Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
129Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 Uma perspectiva política em Adorno Neri Pies* Estrutura do pensamento filosófico de Adorno Theodor W. Adorno constrói o seu método e pensamento filosófico a partir da dialética, por entender que ela possui um caráter crítico e eficaz para enfrentar os desafios teóricos postos pela teoria positivista e também pelo idealismo. Através do método dialético, alicerçado no pen- samento crítico e reflexivo, Adorno aborda a racionalidade instrumental que, no pensamento do autor, ao invés sublimar, reprime e elimina o outro, o “não idêntico”, ou seja, a tradição filosófica com traços do posi- tivismo e do idealismo, hipostaseia o pensamento e a vida, reforçando a dominação do outro. Ao cerne da estrutura do pensamento do filósofo em questão, adiciona-se ainda as questões referentes à reprodução ideoló- gica do capitalismo contemporâneo e às formas totalitárias de governo1 que não oportunizam integralmente a autonomia e a liberdade dos in- divíduos, pois tudo estaria definido de antemão por um pensamento 1 As principais interferências sociais e de governo no pensamento de Adorno são: a) experiência nazista na Alemanha e a fascista na Itália, b) o socialismo opressor de Stalin na Rússia e c) a cultura de massas nos Estados Unidos. Em todas as expe- riências vê-se regimes totalitários e opressores calcados num espírito decadente e de uma racionalidade formal instrumental opressora. * Doutorando em Filosofia na Unisinos. Mestre em Educação pela UPF. Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015130 unificador, que não deixa nada de fora. Sendo assim, uma das questões que precisa ser tematizada é: se a nossa sociedade e vida está regrada por esses elementos, onde “nada mais pode ficar de fora, porque a simples ideia do de fora é a verdadeira fonte da angústia”, como pensar perspec- tivas para além de uma sociedade e uma vida administrada? Essa não é uma questão simples, que possa ser respondida imediatamente, isso se realmente tiver alguma resposta, por isso, ela permeará a nossa investi- gação da pesquisa. Adorno pode ser considerado o pensador que se contrapõe às teo- rias que impedem o ser humano de ser autêntico, que querem regular o indivíduo conforme interesse de particulares em prol de um aparente progresso. Assim, ele fomenta e coloca à disposição um pensamento filosófico, operado pela dialética, que não pretende submeter o outro a uma vida administrada, já que é um pensamento que se contrapõe e resiste ao formalismo da ratio burguesa. Romper com o pensamento unificado, homogêneo, totalizador, onde tudo é definido de antemão, se torna uma tarefa incansável tanto para a época de Adorno quanto para os dias atuais, pois ainda persiste a dinâmica, a postura e a condu- ção do sistema para a vida administrada. É preciso superar ou romper com a teoria de que tudo aquilo que é diferente seja igualado ou ainda, de querer estabilizar uma sociedade contraditória por intermédio da racionalidade instrumental. Muito provavelmente para quem vai ter um primeiro contato com a filosofia de Adorno, irá assustar-se por dois motivos, uma vez que as obras dele são extremamente desafiadoras e estão inseridas na vida da contemporaneidade. Em um motivo menor podemos dizer que ele es- creve de uma forma bastante singular, tornando a compreensão e in- terpretação mais complicadas por parte do leitor e num motivo mais enfático, as obras nos fazem pensar e repensar os conceitos ou ideias que temos como dadas e acabadas, ou seja, elas nos fazem questionar sobre sociedade, filosofia, maneira de viver, etc. O seu modo de se expressar pode confundir até mesmo quem aprecia sua teoria, caso não faça-se uma leitura e pesquisa minuciosa e pacienciosa, pois, ora podemos nos perguntar primeiramente, “o que ele quer dizer” e num segundo mo- mento “ele quer mesmo dizer isso?” Assim, percebemos que Adorno quer ir além da superfície imediata das coisas, isto é, não se contenta com as aparências e faz o embate para substituir a simples opinião pela 131Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 verdade, o que sempre é um pensamento ou algo difícil, mas que tem um valor substancial quando se almeja resistir à administração da vida. A estrutura metodológica do pensamento do autor desde o início é composta por questões importantes entrelaçadas estritamente com o mundo em que vivemos, ou ainda, entre sociedade e indivíduos. Adorno tem uma preocupação com os efeitos do sistema capitalista e com a forma de pensarmos, porém, ele não apenas elenca a [...] deformação da razão sob o impacto de transformações his- tóricas ou econômicas específicas. Isso seria presumir antecipa- damente que sabemos o que é a história, ou onde começa e ter- mina a economia. Em vez disso, Adorno tenta encontrar formas de investigar a incapacidade da razão em explicar os evidentes fracassos da vida social, posto que pensar histórica ou economi- camente seria tanto uma parte do problema quanto sua solução (THOMSON, 2010, p. 11). Mesmo que o mundo aparenta estar cada vez mais nítido a olhos nus, que as ideias e as relações se tornam públicas sistematicamente sem “filtragem”, é imprescindível, para Adorno, ir além da filosofia dos rela- tos para encontrar efetivamente uma fundamentação reflexiva, uma vez que “a vida não vive” (ADORNO, 1992, p. 15). Assim, a crítica não se refere apenas ao fato histórico, mas a instâncias do pensamento que não conseguiu e ainda não consegue produzir o seu conteúdo de verdade. Nesse sentido, a reflexão filosófica que Adorno faz nos remete a tematizar sobre como os indivíduos vivem e de que forma eles buscam a verdade, sendo que não existe mais uma natureza impositiva que de- termina a vida, mas ao mesmo tempo as pessoas são dominadas por ou- tros elementos. Vale enfatizar que o ser humano na modernidade pode agir em nome próprio sem medo, pois ele pode fazer uso da sua razão livremente. Entretanto, para Adorno as pessoas estão sob a dominação da razão, isto é, a ação é pensada de antemão sem que o indivíduo perceba, ele está condicionado por um sistema totalizador, não sendo livre e nem autônomo. O indivíduo apenas reproduz o que já está pensado, torna-se um objeto a favor da sociedade administrada. Entendendo dessa ma- neira ganha sentido a frase “a dominação universal da natureza volta-se contra o próprio sujeito” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 34). Sendo assim, podemos perguntar: como ultrapassar a racionalidade instrumental e fomentar outra esfera política, outra consciência, imprescindíveis para Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015132 romper com a lógica absolutista? Ou se quisermos ir mais longe, por que o pensamento se tornou tímido frente as barbáries constantes, frente a vida administrada? Poderíamos situar os questionamentos também da seguinte forma: o que realmente significa o pensamento crítico, reflexivo, dialético para Adorno? Existe espaço na atual sociedade para o pensamento livre e autônomo se realizar, uma vez que, como vimos acima, “nada mais pode ficar de fora, porque a simples ideia do de fora é a verdadeira fonte da angústia” (ADORNO, 1995, p. 29)? Qual seria o espaço e como se daria a sua articulação? Como pensar uma vida e uma sociedade não adminis- trada dentro de um sistema “unificador”? Lembrando sempre que para Adorno, “uma sociedade emancipada, contudo, não seria um estado unitário, mas a realização do universal na reconciliação das diferenças” (ADORNO, 1992, p. 99). Essas são algumas questões que acompanham o pensamento do autor e que nos deixam, de certa forma, inquietos. Ou seja, elas foram tam- bém, direta ou indiretamente, trabalhadas por Adorno, em parceria com Horkheimer em um determinado momento e também exclusivamente por Adorno, por isso escrevem no prefácio da obraDialética do Esclare- cimento. “O que nos propuséramos era, de fato, nada menos do que des- cobrir por que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadei- ramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie” (1985, p. 11). Portanto, a reflexão filosófica precisa olhar para a maneira de viver dos indivíduos na contemporaneidade, indo além das normas e resoluções estabelecidas. Romper ou resistir ao pensamento totalizador torna-se na filosofia adorniana uma tarefa elementar, entretanto, a dificuldade em empreender essa tarefa é enorme, pois “não há mais nenhuma expressão que não tenda a concordar com as direções dominantes do pensamento, e o que a lin- guagem desgastada não faz espontaneamente é suprido com precisão pelos mecanismos sociais” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 12). No en- tanto, é preciso se aventurar firmemente em águas desconhecidas sem antecipar categorias prévias e fixas, pois pensamento precisa ser um “ato de negação e resistência àquilo que lhe é imposto” (ADORNO, 2009, p. 19). O ato de negação, de resistência, é constitutivo do pensamento e do método de Adorno. Ele faz um profundo estudo das obras de Kant, Hegel, Nietzsche, Marx, Freud, entre outros, mas é através do método 133Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 dialético negativo que ele fundamenta sua teoria e afirma que, a filosofia que outrora estava em crise, permanece viva porque perdeu o instante. Nas palavras de Adorno “a filosofia, que um dia pareceu ultrapassada, mantém se viva porque se perdeu o instante de sua realização (ADORNO, 2009, p. 11). Isto é, a filosofia hegeliana, havia transformado tudo em sistema e Adorno inverte a ideia afirmando que a dialética não nos pro- porciona a verdade do mundo, mas sim o conhecimento de sua falsidade. Para referendar essa posição ele diz: “o todo é o não verdadeiro” (ADORNO, 1992, p. 46). Assim, o pensamento de Adorno evidencia-se mais por des- truir teorias do que construir. É sempre crítico, procurando contestar as formas violentas e totalitárias que impedem a vida de ser vivida. Percebe-se que tanto a sociedade quanto a vida das pessoas está fe- chada num sistema que pretende ser total, onde tudo é calculado mate- maticamente sob a técnica da indústria cultural, responsável por disse- minar e unificar as ações. Em tese, “o procedimento matemático torou-se, por assim dizer, o ritual do pensamento” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 13). Por isso, o objeto primeiro que Adorno, em parceria com Horkheimer, investigam é [...] a autodestruição do esclarecimento. Não alimentamos dúvida nenhuma – e nisso reside nossa petitio principii – de que a liber- dade na sociedade é inseparável do pensamento esclarecedor. Contudo, acreditamos ter reconhecido com a mesma clareza que o próprio conceito desse pensamento, tanto quanto as formas históricas concretas, as instituições da sociedade com as quais está entrelaçado, contém o germe para a regressão que hoje tem lugar por toda parte. Se o esclarecimento não acolhe dentro de si a reflexão sobre esse elemento regressivo, ele está selando seu próprio destino (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 13). Aqui, mais uma vez, aparece de forma nítida a preocupação do pensamento de Adorno ou mesmo a estrutura da sua filosofia, pois apa- rece a reflexão de que é preciso tematizar sobre os elementos que são destrutivos à vida e à sociedade para encontrar a verdade, ou seja, Adorno constitui sua teoria filosófica considerando que o “esclarecimento tem que tomar consciência de si mesmo. Vale frisar que ‘não se trata da con- servação do passado, mas de resgatar a esperança passada” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 14). Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015134 Torna-se visível que seu pensamento se situa contra a maneira acrítica em que a opinião amistosa promove suas escolhas. Em outros termos, os filósofos da escola de Frankfurt2, fazem a crítica ao Escla- recimento, ou ao desencantamento do mundo, pois este, efetivamente, se destaca como uma série de fenômenos modernos onde a caracterís- tica predominante é o processo de racionalização, desmitologização do mundo, o saber como ferramenta do poder, a técnica do cálculo como supremacia, entre outros. Por isso, a necessidade de um olhar crítico sobre a própria filosofia ou sobre os sistemas filosóficos que não tiveram êxito e sobre as transformações da sociedade em curso. A ideia iluminista, do esclarecimento, fundamentava-se na ciência moderna com o indicativo de que seria possível dominar as naturezas externa e interna, ou ainda, os homens não deveriam mais ficar depen- dentes dos humores da natureza e nem prisioneiros das superstições, as quais impediam que seus conhecimentos se transformassem em ações racionais. Portanto, o progresso da ciência, alicerçada na razão e na técnica, era o caminho para tornar o homem um ser livre e autôno- mo, com intuito de tornar-se senhor de seu destino. Entretanto, para os pensadores da Escola de Frankfurt, especialmente Adorno, isso não se concretizou, mas sim, trouxe condições extremamente prejudiciais para a sociedade e para o próprio ser humano pelo fato de submeter tudo ao controle do sistema hegemônico. A partir do século XVIII a pretensa ideia de esclarecimento esteve presente, buscando na racionalidade benefícios para a humanidade, isto é, o conhecimento, ou o poder do conhecimento, seria capaz de mani- pular ou oferecer um bem maior ao ser humano, qual seja, a sua liberda- de e a sua autonomia. O iluminismo tinha na sua concepção promover a desmistificação das antigas crenças que mantinham a sociedade, o ser humano, em atraso diante da possibilidade do uso total da razão. Ador- no e Horkheimer afirmam que “no sentido mais amplo do processo do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de li- vrar os homens do medo e investi-los na posição de senhores” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 19). 2 Em 1924 surgiu a Escola de Frankfurt na Alemanha, sendo que em comum os pensadores (Adorno, Horkheimer, Walter Benjamin, Herbert Marcuse, Pollock, Erich Fromm, Habermas, entre outros) tinham a preocupação em criar um espa- ço para discutir e refletir sobre problemas diversos que assolavam a sociedade e a vida das pessoas. 135Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 A argumentação do Esclarecimento de investir o ser humano de saber, de disseminar a lógica do pensar com autonomia e assim desmis- tificar e dissolver os seus mitos, fez com que a humanidade (sociedade e razão) se tornasse escrava de si mesma e criou uma nova mitologia. Mesmo assim, o iluminismo salienta que “o saber que é poder não conhece ne- nhuma barreira, nem na escravização da criatura, nem na complacência em face dos senhores do mundo” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 20). Mas sabe-se muito bem, que quem detém o saber ou quem dita a conduta na sociedade capitalista, é quem tem o poder, por isso, a au- tonomia e a liberdade do indivíduo passa a ser maculada e ele se torna um mero espectador ou seguidor da razão instrumental, seguidor do mundo administrado. Percebe-se que o mundo precisa se reestruturar desde os laços humanos, usando para isso a estratégia do próprio pen- samento que precisa reelaborar e tematizar outras perspectivas, é nesse viés, operar por dentro, que Adorno afirma seu pensamento. Pode-se dizer que o objetivo da crítica de Adorno e Horkheimer na dialética é o formalismo da razão desenvolvida até então, na sua forma mais pura, ou seja, a indiferença da razão perante qualquer objeto e, portanto, a submissão da substância à forma. A razão formalista como fora estruturada revela-se como princípio de dominação, como o con- trário da emancipação, ou ainda, o homem equivocadamente considera-se livre por ser um mero reprodutor de funções padronizadas da moder- nidade. Adorno cita que até mesmo o lazeré moldado pelas diretrizes culturais capitalistas, sendo a diversão uma extensão do trabalho, en- volvendo relações de dinheiro, interesse e disputa. A indústria cultu- ral mercantilizou e mecanizou todas as ações do homem e atrofiou sua consciência, impedindo-o de ser um sujeito reflexivo. Por isso, para encontrar um caminho a estas questões e uma ‘salva- ção’, inclusive, para a filosofia, a teoria de Adorno assinala a necessidade da revisão do processo do método dialético. A concepção de dialética predominante na tradição da filosofia estaria alicerçada, estruturada num sistema fechado que impossibilitaria o surgimento e o pensamento de algo novo. Com um sistema fechado, conforme proposto pela tradição do pensamento, ter-se-ia profundas dificuldades, quando não impossí- vel, de compreender a realidade e o contexto da inserção do ser humano. A dialética precisa fazer um processo com que os conceitos não sejam categorias lógicas claramente distintas, mas estruturas móveis e incertas para apreender a realidade que sempre tem uma constante interação e Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015136 evolução. Portanto, “o filósofo não deve pretender ser capaz de dar uma explicação clara e racional do mundo, pois a tentativa de impor ao mun- do esses padrões está ligada à violenta dominação humana da natureza” (THOMSON, 2010, p. 14). Dessa forma, os momentos específicos não devem ser derivados do todo e nem vice-versa. O que existe é um ensaio, uma tentativa de ex- plorar de como os conceitos interagem uns com os outros sob diferen- tes ângulos, isto é, não existe repetição de momentos, mas isto permite lançar um olhar sob diferentes óticas. Essa forma constelar, permite também pesquisar e tematizar sobre a possibilidade de encontrarmos perspectivas políticas decorrentes da racionalidade instrumental, ou seja, de encontrarmos possibilidades de uma vida não administrada, mesmo que Adorno não tenha escrito uma teoria específica sobre a organização política. A perspectiva política Sabe-se que o projeto da modernidade traz consigo a perspectiva de um progresso ilimitado da sociedade, fundado na ciência e na técnica, bem como também querendo abranger a política e a moral. Em outros termos, na modernidade a sociedade e a vida são regidas pela técnica e pela razão instrumental, onde que “o que importa não é aquela satisfa- ção que, para os homens, se chama verdade, mas a operation, o proce- dimento eficaz” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 18). No entanto, Adorno vê esse projeto do progresso com desconfiança porque a razão que governa a si e os demais, instrumentaliza-se e torna-se dominante. Esse viés está presente e aparece enfático na sociedade através do apa- rato econômico que determina a conduta das pessoas, pois “a racionali- dade econômica, esse princípio tão enaltecido de menor meio, continua incessantemente a remodelar as últimas unidades da economia: tanto a empresa quanto os homens” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 167). Entendendo assim, a organização da sociedade ou propriamente a vida não conseguiu se realizar como havia projetado a modernidade, pois “o progresso converte-se em regressão” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 14) na medida em que ocorre o domínio da natureza e o domínio do homem pelo homem ou ainda porque o 137Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 [...] trabalho social de todo indivíduo está mediatizado pelo princípio do eu na economia burguesa; a um ele deve restituir o capital aumentado, a outro a força para um excedente de trabalho. Mas quanto mais o processo de autoconservação é assegurado pela divisão burguesa do trabalho, tanto mais ele força a autoalienação dos indivíduos, que têm de se formar no corpo e na alma segundo a aparelhagem técnica (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 36). Sendo assim, no pensamento de Adorno permanece atual no sentido de que o iluminismo deixou de lado a exigência clássica de pensar o pensamento, e por sua vez, a dialética teria a função de ser a mola pro- pulsora da reflexividade, do sentido da filosofia e de abrir espaço para a sociedade não administrada, para isso, ela precisaria ter uma estrutura aberta e não mais um sistema fechado, para então, renovar constante- mente o conceito e interagir com a sociedade e com a própria filosofia. Essa nova estrutura, de uma dialética negativa, parte do fracasso do idealismo que absorvia o objeto na síntese, ocorrendo um domínio so- bre o outro, sobre o objeto. Adorno afirma que a dialética é a consciência consequente da não-identidade, uma negação do conceito. Entretanto, o conceito vai além dele próprio para manter viva a filosofia, por isso, O juízo sumário de que não se pode mais que interpretar o mundo e mutilar-se a si mesma de pura resignação ante a realidade se converte em derrotismo da razão, depois que fracassou a trans- formação do mundo [...]. Desde que a filosofia faltou à sua pro- messa de ser idêntica à realidade ou estar imediatamente em vésperas de sua produção, se encontra obrigada a criticar-se sem hesitações (ADORNO, 2009, p. 11). Adorno evidencia-se por buscar uma concepção ampliada da racio- nalidade, onde seja possível dar espaço ao não-idêntico, isto é, ao outro ou ainda, para aquilo que é diferente na sociedade, mas para isso é preciso tematizar sobre o próprio pensamento e não definir categorias prévias sobre o objeto. Nesse sentido ele também procura manter a vitalidade de seu pensa- mento: afirmando aquilo que o pensamento não é, aquilo que ultrapassa qualquer sistema estabelecido. O seu pensamento, portanto, perpassa a reflexividade dos conceitos provocando novos significados e constelações conceituais. A sua filosofia aponta para pressupostos sociais e ideológicos Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015138 das concepções epistemológicas para romper com aquilo que denomi- na de “fetiche dos conceitos”, enaltecendo assim, o caráter crítico do seu pensamento. Dessa maneira o autor dá um novo caráter e sentido à filosofia e à sociedade, protegendo a razão pela dinâmica da reflexivida- de, repensando a relação que se estabelece entre sujeito e objeto, entre conceito e realidade. O filósofo de Frankfurt procura reformular conceitos fundamentais da filosofia por suspeitar que em toda a tradição do pensamento o eu nunca tolerou o que não era idêntico a ele mesmo. Sempre houve a inten- ção do domínio total do objeto e do sujeito. “O terror que tem origem no passado pré-animista passa da natureza para o conceito do eu absoluto que submete inteiramente a natureza como seu criador e dominador” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 146). Em outra passagem os au- tores afirmam que o pensamento tradicional estabeleceu que “tudo deve ser usado, tudo deve lhe pertencer. A mera existência do outro é motivo de irritação. Todos os outros são muito espaçosos e devem ser recolocados em seus limites, que são os limites do terror sem limites” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 151). Esse pensamento totalitá- rio, segundo Adorno, teve seu ápice em Hegel quando ele afirma que o “real é racional”, isto é, quando ele estabelece uma identidade entre ser e pensar, entre pensamento e pensado. É nesse sentido que Adorno é enfático ao dizer que o “todo é falso”, uma vez que não se pode abstrair automaticamente ou hipostasiar. Essa maneira absolutista de pensar estendeu-se diretamente à so- ciedade através dos regimes totalitários, cujo os traços do pensamento “violento” ainda persistem pela técnica refinada do capitalismo, que mantém a plena administração da vida quando o indivíduo não pos- sui forças de resistência. Pode-se constatar que aquilo que não possui identidade com o sistema, que não possui conceitos prévios, é eliminado pelas forças dominadoras, sendo assim, tanto a filosofia, quanto a pers- pectiva política, tornam-se possibilidades vivasna tentativa de romper essa visão totalitária e apologética, constituindo uma consciência crítica frente a ideologia tendenciosa e absolutista. Nessa característica de pensamento totalitário, o conceito de liber- dade nas obras de Adorno ganha relevância, pois por um lado o indivíduo tem a pretensão de ser livre, mas por outro lado, ele sofre a interferência do sistema que administra sua vida, ou seja, existe na sociedade um siste- ma alicerçado na economia, na política e na ideologia que conduz a vida 139Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 arbitrariamente. Mesmo que as relações autoritárias visíveis tenham dimi- nuído, as relações de adaptação se desenvolveram de tal forma que a liber- dade pode ser confundida com a própria adaptação. Existe portanto, uma neutralização do indivíduo pela adaptação que é operada pela indústria cul- tural. Por isso Adorno fala da importância do pensamento resistir, já que [...] a ordem existente não compele os homens unicamente pela força física e pelos interesses materiais, mas pelo poder superior da sugestão. A filosofia não é síntese, ciência básica ou ciência- -cúpula, mas esforço de resistir à sugestão, a decisão resoluta pela liberdade intelectual e real (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 200). Para Adorno a perda da liberdade é fruto da violência da sociedade industrial que se impregnou definitivamente na vida de todos, isto é, “cada qual é um modelo da gigantesca maquinaria econômica que, desde de o início, não dá folga a ninguém, tanto no trabalho quanto no descan- so, que tanto se assemelha ao trabalho” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 105). Na verdade, isso possibilita a interpretação de que ninguém precisa pensar por conta própria, tudo está definido antecipadamente, por isso “a liberdade de escolha da ideologia, que reflete sempre a coerção econômica, revela-se em todos os setores como liberdade de escolher o que é sempre a mesma coisa” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 138). O que fica explicito a partir dessa citação e de que a razão instrumental, operada pela indústria cultural, fomenta a possibilidade do ser humano se transformar em mero objeto a serviço do mundo administrado, ofere- cendo inclusive possibilidades para o surgimento de barbáries. Nesse aspecto, é oportuno que o pensamento crítico penetre na realidade para destruir as aparências legitimadoras e mistificadas para “trazer à luz os dispositivos de poder que se escondem sob a ordem so- cial” (PERIUS, 2008, p. 140). No entanto, é preciso, além de trazer à luz os dispositivos, pensar além deles, e o exercício da filosofia é criar novas constelações que iluminem a realidade a partir de dentro, e não mais sobre a realidade. As formas constelares em que Adorno expõe o pensa- mento, atrevem-se a ignorar as teorias que a filosofia tradicional sempre fez questão de fixar. É importante ressaltamos que mesmo Adorno trazendo a luz tais configurações, ele não nos fornece uma receita para política, sendo assim, precisamos compreender que, quando falamos de política, estamos nos Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015140 referindo a algo ausente, a algo que precisa ser reinventado. Assim, o espaço político aparece como o espaço para que algo novo surja, mas para isso, é preciso desbloquear inclusive o acesso a política, operar de dentro da política para fomentar o mundo das constelações. É preciso ao mesmo tempo acolher a diferença e distanciar-se dela, ou seja, operar de forma dialética tanto “por meio dos extremos e nos próprios extremos” (ADORNO, 1981, p. 31). Nesse mesmo raciocínio, Adorno escreve na Atualidade da Filosofia: “Quem hoje em dia escolhe o trabalho filosófico como profissão, deve, de início, abandonar a ilusão de que partiam antigamente os projetos fi- losóficos: que é possível, pela capacidade do pensamento, se apoderar da totalidade do real”. Adorno formula seu pensamento, desde os primeiros anos de estudos, de forma diferenciada daquele que perpassou as dife- rentes épocas da filosofia. Considerou que resistir ao poder, ao que está fixado, pré determinado, era o caminho mais salutar. A filosofia teria o papel de apontar “a contradição entre crença e realidade” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 200). Ou seja, abdicar aos formatos de domí- nio absoluto do eu e da própria filosofia e reconhecer a realidade para além da razão, sem que essa tenha o reconhecimento total da realidade. Isso permite tematizar sobre aquilo que não é, sem fixar um conceito. Isso permite também falar sobre uma perspectiva para a política, que pre- cisa alimentar a vida humana sem uniformizar o pensamento e a expe- riência. É preciso acolher as múltiplas concepções e ações, tendo a política o papel de realizar o discurso de romper com o igualitário, com o homo- gêneo. É preciso abrir espaço para que a liberdade e a autonomia possam efetivar-se, ou seja, o espaço político ou a política são essenciais para que algo novo na sociedade ocorra. O novo, sem a política, já nasce velho. A pergunta de como tematizar um mundo verdadeiro, justo e livre no interior de um todo social falso ou se nada mais pode ficar de fora do sistema precisa acompanhar o pensamento para quem procura uma vida não administrada. Pois “entender o mundo significa relacionar o pensamento à história, e sem congelar nenhum dos dois: um mundo eterno e imutável a ser manipulado por um pensamento invencível. Os dois interagem: nossa consideração de um ou de outro só pode ser medida... Portanto, a mediação dos dois aspectos do mundo, de história e razão, não é uma fórmula. É um desafio” (THOMSON, 2010, p. 139). Em uma passagem da Minima Moralia Adorno diz que “não há emancipação possível sem a emancipação da sociedade” (ADORNO, 141Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015 1992, p. 177), o que nos dá possibilidades de compreender que a política tem um papel importante a cumprir, que é de romper com os discursos homogêneos pré determinados para que a vida possa ser vivida. Para isso, o conceito de redenção é fundamental, pois a partir dele A ausência de propósitos desmente a totalidade do proposital no mundo da dominação, e é somente pela força dessa negação, que consuma da sua consequência o existente a partir do seu pró- prio princípio racional, que até o dia de hoje a sociedade existente toma consciência de outra, possível (ADORNO, 1992, p. 221-222). Portanto, a política, sob conceito de redenção, precisa alimentar a vida humana, ela precisa ser um ensaio ou ainda, uma alternativa de restabelecer a dimensão consciente do pensamento, tendo por base con- ceitos em forma de constelações para construir novas perspectivas onde a vida não é administrada pela totalidade. Considerações finais Desde que a razão instrumental se tornou suprema, a partir do ex- posto, percebemos que o indivíduo perde sua autonomia, sua liberdade, sua força moral, espiritual e sua capacidade de resistência em face da pressão da sociedade para a adaptação daquilo que fora desenhado de antemão, ou seja, o indivíduo incapacitado de estabelecer um sistema consistente de resistência, vê se obrigado a acolher a decisão do poder dominante e administrado. Talvez um passo para construir efetivamente uma perspectiva po- lítica seria o fato de reconhecer a insuficiência da própria política do jeito como ela está posta, portanto, fazer a crítica imanente é necessária. Nesse sentido, reconhecer a singularidade de cada ação e pensamento, reconhecer a representação do passado em sua atualidade, considerar o não idêntico e ver as coisas do ponto de vista da redenção é um indi- cativo para pensar um vida não administrada a partir da política. Por fim, a política precisa ter uma dimensão constelar, pois “uma sociedade emancipada, contudo, não seria um estado unitário, mas a realização do universal na reconciliação das diferenças”(ADORNO, 1992, p. 99). Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 46, jan./jun. 2015142 Referências ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. ______. Dialética Negativa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. ______. Mínima Moralia. 2. ed. São Paulo: Ática, 1992. ______. Prismas: Crítica Cultural e Sociedade. São Paulo: Ática, 1998. ______. Teoria Estética. Trad. Arthur Morão. Lisboa: Edições70, 1988. ______. Tres estudios sobre Hegel. Madrid: Taurus, 1981 ______. Correspondência 1928-1940, Adorno-Benjamin. São Paulo: Unesp, 2012. DUARTE, Rodrigo A. de Paiva. Adorno/Horkheimer & a Dialética do Esclarecimento. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. ______. Adornos: nove ensaios sobre o filósofo frankfurtiano. Belo Horizonte: UFMG, 1997. HEGEL, G. W. F. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000. ______. A razão na história: introdução à filosofia da história universal. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1995. PERIUS, Oneide. Esclarecimento e dialética negativa: sobre a negatividade do conceito em Theodor W. Adorno. Passo Fundo: IFIBE, 2008. THOMSON, Alex. Compreender Adorno. Petrópolis: Vozes, 2010. ZAMORA, José Antonio. Th. W. Adorno – pensar contra a barbárie. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2008.
Compartilhar