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A clínica na saúde mental

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A clínica na saúde mental 
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Márcia Amara! Montezuma 
Foi-se o tempo em que a clínica da psicanálise se opunha à clínica da psiquiatria. O fato é que praticamos e precisamos das duas, como recursos para minorar o sofrimento das pessoas que nos procuram. O próprio Freud dizia que: 
“O que se opõe à psicanálise não é a psiquiatria, mas os psiquiatras. A psicanálise relaciona-se com a psiquiatria aproximadamente como a histologia se relaciona com a anatomia: uma estuda as formas externas dos órgãos, a outra estuda sua estruturação em tecidos e células” (Freud 1917c: 301). Ele jamais descartou a fenomenologia em seus estudos, e mantinha uma profícua interlocução com a psiquiatria. Bleuler, por exemplo, aproveitou as contribuições de Freud para estabelecer sua terminologia: o termo autismo vem do termo freudiano auto-erotismo. Além disso, a histeria indiscutivelmente ganhou novo estatuto a partir da psicanálise, assim como podemos encontrar inúmeros pontos dc contato na teorização da psicose. 
Se em certo momento foi necessário que o discurso psicanalítico fizesse oposição ao discurso psiquiátrico, isso se deu em função da iatrogenia e dos abusos decorrentes da prática psiquiátrica no que diz respeito aos direitos humanos, cerceados pelo modelo manicomial de atendimento, que gerava a exclusão do sujeito tanto de sua comunidade, quanto do próprio tratamento que, em princípio, deveria inclui-lo. Obviamente, a psicanálise não cabe nesse modo, pois, como clínica do particular, leva o sujeito a se posicionar permanentemente e, conseqüentemente, a se incluir não só em seu próprio tratamento como também em seu contexto social. As iniciativas para marcar a diferença radical entre esses modelos, e para fazer a psicanálise ocupar espaço nas instituições de saúde pública, levaram a um confronto teórico e político, que resultou numa mudança efetiva de caráter nacional no atendimento psiquiátrico. 
Dc modo geral, não vemos mais os “porões da loucura” nas instituições públicas. Apesar de ainda existirem muitas controvérsias de ambos os lados, os campos da psiquiatria e da psicanálise estão bem delimitados, conforme suas diferenças, limites e aproximações. A legislação da reforma psiquiátrica tem vários pontos de sua fundamentação ancorados em contribuições da psicanálise. O momento, portanto, não é mais dc ofensiva generalizada, e sim de busca dc uma formalização da clínica que é praticada na saúde mental e que se baseia em critérios, conceitos e estratégias psicanalíticos e psiquiátricos, em 
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conformidade com uma ética comum, determinada pelo reconhecimento do sujeito. 
Para essa formalização, proponho um retorno não apenas à clínica, mas também aos clássicos, já que essas orientações são fundamentais para a definição do que é saúde mental. 
Temos empregado o termo saúde mental para nos referirmos ora ao atendimento “psi” em geral, ora ao atendimento “psi” no serviço público. Embora a diferença entre eles nem sempre seja tão grande quanto se pensa, a saúde mental pode ser pensada conforme dois paradigmas, a partir dos quais se define o tratamento possível, de acordo com os limites de quem atende e de onde se atende, em consonância com a demanda e o desejo do sujeito que o procura. 
O primeiro paradigma é representado pela definição da Organização Mundial de Saúde: o bem-estar físico, psíquico e social, e a suposição da possibilidade de uma perfeita harmonia. O segundo se baseia em Freud, para quem o mal-estar é inarredável e estruturante do ser humano. Para Freud, o ser humano não é perfeito porque está estruturado pela linguagem e tem — ao contrário dos animajs, que respondem apenas pela natureza de seus instintos —, direitos e deveres. O que impede a mens sana in corpore sano é a existência desarmônica do pensamento, da pulsão e do desejo. Na medicina, a definição de saúde é outra: o silêncio dos órgãos. Essa definição não pode ser aplicada ao mental, uma vez que referido a esse registro está o inconsciente que não se cala jamais. 
Lacan sugere que só existe saúde mental nos animais. Para falar dos três registros — real, simbólico e imaginário —, descreve a diferença que a cor vermelha toma para o sujeito conforme sua estrutura, seu desejo etc., e como ela é tomada por um animal, no caso, o pintarroxo. Um psicótico com idéias de auto-referência diria que o carro vermelho que acabou de passar na rua não o fez por acaso, naquele exato momento, e daria ao fato uma significação absolutamente particular. Todo pintarroxo, ao contrário, repete o mesmo comportamento de exibir o peito vermelho ao se deparar com um semelhante, como maneira de demarcar seu território. “O vermelho tem aqui uma função imaginária, da ordem das relações de compreensão”. 
Tentamos reduzir dois discursos essencialmente diferentes, se não opostos, a paradigmas que chamaremos respectivamente de clínica do olhar e clínica da escuta, a fim de facilitar o exercício de formalização da clínica na saúde mental. Sabemos que o exercício dessa prática não é apenas a psicanálise propriamente dita, a intervenção psiquiátrica sintomatológica ou um trabalho exclusivo de reabilitação social. Essas distintas abordagens do doente, se utilizadas isoladamente, não têm chance de eficácia. Além disso, queremos incluir em nossas elaborações outros recursos com os quais contamos: psicologia, terapia ocupacional, assistência social e enfermagem. Queremos, na verdade, estabelecer uma forma ética de atendimento, não import- d mie área de atuação ela provenha. 
Clínica do olhar 
Do lado da função imaginária, das relações de compreensão, generalização e concepção de totalidade do ser e de seu bem-estar, está a clínica do olhar, termo ligado ao trabalho de Foucault. Em seu livro O nascimento da clínica, ele partiu de um texto de 1807: “E preciso, tanto quanto ela autoriza, tornar a ciência ocular”. Tantos poderes sobre a obscuridade são formas através das quais se instaura a soberania do olhar : “olho que sabe e que decide, olho que rege”. A clínica médica a que o autor se refere não é a primeira tentativa de ordenar uma ciência pelo olhar; a história natural já analisava e classificava os seres naturais segundo suas características visíveis. Nela, contudo, a doença passa a se apresentar ao observador como sintomas e signos, o que introduz um código de saber que nos faz lembrar de Saussure. O significante, correspondendo aos sinais e sintomas, está diretamente ligado ao significado. Dor, rubor, calor, tumor e edema juntos significam inflamação. 
A clínica, portanto, abriu um campo que se tornou visível pela introdução da linguagem no domínio do biológico. E, desde então, não se parou mais de nomear. Os nomes se antecipam à escuta do observador, que, pelo olhar, já porta um saber, tornado prévio. Olhar que sabe, ensina. Olhar que procura o que já conhece e que não faz conhecer — permite, quando muito, reconhecer. 
Esse tipo de clínica gera efeitos diversos tanto nos pacientes quanto nos profissionais de saúde. Os pacientes, desprovidos de sua condição de sujeito, aprendem a dizer o que o observador quer ouvir, por exemplo, o que devem confessar e o que devem criticar de seu delírio, em função do que querem obter de quem os atende. As histéricas e os obsessivos, cada um a sua maneira, também o fazem. Eis o observador a nomear: “desconfiado”, “dissimulado”, “pouco cooperativo”. 
Ana Cristina Figueiredo, em uma vasta pesquisa de campo feita pela rede de saúde mental no Rio de Janeiro, nos forneceu uma série de exemplos, entre eles o de um paciente hipertenso que mentia para sua médica porque ela era muito brava. Conta para a psicóloga, e não para ela, que continuava tomando sua cachacinha e comendo sua lingüicinha. Se essa última também estivesse orientada pela clínica do olhar, provavelmente o tacharia de esperto, burro ou suicida. 
Duas armadilhas entravam nesse diálogo clínico, precipitando as condutas: a primeira é o medicajismo, que responde ao pedido de “remédio” com a solução química, tida como mais rápida e eficaz, como se não houvesse outro “remédio”para o sofrimento. A segunda é o psicologismo, que responde ao pedido de soluções para o “trauma”, entendido como ameaça ou castigo psicológico por uma conduta errada, com a tarefa moral de corrigir o erro através de uma pedagogia supostamente esclarecida (Figueiredo 1997). 
Não seriam ambas armadilhas da clínica do olhar? 
Nessa lógica do saber prévio, o cliente se encontra segmentado também 
política e ideologicamente, destinando-se o corpo para a psiquiatria biológica, o social para a psiquiatria democrática e a linguagem para a psicanálise. Conforme esse paradigma, tanto o remédio quanto a cidadania podem ser antecipados ao sujeito, assim como as mais mirabolantes interpretações psicanalíticas. 
Podemos pensar com Freud que o praticante desse tipo de clínica é um “trapaceiro que dá mais do que tem” — ou que acha que sabe mais do que sabe. 
“Você não tem nada” ou “é de causa hereditária” são respostas de quem não tem resposta para dar e ainda posa de autoridade. Quando se diz isso a uma histérica, por exemplo, significa que seus sintomas não existem no discurso médico e, principalmente, que ela própria não existe como sujeito. 
Clínica da escuta 
Do lado da função do real, da posição de “douta ignorância”, que é a daquele profissional que, apesar dos estudos e da experiência, não fecha os ouvidos para o que há de novo em cada sujeito, antes privilegiando a singularidade de cada um, está a clínica da escuta. Não sabendo a priori sobre o sujeito, esse profissional sabe que ele porta uma falta constitutiva, estrutural, que provoca o indefectível mal-estar, o que não significa que o paciente não possa melhorar do sofrimento produzido por seus sintomas. Antes, é conduzido a admitir e lidar da maneira que puder com essa falta, como condição da realidade, e nunca iludido com a possibilidade de sua supressão. “Eu não procuro, acho”, frase de Picasso citada por Lacan, ilustra bem essa posição. 
A fala deve ser privilegiada como possibilidade de fazer aparecer uma outra dimensão que implique o sujeito, que o leve a pensar na sua participação e em por que mantém seus sintomas no nível da queixa, de forma que possa descobrir e escolher outros caminhos para se haver com as dificuldades da vida. Para tanto, quem o atende também está implicado, já que é a pessoa a quem se está supondo algum saber que possa ajudá-lo, e cujas intervenções abrem novas cadeias de pensamento. Essa suposição de saber instaura a transferência, que por sua vez determina o que vai ser dito e de que maneira o será. Obviamente, decide também o encaminhamento que será dado a esse dito, como, por exemplo, quando o cliente é escutado em lugares de triagem, e não continuará a ser atendido pelo mesmo profissional. 
O signíficante, nesse caso, não é compreendido em relação direta com o significado, e sim em sua relação com os outros significantes que surgem a posteriori. Esse é o inodus operandi da psicanálise, e é questão de bom senso reconhecer que é possível e desejável adotá-lo sem que se esteja necessariamente num contexto psicanalítico. Recorro a Ana Cristina Figueiredo mais uma vez: uma pediatra encaminhou para a psicologia uma paciente cuja queixa era estar comendo muito, bebendo muita água, urinando demais e emagrecendo. O diagnóstico de diabetes foi dado pela psicóloga, com o simples trabalho 
de ouvir a paciente. Como vemos, escutar serve a muito mais do que somente à prática da psicanálise. 
Prosseguiremos tentando articular esses paradigmas a um percurso clínico básico, que vai das entrevistas iniciais à forma como se entende o sintoma e como através dele se chega a um diagnóstico e a um bom encaminhamento ou tratamento do caso. 
Entrevistas 
A anamnese é um modelo médico de entrevista descrito pelo dicionário Aurélio como “relato dos padecimentos feito pelo doente à cordialidade inquisidora do médico”. Lembre-se que falamos de um modelo, ou seja, não significa que ele seja sempre usado em medicina, e muito menos em psiquiatria. 
A inquisição é ensinada como técnica em muitos manuais, principalmente nos americanos: são dadas sugestões desde como perguntar ou responder até a posição em que devem ficar as cadeiras no consultório ou o tempo que deve durar a sessão. As tradicionais perguntas: “tem depressão?”, “tem alucinação?”, “ouve vozes?”, “dorme bem?”, “come bem?”, apesar de não se pretenderem indutoras, o são. O mais importante é a coleta de informações, que geralmente privilegia aquelas obtidas junto à família e à assistente social, em detrimento da fala do cliente. Esse tipo de entrevista, aliás, parece visar mais a demanda social ou de quem trouxe o doente — família, polícia, amigos — que a escuta de sua própria demanda. 
No modelo psicanalítico, a ética em relação ao sujeito e a técnica são indissociáveis. Não se trabalha com padrões, e sim com princípios. As entrevistas são chamadas de preliminares, de maneira que se possa realizar um diagnóstico da estrutura do sujeito e também localizar sua demanda, que pode ser aceita, recusada ou retificada. O sujeito dá as informações essenciais, uma vez que a clínica confirma a descoberta de Freud de que a realidade é a realidade psíquica. No texto “A direção do tratamento e os princípios do seu poder” (l961a), Lacan sublinhou três funções da entrevista: a avaliação clínica, a localização subjetiva, com sua conseqüente retificação, e a introdução ao inconsciente. E claro que são funções que se superpõem, e que não obedecem a uma cronologia rígida. 
Na avaliação clínica, deve-se fazer o diagnóstico da estrutura clínica do 
sujeito: neurose, psicose ou perversão. Se houver dúvidas, o usual é prolongar 
o período de entrevistas. E fundamental, por exemplo, saber reconhecer um 
psicótico através dos fenômenos elementares atuais (geralmente fenômenos 
de linguagem) ou do relato de sua história, sob pena de a análise provocar nele 
o desencadeamento da psicose. 
A localização do sujeito é feita questionando sua posição em relação aos próprios ditos. Quando, por exemplo, um sujeito expõe seu sofrimento rindo, demonstrando algum tipo de prazer associado a esse sofrimento, a pontuação 
do fato provoca a elucidação ou ao menos o questionamento de sua atitude. Outra maneira de localizar o sujeito é a modalização do dito, que pode se dar através do tom de voz ou quando, a posteriori, percebe-se que ele estava citando alguém com quem se identificava, acreditando porém que a idéia era sua. 
Um exemplo de interpretação antecipada do dito. Um psiquiatra, em visita domiciliar, encontrou o paciente agitado e angustiado, em pleno surto psicótico. Ao vê-lo, o paciente perguntou: “Você veio me internar?” Tomado pelo preconceito contra esse tipo de intervenção, respondeu prontamente que não. Posteriormente, percebeu que o paciente estava pedindo uma internação. 
A localização subjetiva consiste em uma apropriação do dito pelo sujeito. Não há nada que se fale em que não exista a questão de quem está falando ou de que posição se está falando, o que e para quem se está falando. Escutar não é fácil. Muitas vezes o sujeito não sabe exatamente o que está dizendo, mas ele deve tomar conhecimento disso, a ponto de se interrogar sobre o que quer dizer com o que diz. E a partir da formulação dessa pergunta que ele se dirige ao encontro do inconsciente: “che vuoi?” ou “o que você quer dizer com isso?” 
As entrevistas preliminares não servem apenas para descobrir em que posição está o sujeito, mas também para mudá-la. Lacan chamava de retificação subjetiva a passagem do queixar-se dos outros para o falar de si com implicação e responsabilidade. Para que ela ocorra, é desejável que o sujeito se refira ao que disse, guardando certa distância em relação ao dito, de forma a poder buscar seu sentido. 
Os princípios das entrevistas preliminares trazem grandes contribuições para o âmbito da saúde mental, mesmo nos casos em que o tratamento não terá continuidade no mesmo lugar ou com a mesma pessoa. O diagnóstico da situação do sujeito e a retificação subjetiva podem encaminhar o paciente para otratamento adequado e promover seu compromisso com esse tratamento, ou ele pode perceber que na verdade não precisa de tratamento, mas de alguma outra providência de ordem prática. Esse procedimento é completamente diferente da triagem, que muitas vezes encaminha o paciente para um lugar onde ele jamais porá os pés, continuando a retornar ao local da emergência numa queixa sem fim. 
Sintoma 
Para a psiquiatria, o sintoma é apenas uma manifestação patológica. Ele é constituído pelo psiquiatra, que o observa, descreve, classifica e por fim lhe dá um nome. A psiquiatria clássica combinava os sintomas de maneira que formassem quadros clínicos. Após o advento do CID-1O, no entanto, ele passou a ser tomado como transtorno independente, associado ou não a outros transtornos, cada um deles correspondendo diretamente a uma medicação. São 
cada vez mais freqüentes os questionários de sala de espera, em que os próprios pacientes redigem sua anamnese catalogando seus sintomas à medida que respondem a perguntas objetivas. E a clínica do olhar rumo à lnternet. 
Não negamos a relativa padronização do sintoma. Os delírios de grandeza não diferem muito dos delírios místicos e as conversões histéricas são semelhantes aos rituais obsessivos. Essa relativa padronização é o que dá fundamento à clínica. O que distingue uma clínica da outra, no entanto, é a escuta daquilo que o sujeito faz de seu sintoma, de como o insere em sua história e em seu discurso. E, enfim, a escuta de sua particularidade 
Para a psicanálise, o sintoma só existe quando é falado pelo cliente sob transferência, ou seja, quando é endereçado ao analista. Por essa razão torna- se possível uma reorganização do sintoma, a partir da modificação da demanda a ele articulada. 
O percurso do sintoma na teoria freudiana pode ser pontuado em quatro momentos: sintoma e trauma; sintoma e formações do inconsciente; sintoma e fantasia; e sintoma e pulsão. Enquanto o sintoma foi associado somente ao trauma o paciente não saiu da posição de vítima. Quando Freud percebeu que nem sempre o trauma correspondia a um fato, o sintoma passou a ser escutado em um registro simbólico, como uma formação do inconsciente semelhante ao sonho ou ao ato falho. Freud acreditava que podia tratar tudo simbolicamente, através da catarse. Se houvesse elaboração ou interpretação, resolver- se-ia o sintoma. Quando abriu mão definitivamente da realidade da sedução para introduzir a fantasia de sedução nas histéricas, concluiu que no sintoma havia a realização de uma cena fantasmática. Essa fantasia teria importância determinante na constituição dos sintomas: sendo a janela pela qual se via a realidade, seria através dela que se tornaria possível a correção da realidade insatisfatória. Na fantasia tudo seria possível, até mesmo escamotear a castração. Dessa forma, o sintoma passou a ser uma metáfora da fantasia. 
Para Lacan, o sintoma era também o modo como cada um goza, uma vez que o inconsciente o determina. No dizer de Freud, isso significa que todo desprazer neurótico é um prazer que não pode ser sentido como tal. Logo, o sintoma causa o gozo e também o barra, assim como faz com a castração. E algo do real que se escreve no simbólico através de um significante que não remete a outro significanre mas, associado a uma quota de gozo, isola e fixa o sintoma. O que a análise pode fazer é inseri-lo numa cadeia associativa, de maneira que possa ser deslocado e trabalhado pelo sujeito. 
Diagnóstico 
Florence Kerr, psiquiatra de São Paulo, tem uma posição interessante sobre a gênese do diagnóstico: “Existem três coisas que não deveríamos saber como são feitas — salsichas e linguiças, as leis de um país e a classificação das doenças mentais”. 
A principal função do diagnóstico é a denominação. Além disso, presta-se à definição do prognóstico, ao encaminhamento do caso, à avaliação dos riscos, às providências sociais (atestados para licença, aposentadoria etc.), à interlocução com colegas e ao direcionamento do tratamento. Mesmo que não possa ser elaborado na primeira ou segunda entrevistas, funciona como norteador provisório, como ponto de partida e como instrumento de medida da evolução do caso. 
O sonho da psiquiatria sempre foi descobrir o substrato anatômico e o agente etiológico das doenças que, juntamente com o quadro descritivo, formariam as três dimensões definoras de uma doença. Entretanto, apesar de todos os esforços, a relação entre a etiologia orgânica e as manifestações psíquicas nunca ficou clara. 
O método descritivo nasceu da fenomenologia de Husseri, que entendia a filosofia como uma ciência do homem, ou seja, da percepção pelo homem daquilo que ele podia ver: o fenômeno. As funções psíquicas, seus distúrbios e sua classificação eram apresentados como descrições fenomenológicas as manifestações patológicas, classificadas e agrupadas em quadros nosológicos, nos quais adquiriam sentido e especificidade. Era na relação com o todo, portanto, que cada sintoma ganhava sentido. A teoria evolutiva, representada pelo organodinamismo de Henri Ey, levava em conta ainda, nessa classificação, a evolução da doença. A criação do DSM-11I modificou essa forma de classificação ao introduzir o conceito de transtorno. Pela homogeneização dos diagnósticos, que tem finalidade de pesquisa, principalmente farmacológica, quadros clínicos clássicos como a histeria foram reduzidos a uma listagem de transtornos. 
A psicanálise opera praticamente com os mesmos quadros nosológicos da psiquiatria clássica. A diferença está na causa e na conseqüência extraída desse trabalho diagnóstico. Distinguir serve para visar a causa. Por isso Freud não separou a semiologia da psicopatologia e da terapêutica. Ao instalar a demarcação dos mecanismos da Verdrdngung (recalque), Verwer[ung (foraclusão) e Verleugnung (recusa), na neurose, na psicose e na perversão, respectivamente, abriu o campo para a formalização da teoria das estruturas de Lacan. 
Essa teoria tem sua raiz no estruturalismo de Claude Lévi-Strauss, do qual Lacan retirou a concepção de que as relações entre os elementos são mais importantes que os elementos em si. Para Lévi-Strauss, a estrutura é de linguagem, já que a cultura equivale ao simbólico, se insere no simbólico. Tudo o que é da ordem do humano é do registro do simbólico, e portanto da linguagem. Quando dizemos que na estrutura interessam menos os elementos do que a relação entre eles, falamos de um diagnóstico com base na escuta, em que os significantes são ouvidos em sua relação com os outros significantes do sujeito. 
Trata-se, portanto, do diagnóstico da posição do sujeito diante da falta constitucional, que se dá de maneira diferente em cada uma das estruturas. Na 
rrvíç cio recalQue, o sujeito tenta encobrir ou negar a falta, apesar 
de saber de sua existência. Na psicose, por meio da foraclusão, o sujeito simplesmente desconhece a falta, e com isso não permite intermediação simbólica alguma entre o real e o imaginário. E na perversão, ele obtura a falta com o objeto fetiche, recusando-se a um confronto direto com ela e atribuindo-a ao 
outro. 
Conclusão 
A psiquiatria clínica oferece um tratamento medicamentoso voltado para a sintomatologia; a democrática, um tratamento pela via da reabilitação social. Por sua vez, a psicanálise propõe um tratamento do sujeito pela fala. Todas podem cair num dos dois modelos apontados: a clínica do olhar e a clínica da escuta. Isso se aplica não só a elas, mas também à psicologia, à terapia ocupacional, ao serviço social e à enfermagem. 
O paciente que mensalmente apanha sua receita com um psiquiatra que mal o convida a sentar vive em crise ou estabilizado em uma posição em que aparentemente não sofre, mas também não existe como sujeito. O usuário que é pressionado a trabalhar, seja em oficinas, seja pela causa da reinserção social sofre o mesmo destino. E o cliente sujeito às mais selvagens “interpretoses”, não menos. 
Um paciente bem escutado, por sua vez, pode ser medicado para facilitar sua inserção no âmbito social, o que contribuirápara uma apropriação do seu problema, muitas vezes suficiente para que consiga reconhecer a possibilidade de recaídas ou para tomar providências que dispensem soluções extremas, como internações. 
Daí a tentativa de estabelecer os parâmetros da escuta para que possamos utilizar da melhor maneira possível tantos recursos, sem a rigidez do corporativismo, da política e da detenção da verdade, e sim com o rigor de uma boa formação pessoal e profissional. 
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