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Texto 1 O Psicólogo Clínico frente à diversidade cultural

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APOSTILA 1: 
 
PSICOLOGIA CLÍNICA: O Psicólogo frente à diversidade 
cultural
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Gilzete Passos Magalhães
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Para que possamos abordar a atuação do Psicólogo Clínico, torna-se 
fundamental refletir sobre o que vem a ser a clínica e sobre o campo de atuação dessa 
prática, bem como a relevância da conduta ética do psicólogo frente à diversidade 
cultural. 
Moreira et al (2007) comenta que o termo clínica deriva da palavra klinê que, em 
grego, significa leito, portanto, a atividade do clínico consiste em atender o paciente no 
leito em que ele venha a ocupar, podendo ser esse leito não somente o consultório, mas 
os hospitais, abrigos, ONGs, ruas e demais espaços em que se encontre alguém em 
sofrimento psíquico ou como propõem Doron & Parot (1998), “(...) originariamente, a 
atividade clínica (do grego klinê – leito) é a do médico que, à cabeceira do doente, 
examina as manifestações da doença para fazer um diagnóstico, um prognóstico e 
prescrever um tratamento” (1998, pp.144-145). 
 A psicologia clínica, assim como as demais ciências, foram muito influenciadas 
pela filosofia, em que, esta palavra tem origem em dois termos gregos philia, que 
significa amor, amizade, e sophia, que quer dizer conhecimento, sabedoria, logo, a 
filosofia pode ser compreendida como a “ciência amiga do conhecimento”. 
Em torno do século VI a Va.C., os gregos já haviam estabelecido contato com os 
povos da Jônia, da Mesopotâmia, do Egito e da Fenícia através da atividade comercial e 
do desenvolvimento das navegações, motivos estes, que possibilitaram aos gregos 
observarem o contraste entre a physis e o nomos (MAGALHÃES et al.; 2012, 
REZENDE, 1990) 
Physis, em grego quer dizer física, mas naturalmente, não a mesma física observada 
na atualidade. A palavra Physis vem do verbo Phyéin, que em grego quer dizer emergir, 
nascer, crescer, e assim sendo, designa tudo o que brota, cresce, surge, então, physis é 
aquilo que pertence à “ordem natural”, ou seja, à ordem biológica, enquanto o termo 
nomos representa o que pertence à lei humana, é toda a realidade construída pelo 
homem e dele dependente (MAGALHÃES et al., 2012, REZENDE, 1990). 
 
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 O presente texto é resultante da leitura e síntese de artigos e obras relacionados na bibliografia utilizado 
para fins didáticos e pedagógicos. 
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 Psicóloga. Mestre em Psicologia Clínica pela PUC – SP e Especialista em Psicologia Clínica de 
orientação junguiana. Atuação em Psicologia Organizacional, Clínica e em pesquisa e extensão 
acadêmica. 
 
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Dessa forma, physis, ou “ordem natural”, são as leis eternas, inexoráveis, imutáveis. 
Leis que os homens podem descobrir, mas não conseguem alterar. Como por exemplo: 
tudo o que faz parte do orgânico, tudo o que diz respeito a uma “determinação 
biológica”, como exemplo – o sono, a sede, a respiração, o sexo. 
Consoante Magalhães et al (2012) e Rezende (1990), sendo o nomos o que faz parte 
da ordem humana, podemos citar como ilustração – as leis escritas e orais, a arte, a 
religião, a arquitetura -, enfim, tudo o que pertence à ordem humana, social ou cultural. 
Assim, supõe-se que tenham sido os gregos, os primeiros a observarem o contraste entre 
“o orgânico” ou “biológico” e o “social” ou “cultural”, pois apesar de existirem funções 
que são determinadas biologicamente, a forma de satisfazer cada função (fome, sono, 
sede, sexo) difere de cultura para cultura, de sociedade para sociedade, como 
observaremos a seguir. 
Este contraste entre o biológico ou orgânico e o social ou cultural, não é percebido 
espontaneamente por qualquer cultura. Uma sociedade que não questione, que não 
exercite o pensamento crítico, pode apreender as leis e costumes sociais como tão 
inexoráveis quanto as leis naturais – umas e outras fundamentadas no sagrado, 
constituídas pela vontade divina -, e foi justamente a dessacralização da sociedade grega 
que permitiu que, a partir do século Va.C., alguns filósofos refletissem sobre a origem 
do nomos. 
O contato com outras culturas, revelou aos gregos a diversidade dos valores, leis, 
costumes, normas de conduta que regem as sociedades humanas. Os gregos observaram 
que o nomos ou a cultura não é natural, mas produto de uma convenção humana. 
A partir de uma observação atenta, perceberemos que, embora existam funções 
biológicas como a fome, a sede, a respiração e o sexo, a forma de satisfazer cada uma 
dessas funções será determinada pela cultura. 
Assim, embora a fome seja determinada biologicamente, em alguns lugares da 
Amazônia, a população aprecia o “turu”, enquanto em outra cultura, este prato típico é 
rejeitado pela sua consistência e aparência (trata-se de um molusco que se aloja em 
algumas madeiras quando essas já se encontram em um estado degenerativo, o alimento 
é delas retirado e consumido cru, com a adição de sal e limão). 
Outro exemplo, na Região Amazônica, o açaí é consumido com açúcar, tapioca e 
peixe, enquanto em São Paulo e Rio de Janeiro, o açaí não possui a mesma consistência 
e portanto, é a ele acrescentado banana e aveia, além deste fato, o mesmo é adoçado 
com xarope de guaraná e é comum tomar açaí com granola. 
Podemos pensar ainda, no escargot, prato da culinária francesa. O escargot é um 
molusco que, embora possa causar náuseas em pessoas de outra sociedade, na França é 
considerado uma rara iguaria e vale lembrar que, na China, carnes como a de cachorro e 
cobras são bastante apreciadas e observamos ainda que, na nossa sociedade, a carne de 
vaca é um prato aceito popularmente; no entanto, na Índia, a vaca é considerada um 
“animal sagrado”, sendo portanto, o seu consumo proibido, observado como ofensa aos 
deuses. Destacamos que, embora a carne de porco faça parte da mesa de muitos 
brasileiros, para os judeus islâmicos e alguns cristãos de orientação protestante, o seu 
consumo é interditado pela religião (LARAIA, 2002). 
Como exemplo das várias operações para satisfazer um número pequeno de funções 
biológicas, pensemos no sexo. Na Índia, existe uma doutrina religiosa chamada 
tantrismo. Os seguidores do tantrismo acreditam que - através da relação sexual -, é 
possível uma aproximação direta de Deus, logo, a relação sexual é considerada sagrada, 
divina. Todavia, na cultura judaico-cristã, muitas vezes o sexo é associado ao pecado e 
portanto, observado como profano. 
 
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É comum ainda, defendermos a idéia de vários instintos, como o “instinto filial”, o 
“instinto maternal” e o instinto de conservação. Porém, o que dizer sobre o “instinto 
filial”, se os esquimós conduzem seus pais, ao atingirem uma idade avançada, para 
planícies geladas a fim que sejam devorados pelos ursos. Procedendo assim, os 
esquimós acreditam que, quando o urso for abatido e devorado por outros esquimós, 
seus pais voltarão a ser incorporados pelo grupo (LARAIA, 2002). 
Quanto ao “instinto maternal”, observemos as índias Tapirapé: quando engravidam do 
quarto filho, essa criança é sacrificada após o nascimento. Outro exemplo que contraria 
o instinto maternal é o costume praticado por algumas aldeias da Amazônia – se a 
mulher dá a luz a filhos gêmeos, o segundo é morto -, embora os procedimentos dessas 
comunidades possam ser discriminados pela nossa cultura, vale lembrar que “sacrifícios 
rituais” como esses, são determinados pela religião dessas sociedades. 
Mesmo o “instinto de conservação” pode ser alvo da interferência da cultura. Laraia 
(2002) comenta que no Ano Novo, o cidadão japonês que deva dinheiro, pode cometer 
o Harakiri, o “suicídio ritual”. Procedendo dessa forma, este cidadão é perdoado das 
dívidas, limpando o próprio nome e de sua família. Outros exemplos que se contrapõemao “instinto de conservação” são os aviadores suicidas japoneses da segunda guerra 
mundial, chamados “pilotos Kamikases”, ou nos dias de hoje: “os homens-bomba” 
islâmicos. 
Assim, percebemos que embora existam funções determinadas biologicamente, a 
forma de satisfazer cada uma dessas funções sofrerá a influência da cultura a qual o 
indivíduo pertença. Mas... o que é cultura? 
 
FORMULAÇÃO DO CONCEITO DE CULTURA: 
 
No final do século XVII, no início do século XIX surgiram os conceitos de Kultur e 
Civilization. O termo germânico Kultur designava os aspectos espirituais de uma 
comunidade e o termo francês Civilization abordava as realizações materiais de um 
povo. 
Os termos citados abordavam a arte, a religião, as leis, os costumes, as crenças, as 
regras de conduta, entre tantas outras expressões humanas. Se pensarmos a respeito da 
arte, religião, leis, etc, poderemos considerar estas expressões mais espirituais ou 
materiais? 
Observemos que, apesar da arte ser uma manifestação da alma, dos sentimentos do 
artista, ela é expressa materialmente, através da pintura, da escultura, do desenho, da 
música, da literatura, ou seja, a arte é a concretização dos sentimentos do artista, logo 
existe tanto o aspecto espiritual, quanto material da arte. 
E quanto à religião? Será ela mais espiritual ou material? Naturalmente, não é difícil 
perceber o aspecto espiritual da religião, uma vez que ela é a expressão do divino. No 
entanto, por mais abstrata que seja a religião, mesmo que ela não utilize imagens, existe 
o seu lado material, pois as crenças se fundamentam em livros sagrados que abordam as 
regras de conduta e as mensagens divinas; livros como a bíblia, o alcorão, a torah, etc. 
Outro aspecto material da religião é o local reservado para a missa, o culto, o louvor a 
Deus, seja a Igreja Católica, a Igreja Evangélica, a Sinagoga, a Mesquita, o Centro 
Espírita, os Templos Budistas, os Terreiros de Umbanda, Candomblé e outros credos. 
Assim, observamos então que a religião pode expressar tanto o aspecto espiritual, 
quanto a realização material. 
Em 1871, Edward Tylor, sintetizou os termos Kultur (aspectos espirituais de uma 
comunidade) e Civilization ( realizações materiais de um povo) no vocábulo inglês 
Culture, traduzido como “cultura” para o nosso idioma. 
 
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Edward Tylor, através da definição de cultura, conseguiu abranger em uma só palavra 
todas as possibilidades de realização humana, tanto o caráter espiritual, quanto o caráter 
material da cultura, que segundo a sua afirmação dependia de um processo de ensino-
aprendizagem, em oposição à idéia de aquisição inata, transmitida por mecanismos 
biológicos ou nas palavras do autor mencionado “tomado em seu amplo sentido 
etnográfico, cultura é todo este complexo que inclui conhecimentos, crenças, artes, 
moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem 
como membro de uma sociedade.” 
Destarte, observamos como a cultura varia de sociedade para sociedade e assim, 
o quanto os hábitos, as normas de conduta, os costumes, são diferentes de acordo 
com cada comunidade. 
A reflexão sobre a contrariedade entre natureza e cultura é essencial para que 
possamos compreender as diferenças sociais e individuais e para que venhamos a 
manter uma postura ética, inclusiva e menos preconceituosa em relação aos 
diversos povos e nações que possam a ser pacientes de nossa clínica e para que 
possamos ter um comportamento ético em nossa atividade profissional. 
 
 
 
 
BIBLIOGRAFIA 
 
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Vol. I. São Paulo: Ática, 1998, pp. 144-145. 
 
FERREIRA NETO, J. L. Qual é o social da clínica? Uma problematização. Pulsional: 
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LARAIA, Roque de Barros. Cultura: Um Conceito Antropológico. Rio de 
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002. 
 
MAGALHÃES, Gilzete Passos et al. Redes da vida: uma leitura junguiana sobre 
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http://revistas.pucsp.br/index.php/kairos/article/viewFile/17045/12668 > 
 
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REZENDE, Antonio (Org.). Curso de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar 
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