- nação desses movimentos resulta justamente da aparência da "novidade" que exibem, do que é exemplo clássico a "Nova Era". Como movimentos, possuem pouca estrutura organizacio- nal. Conquistam simpatizantes entre os membros das Igrejas tradicionais c grupos confusos com a modernidade. 2 8 PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Ilrakemeier 10. A avaliação destes conceitos vai constatar a relatividade dos mesmos. O que é Igreja, seita, movimento religioso, isto dependerá do respectivo lugar teológico do observador e da observadora. Sofre decisi- va influência pela maneira de perceber o outro e de entender a diferença. O maior entrave ecumênico desde sempre tem sido o desconhecimento, normalmente acoplado ao preconceito. Por isto merece aplauso a recen- te iniciativa da reflexão sobre uma "hermenêutica ecumênica", engajada na superação de equívocos, de identificações errôneas, em suma, no apro- fundamento da compreensão mútua das comunidades cristãs. Ainda assim, a terminologia acima analisada é útil. Ajuda no "discernimento dos espíritos" (1 Co 12.10). Quem são os sujeitos ecumênicos, seus agen- tes e os possíveis parceiros? Já a tipificação dos mesmos é uma questão altamente sensível. Serão irmãos, irmãs, concorrentes, hereges? Que deverá prevalecer no relacionamento com outras Igrejas e outros gru- pos? A intransigência, a tolerância ou então o ecumenismo? Este último pretende mais do que a mera co-existência. Quer a con-vivência, para o que há de buscar um mínimo de base consensual, bem como a disposi- ção para a aprendizagem ecumênica. 11. Trata-se de um imperativo que em sociedade p Iuri religiosa se reveste de urgência. E bem verdade que o mundo religioso brasileiro não facilita o ecumenismo. Ele é sincretista, competitivo, proselilisla. Em ampla escala religião se tornou um produto de mercado. E pre- ciso vender para sobreviver. Justamente cm tal situação, porém, cabe às Igrejas mostrar que salvação não provém do mercado, e sim do evange- lho. E um dos ingredientes da salvação é a paz. Religião que não se empenha pela paz, perdeu a legitimidade. Literatura: - ALTMANN, Walter. O pluralismo religioso como desafio ao ecumenismo e à missão na América Latina. In: Desafios Missionários na Realidade Brasileira, São Leopoldo: CECA, 1997, p. 61-72. - BITTENCOURT FILHIO, José. Matriz Religiosa Brasileira - religiosida- de e mudança social. Petrópolis / Rio de Janeiro: Ed. Vozes / Koinonia, 2003. DIVERSIDADE RELIGIOSA E PARCEIROS ECUMÊNICOS 2 9 - BOBSIN, Oncide. Tendências religiosas e transversalidade: Hipóteses sobre a transgressão de fronteiras. In: Estudos Teológicos. Ano 39, São Leopoldo: EST, 1999/2, p. 105-122. - CONSELHO MUNDIAL DE IGREJAS / COMISSÃO DE FÉ E CONSTI- TUIÇÃO / CONIC. Um tesouro em vasos de argila. Instrumento para uma reflexão ecumência sobre a hermenêutica. São Paulo: Ed. Paulus, 2000. - HORTAL, Jesus. E haverá um só rebanho. São Paulo: Ed. Loyola, 1989, p. 97-131. - LANDIM, Lcilah (org.). Sinais dos Tempos - igrejas e seitas no BrasilCadernos do ISER 21, Rio de Janeiro, 1989. - . Sinais dos Tempos - tradições religiosas no Brasil. Rio de Janeiro. Cadernos do ISER 22, 1989. - . Sinais dos Tempos — diversidade religiosa no Brasil. Rio de Janeiro. Cadernos do ISER 23, 1990. - MENDONÇA, Antonio Gouvea. O Celeste Porvir: A inserção do Protes- tantismo no Brasil. São Paulo: Ed. Paulinas, 1984. - . O não-ecumenismo no Brasil. In: Tempo e Presença. Ano 20, n° 301, Rio de Janeiro: Koinonia, 1998, p. 16-18. - MIGUEZ BONINO, Jose. Rostos do protestantismo latino-americano. São Leopoldo: Ed. Sinodal, 2001. - WULFHORST, Ingo. Religiões, novas religiões e seitas no Brasil. In: Pre- sença Luterana, G Brakemeicr (org.), São Leopoldo: Ed. Sinodal, 1990, p. 77-92. - ZWETSCH, Roberto. Perspectivas de diálogo entre fé indígena e fé cristã. In: Estudos Teológicos. Ano 36. São Leopoldo: EST, 1996/1, p. 45-60. OS INÍCIOS DO MOVIMENTO ECUMÊNICO MODERNO - PIONEIRISMO PROTESTANTE 1. O movimento ecumênico moderno surge como reação à frag- mentação da Igreja de Jesus Cristo. E sinal de inconformidade com ela. De certa forma encerra o período confessional, isto c, o da divisão regional do mundo por "confissões". A guerra dos trinta anos (1618- 1648) havia sido a última tentativa de restabelecer, pela força, a unidade da cristandade, tentativa esta que redundou em terrível fracasso. Desde então o norte era predominantemente protestante, o sul católico, o leste ortodoxo, o oeste anglicano c calvinista. Mas a internacionalização do mundo que ocorre no século XIX já não mais permite a separação geo- gráfica das confissões. Faz com que colidam, principalmente nas áreas missionárias da Africa e da Ásia. Surgem daí importantes impulsos para o ecumenismo. 2. A internacionalização do planeta é consequência das conquistas tecnológicas que encurtam as distâncias, bem como da migração inter- continental de grandes parcelas da população mundial. Trata-se do avanço da globalização, iniciada com a descoberta das Américas no século XV e fortemente acelerada no século XIX. A máquina altera os meios dc produção, de transporte c de comunicação. Faziam-se necessárias orga- nizações internacionais para fazer frente aos problemas e às necessida- des de um mundo progressivamente menor. Entre as promoções mencio- namos: 3 2 PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeier - a primeira Exposição Mundial, em 1851; - a fundação da Cruz Vermelha, em 1864; - a criação da Associação para o Direito Internacional, em 1873; - os Jogos Olímpicos Modernos, realizados pela primeira vez em 1896. Infelizmente também os conflitos políticos tomar-se-iam interna- cionais. As guerras do século XX, sobretudo as de 1914-1918 e de 1939- 1945, teriam proporções mundiais, com prejuízos inéditos até então. 3. Também o colonialismo é sintoma dessa internacionaliza- ção. Demonstra a hegemonia européia que, após sofrer a perda das Américas em virtude da emancipação das mesmas, se apodera da África e da Ásia como aquele resto do mundo considerado ainda "sem dono". Promoveu a mescla dos povos, a missão cristã, o intercâmbio cultural. Da mesma forma, porém, fez colidir os interesses colonialistas na exploração das riquezas das regiões ocupadas. Nesse contexto atuam as sociedades missionárias. Seria injusto rotular a admirável e abnegada obra das mesmas indiscriminadamente de "colonialismo cristão". Por demais vezes, as missões entraram em choque com as forças coloniza- doras, exigindo a observância de princípios evangélicos e sua primazia sobre os brutais interesses econômicos. Ainda assim, é verdade que os impérios coloniais propiciaram a expansão da missão. Simultaneamen- te, aguçaram a consciência das dolorosas divisões na própria cristanda- d e / Num mundo crescentemente global e, todavia, fragmentado, iria emergir, quase que naturalmente, a idéia ecumênica. A/A primeira reação das Igrejas à internacionalização consistiu na constituição de estruturas igualmente globais. Surgem no século XIX c inícios do século XX as federações e alianças eclesiásticas. São as Igrejas protestantes que buscam a comunhãocom seus irmãos e irmãs de fé espalhados pelo mundo afora com o intuito de conjugar o testemu- nho. Eis alguns exemplos: - em 1867: Organiza-se a "Comunhão Anglicana" - cm 1875: Cria-se a "Aliança Mundial de Igrejas Reformadas" Os INÍCIOS DO MOVIMENTO ECUMÉNICO MODERNO - PIONEIRISMO PROTESTANTE 3 3 - em 1881: Juntam-se os metodistas na "Conferência Ecumênica Metodista" - em 1905: Constitui-se a Federação Batista Mundial - em 1923: E criada a "Convenção Luterana Mundial". Não se trata da fundação de Igrejas. As estruturas são de natureza antes "federativa" entre Igrejas irmãs. Nisso distinguc-sc o protestan- tismo da Igreja Católica com sua "estrutura planetária". Esta celebra no Concílio Vaticano I, em 1870, pública demonstração de sua "internacio- nalidadc". Proclama solenemente a infalibilidade papal e consagra assim o centralismo eclesiástico como decidida resposta aos avanços do pluralismo e individualismo da modernidade. Em todo esse cenário, o imperativo de unir é sentido com bem maior premência pelo protestan- tismo, no que reside seguramente um dos motivos para seu pioneirismo ecumênico. As afinidades doutrinais e a magnitude dos desafios a enfren- tar questionavam a permanência das divisões lesivas no corpo da cris- tandade. 5. Os protestantes, porém, queriam mais do que simples associa- ções confessionais. As instituições eclesiásticas, é verdade, ficaram inicialmente à margem das iniciativas. O protagonismo coube a pes- soas leigas a exemplo do metodista John Mott c do anglicano Joseph Oldham, ou a movimentos como a "Aliança Evangélica", fundada cm 1846 com o nome de "Liga Fraternal de Oração c Combate à Descrença". Sejam mencionadas, ainda, a "Associação Cristãs de Jovens", fundada em 1855, e as "Sociedades Bíblicas". Entidades como essas prepararam o ecumenismo, transpondo as tradicionais fronteiras denominacionais e promovendo a cooperação. 6. É das sociedades missionárias que partem os mais fortes impul- sos para a união. Mas há outras causas na raiz do sonho ecumênico. Destaca-se o problema da economia e da justiça social em meio ao capi- talismo emergente. A pauperização de amplas camadas da população devido à exploração selvagem do trabalho, o êxodo rural, o crescimento do proletariado e da miséria nos centros urbanos sensibilizava as cons- ciências e clamava por uma reação das Igrejas. O embate ideológico das 3 4 PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakciiteier forças restauradoras após a revolução francesa de 1789-94 e dos movi- mentos revolucionários a exemplo do comunista de Karl Marx necessa- riamente provocava a fé cristã./Algo semelhante vale para o avanço do ateísmo dito científico num mundo progressivamente secular. As conse- qüentes perdas para a fé eram motivo de inquietitude não só de uma confissão ou de uma Igreja.)Sejam mencionadas, enfim, as ameaças à paz mediante exacerbado nacionalismo e militarismo nos países euro- peus que mais tarde, de fato, iriam detonar em horríveis banhos de san- gueiTodo esse quadro constrangia os cristãos c os animava ajuntar for- ças c vozes. O evangelho exigia uma resposta comum da cristandade. 7/Marco inicial do movimento ecumênico 6 a Conferência Inter- nacional sobre Missão que teve lugar em Edimburgo, Escócia, em 1910.)Não era essa a primeira conferência desse tipo, mas a maior c a mais representadva.)Ela é considerada o divisor de águas na história do ecumenismo. O que antecedeu eram preliminares, o que sucede c con- cretização de uma visão c encaminhamento de estruturas.ÍPretendia-se a coordenação da missão principalmente na Ásia c na ÁfricaXEntretanto, o resultado foi muito além. Representantes das Igrejas Ortodoxase da Católico-Romana ainda estão ausentes./Reúnem-se, na oportunidade, mais que 1.200 delegados de Sociedades Missionárias protestantes; A Conferência estava marcada por forte otimismo missionário. Aprego- ava-se a "evangelização do mundo ainda nesta geração", uma esperança que frustrou. A importância da convenção, porém, reside nos incentivos ecumênicos que deu. As próprias Igrejas demoraram cm acolher a idéia. Mas a semente estava lançada. Mais e mais sentia-se a necessidade de não só organizar a tarefa missionária, e sim de também falar sobre assuntos de doutrina e de promover ações conjuntas em questões práti- cas entre as Igrejas. 8. Naccram dessa Conferência diversas organizações que dariam origem ao Conselho Mundial de Igrejas. São elas: a. - O Conselho Missionário Internacional, constituído legalmente em 1921, nos Estados Unidos\Seu objetivo consistia no apoio e na coordenação das inciativas missionárias em nível global. Os INÍCIOS DO MOVIMENTO ECUMÊNICO MODERNO - PIONEIRISMO PROTESTANTE 35 Cabe ressaltar que isto deveria acontecer no simultâneo esfor- ço por evangelização e por justiça no relacionamento entre os povos e as raças. b. O movimento para o cristianismo prático, chamado "Vida e Ação" ("Life and Work").iO movimento foi uma resposta ecumê- nica imediata aos horrores da Primeira Guerra Mundial, tendo na promoção dajpaz uma de suas grandes metas) c. (O movimento "Fé e Ordem"'i("Faith and Order", chamado em português também "Fé e Constituição"), que se propõe o diálo- go teológico e o acerto das Igrejas cm questões de doutrina. A ideia de se criar tal foro remonta ao bispo anglicano Charles Brent. Ainda em Edimburgo, ele se convenceu de ser impossí- vel aproximar as Igrejas sem a remoção dos impedimentos dou- trinais da unidade. 9. No período entre a Conferência de Edimburgo e a fundação do Conselho Mundial de Igrejas a idéia ecumênica amadurece, sendo abra- çada crescentemente pelas lideranças eclesiásticas/Ém 1919, na Suécia, o bispo luterano Nathan Sõderblom lança, pela primeria vez, a sugestão da criação de um "Conselho Ecumênico de Igrejas".)Ela caiu em solo fértil. Era forte o anseio por maior unidade entre as Igrejas cristãs, nutri- do entre outras pelas turbulências de um mundo em crise. Associa-se também, ainda que de forma tímida c parcialmente relutante, a Igreja Ortodoxa.\Em 1920, o Patriarca Ecumênico de Constantinopla envia uma encíclica na qual propõe uma "Koinonia ton Ekklesion" (Comu- nhão das Igrejas). Naquele mesmo ano, a Conferência de Lambeth, rea- lizada pela Igreja Anglicana, avança mais um passo: Conclama à reuni- ficação da cristandade.'5ão estes apenas alguns exemplos do entusiasmo com que vinha sendo acolhida a idéia ecumênica na época. Enquanto isto, a Igreja Católica Romana se mantinha afastada do movimento. Iria despertar para o mesmo somente decênios mais tarde"^ 10. A missão, a ação e a doutrina, cada qual com suas respecti- vas organizações, são estas as principais veias que iriam confluir no Conselho Mundial de Igrejas (CMI). Há outros movimentos que a eles se unem, a exemplo do "Conselho Mundial de Educação Cristã", criado 36 PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeier em 1947 a partir da liga mundial das escolas dominicais, existente desde 1907. Ademais, não devem ser esquecidas as iniciativas de grupos lei- gos./ Jovens, mulheres e outros têm participação decisiva no desabro- char e crescer da idéia ecumênica^E todavia, os movimentos em torno da missão, da ação c da doutrina constituem algo como as motivações fundamentais do ecumenismo nas Igrejas) "Fé e Ordem" pretende o testemunho conjunto, a fé professada de comum acordo. Trabalha a teo- logia, a doutrina. Parte da convicção de que unidade necessita de um consenso básico no credo. Promove o diálogo interconfessional. O movi- mento "Vida eAção" quer conjugar os esforços diaconais das Igrejas, a serviço da criatura sofrida. Tem em vista a praxis eclesial, convicta de ela ser poderosa força de união. As missões, enfim, procuram a sintonia no cumprimento do mandato de levar o evangelho aos confins da terra. Pretendem evitar a perda de crédito e demonstrar coerência evangélica. Em todos estes casos havia dificuldades a vencer. "Fé e Ordem" celebra duas grandes conferências internacionais, a primeira em 1927, em Lau- sanne (Suíça), a segunda em 1937, em Edimburgo (Escócia). Decide aderir à sugestão de criar uma comissão preparatória do "Conselho Mundial de Igrejas" (CMI). Algo semelhante vale para o movimento "Vida c Ação". Tem a sua primeira conferência cm 1925, em Estocolmo, Suécia, a segunda em 1937, cm Oxford, Inglaterra. Manifesta igualmen- te seu apoio à criação de um Conselho Mundial na oportunidade. 11. Quem fica fora, por enquanto, é o Conselho Missionário Inter- nacional. Realiza, também ele, Conferências Internacionais, em Jerusa- lém (1928) e Tambaram, índia (1938). Mas ainda não se vê em condi- ções de se integrar no Conselho em formação. O que seria "missão cristã", isto já naquela época era controvertido. A adesão iria acontecer somente em 1961, na terceira Assembléia Geral do CMI, em Nova Dclhi (índia). Mesmo assim permanece verdade que a missão, a ação social e o diálogo doutrinal, esses três, são o tripé em que o projeto do CMI sc assenta e a partir do qual se desenvolve. Pretende-se a missão conjun- ta, a ação conjunta, o testemunho conjunto. 12. Seja anotado à margem que o movimento ecumênico, na pri- meira parte do século XX, era uma promoção predominantemente Os INÍCIOS DO MOVIMENTO ECUMÊNICO MODERNO - PIONEIRISMO PROTESTANTE 3 7 européia e norte-americana. As Igrejas jovens, do assim chamado ter- ceiro mundo, eram antes espectadores do que parceiras. )Isto começa a mudar já em 1928, na Conferência sobre Missão, na índia. Percebe-se ser impossível conceber "missão cirstã" como via de mão única, sendo uns os permanentes "doadores" c outros os "receptores". Somente mutua- lidade promete o bom êxito. Desenvolvimento semelhante pode-se obser- var no que diz respeito ao ecumenismo. De uma promoção de entidades cristãs do hemisfério norte iria gradativamente transformar-se num movi- mento global, adquirindo feição de fato "ecumênica". Isto não diminui em nada a validade da iniciativa. Mostra, porém, que "ecumenismo", também sob este aspecto, é um processo de aprendizagem. Literatura: - BUSS, Theo. El Movimiento Ecuménico en la perspectiva de Ia liberación. La Paz: Ed. Hisbol / Quito (CLAI), 1996, p. 247s. - DIAS, Zwinglio Mota. O movimento ecumênico - história e significado. In: Numen. Juiz de Fora: Ed. UFJF. V 1, n° 1, 1998, p. 127-163. - KAICK, Baldur van/RAISER, Konrad. Movimento Ecumênico - História e Desafios. São Leopoldo: CECA, s.d. - KRÜGER, Hanfried. O Conselho Mundial de Igrejas - História do Movi- mento Ecumênico. São Leopoldo: Ed. Sinodal, 1987, p. 10s. - RAMALHO, Jether Pereira. Meio século de compromisso ecumênico. In: Tempo e Presença. Rio de Janeiro: Koinonia, Ano 20, n° 301, 1998, p. 10-13. BREVE HISTÓRIA DO CONSELHO MUNDIAL DE IGREJAS 1. A fundação do CMI estava prevista para o ano de 1941. Mas a segunda guerra mundial forçou o adiamento. Somente sete anos mais tarde, cm 1948, na cidade de Amsterdã (Holanda), foi possível consti- tuir o que, desde então, seria a mais importante entidade ecumênica. Estiveram representadas 147 Igrejas de todo o mundo, predominante- mente protestantes. Na Assembleia Constituinte a Igreja Católica não se fez presente nem mesmo por observadores. Também a representa- ção das Igrejas Ortodoxas, por razões diversas, era fraca, valendo o mesmo para as Igrejas da Africa, Asia e América Latina. Mesmo assim, tem sido dado um passo de grande envergadura. Igrejas cristãs reagiram ao processo da mundial i zação mediante a criação de uma estrutura supra-cclesial.O Conselho Mundial de Igrejas tem sido c continua sendo órgão integrador de numerosas iniciativas ecumêni- cas até então isoladas, abrigando-as sob o mesmo teto c facilitando- lhcs a cooperação. Ademais, as Igrejas tinham doravante um instru- mento de expressão internacional que iria atrair a filiação de sempre maior número de Igrejas. Prometia garantir-lhes presença marcante no cenário internacional, além de maior eficácia no combale aos males deste mundo. Para tanto é sintomático o tema da Assembleia Consti- tuinte: "A desordem do mundo e o desígnio de Deus". A este tema corresponde a visão da "sociedade responsável" apregoada como meta a comprometer os povos. A constituição do CMI se deu numa Europa terrivelmente devastada e num mundo polarizado na guerra fria entre leste c oeste. 4 0 PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRIIO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakeineier 2. A fundação do CMI c certamente um dos mais notáveis eventos na historia da Igreja dos últimos séculos. Ainda assim, para a devida compreensão deste órgão é preciso considerar o seguinte: a. O CMI representa apenas urna parte da ecamene. Não está filiada a ele a Igreja Católico-Romana. Somente a "Comissão Fé e Ordem" conta com a participação plena da mesma. Man- tém-se afastada também a maioria das Igrejas pentecostais, batistas e outras. As Igrejas ortodoxas, por sua vez, não têm atuado de forma unânime. Enquanto algumas se engajaram desde cedo, outras contemplaram o ecumenismo cm atitude de ceticismo. Isto muda em 1961, por ocasião da III Assem- bléia Geral do CMI, em Nova Delhi, índia, quando as Igrejas ortodoxas de vários países socialistas resolveram filiar-se. Mesmo assim, a colaboração dessas Igrejas tem sido marcada por cautela e mesmo reservas frente a uma abertura ecumêni- ca mais corajosa. b. O CMI não pretende ser uma super-igreja. Define-se a si mes- mo como comunhão de Igrejas "que, de acordo com a Sagrada Escritura, confessam Jesus Cristo Deus e Salvador e que, por isto, pretendem cumprir conjuntamente o mandato para o qual foram chamados, para a glória de Deus, Pai, Filho e Espírito Santo." São estes os termos da Constituição do CMI. Ele não substitui as Igrcjas-membro em suas funções. Quer ser entendi- do antes como um foro de encontros e de cooperação. Não deve ser confundido com um órgão de "jurisdição ecumênica". Para a auto-compreensão do CMI permanece fundaméntala "De- claração de Toronto", de 1950, resolvida pelo Comitê Central. Ela traz o título: "A Igreja, as Igrejas e o Conselho Mundial de Igrejas." Nela sc afirma que o CMI não relativiza as eclcsiolo- gias de suas Igrejas-membro nem pretende impor-lhes uma nova. Quer conjugar, não fusionar. Sob tal ótica, o CMI continua sendo um modelo dc comunhão eclesial, permitindo às Igrejas a pre- servação de sua identidade, e, simultaneamente, irmanando-as numa grande família. Pretende somar os esforços e ensaiar passos concretos rumo à unidade. BREVE HISTÓRIA DO CONSELHO MUNDIAL DE IGRFJAS 4 ] c. Os grandes movimentos originantes do CMI continuam ten- do dentro dele alguma vida própria. A Constituição compro- mete a entidade expressamente com a continuação dos traba- lhos dc "Fé e Ordem", de "Vida e Ação", do "Conselho Missionário Internacional" c do "Conselho Mundial de Educa- ção Cristã". Isto às vezes significa tensão. Basta lembrar que em 1925, em Estocolmo, o movimento "Vida e Ação" havia preconizado: "A doutrina divide, enquanto a ação une". Isto não soa bem aos ouvidos da Comissão "Fé e Ordem", integra- da no CMI, mas não extinta. Vários decênios depois, a pergun- ta pelo peso cabível à questão doutrinal, dc um lado, e à práxis eclesial, dc outro, continua a agitar os ânimos. Algo semelhan- te vale para a conceituação da missão, assunto em que de modo algum há unanimidade. Considerando-sc, ainda, o confronto de expectativas tão variadas como as das Igrejas do norte e do sul, provindas de contextos e realidades sociais e culturais extremamente diversas, tem-se uma noção das dificuldades a vencer no caminho a uma "comunhão de Igrejas". 3. Na estrutura do CMI, cuja sede administrativa se encontra em Genebra, na Suíça, se exprime nitidamente a vinculação eclesiástica. Autoridade máxima é a Assembléia Geral que, em períodos normais de 7 a 8 anos, reúne os representantes das Igrejas-membro e que define o rumo dos trabalhos. "Presidente" é um Moderador que atua em regime de tempo parcial. Nos intervalos entre as Assembléias, o CMI é drigido por um Comitê Central e, nos interstícios de reuniões do mesmo, por um Comitê Executivo, aos quais é responsávpl a Secretaria Geral. Figura destacada na constituição do CMI tem sido o primeiro Secretário Geral, o holandês Willcm Visser't Hooft. Seguiram-lhe, no cargo, Eugene Car- son Blake, Philip Potter, Emílio Castro, Konrad Raiser c, atualmente, Samuel Kobia, todos à sua maneira personagens marcantes. Também no mais, o CMI tem lido colaboradores de grande notabilidade. 4. Os programas se agrupam em torno de cinco blocos temáti- cos, nos quais se espelham os impulsos que estão na origem do CMI . São eles: 4 2 PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeier a. "Fé e Ordem". O trabalho visa a promoção da unidade da Igre- ja mediante o fortalecimento da responsabilidade comum na teologia, buscando consensos em assuntos polêmicos. b. "Missão e educação ecumênica". Os programas dessa área se propõem à (re) conceituação de missão e evangelização num mundo carente de cura e reconciliação, conectando a preocupa- ção à educação ecumênica das pessoas. c. "Justiça, paz e integridade da criação". Nos horizontes do antigo processo conciliar merecem particular atenção os efei- tos da globalização da economia, a meta de um desenvolvi- mento sustentável, o projeto de uma ética planetária e outros. d. "Assuntos internacionais, paz e segurança humana". A pro- liferação da violência, do terror e do ódio exigem uma estraté- gia "ecumênica" de "pacificação", de desarmamento e de pro- moção dos direitos humanos. e. "Diaconia e solidariedade". Este programa procura incentivar os esforços diaconais das Igrejas em situações de emergência c diante dos flagelos que assolam a humanidade. A temática inclui, não por último, o diálogo interreligioso. Todos esses blocos têm programas coordenados, mas próprios. Realizam encontros c Conferências Mundiais. A última Conferência sobre Missão, por exemplo, realizou-se em Salvador da Bahia, 1996, sob o tema: "Chamados a uma só esperança - o evangelho cm diferentes culturas." Já está programada a próxima a ter lugar em 2005, sob o tema: "Vem, Espírito Santo, cura e reconcilia. Em Cristo, chamados para uma comunhão reconciliadora e terapêutica." 5. Até o momento tiveram lugar oito Assembléias Gerais, em diversos continentes, tendo cada qual características específicas: 1.1948 - Amstcrclam (Holanda) Tema: A desordem do mundo c o desígnio de Deus. 2.1954 - Evanston (EUA) Tema: Jesus Cristo, a esperança d o mundo. 3.1961 - Nova Delhi (índia) Tema: Jesus Cristo, a luz do mundo. 4.1968 - Uppsala (Suécia) Tema: Eis que faço novas todas as coisas. 5.1975 - Nairobi (Quênia) Tema: Jesus Cristo une e liberta. BREVE HISTÓRIA DO CONSELHO MUNDIAL DE IGREJAS 4 3 6.1983 - Vancouver (Canadá) Tema: Jesus Cristo, a vida do mundo. 7.1991 - Canberra (Austrália) Tema: Vem, Espírito Santo, renova a criação. 8.1998 - Harare (Zimbabwc) Tema: Buscai a Deus na alegria da esperança. A nona Assembléia Geral está planejada para o ano de 2006 e terá como sede a cidade de Porto Alegre, Brasil. Realizar-se-á sob o tema: "Deus, cm tua graça, transforma o mundo." 6. Os temas das Assembléias são transparentes para as ênfases específicas c para as preocupações em pauta. São documentos de um período de história da Igreja. Mereceriam uma abordagem à parte.O tema da Assembléia de Uppsala, por exemplo, é reflexo do "otimis- mo revolucionário" predominante na década de 1960 a 1970. O de Nairobi demonstra o esforço por reconciliação entre os segmentos "con- servadores" c "libertadores". O de Canberra dirige a atenção pela pri- meira vez ao terceiro artigo da fé. Isto acontece num mundo progressi- vamente multicultural. Uma das assembléias mais importantes tem sido, sem dúvida alguma, a de Nova Delhi. Isto não só por causa da adesão das Igrejas Ortodoxas da Rússia, da Romênia e da Polônia, nem mes- mo pela integração do Conselho Missionário Internacional ocorrida na oportunidade. Não menos importantes foram a adoção de uma "Fór- mula de Unidade" de irrestrita validade até o presente, bem como a decisão dc maior aproximação da Igreja ao mundo. Pode-se ver nisto um paralelo ao projeto do "aggiornamento" da Igreja Católico-Roma- na, lançado pelo papa João XXXIII. Aliás, o tema "Cristo a luz do mundo" de certa forma antecipa o início da constituição dogmática do Concílio Vaticano II "Lumen gentium quod sit Jesus Christus" (= a luz dos povos que c Jesus Cristo). Nova Delhi incentivou a realização de uma "Conferência Mundial sobre Igreja e Sociedade" que teve lugar em 1966, desencadeando apaixonada discussão sobre a tarefa da Igre- ja no mundo. Todas as assembléias, apesar dos destaques especiais, colcoaram balizas, bem como setas indicadoras para a trajetória do ecumenismo mundial. Trata-se de soletrar e concretizar o significado da "koinonia", característica do ser da Igreja, como bem o afirmou a Assembléia dc Nova Delhi c como o relembrou programáticamente a de Canberra. 44 PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍRITO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakenwier 7. O Conselho Mundial de Igrejas congrega hoje mais de 340 Igre- jas-membro, em cerca de 120 países, portanto mais do que o dobro do que em 1948. Infelizmente há também quem novamente se retire. Incon- formados com o curso que a discussão sobre a missão estava tomando nos anos sessenta, separaram-se depois de Uppsala os evangelicais do CMI. Convocaram, para o ano de 1974 um grande Congresso em Lau- sanne, Suíça, onde se celebrou o "Pacto de Lausanne". Portanto, separa- ram-se os "evangelicais" dos "ecumênicos", como se dizia. Entremen- tes a polaridade amainou, embora não fosse de todo eliminada. Projeto particularmente polêmico tem sido o programa de combate ao racismo. Em 1969 a Comissão Central decide criar um fundo de apoio financeiro a grupos em luta contra racismo e apartheid. Embora fosse expressa- mente interditado o uso das verbas para a aquisição de armas e fins militares, a decisão provocou alvoroço. Por outro lado, porém, granjeou simpatias junto às Igrejas negras, evidenciando que a costumeira conde- nação do racismo por parte do CMI não se limitava ao discurso. O CMI sofreu muitas acusações. Dizia-se que estaria "cego no olho esquerdo" por criticar a exploração capitalista em termos mais enérgicos do que a violação dos direitos humanos no comunismo. Na mesma linha acusa- va-se o CMI de confundir o reino de Deus com um projeto social. De um modo geral deve-se constatar que, no CMI, discutiam-se as questões melindrosas dentro das prórpias Igrejas-membro. De fato, o CMI tem desempenhado a função de uma estação experimental do ecumenis- mo e de um laboratório de respostas corajosas da cristandade aos pro- blemas de um mundo em crise. Em sua trajetória, o barco ecumênico enfrentou muitas tempestades, ameaçando, não raras vezes, pô-lo a pique. 8. Além das polêmicas, porém, o CMI conseguiu avançar em muitas áreas cruciais e brindar as Igrejas com valiosos impulsos. Isto vale em primeiro lugar para a área social, cabendo proeminente desta- que ao "Processo Conciliar de Mútuo Compromisso para Justiça, Paz e Integridade da Criação", deflagrado em 1983 de acordo com as tra- dições de "Vida e Ação". Mobilizou as Igrejas em torno de questões vitais da humanidade, conduzindo à "Convocação Mundial de Seoul" (Coréia), em 1990. O processo de modo algum está encerrado, visto BREVE HISTÓRIA DO CONSELHO MUNDIAL DE IORFJAS 4 5 que as ameaças à justiça global, à paz e ao meio ambiente sofreram preocupante agravamento num mundo vitimado pela obsessão do com- bate internacional ao terror com meios apenas militares. Novas inicia- tivas foram tomadas pelo CMI, a exemplo da "Década da Solidarie- dade com as Mulheres" (1988-1998) e da "Década da Superação da Violência", proclamada na VIII Assembléia em Harare. Os programas convidam a uma demonstração de cristianismo prático, de engajamen- to ecumênico em questões de vital interesse da humanidade e de voz profética na sociedade. O CMI tem atuado como vanguarda nesses e em outros assuntos. 9. Além dos esforços por unir as Igrejas pela ação, o CMI tem produzido importantíssimos documentos de reflexão e de consenso teológico. Isto principalmente pelo trabalho da Comissão "Fé e Ordem ". Teve forte repercussão o assim chamado "Documento de Lima" sobre "Batismo, Eucaristia e Ministério" (BEM), uma convergência doutrinal, elaborada em 1982, assinada também pela Igreja Católica em sua qualidade de membro oficial da Comissão. Naquele mesmo ano, a Comissão Central aprovou um pronunciamento com o título "Missão e Evangelização - uma afirmação ecumênica." As Igrejas necessitam de unidade, e a humanidade também. Mas o que significa unidade em ter- mos precisos e concretos? Desde a Assembléia de Canberra, prefere-se falar em "comunhão" (koinonia). E termo dinâmico, de qualificado conteúdo teológico. Com ele se ocupou intensamente a V Conferência Mundial de "Fé c Ordem", em Santiago de Compostela, Espanha, 1993. O que se pretende é comunhão na fé, na vivência e no testemunho. E, no entanto, o conceito da comunhão abre algum espaço para a diversidade. Isto não significa renúncia à meta da unidade. Pois esta está implícita na comunhão. Conseqüentemente são grandes os esforços por construir um patamar dogmático comum, do que são exemplos instrutivos o projeto "A Confissão da Fé Apostólica - explicação ecumênica da fé apostólica segundo o Credo Niceno-Constantinopolitano", o estudo sobre "Igreja e Mundo - a unidade da Igreja e a renovação da comunidade humana ", ambos de 1990, da autoria de "Fé c Ordem". O CMI, pela sua própria existência, coloca às Igrejas c à sociedade global o imperativo da convi- vência "ecumênica", cm paz e mulualidadc. 4 6 PRESERVANDO A UNIDADE DO ESPÍKTIO NO VÍNCULO DA PAZ - Gottfried Brakemeier 10. Inversamente é flagrante que ao próprio Conselho Muni- ciai de Igrejas falta de momento uma visão precisa do que isto po- deria significar. Os modelos de unidade elaborados no decorrer da caminhada não conseguiram produzir os desejados efeitos estruturais. Falta a oficialização da experiência ecumênica por parte das Igrejas. A Igreja Católica coopera em determinados assuntos, mas resiste à idéia da filiação plena. Não existe por ora concepção realmente consensual do que seja uma ética social ecumênica. Ainda não podemos comungar juntos na mesa do Senhor. As diferenças continuam a barrar a comu- nhão. Isto não só nas Igrejas. Pergunta-se em termos gerais: Como con- viver num mundo cada vez mais plural? Talvez seja mera coincidência que o CMI tenha sido fundado no mesmo ano da Organização das Nações Unidas, a ONU. Também ela persegue a meta da unidade, da reconciliação, da paz, ainda que, evidentemente, em outro patamar e com outros parceiros. E uma organização política, sendo por isto ilíci- to comparar o CMI e a ONU. Mas é típico que também a ONU se encontre em crise. Como conviver num mundo a um só tempo global e plural é a inlerrogante crucial da humanidade neste início de terceiro milênio. O conflito entre as culturas, o renascer dos fundamentalismos religiosos, a concorrência mortífera na economia, as guerras étnicas, tudo isto requer uma resposta
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