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José Severino Croatto Hermenêutica Bíblica 1

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José Severino Croatto 
 
 
 
 
 
 
HERMENÊUTICA BÍBLICA 
 
Para uma teoria da leitura como produção de significado 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Tradução de Haroldo Reimer 
Digitalizado por Eclesiano 
	
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SUMÁRIO	Prólogo	....................................................................................................................................................................................	5	Introdução	.........................................................................................................................................................................	6	Hermenêutica	Filosófica:	Três	Grandes	Fases	..................................................................................................	6	1.	 A	Era	Moderna	..................................................................................................................................................	7	2.	 A	Idade	Média	...................................................................................................................................................	7	3.	 Filão	de	Alexandria	.........................................................................................................................................	8	Cinco	Abordagens	De	Leitura	Da	Bíblia	...............................................................................................................	8	1.	 Realidade	Presente	como	"texto"	primário	.........................................................................................	8	2.	 Concordismo	.....................................................................................................................................................	9	3.	 Métodos	Histórico-Críticos	.........................................................................................................................	9	4.	 Análise	Estrutural	........................................................................................................................................	10	5.	 A	Hermenêutica	............................................................................................................................................	11	I	-	DA	SEMIÓTICA	À	HERMENÊUTICA	....................................................................................................................	13	1.	 A	linguagem	como	sistema	e	como	acontecimento	............................................................................	13	2.	 A	linguagem	como	texto	e	como	escrita	..................................................................................................	14	3.	 A	leitura	como	produção	de	sentido.	O	ato	hermenêutico	..............................................................	17	4.	 Implicações	da	Leitura	como	Produção	de	Sentido	...........................................................................	20	a.	 Transformação	e	Ocultamento	...............................................................................................................	20	b.	 Dependência	Textual	..................................................................................................................................	22	c.	 Apropriação	do	Sentido	.............................................................................................................................	24	d.	 A	Função	Hermenêutica	da	Distanciação	..........................................................................................	26	II	-	PRAXIS	E	INTERPRETAÇÃO	.................................................................................................................................	28	1.	 Do	acontecimento	ao	texto	...........................................................................................................................	28	1.1.	 Acontecimentos	Fundantes	.................................................................................................................	29	1.2.	 Cânon	............................................................................................................................................................	32	2.	 O	"adiante"	do	texto	.........................................................................................................................................	36	3.	 A	intratextualidade	da	Bíblia	.......................................................................................................................	38	
	
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3.1.	 Novo	sentido	em	Novas	Totalizações	.............................................................................................	38	3.2.	 A	Bíblia:	Um	Texto	Único	.....................................................................................................................	40	4.	 A	pertença	e	pertinência	da	Bíblia	.............................................................................................................	41	III	-	EXEGESE	E	EISEGESE	............................................................................................................................................	46	1.	 A	releitura	da	Bíblia	é	parte	de	sua	própria	mensagem	...................................................................	46	2.	 Atualização	da	Bíblia:	iluminação	da	realidade?	.................................................................................	47	3.	 Revelação	terminada	ou	aberta?	................................................................................................................	48	4.	 A	linguagem	da	fé	..............................................................................................................................................	51	5.	 Recontextualização	do	querigma	bíblico	................................................................................................	53	6.	 Sobre	algumas	objeções	.................................................................................................................................	54	Conclusão	.......................................................................................................................................................................	55	Vocabulário	........................................................................................................................................................................	56		
	
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PRÓLOGO			 O	ponto	de	partida	deste	ensaio	é	a	convicção	de	a	Bíblia	não	ser	um	depósito	fechado	que	já	"disse"	tudo.	É	um	texto	que	"diz";	no	presente,	mas	que	fala	como	texto;	não	como	uma	palavra	difusa	e	existencial	que	somente	tem	o	sentido	genérico	de	provocar	uma	decisão	minha.	A	tensão	entre	ser	um	texto	fixado	em	um	horizonte	cultural	que	já	não	é	o	nosso,	e	ser	uma	palavra	viva	que	pode	mover	a	história,	somente	se	resolve	através	de	uma	releitura	frutífera.	Isto	equivale	a	enunciar	o	problema	da	hermenêutica	bíblica.	Em	uma	pequena	obra	anterior,1	fizemos	um	exercício	de	hermenêutica	sobre	o	tema	do	êxodo.	Ante	sua	boa	aceitação,	sobretudo	na	prática	teológica	dos	países	oprimidos,	decidimos	ampliar	e	aprofundar	muitos	aspectos,	invertendo,	contudo,	a	ordem:	se	ali	fazíamos	uma	prática	hermenêutica	 com	 poucos	 elementos	 teóricos,	 aqui	 queremos	 expor	 muito	 mais	 uma	 teoria	hermenêutica	com	exemplos	tomados	de	muitos	temas,	não	de	apenas	um,	como	era	o	do	êxodo.	Se	naquela	ocasião	tomamos	um	só	tema,	fizemo-lo	precisamente	para	mostrar	como,	por	meio	de	reinterpretação,	acontece	o	desenvolvimento	do	sentido	de	um	acontecimento	convertido	em	matriz	 querigmática.	 Este	 é	 um	 aspecto	 do	 fenômeno	 hermenêutico	 que	 convém	 destacar.	 Se	agora	 vamos	ocupar-nos	 com	diversos	 temas	bíblicos,	 é	 para	mostrar	que	 aquele	 fenômeno	é	ubíquo	e	que	expressa	um	elemento	essencial	da	experiência	de	 fé	de	 Israel	e	da	primeira	co-munidade	cristã.	Não	vamos	inventar	nada.	A	hermenêutica	bíblica	é	simplesmente	um	método	de	leitura	da	Bíblia	que	necessita	ser	explicitado	e	organizado.Necessita	ser	explicitado,	porque	sempre	se	o	tem	praticado,	porém	muitas	vezes	sem	reconhecê-lo.	Veremos	que	não	existe	leitura	que	não	seja	hermenêutica.	Sabê-lo	já	é	um	grande	passo.		Esse	 método	 necessita	 ser	 organizado	 para	 que	 se	 saiba	 como	 usá-lo	 e	 dar-lhe	 le-gitimidade.	É	um	fato	que,	quando	mais	renovadora	a	vida	cristã,	conseqüentemente	a	teologia,	tanto	mais	 implicitamente	 se	 exercita	 a	 hermenêutica.	 É	 também	um	 fato	 que	 esta	 renovação	sofre	 resistência	 por	 uma	 prática	 e	 uma	 teologia	 tradicionais.	 Isto	 é	 muito	 mais	 visível	 nos	contextos	 de	 dominação	 cultural,	 econômica,	 política	 e	 religiosa.	 Com	 isso	 já	 se	 levanta	 uma	suspeita	sobre	quem	é	o	verdadeiro	destinatário	da	mensagem	libertadora	que	a	Bíblia	propõe.	Por	isso	há	necessidade	e	urgência	de	possuir	um	instrumental	teórico	que	nos	permita	exercitar	uma	releitura	da	Bíblia	que	nos	possibilite	explicitar	a	sua	"reserva	de	sentido".	Para	muitos	cristãos	a	Bíblia	é	antes	um	problema	do	que	uma	mensagem	clara.	Por	sua	origem	distante	de	nosso	tempo	e	espaço,	com	idéias	antigas	e	muitas	vezes	díspares	em	seu	longo	trajeto	literário,	com	um	texto	final	freqüentemente	difícil,	o	que	contradiz	a	nitidez	esperada	de	uma	"mensagem",	resulta	pouco	atraente	na	imediatez	da	práxis.	Vale	o	que	diz?	É	necessário	que	"diga"	 algo?	 Se	 é	 palavra	 de	 Deus,	 de	 que	 Deus	 trata?	 Do	 nosso	 ou	 dos	 hebreus?	 Surge	 uma	infinidade	de	perguntas.	
																																								 																				 	
1 Liberación y libertad. Pautas hermenéuticas (Mundo Nuevo, Buenos Aires 1973; CEP, Lima 1978); em inglês: Exodus. A 
Hermeneutics of freedom (Orbis Book, N. York 1981); em português: Êxodo. Uma Hermenêutica da Liberdade (Ed. Paulinas, 
São Paulo 1981) 197 p.	
Dyeenmes Procópio de Carvalho
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	INTRODUÇÃO		 "Hermenêutica"	 é	 o	 correlato	 do	 termo	 "interpretação",	mais	 comum.	Hermeneuo,	 em	grego,	é	o	equivalente	de	"interpretar".	Em	si,	é	a	mesma	realidade	em	dois	vocábulos	diferentes,	grego	o	primeiro,	 latino	o	segundo.	Porém,	como	este	tornou-se	um	termo	comum	e,	com	isso,	perdeu	em	precisão,	prefere-se	o	termo	"hermenêutica"	para	indicar	sobretudo	três	aspectos	que	devem	ser	explicitados.		Antes	de	tudo,	o	lugar	privilegiado	da	operação	hermenêutica	é	a	interpretação	dos	textos.	Mais	adiante	veremos	que	outras	coisas	implica	esta	afirmação.	Em	segundo	lugar,	supõe-se	que	o	 intérprete	 condiciona	 sua	 leitura	 por	 uma	 espécie	 de	 pré-compreensão,	 que	 surge	 do	 seu	próprio	contexto	vital.	Em	terceiro	lugar,	o	ato	hermenêutico	faz	crescer	o	sentido	do	texto	que	se	 interpreta.	 Isto	nem	sempre	se	acha	bem	definido,	mas	será	central	no	desenvolvimento	do	nosso	trabalho.		Cremos	 que	 toda	 interpretação,	 tanto	 de	 textos	 como	 de	 acontecimentos,	 inclui	 estes	aspectos.	Por	conseguinte,	nesta	exposição	não	nos	preocuparemos	em	distinguir	os	dois	termos,	nem	os	restringiremos	aos	textos.	Sem	com	isso	confundir	as	coisas,	veremos	que	a	interpretação	dos	textos	supõe	outro	processo,	a	interpretação	de	determinadas	práticas	ou	acontecimentos,	e	que	a	própria	constituição	dos	 textos	se	origina	em	uma	experiência	que	é	 interpretada.	Nisto	vamos	além	da	limitação	que	lhe	dá,	por	exemplo,	P.	Ricoeur	ao	definir	a	hermenêutica	como	"a	teoria	das	operações	da	compreensão	em	sua	relação	com	a	interpretação	dos	textos"2		Texto	e	acontecimento,	ou	práxis,	já	se	condicionam	mutuamente	desde	o	ponto	de	vista	hermenêutico.	Isto	se	deve	destacar	justamente	no	caso	da	leitura	da	Bíblia	que	se	faz	a	partir	de	uma	prática	da	fé,	 e	de	uma	Bíblia	que	remete	para	as	grandes	ações	salvíficas	de	Deus.	Com	esta	única	 frase	assinalamos	que	a	leitura	dos	textos	bíblicos	está	circunscrita	por	dois	momentos	existenciais,	ou	seja,	por	dois	pólos	históricos.	O	texto	está	no	meio.	Isto	já	é	uma	maneira	de	valorizar	a	"cen-tralidade"	da	Bíblia	como	texto,	porém	como	texto	alimentado	em	duas	"vertentes"	da	vida.	Não	existe	uma	hermenêutica	bíblica	diferente	de	outra	filosófica,	sociológica,	literária	e	outras.	Há	apenas	uma	hermenêutica	geral,	da	qual	existem	muitas	 "expressões	 regionais."3	O	método	 e	 o	 fenômeno	 coincidem	 em	 todos	 os	 casos.	 E	 verdade,	 contudo,	 que	 a	 hermenêutica	bíblica	tem	uma	característica	talvez	inédita	por	assumir	textos	de	uma	longa	trajetória	de	criação	e	reelaboração,	originados	em	um	povo	com	um	itinerário	igualmente	longo,	unificado	por	uma	concepção	 linear	 e	 teleológica	 da	 história	 que	 exige	 um	 grande	 trabalho	 interpretativo.	 Esta	"fecundidade	hermenêutica"	será	bem	assinalada	no	decorrer	deste	estudo.		HERMENÊUTICA	FILOSÓFICA:	TRÊS	GRANDES	FASES		
																																								 																				 	
2 P. Ricoeur "La tarea de la hermenéutica", em: Vários, Exégesis. Problemas de método y ejercicios de lectura (La Aurora, 
Buenos Aires 1978) 219 - 243 (cf. p. 219). 
3 P. Ricoeur o evidencia, Cf. art. cit., p. 220; Idem, "Hermenéutica filosófica y hermenéutica bíblica", ib., 263-Z77 (cf. p. 263s). 
Dyeenmes Procópio de Carvalho
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Aqui	não	é	o	lugar	para	fazer	uma	história	da	hermenêutica	geral,	nem	da	hermenêutica	bíblica	em	particular.	Convém	somente	assinalar	que	a	tematização	da	hermenêutica	conheceu	três	momentos	relevantes,	que	registramos	em	ordem	temporal	 inversa	com	o	fim	de	mostrar	que	aquilo	que	parece	novo,	de	fato	não	o	é	tanto	assim.		1. A	ERA	MODERNA		 Em	um	contexto	filosófico,	o	problema	se	coloca	a	partir	de	Schleiermacher	(ca.	1800)	e	Dilthey	(ca.	1900),	passando	por	Heidegger,	depois	por	Gadamer	e	Ricoeur,	com	derivações	para	o	campo	teológico	(Fuchs,	Ebeling,	Bultmann	e	a	expansão	pós-bultmaniana).	Nos	dois	primeiros	é	interessante	constatar	sua	preocupação	com	o	que	está	atrás	do	texto	(a	história,	o	autor),	por	aquilo	e	aquele	que	se	expressa	em	um	texto,	não	por	aquilo	que	este	diz.		Heidegger	 passa	 da	 epistemologia	 à	 ontologia.	 O	 "ser"	 que	 interroga	 é	 um	 ser-em	 (no	mundo),	situado,	o	qual	se	pré-compreende	no	ato	de	interpretar.	Há	um	"estar-em"	o	mundo4	que	 condiciona	 a	 interpretação.	 Isto	 aponta	 contra	 a	 pretensão	 do	 sujeito	 de	 ser	 medida	 da	objetividade,	 uma	 vez	 que	 à	 sua	 essência	 pertence	 o	 ser	 "habitante"	 deste	 mundo,	 o	 qual	 o	circunscreve.	 Heidegger	 empreende	 o	 caminho	 até	 os	 fundamentos,	 porém	 não	 retorna	 à	epistemologia.		Gadamer	destaca	que	o	homem	está	dentro	de	uma	tradição,	e	que	o	compreender	é	o	resultado	finito	daquela	tradição	como	forma	de	pertinência	à	história.	A	distância	histórica	entre	o	texto	e	o	intérprete	exige	uma	"fusão	de	horizontes",	que	é	possível	porque	se	está	no	interior	da	história.		A	contribuição	de	Ricoeur,	que	por	sua	vez	relê	Heidegger,	consiste	em	haver	um	desvio	pela	lingüística	para	chegar	a	uma	teoria	frutífera	da	hermenêutica.	As	derivações	para	o	campo	teológico,	 acima	 apontadas,	 são	 anteriores	 a	 Ricoeur	 e	 estão	 impregnadas	 de	 uma	supervalorização	 da	 Palavra	 bíblica	 como	 "acontecimento"	 presente	 (mais	 adiante	 falaremos,	invertendo	os	termos,	de	um	"acontecimento	feito	palavra."	Estes	 pontos	 da	 reflexão	 sobre	 a	 hermenêutica	 contribuíram	 notavelmente	 para	 uma	síntese	 filosófica	 que	 deixa	 suas	 pegadas	 na	 teologia.	 No	 entanto,	 não	 constituem	 novidade	absoluta.		2. A	IDADE	MÉDIA		 Com	efeito,	durante	a	longa	tradição	medieval	era	comum	a	discussão	teológica	sobre	os	sentidos	da	Escritura.	Junto	ao	sentido	literal,	ou	acima	dele,	situava-se	um	sentido	espiritual	que	recebia	 designações	 diversas	 (alegórico,	 místico,	 messiânico,	 cristológico,	 etc.).	 Típica	 foi	 a	disputa	 sobre	 os	 quatro	 sentidos	 da	 Bíblia:	 literal,	 alegórico	 (=	 cristológico),	moral	 (chamado	"tropológico",	 ou	 seja,	 relativo	 aos	 costumes)	 e	 escatológico	 (denominado	 "anagógico",que																																									 																				 	
4 Se o alemão não conhece a distinção lexical entre "ser" e "estar", o português o conhece. Por então, traduzir o Dasein com o 
insuportável "ser aí" quando pode ser traduzido por "estar' ou "estar aí"? 
Dyeenmes Procópio de Carvalho
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"conduz	para").	Surgiu	uma	infinidade	de	teorias.	O	significativo	desse	fato	é	que	o	pano	de	fundo	é	precisamente	a	hermenêutica:	o	 texto	do	Antigo	Testamento	não	 se	esgota	em	sua	primeira	intenção,	mas	diz	algo	mais.		3. FILÃO	DE	ALEXANDRIA		 Outra	 tentativa,	mais	 antiga,	 de	 formalizar	 o	 problema	 hermenêutico	 foi	 a	 de	 Filão	 de	Alexandria	no	século	I	a.	C.	Isto	não	somente	porque	interpretou	as	tradições	hebréias	a	partir	de	um	parâmetro	grego	(é	típico	o	seu	comentário	a	Gênesis,	De	Opificio	Mundi,	mas	sobretudo	pelo	seu	esforço	em	compreender	o	problema	da	linguagem.5		Dissemos	que	estes	três	momentos	pertencem	a	tantas	outras	tentativas	de	tematizar	o	problema	 da	 interpretação	 de	 textos	 (históricos,	 bíblicos)	 ou	 da	 existência	 humana	 como	 tal.	Muito	bem:	nem	sequer	 isto	 é	novo.	O	processo	hermenêutico	 -	 ainda	que	não	 tematizado	 -	 é	constitutivo	de	toda	tradição,	religiosa	ou	não.	A	Bíblia	mesma	não	se	explica	sem	esse	processo.	Porém,	é	no	rabinismo	da	época	intertestamentária	onde	se	pode	detectar	a	tentativa	de	ler	um	segundo	sentido	sob	o	primeiro	sentido	de	um	texto,	um	sentido	profundo	por	detrás	do	sentido	simples	 das	 palavras	 (derash	 e	 peshat	 na	 terminologia	 aramáica	 da	 época).6	 Esta	 questão	reaparecerá	mais	adiante	quando	falarmos	do	Targum	e	do	Midrash.		Esta	breve	retomada	histórica	motiva-nos	agora	a	entrar	no	tema	com	uma	preocupação	diretamente	bíblica.	CINCO	ABORDAGENS	DE	LEITURA	DA	BÍBLIA		 A	Bíblia	 tem	sido	objeto	de	diferentes	abordagens,	 todas	elas	objetivando	explorar	seu	sentido	 ou	 sua	 mensagem.	 Algumas	 abordagens	 expressam	 o	 "problema"	 da	 leitura	 atual	 da	Bíblia,	outros	buscam	penetrar	em	seu	conteúdo.	Apontamos	cinco	aproximações	genéricas:		 1. REALIDADE	PRESENTE	COMO	"TEXTO"	PRIMÁRIO		 Frente	ao	 texto	da	realidade	presente,	entendido	como	o	 "lugar	 teológico"	privilegiado	para	descobrir	o	Deus	que	fala	e	interpela	o	homem,	pode-se	relegar	a	Bíblia	a	um	segundo	plano,	entendendo-a	como	um	texto	"desatualizado".	A	realidade	está	tão	carregada	de	significado	que	qualquer	outro	"significante"	teológico	resulta	como	secundário.	Quando	as	opções	estão	claras,	não	faz	falta	alguma	ir	à	Bíblia.		Não	é	essa	a	atitude	de	muitos	cristãos	comprometidos	com	a	luta	revolucionária	contra	as	estruturas	injustas	deste	sistema	em	que	somos	obrigados	a	viver?	Que	mensagem	"nova"	lhes																																									 																				 	
5 Cf. KI, Otte, Das Sprachverständnis bei Philo von Alexandrien. Sprache als Mittel der Hermeneutik (Mohr, Tubinga 1968); I. 
Christiansen, Die Technik der allegorischen Auslegungswissenschaft bei Philo von Alexandrien (Mohr, Tubinga 1969). 
6 Veja A. Díez Macho, "Deras y exégesis del Nuevo Testamento", Sefarad 35 (1975) 37-89; Id., EI Targum. lntroducción a las 
traducciones aramaicas de Ia Biblia (SCIC, Madrid 1979). 
	
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traz	 o	 Evangelho?	 A	 pergunta	 é	 sincera.	 Cremos,	 porém,	 que	 deixa	 entrever	 uma	 dificuldade	metodológica	para	sair	de	uma	leitura	tradicional	da	Bíblia	que	a	tem	alienado	da	história	real	dos	 homens.	O	 obstáculo	 é	 visível	 em	 alguns	 teólogos	 da	 libertação,	 que,	mais	 do	 que	 outros,	valorizam	a	práxis	sócio-histórica	como	parâmetro	da	reflexão	teológica.		 2. CONCORDISMO		 Outro	 caminho	 consiste	 em	 assumir	 a	 Bíblia	 como	 ela	 é,	 buscando	 nela	"correspondências"	 entre	 as	 nossas	 situações	 e	 os	 eventos	 nela	 relatados.	 Quando	 há	coincidências,	parece	que	Deus	está	falando	através	do	"evento	arquetípico."	Logo	à	primeira	vista,	esta	aproximação	à	Bíblia	se	evidencia	como	concordista.	Bem,	o	concordismo	 (tão	 difundido,	 sobretudo	 nas	 leituras	 fundamentalistas	 do	 texto	 sagrado)	 é	duplamente	negativo:	a)	Reduz	a	mensagem	a	situações	que	têm	equivalente	na	experiência	de	Israel	ou	da	primeira	comunidade	cristã,	como	se	Deus	não	soubesse	falar	ou	revelar-se	de	outra	maneira.	 É	 um	 reducionismo	 teológico.	 b)	 O	 concordismo	 torna	 a	 mensagem	 superficial,	colocando-a	ao	nível	de	faticidade	externa,	confundindo	o	que	acontece	com	seu	sentido.		O	mesmo	perigo	existe	quando,	em	algumas	teologias,	se	busca	uma	continuidade	entre	as	idéias	do	Antigo	ou	do	Novo	Testamento	e	as	de	uma	cultura	específica,	por	exemplo	asiática,	africana	ou	latino-americana.	O	que	acontece	onde	não	se	verificam	tais	coincidências	culturais,	pontes	entre	a	antropologia	hebréia	e	a	grega?	Para	os	gregos,	Deus	seria	quase	irrevelável.	De	imediato,	 descobre-se	 que	 nas	 tradições	 africanas	 e	 em	 algumas	 pré-colombianas	 há	 muitas	semelhanças	com	a	cosmovisão	hebréia.	Confunde-se	o	querigma	com	seu	revestimento	cultural	ou	sua	"contextualização".		É	 verdade	 que	 a	 busca	 por	 "sintonias"	 entre	 a	 Bíblia	 e	 o	 contexto	 atual	 (cultural,	mas	sobretudo	sócio-histórico)	pode	ser	um	ponto	de	partida	para	explorar	a	validade	daquela	para	o	homem	de	hoje.	O	 que	 realmente	 é	 empobrecedor	 é	 o	 concordismo	histórico	 e	 científico,	 que	consiste	em	querer	confirmar	a	Bíblia	com	determinadas	descobertas	das	ciências	modernas	(por	exemplo,	 as	 grandes	eras	geológicas	 e	os	dias	da	 criação	do	mundo)	ou	então	equiparar	 fatos	históricos	da	Bíblia	e	de	hoje.	No	primeiro	caso,	tal	confirmação	não	existe;	em	ambos	se	esvazia	o	texto	sagrado	de	seu	conteúdo	querigmático,	tornando	inútil	qualquer	tentativa	hermenêutica	para	explorar	o	sentido	mais	profundo	do	texto.	E	pensar	que	a	leitura	concordista	da	Bíblia	tem	sido	tão	comum,	inclusive	rio	âmbito	do	fazer	teológico	sistemático!		 3. MÉTODOS	HISTÓRICO-CRÍTICOS		 Os	 métodos	 exegéticos	 formulados	 pela	 moderna	 crítica	 bíblica	 abriram	 novas	perspectivas	de	abordar	a	Bíblia,	na	medida	em	que,	ao	redescobrirem	o	horizonte	histórico	e	cultural	no	qual	a	Bíblia	se	originou,	possibilitam	uma	melhor	contextualização	do	sentido	origi-nal	de	cada	passagem.	A	exegese	crítica	 rompeu,	em	primeiro	 lugar,	 com	as	 leituras	 ingênuas,	"historicistas"	 e	 concordistas	da	Bíblia,	 as	quais,	 conforme	assinalamos	no	parágrafo	 anterior,	
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despistam	o	 sentido	 real	do	 texto.	Porém,	 amplia	 sobretudo	a	 exploração	dos	 textos.	A	 crítica	literária,	a	crítica	das	formas	e	dos	gêneros,	ou	códigos	literários,	das	tradições	(orais	e	literárias),	da	redação,	 revolucionou	os	estudos	bíblicos	nas	últimas	décadas,	 sanando	muitos	defeitos	da	teologia	 cristã	e,	de	 forma	 indireta,	 gerando	uma	renovação	em	 todos	os	 campos	da	atividade	teológica.	Ao	 lado	 destes	 indiscutíveis	 benefícios	 que	 convertem	 os	 métodos	 exegéticos	 em	conquista	inestimável,	o	seu	uso	exagerado	e	às	vezes	reducionista	comporta	alguns	riscos.	Por	um	lado,	mostram	o	"atrás"	do	texto	atual,	a	arqueologia,	deslocando	a	atenção	do	exegeta	ou	do	leitor	da	Bíblia	para	um	nível	pré-canônico.	O	Pentateuco,	por	exemplo,	é	interpretado	conforme	as	teologias	"javista",	"eloista",	"deuteronomista",	"sacerdotal"	ou	outras.	Enfatiza-se	o	pré-texto.	A	partir	 da	 crítica	 literária,	 que	permite	 identificar	os	passos	da	 formação	do	 texto,	 os	 outros	métodos	conduzem	até	as	mais	remotas	origens	e,	através	da	história	da	redação,	reconduzem	até	o	estado	presente	de	uma	obra	ou	de	parte	dela.	Este	extenso	arco,	que	sai	do	texto	e	volta	até	ele,	é	muitomais	uma	história	do	texto	do	que	a	exploração	do	seu	sentido,	ou	pelo	menos	este	se	identifica	com	o	sentido	das	camadas	anteriores,	caso	nos	sejam	acessíveis.	Não	posso,	sem	embaraço,	entender	o	Pentateuco	à	base	do	"javista"',	etc.,	seja	porque	não	sei	quanto	de	sua	obra	foi	mantida	na	redação	atual,	seja	porque	o	autor	do	Pentateuco	fez	uma	obra	 nova.	 O	 sentido,	 portanto,	 não	 está	 nos	 fragmentos	 usados,	 mas	 sim,	 na	 totalidade	estruturada	do	novo.	A	crítica	da	redação	reduz	em	parte	este	defeito.	Porém,	ao	falar	de	"redator"	em	lugar	de	"autor"	e	ao	designar-se	como	"história	da	redação",	coloca	mais	ênfase	na	formação	do	texto	do	que	no	próprio	texto.		Por	outro	 lado,	 a	preocupação	em	 fundamentar	a	verdade	das	 ciências	do	espírito,	 tão	própria	 da	 consciência	 ocidental	 desde	 alguns	 séculos,7	 concentrou	 a	 atenção	 sobre	 o	 sentido	literal,	entendido	como	o	sentido	"histórico"	(a	própria	designação	de	"método	histórico-crítico"	já	o	revela).	Isto	é	uma	forma	de	reducionismo.8	Por	isso	há	o	interesse	pela	intenção	do	"redator"	deste	 ou	 daquele	 texto,	 o	 qual	 é	 contextualizado	 com	 todos	 os	 recursos	 possíveis.	 Este	 é	importante,	porque	do	contrário,	conforme	já	assinalamos,	desvirtua-se	o	processo	por	buscar	o	sentido	na	pré-redação.	No	caso	de	ênfase	muito	grande	na	intenção	do	autor	ou	do	redator	como	sendo	este	o	único	sentido,	 corre-se	o	risco	de	enclausurar	no	passado	a	mensagem	da	Bíblia,	entendida	 como	 "depósito"	 de	 um	 "sentido	 fechado",	 coincidente	 com	 o	 pensamento	 de	 seu	redator	ou	então	dos	pré-redatores	do	texto	atual.	Cremos	que	a	possibilidade	significativa	de	um	texto	não	termina	aqui.	Apesar	de	sua	importância	imprescindível,	esta	abordagem	evidencia-se	como	parcial,	especialmente	para	a	teologia	dos	povos	oprimidos.	Por	aqui	é	necessário	passar,	porém,	não	parar.		 4. ANÁLISE	ESTRUTURAL		 Uma	contribuição	mais	recente	aos	estudos	bíblicos	provém	das	ciências	da	linguagem,	em	particular	da	lingüística	e	da	semiótica	narrativa.	A	literatura	e	a	ciência	da	linguagem	sempre	contribuíram	 positivamente	 para	 o	 conhecimento	 da	 Bíblia.	 O	 desenvolvimento	 recente	 da																																									 																				 	
07 Para uma síntese do problema, cf. P. Ricoeur, "La tarea . . ." (cf. nota 2), p. 221ss. 
08 B. S. Childs, "The sensus litteralis of Scripture", em: Vários, Beiträge Zur Alttestamentlichen Theologie: Festschrift. W. Zimmerli, 
(Vandenhoeck & Ruprecht, Gotinga 1977) p. 80-93, esp. 88ss. 
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análise	 estrutural	 está	 sendo	 aplicado	 aos	 textos	 bíblicos	 com	 bons	 resultados.	 O	 estudo	 da	chamada	estrutura	profunda,	tanto	narrativa	(ações,	funções)	como	discursiva	(papéis	temáticos,	eixos	de	sentido)	ajuda	a	"centrar"	o	sentido	de	um	texto.	A	estrutura	de	superfície,	comumente	chamada	estrutura	literária	é,	por	outro	lado,	ainda	mais	fecunda	pois	nos	dá	certas	chaves	de	leitura	que	são	resultantes	da	codificação	do	texto.	Enriquecedor	como	é,	esse	método	é	apenas	um	ponto	de	partida	na	busca	pelo	sentido.	Mais	adiante	veremos	como	esse	método	presta	bene-fícios.	Em	si	mesmo,	porém,	é	reducionista	ao	fazer	a	abstração	da	"vida"	do	texto,	sua	história,	seu	contexto	cultural,	social	ou	religioso.		 5. A	HERMENÊUTICA		 O	quinto	caminho	para	ter	acesso	ao	querigma	bíblico	é	o	da	hermenêutica.	Esse	é	o	tema	do	presente	ensaio.	Antes	de	tudo,	porém,	algumas	considerações	preliminares.	Anteriormente	fizemos	 alusão	 ao	 matiz	 do	 termo	 confrontado	 com	 o	 termo	 "interpretação".	 Mas,	 a	 noção	bultmaniana	 de	 hermenêutica	 não	 é	 suficiente,	 nem	 o	 é	 a	 da	 "nova	 hermenêutica"	 de	 Fuchs,	Ebeling	 ou	 seus	 continuadores.9	 Que	 na	 leitura	 da	 Bíblia	 haja	 uma	 pré-compreensão	(Voverständnis),	 isso	 é	 um	 dado	 comum	 e	 extremamente	 valioso	 para	 nós.	 Que	 seja	 um	"acontecimento	 da	 linguagem"	 (Sprachereignis)	 ou	 da	 "palavra"	 (Wortereignis)	 em	 toda	 sua	densidade	presente,	isso	não	a	esgota	nem	é	suficiente.	Não	se	explicitam	as	condições	objetivas	da	Bíblia	enquanto	linguagem,	desvaloriza-se	o	referencial	original	do	texto10	e	se	fomenta	uma	leitura	individualista	da	Bíblia.	Para	 compreender	 a	 hermenêutica	 em	 toda	 a	 sua	 riqueza	 e	 seu	 valor	metodológico,	 é	oportuno	fazer	um	desvio	pelas	ciências	da	linguagem.	Uma	vez	que	a	hermenêutica	tem	a	ver	com	a	interpretação	de	textos	-	ou	de	acontecimentos	codificados	na	linguagem	-,		é	mister	situá-la	sobre	o	fundamento	da	semiótica,	a	ciência	dos	signos,	cuja	expressão	mais	compreensiva	é	a	linguagem	em	seu	sentido	restrito.	Outra	coincidência	reside	no	fato	de	que	tanto	a	hermenêutica	como	a	semiótica	preconizam	a	leitura	como	produção	(e	não	repetição)	de	sentido.		À	primeira	vista	estamos	diante	de	um	paradoxo:	A	hermenêutica	parece	estar	ligada	à	diacronia,	 ao	 devir	 do	 sentido,	 à	 semântica	 ou	 transformação	 do	 sentido	 das	 palavras	 ou	 dos	textos,	ao	passo	que	a	semiótica	concede	um	lugar	privilegiado	à	sincronia,	à	simultaneidade,	às	leis	estruturais	que	dirigem	a	realização	da	linguagem.	Falamos,	porém,	de	"desvio",	não	de	fusão	nem	de	identificação.	São	enfoques	diametralmente	opostos,	porém,	não	contraditórios,	mas	sim,	convergentes.	 Ao	 regressar	 da	 semiótica	 à	 hermenêutica,	 respeitando	 a	 individualidade	 de	ambas,	 esta	última	se	evidenciará	 solidamente	 fundamentada.	Empreendemos,	pois,	um	 longo	caminho,	ao	final	do	qual	a	hermenêutica	bíblica	se	mostrará	melhor	iluminada.		
																																								 																				 	
09 Para uma visão de conjunto, C. E. Braaten, History and Hermeneutics ( Lutterworth Press, Londres 1968) cap. VI; H. Kimmerle, 
"Hermeneutical Theory or Ontological Hermeneutics", em: History and Hermeneutics (Harper & Row , New York 1967) 107-121; 
J. M. Robinson e E. Fuchs, La nuova ermeneutica (Paideia, Bréscia 1967). 
10 O que alguns chamam "o parâmetro ontológico (= histórico)" . Cf. R. Lapointe, Les trois dimensions de l'herméneutique 
(Gabalda, Paris 1967) p. 89ss. 
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Concluímos	esta	introdução	resumindo	os	enfoques	ou	acessos	ao	texto	bíblico	(como	a	qualquer	obra	literária)	com	o	esquema	seguinte	(os	números	remetem	aos	parágrafos	do	texto;	chamará	a	atenção	a	exclusão	do	nº	2):	Abordagens	de	Leitura	do	Texto	(Bíblico)			
 												 A	 figura	 indica	que	um	texto	pode	ser	examinado	a	partir	diferentes	ângulos,	estudado	com	métodos	diversos,	que	não	 se	excluem	mutuamente,	mas	que	devem	convergir	para	uma	melhor	compreensão	da	obra,	em	nosso	caso	a	Bíblia.	A	única	abordagem	que	não	tem	lugar	aqui	é	a	concordista	(no	2),	uma	vez	que	não	leva	ao	sentido,	mas	desvia	dele.	
Métodos histórico-críticos 
(desde o texto até sua origem, 
e retorno ao texto) vd. no 3 
estrutura manifesta	
TEXTO	
componente Narrativo 
 
componente Discursivo 
 
 
Hermenêutica vd. no 5	
 
(não somente da realidade 
presente - vd. nº 1, mas a partir 
dela até o texto e retorno à 
realidade)	
	
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I	-	DA	SEMIÓTICA	À	HERMENÊUTICA		Nosso	interesse	está	na	hermenêutica,	porém,	como	já	anunciamos,	esta	deve	inscrever-se	parcialmente	no	vasto	 campo	da	 ciência	dos	 signos.	Textos	 e	 acontecimentos	humanos	 são	signos	 que	 necessitam	 de	 interpretação.	 Aqui	 não	 é	 o	 lugar	 para	 um	 desenvolvimento	 amplo	sobre	a	lingüística	ou	sobre	semiótica.	Basta	assinalar	alguns	fenômenos	da	linguagem	que	nos	auxiliem	a	compreender	o	fenômeno	hermenêutico.	1. A	LINGUAGEM	COMO	SISTEMA	E	COMO	ACONTECIMENTO		 Na	 lingüística	 é	 comum	 fazer	 distinção	 entre	 "língua"	 (langue/language)	 e,	 "fala"	(parole/speech).	Aquelaé	o	sistema	de	signos	e	 leis	que	regulam	a	gramática	e	a	sintaxe;	uma	espécie	de	"cânone"	que	estabelece	as	regras	do	sentido.	Sua	base	é	a	estrutura	que	supõe	diferen-ças,	oposições	e	relações	fechadas	no	interior	de	cada	idioma,	e	que	funcionam	sincronicamente	mais	no	nível	 inconsciente	do	que	no	nível	 reflexivo.	Em	determinado	 idioma,	o	 repertório	de	signos	lingüísticos	é	finito	e	fechado	(há	um	limite	de	combinações).	Subjacente	a	isso,	no	entanto,	há	uma	polissemia	potencial:	"volume",	por	exemplo,	faz	pensar	em	um	livro	ou	então	em	uma	medida	de	capacidade	na	geometria.	"Castanha"	é	um	fruto	ou	uma	cor.	Em	todos	os	idiomas	há	um	determinado	número	de	vocábulos	polissêmicos.		E	não	somente	isso:	mesmo	os	"monossêmicos",	que	são	maioria,	não	dizem	nada	do	jeito	que	estão	 codificados	em	um	dicionário.	Também	uma	 frase	que	 tem	sentido	 lingüístico	 (	=	o	sentido	é	a	relação	entre	significante	-	o	signo	ou	vocábulo	-	e	o	significado	ou	conteúdo)	pode	ser	equívoca	quanto	ao	seu	referencial	extralingüístico.	"Jesus	Cristo	nos	salva"	é	uma	frase	correta,	tem	 sentido	 gramatical	 e	 existencial,	 porém	é	 equívoca	 em	 seu	 referencial	 (de	que	nos	 salva?	quando?	etc.).	 Falta	 algo	que	 feche	o	 sentido	para	uma	determinada	direção.	Assim	é	a	 língua	enquanto	"competência",	como	dizem	os	lingüistas.		Esse	sistema	de	signos,	no	entanto,	deve	"ser	ativado"	quando	o	usamos	para	dizer	algo	sobre	algo.	Aí	estamos	já	no	momento	da	"fala",	que	pode	ser	entendido	como	o	"acontecimento"	da	língua.	E	o	ato	que	realiza	as	possibilidades	possíveis	através	do	sistema	de	signos.	Três	fatores	auxiliam	para	"fechar	o	sentido"	em	uma	única	direção:		a) O	emissor	ou	locutor	que	seleciona	os	signos	(palavras,	frases,	códigos	ou	gêneros	literários	possíveis	 em	 determinado	 idioma)	 que	 veicularão	 a	 mensagem;	 os	 signos	 somente	 se	relacionam	entre	si,	formando	uma	estrutura;	por	isso	é	fundamental	identificá-la	para	poder	decodificar	uma	mensagem.	Disto	advém	a	 importância	de	toda	a	análise	estrutural	para	a	exegese	bíblica	como	para	a	exegese	de	qualquer	texto.		b) Um	receptor	ou	interlocutor	determinado,	a	quem	se	dirige	a	mensagem	codificada	em	uma	determinada	forma,	e	que	saiba	decifrá-la,	operação	instantânea	que	é	uma	das	maravilhas	da	linguagem	humana.		
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c) Um	contexto	ou	horizonte	de	compreensão	comum	ao	emissor	e	ao	 receptor,	que	permita	fazer	"coincidir"	a	referência	ou	denotação,	aquilo	sobre	o	que	versa	a	mensagem.	Sem	esse	contexto	 comum	 (lingüístico,	 cultural,	 social,	 geográfico	 e	 de	 tantas	 outras	 dimensões	 da	realidade	humana),	a	linguagem	permanece	sendo	polissêmica.			 Pois	bem,	no	ato	do	discurso	-	no	"ato	de	fala"	-	deve	haver	clausura	atual	da	polissemia	potencial	das	palavras	ou	das	frases.	Do	contrário	é	impossível	falar,	a	não	ser	que	se	mantenha	uma	polissemia	deliberada,	como	na	poesia	ou	na	linguagem	simbólica.	Mesmo	neste	caso,	o	con-texto	-	e	em	todo	caso	o	diálogo	entre	os	interlocutores	-	ajuda	a	"fechar"	o	sentido	de	uma	palavra	ou	de	uma	proposição.	Do	contrário,	o	discurso	já	não	é	mais	um	"dizer	algo	sobre	algo".	E	esta	é	a	intenção	de	quem	fala,	escreve	uma	carta	a	um	amigo	ou	relata	uma	história	a	seus	ouvintes.	No	"acontecimento	da	fala",	o	receptor	da	mensagem	realiza	um	processo	de	assimilação	ou	 captação	 do	 código	 lingüístico	 selecionado	 pelo	 emissor	 para	 sua	 comunicação.	 Tal	 como	acontece	 na	música,	 assim	 também	 se	 verifica	 na	 linguagem:	 a	mensagem	 vem	dada	 em	uma	"chave"	ou	código	que	o	ouvinte	identifica	de	imediato.	De	outro	jeito	não	haveria	compreensão.	Confundir	 os	 códigos	 despista	 totalmente	 o	 direcionamento	 da	 mensagem.	 Da	 mesma	 forma	como	é	necessário	sintonizar	a	freqüência	de	onda	num	rádio,	a	mensagem	também	deve	estar	"em	sintonia".		Voltaremos	a	 essa	questão	ao	nos	 referirmos	ao	processo	hermenêutico	propriamente	dito.	 Por	 ora	 recordemos	 somente	 que	 a	 leitura	 tradicional	 da	 Bíblia,	 ao	 interpretar	 todos	 os	textos	em	"chave"	histórica,	tem	falhado	num	ponto	essencial.	Em	nenhuma	outra	literatura	se	cometeu	erros	tão	elementares.	É	como	se	alguém	escutasse	todas	as	composições	musicais	em	uma	única	chave	ou	segundo	o	sentido	de	um	único	gênero!	Por	isso	votamos	a	assinalar	uma	vez	mais	 a	 importância	 das	 ciências	 da	 linguagem	 -	 sobretudo	 da	 "semiótica	 narrativa",	 como	veremos	-	para	afirmar	a	sua	validade	para	a	compreensão	de	textos	bíblicos.	2. A	LINGUAGEM	COMO	TEXTO	E	COMO	ESCRITA		 Da	 língua	 à	 fala,	 da	 competência	 à	 sua	 atualização,	 do	 sistema	 ao	 uso,	 tem	 lugar	 uma	primeira	distanciação,	que	marca	o	"fechamento"	do	sentido.	Tal	"distância"	não	é	temporal	nem	espacial,	é	lógica.		A	 linguagem,	 todavia,	 não	 termina	 nesta	 etapa.	 Com	 efeito,	 produz-se	 uma	 "nova	distanciação"	 (que	 chamaremos	 de	 segunda),	 quando	 o	 discurso	 se	 cristaliza	 em	 um	 "texto"	transmitido.	Entendemos	este	vocábulo	no	seu	sentido	amplo,	uma	vez	que	um	 texto	 também	pode	ser	oral.	Um	mito	ou	uma	canção,	por	exemplo,	costumam	ser	transmitidos	de	geração	em	geração	por	via	oral,	antes	de	serem	fixados	por	escrito.	Quase	todas	as	narrações	bíblicas	foram	de	alguma	forma	tradições	orais.	E	já	eram	"textos".	Segundo	a	etimologia,	texto	é	um	"tecido",	uma	 trama	 em	 que	 os	 elementos	 da	 língua	 (palavras,	 frases,	 unidades	 literárias	 e	 outros	elementos)	 estão	 organizados	 segundo	 funções	 estruturadas	 que,	 como	 tais,	 produzem	 um	sentido.		
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As	 leis	 lingüísticas	da	frase	se	repetem	e	se	ampliam	a	nível	de	relato.	Efetivamente	há	uma	 gramática	 e	 um	 sintaxe	 do	 relato.11	 Aqui	 sublinhe-se	 novamente	 a	 estrutura	 com	 suas	"diferenças"	e	relações	e	com	um	caráter	de	totalidade	organizada.	Um	texto	é	algo	estruturado	e	acabado.	Tem	limites	e	relações	internas.	Esta	condição	do	texto	tem	conseqüências	dignas	de	atenção,	a	primeira	das	quais	é	sua	capacidade	de	dar	sentido	por	aquilo	que	é,	como	codificação	de	uma	mensagem.	Em	segundo	lugar,	o	texto	oral	ou	escrito	se	 abre	 para	 uma	 nova	 compreensão	 graças	 a	 esta	 segunda	 distanciação	 já	 assinalada,	 que	acontece	entre	a	"fala"	ou	ato	de	discurso	e	a	inscrição	do	sentido	neste	ou	naquele	texto.	Esta	distância	tem	lugar	nos	três	fatores	que	antes	contribuíam	para	o	fechamento	do	sentido	e	agora	contribuem	para	abri-lo.	Vamos	enumerá-los	e	explicá-los	na	mesma	ordem:		a) No	texto	desaparece	o	emissor	original.	O	autor	(se	falamos	de	escritura)	"morre"	no	próprio	ato	de	codificar	sua	mensagem.	A	inscrição	do	sentido	em	um	relato	ou	texto	qualquer	é	um	ato	criativo,	no	qual,	para	dizê-lo	simbolicamente,	deixa-se	a	vida.	Avaliar	as	conseqüências	deste	fenômeno	é	significativo	para	a	hermenêutica	que	faz	o	desvio	pela	lingüística	e	invalida	as	tentativas	de	recuperar	uma	antiga	formulação	(veja	Schleiermacher)	ou	o	esforço	dos	mé-todos	histórico-críticos	de	recuperar	e	fazer	reviver	o	autor	de	um	texto.			b)	 Também	o	primeiro	"receptor"	ou	interlocutor	não	está	presente.	Quem	lê	um	texto	escrito	ou	escuta	 um	 relato	 tradicional,	 um	 mito	 ou	 uma	 passagem	 bíblica,	 não	 é	 o	 seu	 primeiro	destinatário	(=	narratário	no	léxico	da	semiótica).	Esta	troca	dos	destinatários	da	mensagem	é	 muito	 mais	 evidente	 nos	 textos	 religiosos,	 míticos	 ou	 não,	 que	 pretendem	 ter	 uma	significação	permanente	ao	longo	de	gerações	e	séculos.		c)	 Pela	mesma	 razão,	 desvanece-se	 o	 horizonte	 do	 primeiro	 discurso,	 seja	 porque	 o	 contexto	cultural	 ou	 histórico	 não	 é	 o	 mesmo,	 seja	 porque	 os	 destinatários	 atuais	 que	 recebem	 a	mensagem	têm	um	outro	"mundo"	de	interesses,	preocupações,	cultura,	etc.		 Estes	 três	 aspectos	 (muito	 assinalados	 por	 P.	 Ricoeur	 em	 seus	 últimos	 trabalhos	 de	hermenêutica),12	tomadosem	conjunto,	contribuem	para	compreender	o	processo	hermenêutico.	Com	efeito,	a)	o	autor	desaparece	como	entidade	que	"fala",	e	a	quem	pode-se	perguntar	pelo	sentido	daquilo	que	"diz".	Em	conseqüência,	o	narrador	não	é	uma	pessoa	de	carne	e	osso,	mas	sim,	um	pressuposto	 lingüístico.	Alguém	narra	ou	escreve,	porém	somente	no	 texto	é	possível	reconhecê-lo.	Essa	ausência	 física	é	 riqueza	 semântica.	O	 fechamento	do	sentido	 imposto	pelo	locutor,	modifica-se	agora	em	abertura	do	sentido.	O	narrador	é	o	próprio	texto,	não	alguém	de	fora	a	quem	se	pudesse	pedir	explicações.	Esta	concentração	no	texto	permite	explorar	as	suas	possibilidades	 significativas	 enquanto	 texto.	 b)	 Bem,	 o	 surgimento	 de	 um	 novo	 receptor	 da																																									 																				 	
11 É um elemento muito enfatizado na semiótica narrativa, analisado em detalhe por todos os que investigam a análise estrutural 
do relato (R. Barthes, T. Todorov, J. Kristeva, etc.). Para o caso da Bíblia, veja, por exemplo, J. Calloud, Structural Analysis of 
Narrative (Fortress Press, Filadélfia 1976). 
12 P. Ricoeur, "Événement et sens", Archivio di Filosofia (1971) 15-34; Id., "La función hermenéutica de la distanciación", em: 
Vários, Exégesis (cf. nota 2), pp. 245-261, esp. p. 247ss. 
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mensagem,	por	sua	vez	situado	em	um	novo	horizonte	de	compreensão,	distancia	ainda	mais	o	texto	 de	 seu	marco	 original	 e	 do	 contato	 com	 seu	 autor.	 Quando	 alguém	 fala,	 transmite	 uma	mensagem	 (linguagem	 locucional,	 como	 se	 diz),	 fá-lo,	 contudo,	 com	 força	 ou	 intensidade	determinadas	(linguagem	inlocucional	expressada	pela	entonação,	pelos	gestos,	etc.)	e	com	um	efeito	que	faz	parte	da	mensagem	(linguagem	perlocucional).13	Pois	bem,	na	leitura	de	um	texto	perdem-se	os	dois	últimos	aspectos,	pois,	em	ordem	decrescente,	mais	dificilmente	podem	ser	inscritos	em	um	código.		Por	isso	não	é	a	mesma	coisa	ler	ou	escutar	como	primeiro	destinatário	ou	como	segundo.	Nem	mesmo	 escutar	 uma	 gravação	 repete	 a	 primeira	 enunciação;	mesmo	 que	 não	 variem	 os	destinatários,	o	contexto	ao	menos	já	não	seria	o	mesmo	e	o	texto	produziria	efeitos-de-sentido	diferentes.	Por	sua	vez,	quando	"escutamos''	um	texto,	aquele	que	fala	é	o	texto	e	não	aquele	que	o	lê	em	voz	alta	para	os	outros.	Este	é	apenas	mais	um	dos	destinatários!	Tampouco	fala	o	autor,	pois	esse	já	não	está	presente.	Sua	presença	é	tão	aparente	como	dizer	que	o	sol	gira	em	torno	da	terra.	Uma	vez	mais	voltamos	à	autonomia	do	texto,	que	condicionará	a	abertura	hermenêutica	do	ato	de	ler.	Mas	o	que	acontece	então?	Substitui-se	o	horizonte	finito	do	autor	pela	infinidade	textual.	O	 relato	 se	 abre	novamente	a	uma	polissemia,	 que	não	 somente	é	potencial	 como	ao	nível	da	"língua",	mas	sim	potenciada	por	aquela	rede	de	significado	que	é	a	obra.	Por	essa	abertura	do	texto	introduz-se	o	novo	destinatário	com	seu	próprio	"mundo".		Podemos	 entender	 que	 uma	 carta	 de	 Paulo	 dirigida	 a	 destinatários	 concretos	(colossenses,	romanos,	etc.),	onde	o	autor	e	seus	leitores	se	referiam	a	um	problema	específico,	teve	que	trocar	de	perspectiva	quando	se	universalizou	na	igreja	primitiva.	Os	novos	receptores	do	texto	não	estavam	delimitados	pela	leitura	prévia	dos	cristãos	desta	ou	daquela	igreja,	nem	podiam	perguntar	a	Paulo	o	que	quis	dizer	nesta	ou	naquela	frase.		Todo	texto	está	aberto	a	muitas	leituras,	nenhuma	das	quais	é	repetição	da	outra.	Quanto	maior	a	distância	em	relação	ao	autor,	 tanto	maior	dimensão	adquire	a	 releitura	de	um	 texto.	Inversamente,	quanto	maior	é	a	riqueza	semântica	de	um	relato,	mais	distante	está	o	autor	da	mente	do	intérprete.		Por	essa	razão,	os	textos	sagrados	ou	os	relatos	míticos	costumam	ser	anônimos.	Isto	não	somente	por	às	vezes	serem	criação	progressiva	de	uma	comunidade,	mas	sobretudo	porque	têm	mais	 significação	por	 aquilo	que	dizem	do	que	por	 aquele	que	o	diz.	 Parece	que	 sua	 carga	de	sentido	é	mais	densa	quanto	menos	se	sabe	sobre	seus	autores.	Assim,	para	o	caso	da	Bíblia,	não	temos	 notícia	 de	 nenhum	 autor	 dos	 livros	 do	 Antigo	 Testamento	 e	 de	 poucos	 do	 Novo	Testamento.14		É	 próprio	 (porém	 não	 exclusivo)	 dos	 textos	 religiosos	 a	 "atribuição"	 posterior	 a	 uma	determinada	figura	(p:	ex.:	os	Salmos	de	Davi,	o	Pentateuco	de	Moisés,	a	Sabedoria	de	Salomão,	algumas	epístolas	do	Novo	Testamento	a	Paulo,	etc.),	quando	esta	já	é	significativa	por	alguma	razão.	 Trata-se	 de	 um	 acontecimento	 hermenêutico	 que	 será	 esclarecido	 no	 decorrer	 do																																									 																				 	
13 J. L. Austin, How to do Things with Words (Harvard Univ. Press, Mass 1975); J, R. Searle, An Essay in the Philosophy of 
Language (CUP, Cambridge 1969) 
14 O livro de Siraque ou Eclesiástico leva o nome de seu autor, mas no texto grego (da LXX) é Jesus, filho de Siraque (50.27; 
51.30), no hebraico (canônico) é seu filho Simeão. O prólogo literário do tradutor diz ser do seu avó Jesus (v. 6). Essa dupla 
tradição é significativa. 
 
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desenvolvimento	do	nosso	tema.	Outra	faceta	do	mesmo	fenômeno	é	a	ampliação	de	um	texto	de	um	determinado	autor	através	de	sucessivas	releituras,	 sem	que	na	 tradição	se	modifique	sua	autoria.	Este	é	o	caso	do	Evangelho	de	Mateus	e	outros	escritos	do	Novo	Testamento.	Mateus	é	autor	do	núcleo	aramaico	primitivo;	a	 forma	atual	do	primeiro	evangelho	é	uma	reelaboração	subseqüente.	Na	tradição,	porém,	continua	sendo	o	texto	de	Mateus	(sobre	essa	questão,	veja	um	pouco	mais	adiante,	em	I,	3,	b).	Para	concluir	esta	parte,	resumimos	o	tema	com	uma	figura	que	retoma	aspectos	centrais	do	que	tratamos:	língua	 fala	 texto/escritura	fonemas/termos		sistemas		
frase		uso/"acontecimento"	
relato		códigos	narrativos/estrutura	
repertório	finito	e	fechado		 repertório	infinito	 	nome	 diz	algo	sobre	algo	para	alguém	 diz	algo	sobre	algo	a	uma	infinidade	de	narradores			atemporal	 passageiro	 Permanente		polissemia	 clausura/fechamento		 polissemia		 		1ª	distanciação	
	 		2ª	distanciação	
	
	 3. A	LEITURA	COMO	PRODUÇÃO	DE	SENTIDO.	O	ATO	HERMENÊUTICO		 Na	semiótica	diz-se	que	o	sentido	não	é	algo	"objetivo"	e	palpável	que	está	no	texto	em	estado	puro,	de	modo	que	o	exegeta	pudesse	encontrá-lo	graças	a	sua	habilidade	técnica	e	seus	recursos	filológicos	e	históricos.	Se	fosse	assim,	bastaria	descobrir	o	sentido	de	um	texto.	Assim,	
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quando	há	muitas	interpretações,	todas	menos	uma	estariam	erradas.	A	decisão	sobre	qual	é	a	verdadeira	viria	de	uma	"autoridade"	extratextual.	Em	 última	 instância,	 este	 esquema	 supõe	 que	 o	 sentido	 de	 um	 texto	 coincide	 com	 a	intenção	de	seu	autor	e	que	o	leitor	atual	repetirá	a	leitura	que	fizeram	os	primeiros	destinatários.	E	assim	nos	atolamos	no	"historicismo"	exegético.	E	o	que	é	pior,	a	mensagem	resulta	atrofiada	e	não	pode	desprender-se	em	novas	leituras	criativas.	Talvez	até	deixe	de	ser	mensagem.	O	processo	da	reinterpretação	é,	sem	dúvida,	 tão	pujante	que	as	 tentativas	de	"fixar"	o	sentido	de	um	texto	bíblico	acabaram	terminando	em	fórmulas	que,	com	o	tempo,	por	sua	vez	necessitam	ser	 relidas,	o	que	significa	que	a	pretensão	de	 fechar	o	sentido	de	um	texto	é	vã	e	irreal.	 De	 fato,	 toda	 leitura	é	produção	de	um	discurso	e,	portanto,	de	um	sentido,	a	partir	do	texto.	Não	se	lê	umsentido,	mas	sim	um	texto,	um	relato	numa	operação	que	coloca	em	ação	a	competência	 deste,	 estudada	 pela	 semiótica.	 Desta	 maneira,	 o	 texto	 se	 abre	 para	 diferentes	organizações	seletivas.	Por	um	lado,	a	mesma	análise	estrutural	do	relato	(programa	narrativo:	ações,	funções)	e	do	discurso	(eixos	semânticos,	quadrado	semiótico,	verificação,	etc.15,	enquanto	organização	 de	 um	 sentido	 em	 meio	 a	 outras	 possibilidades	 das	 palavras	 ou	 temas	 de	 uma	determinada	sociedade	ou	cosmovisão	não	dá	resultados	matemáticos	senão	que	se	diferencia	segundo	 distintas	 combinações	 efetuadas.	 Acontece	 que	 a	 linguagem	 mesma	 combina	 tantos	elementos	sêmicos	que	nenhuma	análise	pode	manifestá-los	por	completo.		Como	já	assinala	J.	Greimas,	a	pluralidade	de	leituras	sugeridas	pela	prática	semiótica	não	se	deve	ao	fato	de	que	um	texto	seja	ambíguo,	mas	sim	que	é	suscetível	de	dizer	muitas	coisas	ao	mesmo	tempo.16	E	isto	apesar	de	que	a	análise	estrutural	não	é	propriamente	a	interpretação	do	texto,	mas	tão-somente	uma	etapa	preparatória.		Por	isso	acontecem,	por	outro	lado,	no	nível	propriamente	interpretativo,	leituras	que	se	fazem	a	partir	de	diversas	disciplinas.	Um	mesmo	 texto	pode	 ter	uma	 leitura	 fenomenológica,	histórica,	 sociológica,	 psicológica,	 literária,	 teológica	 e	 outras	mais.	 Cada	 uma	 das	 leituras	 do	mesmo	 relato	 é	 uma	 produção	 de	 um	 discurso	 a	 partir	 desse	 texto.	 Isso	 é	 possível	 porque	 o	discurso	coloca	em	jogo	uma	pluralidade	de	códigos	que	cada	leitura	seleciona	e	organiza.	Por	sua	vez,	as	leituras	feitas	a	partir	daqueles	níveis	não	são	exclusivas	de	um	intérprete	que	descobre	o	sentido.	Cada	leitura	é	uma	produção	de	sentido.	Já	sabemos	que	o	autor	"morre"	em	benefício	daquilo	que	ele	cria	como	texto:	este	inscreve	em	si	mesmo	-	enquanto	estrutura	de	códigos	-	a	instância	 de	 produção	 e	 a	 instância	 de	 leitura	 e	 interpretação.	 Em	 outras	 palavras,	 faz-se	polissêmico,	 mesmo	 olhando	 somente	 a	 partir	 do	 ponto	 de	 vista	 da	 semiótica.	 Tem	 várias	possibilidades	de	sentido,	que	afloram	quando	se	o	lê	selecionando	os	códigos	nele	armazenados.	Se	tiver	experiência	na	leitura	de	textos,	o	leitor	pode	tomar	consciência	de	que	o	fenômeno	da	leitura	é	assim.		Porém,	 para	 completar	 nossas	 observações,	 poderíamos	 exemplificá-las	 com	 uma	passagem	bíblica.	Tomemos	por	exemplo	 Jo.	1.35-51.	Quanto	 se	 tem	dito	 sobre	este	 texto	nos	comentários	exegéticos	e	quanta	inspiração	tem	recebido	a	prática	cristã	do	seguimento	a	Jesus!																																									 																				 	
15 Para estes termos, cf. Grupo de Entrevernes Análisis semiófico de los textos. Introducción-Teoria-Práctica (Cristiandad, Madrid 
1982); Id., Signos y parábolas. Semiótica y texto evangélico. (ib. 1979); Vários, Iniciación en el análisis estructural (Verbo Divino, 
Estella 1980). 
16 Cf. Signos y parábolas (nota anterior) p. 236. 
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Sempre	se	pode	voltar	ao	 texto	e	uma	ou	outra	vez	produzir	 sentido.	Uma	maneira	de	 fazê-lo	consiste	 em	 identificar	 os	 diferentes	 códigos	 que	 se	 entrecruzam	nesta	 perícope.	 Tomemos	 o	relato	em	sua	forma	atual	e	isolemos	os	papéis	temáticos	à	medida	em	que	vão	entrando	em	cena.	"No	dia	seguinte"	liga	com	o	relato	anterior	(v.	29,	que,	por	sua	vez,	remete	ao	"quando"	do	v.	19)	e	 se	 repete	 no	 v.	 43	 para	 então	 completar-se	 com	 a	 expressão	 "três	 dias	 depois"	 de	 2.1.	 Este	código,	que	parece	artificial,	vai	 tecendo	uma	teologia	da	primeira	semana	da	nova	criação,	na	qual	o	Logos	é	preexistente	(Jo.	1.1)	como	a	Palavra	na	criação	do	mundo	(Gn.	1.1	na	releitura	do	Targum).	Este	tema	não	está	dito	em	uma	fórmula	assim	como	o	acabamos	de	descrever,	porém	através	da	estrutura	do	relato;	estrutura	esta	que,	por	sua	vez,	se	combina	com	os	outros	códigos	de	maneira	tal	que	mutuamente	se	dão	sentido.	Este	é	o	jogo	do	relato.	Logo	 segue	 uma	 situação	 de	 encontro	 humano:	 João	 encontra	 dois	 discípulos	 seus	 (v.	35b).	Estes	 logo	se	encontram	com	Jesus	(v.	39).	Um	deles,	André,	encontra-se	com	seu	 irmão	Simão	(v.	41a)	e	 lhe	testemunha	que	"encontramos	o	Messias"	(v.	41	b).	No	v.	43	começa	uma	nova	 série	 de	 encontros:	 Jesus	 com	 Felipe,	 logo	 em	 seguida,	 este	 com	 Natanael	 e	 lhe	 diz:	"encontramos	aquele	de	quem	escreveram...	,"	(v.	45).	No	final	de	cada	série,	o	"encontrar"	oscila	entre	o	físico	e	o	espiritual,	sendo	enfatizado	o	segundo	com	o	sentido	de	"reconhecer"	(o	Messias,	aquele	de	quem	escreveram	Moisés...).	Tal	"encontro"	somente	é	possível	em	um	plano	superior.		Muito	bem,	este	deslocamento	também	se	dá	com	outros	códigos.	Notável	é	o	visualizar	(ver,	fixar-se)	que;	a	partir	de	um	simples	plano	corporal	(vv.	36,	38,	39	x	2,	42,	46,	47,	50)	até	outro	mais	profundo	(w.	48,	50	"verás	coisas	maiores"),	termina	com	um	"ver"	teofânico	(v.	51	).	É	evidente	que	este	motivo,	nas	seqüências	seguintes,	liga-se	com	o	da	aceitação	dos	sinais	(cf.	2.1	1	e	os	outros	relatos	de	milagres).	Os	sinais	efetivamente	"são	vistos".	Este	"ver"	joanino	remete	à	 fé,	 não	 em	 sua	 dimensão	 física	 (cf.	 v.	 50	 e	 seu	 correlato	 de	 20.29),17	 	 mas	 sim	 porque	 a	encarnação	da	Palavra	mediatiza	as	realidades	da	fé	através	das	coisas	humanas.	Por	isso	há	em	João	tanta	relevância	no	tema	da	fé	no	Enviado.	No	 nosso	 relato	 é	 visível	 também	 o	 código	 onomástico	 (há	 abundância	 de	 nomes	próprios),	em	especial	da	dupla	menção	de	"Jesus",	definido	como	o	filho	de	José,	o	de	Nazaré	(v.	45).	 Bem,	 no	 texto	 total	 do	 quarto	 evangelho,	 os	 personagens	 vão	 recebendo	 títulos	 ou	identificações	 de	 valor	 teológico.	 Assim	 temos,	 portanto,	 o	 código	 das	 identificações,	provavelmente	o	mais	significativo	neste	lugar.	Jesus	é	"cordeiro	de	Deus"	(v.	36),	"mestre"	(v.	38,	que	mantém	a	forma	hebraica	rabbi	para	inseri-lo	na	tradição	magisterial	judaica	e	não	confundi-lo	com	um	didáskalos	grego),	"messias"	(v.	41	),	"aquele	de	quem	escreveram	Moisés,	na	Lei,	e	os	profetas	(v.	45),	"filho	de	Deus/	rei	de	Israel"	(v.	49),	"Filho	do	homem"	(v.	51	).		Este	 número	 de	 seis	 identificações,	 que	 preparam	 para	 relatos	 posteriores,	 já	 é	 im-portante	como	simples	registro.	Isso,	porém,	não	é	tudo.	Além	disso	estão	dispostos	nos	lugares	certos.	Abrem	e	fecham	o	relato	total	dos	w.	35-51.	Cada	série,	presidida	pela	referência	temporal	"no	dia	seguinte"	(w.	35-42	e	43-51	),	contém	três	identificações	de	Jesus	e	outra	de	um	agente	humano:	Simão	=	Cefas/pedra,	na	primeira;	Natanael	=	verdadeiro	israelita,	na	segunda	(w.	41	e	47).	Na	segunda	série,	as	identificações	de	Jesus	se	contrabalançam	com	o	"sentido"	do	AT	e	de	Natanael	como	verdadeiro	israelita,	referência	evidente	ao	"sentido"	de	Israel.		
																																								 																				 	
17 Na estrutura atual do quarto evangelho, Jo. 1-2 tem sua correlação em 20-21. 
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Por	 fim,	 existe	 um	 código	de	movimento	 (ir,	 vir,	 seguir:	w.	 37,	 38,	 39,	 40,	 43,	 46)	 que	remarca	o	seguimento	a	Jesus	e	que,	por	sua	vez,	semanticamente	se	contrapõe,	porém	teologica-mente	 se	 complementa	 como	 o	 "ficar/permanecer"	 do	 v.	 39.	 Este	 em	 outro	 nível,	 prepara	 o	ménein	ou	"permanecer"	em	Jesus,	tão	tipicamente	joanino.		Pode-se,	todavia,	explorar	ainda	mais	este	relato	tão	bem	"tecido"	por	diferentes	códigos	e	 tão	 fecundo	 à	 luz	 da	 semiótica.	 Manifesta-se	 aí	 a	 aventura	 de	 ler	 um	 texto	 como	 produção	inesgotável	 de	 sentido	 e,	 portanto,	 como	 recriação	 constante	 da	 mensagem.	 Na	 parte	 II	abordaremos	 outros	 caminhos	 de	 exploraçãoda	 mensagem	 de	 um	 texto	 reforçados	 pela	contribuição	da	semiótica.	4. IMPLICAÇÕES	DA	LEITURA	COMO	PRODUÇÃO	DE	SENTIDO		 Nesta	 relação	 entre	 semiótica	 e	 hermenêutica,	 entre	 força	 do	 texto	 e	 força	 da	 vida,	verificam-se	certos	efeitos	e	certas	exigências	que	convém	expor	para	tomar	melhor	consciência	dos	alcances	de	uma	leitura	interpretativa	dos	textos	bíblicos:			a. TRANSFORMAÇÃO	E	OCULTAMENTO		 Em	todo	texto	há	um	"adiante",	esse	mundo	de	sentidos	que	se	abre	em	virtude	de	sua	polissemia,	potenciada	por	sua	própria	condição	de	estrutura	lingüística	e,	como	sabemos,	pela	"morte"	de	seu	autor.	O	sentido	está	no	texto	e	não	na	mente	de	seu	autor.	No	texto,	por	sua	vez,	não	está	como	entidade	separável,	mas	sim	"codificado"	em	um	sistema	de	signos	que	constituem	o	relato	e	que	"dizem	algo	sobre	algo"	por	sua	manifestação	como	determinado	discurso.		Em	boa	parte,	isto	resume	os	pontos	anteriores.	Agora	queremos	destacar	até	que	ponto	cada	leitura	de	um	texto	que	"diz"	transforma	aquilo	que	diz	e	aquilo	sobre	o	que	diz,	ocultando	precisamente	 esta	 transformação.	 Vamos	 tematizá-lo	 com	 os	 relatos	 intitulados	 de	 "Servo	 de	Javé",	de	Dêutero-Isaías.	As	passagens	em	questão	são	Is.	42.1	-7;	49.1-9a;	50-4-1	1;	52.13-53.12.	Pressuposta	esta	uma	independência	original	destes	poemas	com	relação	à	composição	de	Isaías	40-55	(Dêutero-Isaías),	e	também	da	formação	do	atual	"livro"	de	Isaías	1-66,	é	possível	neles	discernir	um	personagem	de	traços	reais	(de	rei),	que	recebe	de	Deus	a	missão	de	libertar	o	povo	de	Israel	cativa	entre	as	nações.	É	perseguido	e	humilhado	até	a	morte,	ao	final,	porém,	é	exaltado.	Seu	sofrimento	era	vicário,	uma	vez	que	"eram	nossos	os	males	que	levava,	nossas	as	dores	 que	 suportava	 (53.4),	 por	 nossas	 transgressões	 foi	 entregue	 à	morte	 (v.	 8),	 carregou	 o	pecado	de	muitos	(v.	12)".	O	discurso	é	portador	de	um	sentido	que	resulta	da	organização	de	códigos	 profundos	 (ações	 e	 funções)	 e	 de	 superfície	 (símbolos,	 recursos	 estilísticos,	 gêneros	literários,	etc.).	O	texto	dá	sentido	pela	disposição	de	tais	significantes	lingüísticos	que	remetem	a	 significados	 que	 permanecem	 no	 interior	 do	 próprio	 relato,	 ainda	 que	 não	 mais	 tenhamos	notícias	 sobre	 seu	 "referente"	 extralingüístico	 (Joaquin?	 Zorobabel?	 O	 próprio	 Israel?	 Algum	profeta?	Um	sábio?).18	
																																								 																				 	
18 Cf. ultimamente P. Grelot, Les poèmes du Serviteur. De la lecture critique à I'herméneutique (Cerf, Paris 1981) 67-73. 
Dyeenmes Procópio de Carvalho
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Os	métodos	 críticos	da	exegese	bíblica	nos	ajudam	a	 identificar,	 um	possível	 referente	para	estes	poemas,	porém	não	está	aí	a	chave	de	leitura.	É	apenas	uma	tentativa	de	recuperar	o	"atrás"	do	texto,	a	situação	de	vida	que	o	originou	como	primeira	produção	de	sentido.	Importante	como	é	a	leitura	"histórica"	destes	textos,	permanecer	nela	é	um	risco	que	se	deve	evitar.	O	que	se	pretende,	na	verdade,	é	reduzir	o	sentido	à	sua	primeira	produção,	e	 isso	esgota	o	texto	no	momento	em	que	começa	a	mostrar	sua	polissemia.	E	o	mais	sério	é	atrelar-se	a	uma	forma	de	"historicismo"	do	qual	 logo	 surgem	os	 concordismos	 exegéticos	 que,	 sob	pretexto	 ingênuo	de	destacar	 a	 relevância	 da	 Palavra	 de	 Deus	 para	 o	 presente,	 imobilizam-na	 em	 sua	 primeira	referência.	Dessa	maneira,	práticas	tão	opostas	como	a	exegese	crítica	e	o	concordismo	fundem-se	na	tentativa	de	cristalizar	o	sentido	dos	textos.	Com	isso,	por	fim,	privilegia-se	o	"referente"	(fenômeno	extra-língüístico)	em	detrimento	do	significado	do	próprio	texto.	Bem,	é	deste	e	não	daquele	que	emanam	as	releituras.	Eis	aqui	um	princípio	importante	que	novamente	conjuga	a	semiótica	com	a	hermenêutica.	O	"referente"	de	um	texto	é	um	fechamento	de	sentido	no	próprio	momento	de	sua	produção.	Um	texto,	como	toda	linguagem	em	ação,	somente	pode	comunicar	uma	mensagem	através	de	alguma	forma	de	clausura	que	lhe	imprime	justamente	o	"referente"	extralingüístico,	 aquilo	 a	 que	 o	 texto	 se	 refere	 para	 dizer	 algo	 a	 alguém.	 Em	 contraposição,	 o	próprio	 texto,	 enquanto	 estruturação,	 de	 significantes	 e	 significados	 que	 geram	 sentido,	 é	polissêmico	e	demonstra	uma	tendência	muito	forte	a	não	reter	o	"referente"	histórico,	sobretudo	nos	textos	religiosos	e	naqueles	que	são	interpretados	uma	e	outra	vez.	Aquele	acaba	sendo	um	peso	que	necessita	ser	lançado	fora.		Cremos	que	este	é	justamente	o	caso	dos	cânticos	do	"Servo"	dêutero-isaiânico.	Por	que	não	se	reteve	o	personagem	histórico	a	que	se	referiram	alguma	vez?	Por	que	há	necessidade	de	identificá-lo	 através	 de	 tantas	 hipóteses	 já	 conhecidas	 para	 compreender	 estes	 magníficos	relatos?	 Hipóteses	 que,	 por	 seu	 lado,	 talvez	 nos	 remetem	 ao	 estado	 pré-redacional	 que	 não	constitui	o	nível	do	texto	querigmático	atual.	Saber	se	a	figura	do	"Servo"	era	Joaquin	ou	algum	outro	personagem	apenas	esclareceria	a	gênese	do	texto,	não,	porém,	o	texto	mesmo.	É	um	erro	de	perspectiva.	O	próprio	fato	de	que	os	poemas	em	questão	não	indicam	o	referente	de	maneira	explícita	deixa	mais	aberta	a	própria	interpretação.	A	própria	expressão	poética	e	simbólica	aponta	para	essa	 direção.	 Ainda	 que	 a	 favoreça,	 esta	 não	 é	 a	 única	 condição	 da	 polissemia	 do	 sentido.	 Os	relatos	são	polissêmicos	por	sua	própria	estrutura	lingüística.	Assim	projetam-se	até	o	"adiante",	reclamando	a	manifestação	de	um	excesso-de-sentido.	Por	isso	sua	leitura	será	uma	produção	de	sentido,	nunca	uma	repetição	do	primeiro	sentido.	Isto	é	fundamental	para	entender	o	processo	hermenêutico.	 Não	 é	 estranho,	 então,	 que	 nossos	 cânticos	 tenham	 sido	 relidos	 por	 gerações	sucessivas	em	normas	tão	diferentes.	Vamos	apontar	quatro	etapas:		1.	A	recensão	canônica	já	tem	alguma	marca	de	atualização	do	referente	como	recurso	para	fechar	o	sentido	dos	poemas.	Em	Isaías	49.3,	o	texto	hebraico	transmitido	identifica	o	Servo	com	Israel	("E	tu,	Israel,	és	meu	servo").	A	nível	de	releitura	não	importa	muito	a	contradição	interna	com	os	vv.	 5-6,	 que	mencionam	 seu	 envio	 para	 Israel.	 Para	 a	 crítica	 literária,	 trata-se	 de	 uma	 "glosa	incoerente".	Hermeneuticamente,	essa	glosa	é	rica	como	transposição	do	sentido	a	um	referente	atualizado	pelas	necessidades	da	comunidade	que	transmitiu	o	texto.		
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2.	 Na	 Septuaginta	 (LXX)	 predomina	 a	 interpretação	 coletiva:	 os	 poemas	 são	 constantemente	referidos	ao	Israel	perseguido	da	diáspora,	deixando	também	claro	a	sua	missão	salvífica.19		3.	 O	 Novo	 Testamento	 novamente	 retoma	 a	 interpretação	 individual,	 favorecida	 pela	 própria	simbologia	dos	textos,	que	falam	de	uma	pessoa	singular	(isso	não	significa,	digamo-lo	uma	vez	mais,	 que	 os	 poemas	 se	 refiram	 a	 um	 indivíduo).	 Dessa	 forma,	 não	 é	 difícil	 passar	 à	 leitura	cristológica.	Essa	releitura	à	luz	do	fato	Crístico	tem	sido	tão	forte	que	impregna	muitas	páginas	do	Novo	Testamento.20		4.	O	Targum	de	Jonatã	(século	II	d,	C.)	retoma	a	exegese	coletiva	(	=	Israel	)	para	Isaías	49.7;	aplica	ao	Messias	 o	 oráculo	 de	 Isaías	 42.l	 ss,	 ao	 profeta	 Isaías	 o	 texto	 do	 capítulo	 50.4-11.	 Evita,	 no	entanto,	fazer	qualquer	alusão	ao	Messias	no	quarto	poema	(Is	52.13-53.12).			 Como	 foram	 possíveis	 tantas	 releituras	 de	 um	 mesmo	 texto	 sagrado,	 se	 de	 alguma	maneira	o	texto	não	estava	aberto?	Pela	mesma	razão	nós	podemos	relê-lo	sem	estar	limitados	pela	 leitura	 cristológica	 d	Novo	Testamento,	 entendida	 como	 definitiva	 e	 única	 para	 nós.	 O"	 '	próprio	 Paulo,	 no	 seu	 tempo,	 estendeu	 a	 si	 mesmo,	 como	 pregador	 perseguido,	 a	 figura	 do	"Servo",	 luz	das	nações	 (GI	 1.15;	 em	um	dosrelatos	 lucânicos	 sobre	 a	 vocação	de	Paulo,	Atos	26.18;	e	no	episódio	de	Antioquia,	At	13.47).	Também	hoje	existem	situações	de	pessoas,	grupos	ou	povos	que	reclamam	um	nova	interpretação	destes	poemas,	que	tão	bem	trasladam	a	presença	de	Deus	e	a	confiança	de	quem	trabalha	em	seu	serviço.	Todas	estas	releituras	do	texto	dêutero-isaiânico	não	estão	condicionadas	pelo	primeiro	referente	do	relato,	 inexoravelmente	perdido,	mas	pelo	próprio	texto	em	virtude	se	sua	polissemia	literária	codificada.		b. DEPENDÊNCIA	TEXTUAL		 O	que	chama	a	atenção	em	toda	interpretação	de	um	texto	é	o	fato	de	que	ela	necessita	partir	 do	 texto.	 Não	 pode	 aparecer	 como	 um	 adendo	 arbitrário	 e	 acidental;	 ela	 pretende	 ser	leitura	do	texto	transmitido.	Quando	Jesus	ressuscitou,	dirigiu-se	aos	discípulos	de	Emaús	e,	para	censurá-los	("Ó	insensatos	e	lentos	de	coração	para	crer	tudo	o	que	os	profetas	anunciaram.	Não	era	necessário	que	o	Messias	sofresse	tudo	isso	e	entrasse	em	sua	glória?"	Lucas	24.25s),	remete	a	um	texto,	o	qual	está	interpretando.	Muito	bem,	não	existe	nenhum	relato	profético	do	Antigo	Testamento	que	 contenha	o	 referente	messiânico	que,	 segundo	Lucas,	 Jesus	 afirma.	Por	outro	lado,	é	evidente	sua	alusão	aos	cânticos	do	"Servo"	de	Isaías	40.45	(cf.	também	o	v.	46	"assim	está	escrito	que	o	Messias	padeceria	e	ressuscitaria	dentre	os	mortos	ao	terceiro	dia").	É	difícil	crer	que	Lucas	se	faça	eco	da	tradição	rabínica	sobre	o	Messias	filho	de	José,	Messias	efraimita	que,																																									 																				 	
19 Por exemplo, Is. 49.6b diz assim na LXX: "E eis que te estabeleci como luz das nações, para que sejas a salvação até os 
confins da terra" (o grifado marca o desvio em relação ao texto hebraico, modificando profundamente seu sentido). Cf. P. Grelot, 
op. cit., p. 82ss. 
20 Lista de passagens e comentário à luz do texto hebraico, em P. Grelot, op. cit., p. 138-189 (encontra no Novo Testamento 
reminiscências, imitações, citações diretas; os textos onde se retoma os Cânticos são: Paulo, Hebreus, 1 Pedro, Lucas e Atos, 
Mateus, João e (provavelmente) Marcos. 
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segundo	alguns	textos,	deveria	padecer.21	Evidencia-se,	pois,	claramente	a	dependência	de	Lucas	em	relação	às	tradições	messiânicas	davídicas	(nascimento	de	Jesus	em	Belém;	referências	a	Davi,	Lc.	1.	32,69;	3.31;	20.41-44;	teologia	de	Jerusalém).	Por	outro	lado,	esse	recurso	hipotético	não	é	necessário.	Para	ser	mais	exato,	a	citação	lucânica	mostra	um	"remendo"	ao	texto	profético	que	é	efeito	 reversível	 tanto	do	 fenômeno	 lingüístico	da	polissemia	 (cf.	parágrafo	anterior)	 como	da	dependência	"textual"	do	ato	hermenêutico.	A	releitura	se	faz	"texto".	A	releitura	que	o	Jesus	de	Lucas	24	faz	de	Isaías	53	é	uma	produção	de	sentido	e	se	expressa	como	um	discurso	sobre	um	outro	discurso	anterior	incorporado	naquele.	Em	perspectiva,	parece	que	houve	um	só	discurso,	um	só	texto.		O	texto	grego	da	LXX	que	citamos	na	parte	a)	não	é	uma	tradução	mecânica	do	original	hebraico,	qualquer	que	 tenha	sido	a	recensão	utilizada.	É,	 isto	sim,	uma	adaptação	do	original	hebraico.	E	isto	não	por	desconhecimento	da	língua	hebraica	naquele	tempo.	Mas	por	que	então	não	verteram	literalmente,	deixando	para	um	relato	diferente	a	interpretação	almejada?	De	forma	alguma:	a	sua	leitura	se	origina	no	texto	isaiânico	(e	nunca	como	interpretação	paralela)	e,	por	outra	parte,	tem	que	expressar	esse	texto,	consagrado	pela	tradição.	O	texto	do	LXX	é,	portanto,	um	discurso	(no	sentido	semiótico	da	palavra)	sobre	um	outro	discurso	(o	texto	de	Isaías),	que,	porém,	se	manifesta	como	um	único	discurso	(=	o	texto	de	Isaías).		Pela	mesma	razão,	a	interpretação	que	Lucas	põe	nos	lábios	de	Jesus	remete	ao	texto	de	Isaías	53.	Na	versão	targúmica	deste	poema	há	tantas	divergências	com	relação	ao	hebraico	que	a	fazem	mais	parecida	a	um	midrash.	Quem	compara	o	texto	hebraico	com	o	aramaico,	constata	que	talvez	somente	50%	deste	último	correspondem	àquele.22	Apesar	disto,	convém	destacá-lo,	o	 texto	 assim	 apresentado	 é,	 na	 tradição	 rabínica,	 o	 texto	 de	 Isaías.	 Não	 interessa	 a	 pessoa	histórica	de	Isaías.	Interessa	apenas	esse	texto	canônico	transmitido	pela	tradição	e	que	é	tido	como	"palavra	de	Deus".		Disto	 advém	a	 suma	 importância	 que	 tem	 toda	 leitura	 como	 leitura	 de	 um	 texto.	 Esse	fenômeno	-	e	já	estamos	no	coração	da	hermenêutica	-	não	faz	outra	coisa	senão	pôr	em	relevo	duas	coisas	já	reiteradamente	expressadas:	1)	que	todo	texto	concentra	uma	polissemia	que,	por	sua	condição	de	"tecido"	estrutural	de	códigos	 lingüísticos,	abre-o	até	o	"adiante";	2)	que	toda	leitura	de	um	texto	é	uma	produção	de	sentido	em	códigos	novos	que,	por	sua	vez,	geram	outras	leituras	como	produção	de	sentido	e	assim	sucessivamente.	A	interpretação	é	um	processo	em	
																																								 																				 	
21 Veja R. Pietrantonio, "EI Mesías asesinado. EI Mesías ben Efraim en el evangelio de Juan", Revisfa Blblica 44,1, n° 5 (1982) 
1-64 (resumo de tese) (para os textos targúmicos, p. 24ss). 
22Compare-se Is 50.4-5 no texto hebraico e no Targum: 
Hebraico: "O Senhor Javé me deu língua de discípulo para que 
faça saber ao cansado uma palavra de alento. Manhã após 
manhã, desperta meu ouvido para escutar como os discípulos. 
O Senhor Javé me abriu o ouvido" (queixa do servo 
perseguido). 
Targum: "Javé-Deus me deu a língua dos que ensinavam, para 
saber ensinar os justos que langüidescem pelas palavras de 
sua Lei, a sabedoria. Assim, cada manhã, envia cedo seus 
profetas no caso de que os ouvidos dos pecadores estejam 
abertos e que acolham seu ensinamento. Javé-Deus me enviou 
para profetizar". (queixa do profeta perseguido). 
Aí encontram-se apenas alguns vocábulos do texto original. Em realidade, é um meta-texto. Is 53.10, um texto tão decisivo na 
releitura cristológica do Novo Testamento, perde totalmente a sua fisionomia original. Coloquemos os dois textos em paralelo: 
Is 53.10 (hebraico) 
"Todavia agradou a Javé quebrantá-lo com dores. Se se dá a 
si mesmo em expiação, verá descendência, prolongará seus 
dias e o que agrada a Javé se cumprirá por sua mão." 
Is 53.10 (Targum) 
"Agradou a Javé refinar e purificar o resto de seu povo a fim de 
limpar suas almas dos pecados: verão o reino do seu Messias; 
multiplicar-se-ão seus filhos e filhas, prolongar-se-ão seus dias; 
e os que cumprem a Lei de Javé prosperarão segundo seu 
beneplácito." 	
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cadeia,	não	 repetitivo,	mas	ascendente.	Há	uma	reserva-de-sentido	 sempre	explorada	e	nunca	esgotada.			 c. APROPRIAÇÃO	DO	SENTIDO		 A	partir	de	um	outro	ponto	de	vista,	a	leitura	como	produção	de	sentido	significa	também	uma	 apropriação	 do	 sentido.	 Estabelece-se	 uma	 espécie	 de	 dependência	 em	 relação	 ao	 texto	interpretado	e	surge	uma	exigência	de	possuir	todo	o	seu	significado.	Esse	fenômeno	é	de	uma	violência	tremenda	na	leitura	de	textos	que	têm	muito	impacto	sobre	a	prática,	como	por	exemplo	textos	religiosos,	políticos	ou	ideológicos.	A	pretensão	pelo	sentido	é	totalitária	e	exclusiva:	nada	é	compartilhado.	Isto	justamente	por	se	tratar	de	uma	"apropriação".	Não	se	pode	deixar	fissuras	para	 outras	 leituras.	 No	 próprio	 ato	 de	 afirmar	 implicitamente	 uma	 reserva-de-sentido	inesgotável	no	texto,	o	intérprete	procura	esgotá-lo,	não	deixando	nada	para	a	outra	leitura.		Disto	 advém	 o	 "conflito	 de	 interpretações".	 Como	 cada	 interpretação	 crê	 ser	 a	interpretação,	 não	 aceita	 a	 outra.	 Aí	 nasce	 a	 luta.	 Este	 é	 um	 fenômeno	 típico	 que	 resulta	 dos	grandes	 textos	 que	 inspiraram	 movimentos	 históricos	 ou	 originaram	 grupos	 com	 uma	cosmovisão	própria.		Pode-se	 exemplificá-lo	 com	os	 textosde	Marx,	 a	 tradição	 bíblica	 ou	 a	 hindu.	Na	 Índia,	doutrinas	muito	díspares	entre	si	remetem-se	aos	livros	sagrados	dos	vedas.	É	significativo	o	fato	de	 que	 o	 vedanta,	 especulação	 filosófica	 que	 apenas	 ressoa	 como	 fazendo	 parte	 da	 doutrina	religiosa	dos	vedas,	porém,	com	uma	distância	de	dois	mil	anos	daquela,	apresente-se	como	a	interpretação	 daqueles.	 O	 seu	 próprio	 nome,	 vedanta	 (=	 "fim	 dos	 vedas"),	 expressa	 uma	pretensão	de	esgotar	o	seu	sentido.		Os	textos	de	Marx	são	eloqüentes	com	relação	à	luta	interpretativa,	 ideológica,	política,	que	 seguem	 engendrando.	 Cada	 corrente	marxista	 é,	 de	 acordo	 com	 sua	 própria	 avaliação,	 a	leitura	dos	grandes	textos	de	Marx.	Citamos	este	caso,	que	não	tem	nada	a	ver	com	a	religião,	para	mostrar	com	evidências	claras	que	o	agregamento	de	partes	a	um	texto	do	passado	não	é	própria	da	 cosmovisão	 religiosa	 e	 que	 acontece	 também	 em	 uma	 práxis	 sócio-política	 que,	aparentemente,	nega	toda	outra	fonte	de	significado	que	não	seja	esta	mesma	práxis.	Voltemos	agora	aos	poemas	do	Servo	de	 Javé	de	Dêutero	 Isaías.	As	 leituras	praticadas	pelas	LXX,	pelos	essênios	do	Mar	Morto	(Qumrã),	pela	igreja	primitiva	(Novo	Testamento)	ou	pelo	Targum,	não	foram,	para	esses	grupos,	leituras	"possíveis"	entre	outras,	mas	sim,	foram	o	sentido	do	 texto	 profético.	 Este	 aspecto	 totalitário	 da	 exegese	 é	 mais	 visível,	 por	 exemplo,	 na	interpretação	targúmica,	onde	se	pode	reconhecer	uma	polêmica	anticristã,	uma	tentativa	de	blo-quear	 a	 leitura	 cristológica	 desse	 texto	 tão	 carregado	 de	 significação.	 Dessa	 maneira,	 os	tradutores	do	texto	isaiânico	ao	vernáculo	aramaico	daquele	tempo	(a	que	se	tem	dado	o	nome	técnico	 de	 "Targum")	 despistaram	 toda	 referência	 possível	 de	 Isaías	 53	 ao	 sofrimento	 de	 um	Messias	individual.	Assim	não	confirmaram	uma	exegese	já	atualizada	pelos	cristãos	na	pessoa	de	Jesus	de	Nazaré.	E	não	se	trata	apenas	de	um	fato	ideológico.	Foi	facilitado	pela	condição	do	próprio	texto,	polissêmico	por	um	lado,	mas	que	produz	somente	um	sentido	enquanto	estrutura	
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narrativa	 orientada	 a	 "dizer	 algo	 sobre	 algo".	 Não	 existem	 sentidos	 múltiplos	 numa	 mesma	leitura.	A	 interpretação	 rabínica	de	 Isaías	53	anula	a	que	 fizeram	os	primeiros	 cristãos;	não	a	admite	nem	sequer	como	possível.	E	a	 leitura	que	aqueles	praticavam,	deslocava	a	anterior	da	LXX.	Em	outras	palavras,	toda	leitura	é	"enclausuradora"	de	sentido.	Que	paradoxo	esse	jogo	de	alternância	entre	polissemia	do	texto	e	monossemia	da	leitura!	(veja	o	diagrama	no	final	desta	parte	I).		Assim	também	a	 leitura	da	Bíblia	 feita	pela	 teologia	da	 libertação	resulta	conflitiva	em	relação	 a	 outras	 "apropriações"	 do	 sentido	 do	 querigma.	 Este	 fato	 supõe	 outras	 causas	 que	comentaremos	em	seguida.	A	 causa	menos	 importante	não	é,	 porém,	 a	que	 se	 fundamenta	no	caráter	 "enclausurador"	 de	 toda	 leitura.	 Isto	 é	 tão	 básico	 como	 O	 outro	 fenômeno	 (cf.	 b)	 da	dependência	em	relação	ao	texto.		Esta	 conjugação	entre	o	 sentido	do	 texto	e	 sua	 leitura	 "enclausuradora"	pode	chegar	a	situações	 extremas	 frente	 a	 outras	 leituras.	 Voltemos,	 porém,	 ao	 Targum	 de	 Isaías	 53.	 A	interpretação	que	este	faz	do	texto	de	Isaías	(e	o	relevante	é	que	seja	de	Isaías!)	não	pode	partir	do	 texto	 hebraico	 desse	 profeta.	 A	 versão	 aramaica	 teve	 que	 modificá-lo	 estruturalmente,	convertendo-o	em	outro	relato,	diferente	do	original,	mas	que	é	reproduzido	na	leitura	sinagogal	como	 o	 texto	 autêntico	 do	 profeta	 Isaías.	 Essa	 releitura	 (muito	 mais	 midráshica	 do	 que	targúmica)23	segue	sendo	"enclausuradora",	fazendo	desaparecer	o	relato	que	permitiria	outras	leituras.	 O	 conflito	 de	 interpretações	 está	 aí	 vivamente	 expresso,	 porém	 não	 "dito".	 Alguém	poderia	até	se	perguntar	pelo	que	pensavam	os	rabinos	que	conheciam	também	o	texto	hebraico,	tão	modificado	na	versão	aramaica.	Esta	pergunta	carece	de	interesse.	O	texto	feito	"tradição"	e	normativo	já	não	era	outro	do	que	o	texto	do	Targum.	Era	o	texto	canônico	daquele	momento.	Não	é	o	dirigente,	mas	a	comunidade	quem	aceita	um	texto	como	normativo	e	atual.	Coisa	bem	diferente	acontece,	quando	se	abandona	o	uso	do	Targum	e	se	volta	ao	texto	hebraico	(quando	o	aramaico	já	não	mais	é	a	língua	viva	para	o	judaísmo	palestinense).	A	polissemia	dos	poemas	do	"Servo"	dá	 lugar	 a	uma	outra	 leitura	que,	 por	 sua	 vez,	 intenta	 absorver	 todo	o	 sentido.	Nessa	leitura	tampouco	cabe	uma	interpretação	cristológica.24	Nós	vamos	nos	deparar	com	o	mesmo	fenômeno,	quando	enfocarmos	o	ato	hermenêutico	a	partir	da	perspectiva	da	práxis	(parte	II).		Terminaremos	com	duas	observações.	Por	um	lado,	o	 leitor	há	de	ter-se	dado	conta	de	que	o	conflito	das	interpretações	gera	divisão,	a	qual	nem	sempre	acontece	no	nível	ideológico.	Nem	toda	divisão,	porém,	é	negativa.	Pode	 também	ser	criativa.	A	grande	unidade,	às	vezes,	é	amorfa,	indolente.	Por	outro	lado,	a	"apropriação"	do	sentido	pretensiosa	pela	totalidade	como	é,	nunca	o	é	na	realidade.	Se	há	muitas	interpretações	de	um	mesmo	texto,	todas	partem	do	mesmo	texto,	 e	 então	 deve	 haver	 alguma	 forma	 de	 convergência.	 As	 leituras	 se	 comunicam	subterraneamente.	 Isso	faz	com	que	a	divisão	que,	para	ser	tal,	deve	gerar-se	em	algo	comum,																																									 																				 	
23 Targum significa a varsão (interpretativa) do texto hebraico ao aramaico; o midrash é a ampliação de um texto ou passagem 
até tomar um novo relato. Um e outro obedecem normas hermenêuticas, só que o midrash tem mais possibilidades de expandir-
se e, portanto, de atualizar um texto. Cf. R. Le Déuat, "Un phénomène spontané de I'herméneutique juive ancienne: le 
"targumisme": Bíblica 52 (1971), 505-525; Id., "La tradition juive ancienne et I'éxegèse chrétienne primitive", Revue d'Histoire et 
de Philosophie Religieuses 51 (1971) 31-50; A. Díez Macho, cf. nota 6; E. Levine, "La evolución de la Biblia aramea", Estudios 
Bíblicos 39 ( 1981) 223-248 (aspectos interessantes sobre o Targum). 
24 Nada estranha, neste sentido, que um H. M. Orlinsky negue o fundamento para uma leitura cristã de Is. 53. Cf. "The So-Called 
"Suffering Servant" in Isaiah 53", Vários, Interpreting the Prophetic Tradition (KTAV Publishing House, N. York 1969) 225-273; 
Id.. "The So-Called "Servant of the Lord" and "Suffering Servant" in Second Isaiah" na obra conjunta com N. H. Snaith, Studies 
on the Second Part of fhe Book of Isaiah (Brill, Leiden 1967) p. 66ss, esp. p. 73 e 118 (em suas expressões, Orlinsky está 
afirmando o princípio elementar da eisegese hermenêutica!). 
Dyeenmes Procópio de Carvalho
Dyeenmes Procópio de Carvalho
	
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conserve	 sempre	 um	 fator	 de	 reunião.	 Também	 os	 mitos	 são	 conflitivos	 uns	 em	 relação	 aos	outros.	 Ainda	 que	 se	 estruturem	 sobre	 o	 mesmo	 tema,	 cada	 um	 se	 cristaliza	 dentro	 de	 uma	cosmovisão	e	pretende	esgotar	o	sentido	da	realidade	que	interpreta.	Comunicam-se,	todavia,	a	nível	dos	símbolos	que	contém	e	ao	nível	de	uma	experiência	humana	profunda.25			d. A	FUNÇÃO	HERMENÊUTICA	DA	DISTANCIAÇÃO		 Antes	de	completar	esta	parte,	convém	fazer	uma	referência	à	função	da	hermenêutica	da	distanciação.	Havíamos	feito	menção	a	uma	dupla	distância	aberta	entre	a	língua	e	a	"fala",	por	um	lado,	e	entre	esta	e	o	texto/escritura,	por	outro	(veja	o	diagrama	no	final	de	I,	2).	Se	a	primeira	é	formal,	a	segunda	é	concreta	e,	de	alguma	maneira,	 temporal	e	espacial.	O	desaparecimento	do	autor	de	um	texto,	o	deslocamento	dos	destinatários,	a	troca	do	contexto	de	vida	que	engendra	a	pergunta	 sobre	 a	mensagem,	 significam	 uma	 distanciação	 em	 relação	 à	 primeira	 produção	 de	sentido,	a	do	ato	do	discurso.	Muito	bem,	quanto	maior	é	a	distância,	maiores	são	as	perspectivas	de

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