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6 e 13-1_ADORNO_Televisão, consciência e indústria cultural

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20
Televisão, consciência
e indústria cultural*
Theodor W. ADORNO
Os aspectos soc~aIs, técnicos e artísticos da televisão não po-
dem ser tratados Isoladamente. São amplamente interdepen-
de~tes: po.r exemplo, a qualidade artística depende da conside-
raçao ImbIdo~a. ~ela ,:nassa do público, que só a inocência impo-
tente se permmrra nao levar em conta; o efeito social da estru-
tura técnica, a~sim .c?mo da própria novidade do in~ento, que
seguramente fOI decisiva na sua fase inicial, na América do Nor-
te; mas êsses mesmos efe~t<?s também dependem das mensagens
abertas ou, o~ultas .transmItIdas ao espectador pelas produções de
~. O propno meio de comunicação, contudo, insere-se no âm-
I bito ~o e:quema. abrangen~e da indústria cultural e, enquantocombm.açao de filme e rádio, leva adiante a tendência daquela,
no sent~cIíode cer~a.: e capt~rar a consciência do público por todos
o~ lados. ~~elevIsao permIte aproximar-se da meta, que é ter de
novo a totalidade do mundo sensível em uma imagem que al-
can a....!.o?os os ~rgãos,. o sonho sem sonho; ao mesmo tempo,
permIte introduzir furtivamente na duplicata do mundo aquilo
q~e se considera adequado ao real. Preenche-se a lacuna que
•
ainda restava para a ~xistên~ia pri,,:ada antes. da indústria cul-
tural, enquanto esta ainda nao dominava a dimensão do visível
em todos os seus pontos. Assim como mal podemoS- dar um passo
for~ do, pe.ríodo de trabalho sem tropeçar em uma manifestação
da indústria cultural, os seus veículos se articulam de tal forma
(') T. W. ADORNO, "Prolog zum Fernsehen", in Eillgrifte _ Neun Kritische
Modelle, Frankfurt am Maín, Suhrkamp Verlag, 1963, p. 69-80. Tradução de Ga-
briel Cohn. Reproduzido com permissão da editôra.
T V, consciência e indústria cultural - 347
que não há espaço entre elas para que qualquer reflexão possa
tomar ar e perceber que o seu mundo não é o mundo. " o teatro
\
a reflexão se vê muito limitada pela diversão da vista e do ouvi-
do" - a intuição de Goethe sõmenteencõüffaria seu o jeto num
sistema total, no qual o teatro de há muito é um museu de espi-
ritualização, mas que submete incansàvelmente os seus consumi-
dores ao tratamento com cinema, rádio e televisão, revistas ilus-
tradas e, sobretudo nos EUA-;- historietas em quadrinhos. É sõmen-
te no conjunto de todos os procedimentos mutuamente afinados
e contudo divergentes quanto à técnica e ao efeito q e se forma
o clima da indústria cultural. Daí a dificuldade que o sociólogo
encontra para dizer what television does to people. Isto porque,
por mais que as avançadas técnicas da pesquisa social empírica
isolem os "Iatôres" específicos da televisão, êsses fatôres mesmos
recebem a sua fôrça da totalidade do sistema. É mais fácil cons-
trangerem-se as pessoas ao inevitável do que a se modificarem, É
de se supor que a televisão faz delas mais uma vez aquilo que de
qualquer forma já são, só que ainda mais do que já o são. Isso
corresponderia à tendência global, de base econômica, da socie-
dade contemporânea, no sentido de não mais ir além de si pró-
pria em suas formas de consciência, mas sim de reforçar tenaz-
mente o status quo e, sempre que êle pareça ameaçado, recons-
truí-lo. A tensão sob a qual as pessoas vivem cresceu a tal ponto
que elas não a suportariam se as realizações adaptativas que uma
vez conseguiram não lhes fôssem exibidas e não se repetissem
nelas sempre de nôvo. Freud ensinou que a repressão dos im-
pulsos jamais tem, êxito total nem definitivo, e_que por isso a
energia psíquica inconsciente do indivíduo é incansavelmente des-
perdiçada para manter no inconsciente aquilo que não deve asso-
mar ao consciente. Êsse trabalho de Sísifo da economia psíquica
individual parece estar hoje "socializado", tomado a seu cargo
pelas instituições da indústria cultural, para benefício das ins-
tituições e dos poderosos interêsses que lhe estão por detrás.
Para isso contribui a televisão, tal como é. Quanto mais com-
pleto o mundo como aparência, tanto mais inescrutável a aparên-
cia como ideologia.
~ nova técnica diverge do filme no sentido de que, à se-
meUiança do rádio, atende ao consumidor a domicílio.}As ima-
gens visuais são muito menores do que aquelas no cinema. Essa
pequenez é lamentada pelo público americano: procura-se au-
mentar a tela, mas parece ser questionável se a ilusão do tamanho
natural possa ser alcançada em residências privadas mobiliadas,
tal como o é no cinema. Talvez se possam projetar as imagens
348 - Enio ques e problemas de análise
nas paredes. Significativo, em todo caso, é que se sinta essa ne-
cessidade. Por enquanto, o formato miniatura das pessoas na tela
seria apto a impedir a habitual identificação e heroificação.
Aquêles que ali falam com voz humana são anões. Dificilmente
são tomados a sério no mesmo sentido que as figuras de filme.
Fazer abstração da magnitude real do fenômeno, percebê-lo não
mais natural mas esteticamente, requer precisamente aquela ca-
pacidade de sublimação que não se pode pressupor no público da
indústria cultural e que é debilitado por esta mesma. Os ho-
menzinhos e mulherzinhas que se obtêm a domicílio tornam-se
joguêtes para a percepção inconsciente. Algo disso poderá recrear
o espectador: êle os sente como propriedade, da qual pode dis-
por e em relação à qual se sente superior. Nesse ponto há uma
ligação entre a televisão e as historietas em quadrinhos (fllrmies),
aquelas séries de imagenzinhas de aventura semicaricaturais, que
Ireqüentemente apresentam as mesmas figuras de episódio a epi-
sódio durante anos a fio. Também no que diz respeito ao COI1-
teúdo há um parentesco entre muitas novelas de televisão e os
funnies. Em contraposição, porém, a êstes, que não aspiram ao
realismo, na TV a relação equívoca entre as vozes reproduzidas de
modo até certo ponto natural e as figuras reduzidas permanece
inconfundível. Mas tais relações equívocas são próprias a todos
03 produtos da indústria cultural, e recordam a ilusão da vida
duplícada. Já se observou, ocasionalmente, que o filme sonoro
também é mudo, e que a contradição reside no confronto entre
as imagens bidimensionais e a voz real. Tais contradições au-
mentam nitidamente em número, à medida que a indústria
cultural absorve mais elementos da realidade sensível. A analogia
com os Estados totalitários, em arnbas as versões, se impõe: quan-,
to mais os elementos divergentes são integrados sob a vontade
ditatorial, mais a desintegração avança, e tanto mais se esfacela
aquilo que não se vincula por si próprio mas apenas é somado
a partir do exterior. O mundo sem lacunas de imagens torna-se
quebradiço. Na superfície, o público pouco se deixa perturbar.
Inconscientemente, êle saberá disso. Crescerá a suspeita de que
a realidade à qual se serve não é aquela que pretende ser. Apena~,
isso não conduzirá desde logo à resistência, mas a amar-se, r i-
lhando os dentes e com tanto maior fanatismo, o inevitável que
Intimamente se odeia.
Observações como essa, sôbre o papel das dimensões absol~-
tas dos objetos da televisão, são inseparáveis da situação esp Cl:
fica de TV, aquela de cinema doméstico. Também ela fortalecera
lima tendência da indústria cultural como um todo: aquela no
TV) consciência e indústria cultural - 349
f' sentido da diminuição da distância entre o produto e o especia-
I, dor, no sentido literal e figurado. Ela, por ()UTro lado, "é tra-
çâd.a econômicamente. Aquilo que a indústria cultural fornece
recomenda-se, quando menos, através da sua função de reclame
\ enquanto mercadoria, enquanto arte para o consumidor; prova-
velmente em proporção 'direta à extensão em que ela é imposta
ao consumidor pela centralização e estandardízação, O consumi-
• dor é tratado como aquilo para o que tende por si próprio, ali
seja, não a experimentar a imagem como algo em si, ao qual deve
atenção, concentração, esfôrço e compreensão, mas sim como um
') favor que lhe é concedido e quelhe é dado avaliar em têrmos de
que lhe agrade o suficiente. O que de há muito aconteceu à
6 sinfonia, que o escriturário fatigado, sorvendo a sua sopa em
mangas de camisa, tolera desatentamente, ocorre agora também
(
com as imagens. Elas devem dar brilho ao seu cotidiano cinzento,
e se 1 e assemelharem no essencial: de sorte que são antecipada-
mente inúteis. O que Iôsse diferente seria insuportável, porque
recordaria aquilo que lhe é vedado. Tudo se apresenta como se
lhe pertencesse, porque êle próprio não se pertence. Êle nem
mesmo precisa deslocar-se para ir ao cinema, e aquilo que não
lhe custa dinheiro nos EUA nem esfôrço em lugar algum, êle tanto
mais subestimará. O mundo ameaçadoramente frio se lhe achega
confiadamente, como se lhe fôsse íntimo: êle se despreza nêle.
falta de distância, esta paródia à fraternidade e solidariedade,
seguramente ajudou o nôvo meio de comunicação a alcançar
uma popularidade indescritível. A televisão comercial evita tudo
que possa lembrar, por mais remotamente que seja, as origens da
ob~a e arte no culto e sua celebração reservada a motivos espe-
ciai . !Argumentando que a televisão em ambiente escuro é de-
sa acÍãvel, deixam-se acesas as luzes à noite e não se fecham as
persianas de diaJa situação deve afastar-se o mínimo da normal.
É inconcebível que a experiência da coisa mesma se mantenha
independente disso. A fronteira entre a realidade e a imagem
tO!.TIa~e atenuada par<LLO rn Ciência. A imagem é tomada como
u~eaI0ade, como um acessório da casa, que se
adquiriu junto com o aparelho, cuja posse, além do mais, au-
..•...menta o prestígio com as crianças. Dificilmente será ir longe
_demais dizer que, reciprocamente, a realidade é olhada através
d?s óculos da TV, que o sentido furtivamente imprimidOãõ coti-
diano volte a refletir-se nêle.
A televisão comercial faz retroceder a consciência, mas não
pela deterioração do conteúdo das emissões em confronto com o
filme e o rádio. É verdade que se ouve com freqüência em
350 - Enjo ques e problemas de análise
Hollywood a afirmação, sustentada por gente de cinema, de que
os programas de TV contribuíram para baixar ainda mais o nível
cin~matogr~fic~. ~as nesse ponto p.arece que os setores mais
antigos da mdustna cultural, dos qua1s alguns estão sensivelmen-
te ameaçados pela concorrência, usam a televisão como bode ex-
p~atório. A leit~r~ dos manuscritos d~ algumas peças de TV,
amda. que sem ?uvlda pouco representatIvas da produção global,
per.mne c?nclmr que o material não presta menos do que o
script de filme, o qu~l entrementes se congelou em normas rígidas;
e tende a prestar mais do que as tão apreciadas rádio-novelas, êsses
romances ~amiliares acústicos feitos em sé~ie, em que sempre uma
bondosa figura ma.rernal ou um esclarecido senhor maduro aju-
d~m a, turb~len~a Juve~tude a superar suas dificuldades. Apesar
dISSO,e elucidativa a afirmação de que a televisão leva à deterio-
ração e não à melhora, de modo semelhante ao que ocorreu na
época da ~escober.ta do reg~stro sonoro, quando a qualidade esté-
~lca e !oClal do filme se VIU rebaixada com a introdução dessa
movaçao, sem que hoje se possa reintroduzir o filme mudo, ou
eliminar a televisão. O responsável por isso, contudo, é o como
e não o quê. Aqu~la "proximidade" fatal da televisão, que tam-
b~m é causa do efeito supostamente comunitário do aparelho, em
torno do qual os membros da família e os amigos, que de outra
forma não saberiam o que dizer uns aos outros, se reúnem em
mu~i~mo, não só satisfaz um desejo diante do qual nada de
esplntu~l se pode manter que não se transforme em propriedade,
como ainda obscurece a distância real entre as pessoas e entre as
pessoas e as coisas. Ela se torna o sucedâneo de uma imediacão
social que é vedada aos homens. Eles confundem aquilo que é
t?talmente mediatizado e ilusoriamente planejado com a solida-
nedade, pela qual anseiam. Isso reforça a formação retroativa:
a situação estultifica também quando o conteúdo do que se vê
não é mais tolo do ~e aquilo que habitualmente se serve aosy consumidores forçados A circunstância de que êsses se entregam
à mais cômoda e barata televisão do que ao cinema, e mais do
I que ao rádio, porque além do acústico ela lhe fornece o ótico,contribui para a perversão da formação. A mania ávida é
desde logo regressão. E nela a difusão ampliada de produtos
visuais tem precisamente uma participação decisiva. Ainda que
. a audição, sem dúvida, seja mais "arcaica" em muitos pontos do
l'que o sentido da visão, que se gi.s.t:alUe como alerta para o mun-do das coisas, a linguagem das imagens, que dispensa a mediaçãoconceitual, é contudo mais primitiva do que as palavras. Mas as
pessoas ainda são mais desacostumadas à palavra através da te-
TV) consciência e indústria cultural - 351
levisão do que já o são em todo o mundo, atualmente. É ver-
dade que as sombras vistas na tela de TV falam, mas o ~s...,u~~
~ é talvez ainda mais redundante do que no filme: sim les
a~~ó:io das image~s, sem exprimir uma inte?~ão, s.::-rr: e~pírito,
mas simplé ~c areClme~ dos gestos, comentano das indicações
derivadas da imagem ...
A natureza das reações dos espectadores à televisão contem-
porânea somente se poderia tornar explícita através de pesquisas
em profundidade. Visto que o material especula sôbre o incons-
ciente, o questionário direto seria inútil. Efeitos pré- ou incons-
CIentes subtraem-se à manifestação verbal imediata dos entrevis-
tados. Estes exprimirão, seja racionalizações, seja frases abstratas
do tipo "a televisão me diverte". O que efetivamente se passarnêles somente poderia ser pesquisado circunstanciadamente e em
tôda a sua complexidade; eventualmente, pelo uso de imagens
mudas de TV como testes projetivos e o subseqüente exame das
~
associações for~uladas pelas pe~soas es~udadas. Um conhecimen-
to pleno provavelmente só sena acessível através de numerosos
estudos individuais de espectadores habituais de TV, nos quadros
e uma orientação psicanalítica. (Primeiro haveria de examinar
er.n que medida as. reações são específicas e até que ponto o há-
bito da televisão Simplesmente serve à necessidade de se "matar"
/\ o tempo livr~ destituído ~e s:,ntido.[Er.n to~o o caso, pode-se en-
:.q c: carar um mero de comumcaçao que atmge mcontados milhões e
'f4J~ que freqüer:temente supera qualquer outro interêsse, sobretudo
/'l,., I n.o caso. d~ Jove.ns e crian~as, c~mo ur.na espécie. de voz do espí-
nto. obJetIvo, amda que este nao mars resulte espontâneamente
do JO~o de Iôrças da sociedade mas seja planejado em moldes in-
dust:lais. ~l, a ind~stria ainda tem que introduzir, em certa
m~dlda, os seus consumidores em seus cálculos, quanto mais não
seja para levar a mercadoria' dos patrocin-adores - sponsors - d (J
cada programa ao homem certo. No entanto, concepções como c..,
aquela de que a cultura de massa que culmina na televisão seja r--- -7-?
a manifestação autêntica do inconsciente coletivo distorcem, peiaj-g 7"
escolha da ênfase, o q~e pretendem exprimir. É verdade que a ~ (
c~ltura de massa se apóia em esquemas do consciente e do incons- Ç7\
CIente, que ela com razão vê como difundidos entre os consumi- -7 :.>--:
dores. t~se reservatório compõe-se desde logo dos impulsos da .....r<,~
massa, sejam êles reprimidos ou simplesmente insatisfeitos, ao en-':) l'
contro dos quais as mercadorias culturais vão mediata ou ime- _ " ct
diatamente; com mais freqüência, de modo mediato, eventual- :.,..s ~
mente da forma claramente apontada pelo psicólogo americano s:
G. Legman, pela qual o sexo é substituído pela apresentação da •.
r:
352 - Enlo ques e problemas de análise
crueza e violência dessexuadas. Na televisão isso pode ser apon-
tado mesmo na farsa aparentemente mais inofensiva. Em virtude
dessas e de outras derivações, contudo, a vontade daqueles que
dispõem dos meios dissolve-se nessa linguagem-imagem(*) à qual
apraz apresentar-se como sendoaquela dos que a recebem. 1\a )
medida em que nesses é despertado e representado em imagens
aquilo que nêles dormitava ao nível pré-conceitual, é-lhes tam-
bém demonstrado como êles devem comportar-se. Enquanto as
imagens querem trazer à tona aquelas outras, imersas no es-
pectador, e que se lhe assemelham, as figuras feéricas e-fugict-ras
do filme e a teteviSao aproximam-se da escrita. Elas são absor-
vidas, não contempladas. A vista é levada pela fita como se esta
fôsse a sentença, e no suave solavanco da mudança de cenas vi-
ra-se a página. Enquanto figura, a linguagem-~magem é meio de
uma regressão, em que o produtor e o consumidor se encontram;
enquanto escrita ela põe as imagens arcaicas à disposição dos
modernos. Encantos desencantados, as imagens não transmitem
qualquer segrêdo, mas são modelos de um comportamento, que
corresponde tanto à gravitação do sistema total quanto à von-
tade dos controladores. O intrincado dêsse contexto, que suscita
a ilusão de que o espírito do senhor seja o da época, reside con-
tudo nisso, de que também aquelas manipulações que ajustam?
público às exigências de um comportamento adaptado às condi-
ções dadas podem invocar momentos da vida consciente e incons-
ciente dos consumidores e atribuir-lhes a culpa, com uma razão
aparente. Isso porque a censura e o aprendizado de um com-
portamento conformista, tal como se manifestam mesmo nos gestos
mais casuais do programa de televisão, não contam apenas com
pessoas nas quais tais coisas já foram marteladas através dos es-
quemas consagrados da cultura de massa, que datam dos inícios
da novela inglêsa, no final do século XVII: também as formas de
reação acionadas já se haviam impôs to à história recen.te e ha-
viam sido incorporadas como uma segunda natureza, muito antes
de serem exercitadas com manobras ideológicas. A inclústria cul-
tural sorri: torna-te aquilo que és; e a sua mentira consiste pre-
cisamente na confirmação e consolidação repetitivas do simples
(.) A interpretação da cultura de massa como "escrita hieroglífica" encontra-se
na parte não publicada , escrita em 1943, do capítulo sôbre a "Indústria Cultural"
da obra D'ialetctik: der Auiklãrung de Max HORKHEIMER e Theoclor W. ADORNO. De
forma totalmente independente, o mesmo conceito é usado no artigo "First Contn-
bution to the Psycho-Analysis anel Aesthetics of Mot ion Pictures", ele Angelo
MONTINI e Giulio PIETI<ANERA (in Psychoanalytic Review, abril, 1945). Não é. pos-
sível entrar aqui nas diferenças entre as duas formulações. Os autores Italianos
também contrastam a posição da cultura de massa em relação ao inconsciente da
arte autônoma, mas não elevam a contraposíção ao plano da teoria.
4
T I', consciencia e indústria cultural - 353
7 sQ, daquilo a que o andamento do mundo reduziu os
homens. Tanto mais convincentemente ela pode apontar que a
culpa não cabe ao assassino, mas ao morto: que ela ajude a trazer
à luz aquilo que de qualquer forma está no homem.
Ao invés de dar ao inconsciente a honra de elevá-l o ao cons-
ciente e com isso simultânearnente atender ao seu Ímpeto e sa-
tisfazer à sua fôrça destruidora, a indústria cultural, tendo à
frente a televisão, reduz os homens ainda mais a formas de com-
portamento inconscientes do que aquelas suscitadas pelas condi-
ções de uma existência, que ameaça com sofrimentos aquêle que
descobre os seus segredos, e promete prêmios àquele que a idola-
tra. A rigidez não é dissolvida, mas sim reforçada. Os vocábulos
( da linguagem-imagem são estereótipos. Êles são definidos em têr-
mos de necessidades tecnológicas, como a de produzir quantidades
assustadoras de material no prazo mais curto possível, ou aquela
de dar a conhecer sem rebuços aos espectadores os nomes e tipos
das personagens dramáticas de sketches que no mais das vêzes du-
ram apenas um quarto ou meia hora. Quanto à crítica, respon-
de-se-lhe que desde sempre a arte tem operado com estereótipos.
Mas é radical a diferença entre os padrões calculados em têrmos
consumada mente psicológicos e aquêles desajeitados e inábeis;
entre aquêles concebidos para modelar o homem conforme a pro-
dução em massa e aquêles que reevocarn entidades objetivas do
espírito da alegoria. Sobretudo, tipos tão altamente estilizados
como os da commedia dell'arte estavam tão afastados da existência
cotidiana do público, que a ninguém ocorreria ajustar o seu
próprio comportamento conforme aquêle dos clowns mascarados.
Em contra posição a isso, os estereótipos da televisão assemelham-
se exteriormente, até na voz e no dialeto, a Fulano e Sicrano, en-
quanto êles não só propagam refrães como o de que todos os
estrangeiros são suspeitos ou de que o êxito é o máximo que se
pode esperar da vida, como dão a entender, pela simples ma-
neira de agir de seus heróis, que êsses refrões são santificados e
estabelecidos de uma vez para sempre, antes contudo quc se ex-
traia a moral, que por vêzes exprime até mesmo o oposto. Que a
arte trate do protesto do inconsciente degradado pela civilização
não deve servir de pretexto para a exploração do inconsciente
em favor de um aviltamento civilizatório ainda mais consumado.
r
se é que a arte se propõe permitir que suceda ao inconsciente e
ao pré-individual aquilo que lhe é de direi to, então se requ~r
para isso o maior esfôrço da consciência e da individual ização: se
êsse esfôrço não é desempenhado e em v Z E ISSO se anui ao in-
consciente, na medida em que êle é reproduzido mecânicamente,
...
354 - Enfoques e problemas de análise
,'.<,
então o inconsciente se reduz à mera ideologia para alvos cons-
cientes, por mais tolos que êstes se possam revelar ao final. A
circunstância de que, numa fase na qual a diferenci~ção e~
dividualização estéticas foram elevadas com tal fôrça libertadora
-como na obra literária de Proust, essa individualização seja re-
voga da em favor de um coletivismo Ietíchizado, alçado à condição
e fim em si, e posta a serviço de um punhado de aproveitadores,
implica sancionar a barbárie. Há quarenta anos, encontram-se
intelectuais em número suficiente para tornarem-se porta-vozes
dêsses poucos, seja por masoquismo, seja por interêsse material,
I ou por ambos. A êles há que dizer que o socialmente eficaz e o
\ socialmente correto não coincidem, e que atualmente um não
Lpassa do oposto do outro. '.'A nossa p~r~ic~p~~ão nas coisas pú-
blicas geralmente não é mais do que .hllstel,a .: a sentenç~ d~
Goethe aplica-se também àqueles servIços públicos que as InStI-
tuições da indústria cultural alegam desempenhar.
Não é possível prever o que virá a ser da televisão; aquilo
que ela é hoje não depende do inv~nto, nem. mesmo das formas
particulares da sua utilização con:erCIal, ma~ SI~ do todo n~ qual
está inserida, A retórica a respeito da realização de fantasias de
contos de fadas através da técnica moderna só deixa de sê-lo quan-
do lhe acrescentamos a sabedoria dos contos de fada, de que a
realização dos desejos raramente redunda para o bem de gue~
r- exprimiu o desejo. Formular desejos ~orretos é a .art,e ~als d i-
fícil de tôdas e somos desabituados a ISSOdesde a infância, Tal
L--como o marido a quem a fada permite três desejos ~Isa dois dêles
para pôr, e depois tirar, ur~a salsicha ;ô?re o nanz da mulh~r,
assim aquêle a quem o gênio do dOmml? da nat~reza. penmte
ver as coisas distantes só enxerga o habitual, enriquecido p~la
mentira de que se trata do diferente, pela qual isso lhe é impin-
gido enquanto falso sentido do. seu ~oti?iano. O seu sonl:o de
onipotência se realiza como ImpotenCIa t,ot~l. Até hoje as
utopias só se realizam para escorraçar o ~tOpICO dos homens .e
para comprometê-los ainda mais com o existente e com.a fatali-
dade. Para que a televisão mantenha a promessa que ainda l.he
adere ao nome, é preciso que ela se e!!!ancipe de. tudõ aqu.llo
com que contradiz o próprio princípio do. prometIdo, e trai a
idéia da sorte grande no bazar da sorte miúda.)
21
A informação visual
sôbre o homem *
-e sua açao
Cilbert COHEN-SÉATe Pierre FOUGEYROLLAS
As profundas transformações de nossa existência social, a
desordem das adaptações individuais que caracterizam a no~sa
época, poderiam não ser somente os sinais de uma evolução muito
brusca, tal como se costuma admitir. As múltiplas mudanças
ocorridas nos diversos níveis da condição humana poderiam con-
duzir amanhã a uma variação radical e global de algum aspecto
importante dessa condição, e merecer o nome de mutação, em
todo o sentido da palavra.
'\. Tudo ocorre, entretanto, como se a crise que atravessamos
não tivesse chegado ao estado agudo em que se impõe o alarm~.
Nada impede, ainda, que o talent~ literário se. entregue às bri-
lhantes especulações que o caracten~am, para disfarçar, num ~e-
ríodo de angústia, o aturdimento social. O que ocorrena, todavia,
se comprovássemos um dia que se havia operado uma transfor-
mação irreversível, que, sem disso se dar conta, o homem, por
assim dizer, tivesse se convertido em outro?
Como a mutação em curso compromete o próp~io. homem, e
como isto põe desde logo o problema de s~u equilíbrio normal,
já não se trata somente de dar um comovido olhar de Haml~t
sôbre uma civilização moribunda. Já não basta f~zer malabans-
mos com as idéias. Tornou-se urgente fazer as COIsas avançarem
graças a uma refletida tomada de consciência e, se fôr necessário,
interferir no processo mediante o qual se transforma o homem
con tem porâneo,
(') Gilbert COHEN-SÉAT e Pierrc FOUCEYROLLAS, "Int roduct ion", in L~action
sur l'homme: cinéma et télévision, Paris, Iô Éditions Denoél, 1961. Tradução de
Amélia Cohn. Reproduzido com permissão da Editôra.

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