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A antropologia filosófica na grécia clássica (segunda parte) (1)

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A ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA NA GRÉCIA CLÁSSICA (segunda parte)[1: Texto elaborado pelo profº como complemento às aulas.]
Nós somos aquilo que fazemos repetidamente. 
Excelência, então, não é um modo de agir, mas um hábito.
Aristóteles
-Platão: a questão antropológica
Platão, discípulo de Sócrates, fora muito marcado pelos ensinamentos morais de seu mestre. Tal como Sócrates, Platão defendia a existência do Bem Universal. O Bem não é uma ideia epistemológica, puramente teórica; diferentemente, o Bem é uma ideia que paira acima de todas as outras ideias, e sua essência é moral, prática.Por isso mesmo, o acesso ao Bem não se faz apenas com a razão que calcula e mede, uma vez que é o amor, enquanto Eros celeste, o motor que faz ascender a alma até o Bem.
Porém, profundamente abalado pela morte de Sócrates, a quem ele considerava o homem mais justo que já viveu, Platão passa a se preocupar com as questões jurídicas e políticas. Para ele, o filósofo não deve apenas fazer discursos morais. O filósofo também deve se preocupar com o exercício de poder na sociedade. Com Platão, as questões políticas e jurídicas passam ao centro da filosofia. 
Foi com esse intuito que Platão escreveu o livro A República (cuja melhor tradução seria O Estado), no qual ele propõe uma transformação profunda da sociedade grega. Objetivo principal de Platão: fazer com que cheguem ao poder, e chefiem o Estado, somente aqueles homens que, em primeiro lugar, aprenderem a governar a si mesmos.
 O livro parte de uma tese principal de Platão: segundo este filósofo, tudo o que acontece de danoso em uma determinada sociedade é o reflexo do que acontece no interior da alma dos homens. Ou seja, os males que afligem uma determinada sociedade (violência, corrupção, falta de credibilidade das leis, injustiça, etc.) têm seu nascedouro na alma. Porém, é mais fácil constatar os problemas na sociedade do que na alma , pois nesta última eles estão escritos em caracteres bem pequenos. Desse modo, para serem lidos eles requerem um grande trabalho de análise psicológica. 
Sendo assim, para melhor compreendermos os problemas sociológicos, políticos e jurídicos, é preciso que partamos, antes de tudo, de uma análise psicológica da alma humana, pois é aí que também se originam, segundo Platão, a justiça e a injustiça. Assim, na visão de Platão, “a injustiça na cidade é um reflexo da injustiça na alma”.Daí a importância da antropologia como base de sua análise.Como a alma deve ser para se comportar justamente? Quais são as causas que fazem nascer a injustiça na alma?
Platão nos apresenta uma teoria da alma humana que é aceita até hoje, pois ele foi o criador da Teoria das Faculdades. Três são as principais faculdades da alma humana: a Razão, a Vontade e o Desejo. Cada faculdade se define por certa atividade. A razão é responsável pelo conhecer; já a vontade tem como atividade o querer; enquanto o desejo busca o prazer.
Quando cada faculdade funciona com perfeição, Platão diz que essa perfeição enseja o surgimento de uma determinada virtude. O funcionamento perfeito do conhecer, por exemplo, gera a virtude da prudência. Já o bom desempenho do querer dá nascimento à virtude da coragem. E a temperança ( ou comedimento ) , por fim, é a virtude causada pelo bom funcionamento do desejo. 
RAZÃO CONHECER virtude = Prudência
VONTADE QUERER virtude= Coragem
DESEJO PRAZER virtude= Temperança (Comedimento)
 
Quando as três virtudes mencionadas funcionam em harmonia, nasce a virtude mais importante: a justiça. Assim, a justiça não é a virtude de uma determinada faculdade isolada, mas da alma como um todo.
Prudência + Coragem + Temperança= Justiça
Para Platão, harmonia significa hierarquia. Dessa forma, para que haja harmonia dentro da alma, e portanto justiça, é preciso que haja hierarquia: cabe à razão presidir essa hierarquia, governando a vontade e, sobretudo, o prazer. Segundo Platão, a injustiça nasce dentro da alma quando há desarmonia, ou seja, ausência de hierarquia. Isso pode acontecer sobretudo devido ao desejo, quando este funciona de forma não comedida: ao invés de se comportar de forma temperante, o desejo se deixa levar pelo excesso e pela desmedida, provocando desequilíbrio dentro alma. Portanto, o desejo é a faculdade que está no extremo oposto à razão, pois enquanto esta última é a faculdade da ordem, o desejo é a faculdade que pode gerar desordem ( desequilíbrio). 
De forma alegórica, Platão diz que a alma humana se assemelha a uma carruagem. Assim como a carruagem possui três componentes principais, a alma humana é composta por três partes essenciais. Os componentes da carruagem são : o cocheiro e dois cavalos, um preto e outro branco. As partes ou faculdades da alma são, como já assinalamos: a razão, a vontade e o desejo.[2: Esse mito aparece no Fedro , e complementa a teoria da alma apresentada no livro A República.]
A função do cocheiro é traçar um rumo, ter um objetivo: é ele que deve ser o condutor. Se o cocheiro não sabe para onde levar a carruagem, esta se encontra perdida e desorientada. Mas a função do cocheiro depende dos dois cavalos. São eles que possuem a força, embora lhes falte um objetivo. Este é traçado pelo cocheiro, a razão. 
No entanto, a tarefa do cocheiro é dificultada por um dos cavalos: o cavalo preto, o desejo. Por quê? Segundo Platão, a vontade ( o cavalo branco) é diferente do desejo ( o cavalo preto). O que move o cavalo branco é o querer. Quando este querer está submetido ao conhecer , o cavalo branco conduz-se numa linha reta traçada pelo cocheiro ( que é exatamente quem possui o conhecer). A vontade é um cavalo obediente ao cocheiro, embora a proximidade com o cavalo preto lhe dificulte a tarefa de caminhar em linha reta. 
O que move o cavalo preto é o prazer. Segundo Platão, a busca pelo prazer agita o cavalo preto , tornando-o insubmisso à disciplina da razão . Mas o cocheiro não pode prescindir desse cavalo, uma vez que é do cavalo preto que provém a energia, o impulso e a força que faz a carruagem avançar. Contudo, os olhos do desejo são cegos em relação aos valores que guiam os olhos da razão, pois estes valores são imateriais, enquanto que o desejo só vê o mundo material e sensível. Esta cegueira do desejo é a expressão de sua ignorância. Portanto, o conhecer racional precisa da ignorância exatamente para forçá-la a conduzir-se para o mais longe de si mesma , para que dessa forma ele possa, a despeito dela, chegar até o ponto ao qual apenas o conhecer não pode levar. 
Por mais estranho que possa parecer, o cavalo preto não conduz o cocheiro até ao fim do caminho. Ao contrário, com o cavalo preto o cocheiro chega tão somente ao início do caminho. Ou melhor, nem mesmo ao início. Pois o caminho verdadeiro somente começa quando o cavalo preto morre possibilitando, segundo Platão, a libertação da alma do mundo das aparências e ilusões, que sempre fazem a alma perder seu rumo verdadeiro: a racionalidade e a moralidade . 
Assim, a filosofia de Platão é uma ascensão rumo à Transcendência do Mundo Inteligível, que está sempre iluminado por um sol invisível: o Bem. É em direção ao Bem que a carruagem deve orientar-se, sobretudo na conduta política e jurídica, pois o filósofo platônico deve fazer da lei jurídica a representante do Bem entre os homens.
Do mesmo modo que a alma possui três partes, a cidade é composta por três classes: os magistrados, os generais ( e soldados) e os comerciantes ( Platão emprega esse termo em um sentido bem geral, incluindo sob essa categoria também os artesãos e agricultores). Os magistrados são responsáveis pela produção e aplicação das leis. Os generais cuidam da proteção e defesa da cidade. Já os comerciantes são os responsáveis pela produção dos bens materiais necessários à manutenção da vida econômica da cidade. 
Sendo assim, a razão , como faculdade da prudência, é a faculdade que deve comandar a vida dos magistrados, pois esses devem governar a cidade; já os generais, por necessitarem decoragem , devem ser governados principalmente pela vontade; e os comerciantes, segundo Platão, se deixam conduzir fundamentalmente pelo desejo. E é aqui que nasce o problema. Por ambicionarem sempre mais e mais posses e propriedades, desejando assim ficarem cada vez mais ricos, os comerciantes tornam-se um perigo para o equilíbrio social quando eles ambicionam também governar o Estado. E, segundo Platão, a democracia sempre conduz ao poder alguém da classe dos comerciantes. Isto pelo seguinte motivo: na democracia quem governa é a maioria. E a classe mais numerosa é a dos comerciantes. Segundo Platão, esta classe sabe apenas “comprar e vender”, pois esta é sua especialidade. Então, ela fará política comprando e vendendo, sobretudo comprando e vendendo aqueles que são os responsáveis pelas leis.
 De forma radical , Platão acredita que a subida ao poder dos comerciantes ( ou dos “capitalistas”, como dirá Marx) traz, inevitavelmente , a corrupção para o interior da classe dos magistrados ( que eram os responsáveis, àquela época, pelo “Poder Judiciário” grego). Quando os comerciantes chegam ao poder, a justiça vira objeto de comércio. Com isso, as leis caem no descrédito e o poder passa a ser monopólio dos homens mais ricos. E com as leis em descrédito, a anarquia passa a rondar e ameaçar a sociedade. Com medo da anarquia e da desordem, o povo clamará para que alguém da classe dos generais tome o poder, restabelecendo , mesmo que à força, a ordem. Com medo da anarquia, o povo clamará por um tirano, que passará a governar sem leis, apenas com o exército. E quando um tirano sobe ao poder, a consequência imediata disso será o “amordaçamento” ( a censura) dos magistrados. 
Em ambos os casos, então, será a classe dos magistrados a que mais sofrerá, seja pela corrupção seja pelo medo, o poder das outras classes. E quando a classe dos magistrados perde o posto de protetora da justiça, a injustiça passa a reinar não apenas na alma dos homens, como também na própria cidade. 
A cidade justa que Platão propõe deve estar fundada não na igualdade, mas na harmonia. E harmonia significa ordem e hierarquia. Assim como a razão deve ter o comando de nossa alma, os magistrados devem ter o governo da cidade. E os magistrados devem chegar ao poder não pela força do dinheiro ou do voto, mas pela força de suas virtudes, sobretudo a virtude da justiça. É esta que deve servir de antídoto à corrupção e à covardia. 
Assim, de forma polêmica e radical, Platão condena a democracia. O sistema de governo ideal seria, segundo ele, uma monarquia cujo monarca fosse, ao mesmo tempo, magistrado e filósofo. 
Tal postura de Platão é tributária do grande impacto que o filósofo sofreu ao conhecer a sociedade egípcia, em tudo distinta da grega: o segredo da estabilidade daquela sociedade milenar parecia estar fundado, segundo pensava Platão, na estrita hierarquia das classes sociais. Há um lugar privilegiado para se testemunhar a referida diferença: na arte que cada uma dessas sociedades produziu.
A arte grega é uma ode ao visível, uma apologia à beleza sensível e corporal. O corpo triunfa nessa arte e é deificado sob a forma da perfeição individual. Platão considerava tal arte o espelho do individualismo que grassava na sociedade grega, individualismo este que o filósofo tomava como sinônimo de decadência e corrupção. Na arte egípcia reina o princípio oposto. Ela é pobre na imitação da realidade visível, visto que sua riqueza se encontra no invisível que ela suscita. Toda a variabilidade de personagens sociais por ela retratados é produzida segundo um modelo único, uma forma invariável que permanece a mesma, malgrado a diferença relativa constituinte de cada indivíduo em particular.
Essa forma ou fôrma invariável é o paradigma, a ideia ou o modelo que serve de princípio de inteligibilidade e produção dos indivíduos. Pode-se dizer que a arte egípcia é a menos artística de todas, uma vez que se encontra nela uma exigência somente compreensível do ponto de vista gnosiológico e moral: uma arte para se ver mais com os olhos da razão do que com os olhos do corpo. Uma arte, enfim, que parece prescindir da sensação, pois o que ela visa imitar não pode ser dado na experiência sensível.
-Aristóteles: o homem como um animal político
 
 Em um sentido bem geral, a palavra “clássico” significa: “aquilo que resiste ao tempo”. Daí a razão de dizermos “Grécia Clássica”, pois se trata de uma sociedade que resiste ao tempo e permanece , em muitos aspectos, fonte de aprendizagem sobre aquilo que nós mesmos somos hoje . 
Sempre que tratamos de temas como a política, as artes, a democracia , a retórica , o teatro , a antropologia e , claro , a filosofia , necessário se torna irmos aos clássicos, pois apesar de eles terem vivido em um passado distante, esse passado ainda não morreu, pois nele se cultivou a semente do humanismo, semente esta que deve servir de antídoto às barbáries do mundo contemporâneo. O diálogo com este passado,desde que o façamos viver, é indispensável para a compreensão do sentido do presente. [3: Ver, a esse respeito, o filme As invasões bárbaras.]
 Os gregos defendiam que é o ideal que guia a construção da realidade, e não o inverso. Para eles, idealizar algo não era exatamente enveredar pelo caminho da abstração estéril. Ao contrário, os gregos eram de opinião que a realidade concreta é gestada, primeiro, no plano das ideias. Por esse motivo, os gregos foram, antes de tudo, idealizadores e amantes das ideias (enquanto que os romanos foram, por sua vez, mais preocupados com a ação e pouco afeitos às ideias ). Isso explica o fato de o povo grego ser pródigo na criação das teorias que, sobrevivendo ao tempo, encontram ainda hoje eco nas grandes questões que servem de fundamento às ciências, às artes e à filosofia.
Ao tratarmos das questões relativas à ética e à antropologia ,por exemplo, necessário se torna o estabelecimento de um diálogo com os gregos, sobretudo com aquele que é considerado o sistematizador de várias matérias: o filósofo Aristóteles. Este é considerado, justamente, o fundador não apenas da ética, como também da biologia, da psicologia, da lógica ,da física, da astronomia e de outras importantes disciplinas, além de lançar as bases da antropologia filosófica. Atribui-se também a Aristóteles o papel de ter sido o primeiro filósofo a realizar uma reflexão sistematizada acerca da ideia de justiça, virtude essencial na busca do humanismo, além de ter estudado e escrito sobre as principais constituições conhecidas à época . Ao se debruçar sobre o teatro, por exemplo, Aristóteles extraiu importantes e inauguradoras percepções acerca da psicologia. Portanto, não há como compreender minimamente os fundamentos de tais estudos sem ouvir Aristóteles.
 
- Aristóteles: o “conciliador”
 Embora as reflexões de Aristóteles contenham aspectos que valem apenas para a época em que ele viveu, em muitos pontos seus escritos permanecem ainda atuais. Aristóteles é sempre referendado, por exemplo, nos estudos sobre a política. Contudo, sua visão da política diverge em muito da que vigora hoje. Já que, para Aristóteles, a política não pode ser tratada de forma separada da ética e da justiça. Ao contrário, é através da política que a justiça e a ética são efetivamente realizadas, como já veremos no prosseguimento desse texto. 
Há um traço psicológico de Aristóteles que o define bem e o distingue de seus antecessores. De fato, em todas as áreas em que atuou Aristóteles foi, sobretudo, um conciliador. No caso da política, ele quis conciliar dois extremos: o individualismo dos sofistas e o estatismo de Platão. [4: O termo “estatismo” está sendo usado aqui no sentido de defesa intransigente do Estado.]
Segundo Aristóteles, os sofistas e Platão erraram pelos seus respectivos radicalismos. Os sofistas erraram ao desprezarem o interesse geral e acreditarem apenas na existência do interesse particular, centrado principalmente na ideia de propriedade privada. Já Platão errouao defender o inverso, reduzindo o interesse particular a quase nada (e condenando radicalmente a propriedade privada). Os sofistas hipervalorizavam a vida privada, desprezando a vida pública. Eles acreditavam, como posteriormente defenderão alguns teóricos do liberalismo, que a essência do homem é o seu egoísmo: é na atividade econômica que tal essência ganharia expressão e objetividade, através da propriedade privada. Para os sofistas, a lei jurídica seria, antes de tudo, a expressão de interesses privados poderosos , defendidos com sucesso pelo uso da retórica. 
Platão, ao contrário, defendia a supremacia da vida pública , mesmo que isso significasse a quase abolição da vida privada (daqueles que tivessem a responsabilidade de administrar e governar o Estado). Sendo assim, sustentando uma posição contrária à dos sofistas, Platão tomou como modelo para suas análises da política o indivíduo altruísta, isto é, aquele que se anula em prol da vida coletiva, cujo representante é o Estado. Tal posição o levava a minimizar a importância da família e da propriedade privada. Ele chega mesmo a considerar que em uma sociedade realmente justa a lei seria completamente dispensável. Pois, para ele, justiça não é sinônimo de igualdade, mas de harmonia. A harmonia pressupõe a colocação em ordem de coisas distintas. Por exemplo, na teoria musical a harmonia nasce da ordenação de sons diferentes. E para haver harmonia, é preciso que haja, também, hierarquia. No caso da justiça, o fundamento de tal hierarquia não deve ser o poder ou a riqueza, mas a conduta racional e moral. Por ser um defensor da razão, que seria o “cocheiro” a guiar nossa alma, Platão acreditava que a alma justa é aquela na qual existe uma estrita hierarquia, cujo ponto mais elevado é ocupado pela razão, enquanto que o ponto mais baixo fica a cargo do desejo ( e, entre esses dois extremos, encontra-se a vontade). A alma justa, enfim, é aquela na qual cada parte executa sua função, e não se intromete na função da outra. O mesmo ocorre na cidade . A cidade justa é aquela que obedece a uma estrita hierarquia, na qual o governo é atributo dos seres mais racionais (os Magistrados-Filósofos), enquanto que a atividade econômica fica sob responsabilidade dos comerciantes. [5: Em suas últimas obras (sobretudo em As Leis) Platão recua um pouco em seu radicalismo, reconhecendo certa importância da vida privada, da família , da propriedade e das leis escritas. ]
Segundo Platão, a democracia é um mau regime político: nela, o poder sempre acaba na mão da maioria. E a classe mais numerosa é, de fato, a dos comerciantes (no sentido o mais geral da palavra). Mas estes sabem apenas “comprar e vender”, buscando sempre ter mais lucros e posses, para assim satisfazer a parte da alma que mais lhes solicita: o desejo ( que é a faculdade do prazer). Portanto, diz Platão, quando os comerciantes chegam ao poder, eles fazem política “comprando e vendendo”, isto é, corrompendo e sendo corrompidos. Como consequência mais danosa, dificilmente os magistrados conseguem manter-se imunes a tal comércio com as questões relativas à política e à justiça. Para evitar tais degradações, que nascem quando o interesse público fica subordinado aos interesses particulares, Platão era de opinião de que a cidade justa deveria zelar por uma ordem hierárquica na qual os magistrados exerceriam o governo, sem misturar tal atividade com a economia, enquanto os comerciantes se dedicariam exclusivamente a atividades nas quais o “comprar e vender” estaria restrito apenas às coisas necessárias à subsistência do corpo, e nunca às questões necessárias à subsistência da alma (tais como a justiça e o saber). Quando a justiça e o saber se tornam objeto de comércio, diz Platão, é sinal de que a corrupção vitimou não apenas a sociedade, como também a alma dos cidadãos. 
Tentando encontrar um acordo ou um “justo meio” entre essas posições radicais, Aristóteles concebe a política como um equilíbrio entre os diversos e conflitantes interesses particulares (ligados aos indivíduos) e o interesse geral , que deve ser comum a todos. Segundo Aristóteles, não há sociedade sem interesses privados e atividade econômica. Entretanto, ele reconhece também que a vida pública deve manter-se em um nível mais elevado, pois o fundamento da vida pública é o interesse comum. 
Mas será que existe mesmo um interesse comum a todos? Aristóteles dirá que sim. E, segundo ele, esse interesse comum é a base da política. Veremos, a seguir, o que é, para Aristóteles, a política e de que forma ela está intimamente ligada à ética e à antropologia.
- Política e “amizade”
Há uma frase famosa de Aristóteles que resume perfeitamente a importância que ele confere à política em sua estreita relação com a antropologia. Segundo ele, o “homem é um animal político”. Com isso, Aristóteles pretende afirmar que a política pertence intimamente à essência do homem. Isto significa também que o homem não pode ser compreendido de forma isolada, pois sua natureza política implica necessariamente a sua relação com o “outro”. [6: O filme O Náufrago retrata bem essa importância do “outro” para a realização de nossas potencialidades. Empregando uma simples bola, o personagem desenha um rosto nela, dotando-a de uma expressão humana. A bola parece ganhar uma espécie de “subjetividade”, com a qual o personagem entra em relação. Até mesmo um nome a bola recebe ,sendo o ato de nomear um dos atos fundamentais de humanização, segundo a psicanálise ( por exemplo, antes de nascermos biologicamente , nascemos culturalmente, quando nossos pais escolhem nosso nome. Nosso nome “nasce” primeiro que nós mesmos). A bola tornou-se então uma espécie de “receptor” para as palavras do personagem, possibilitando assim que ele pudesse comunicar-se consigo mesmo, e dessa forma vencesse a solidão extrema, a loucura e até mesmo o impulso para dar fim à própria vida. ]
Em resumo, Aristóteles defende a tese de que o homem somente pode ser compreendido em sua relação com o outro. Nesse aspecto, conforme já fizemos notar, a postura de Aristóteles diverge profundamente da concepção “liberal” da política , tal como é concebida, por exemplo, pelos filósofos Locke e Hobbes . Segundo estes, antes de a sociedade nascer existiam apenas os indivíduos em um “estado de natureza”, sem leis e sem Estado. Os indivíduos existiam como “átomos isolados” : o objetivo de suas vidas se resumia tão somente na satisfação imediata de seus desejos. Foi nesse “estado de natureza” que , segundo os liberais, teria surgido o primeiro direito natural, como expressão imediata do desejo do indivíduo, a saber: a propriedade privada. Dessa forma, a propriedade privada (juntamente com o direito à vida) seria a base do direito natural liberal. Segundo eles ainda, a função primordial do Estado e do Direito seria garantir esse direito natural. Assim, para esses teóricos liberais a essência do homem seria profundamente econômica, a política vindo apenas posteriormente, com a criação do Estado ( e este nasceria com a função principal de garantir aqueles direitos naturais, sobretudo a propriedade privada).
Para Aristóteles, a política é uma atividade sem a qual o homem não pode desenvolver todas as suas potencialidades. E para que essas potencialidades sejam desenvolvidas, é necessária a existência da sociedade e das relações políticas. A atividade econômica tem importância, mas uma importância secundária e subordinada à política. O que significa dizer que somente a posse de propriedades privadas não é condição suficiente para que o homem possa desenvolver sua essência e potencialidades. 
Vale dizer que Aristóteles criticava aos sofistas e a Platão também pelo seguinte ponto: as análises destes últimos acerca da sociedade estavam equivocadas porque elas tomavam como base não verdadeiramente a sociedade, mas o indivíduo. Assim, os sofistas apregoaram como modelo o homem comum e egoísta, que só pensa em seus próprios interesses privados. Já Platão detivera sua atenção apenas sobreo indivíduo altruísta, que sacrifica demasiadamente seus interesses privados em nome do interesse público. Enfim, enquanto os sofistas priorizam o indivíduo comum, Platão monopolizara sua atenção sobre o filósofo, fazendo deste último um ser privilegiado: um monarca cujo reino é a moral. 
Contudo, os sofistas e Platão erraram por serem péssimos sociólogos. Pois a sociedade não pode ser compreendida tomando-se como modelo os indivíduos. A sociedade é o todo, as partes são os indivíduos. E, para Aristóteles, o todo tem primazia sobre as partes . Por exemplo, a mão é parte do corpo. O corpo pode viver sem a mão (no caso de acidente), mas a mão não pode viver sem o corpo. Segundo ainda Aristóteles, a essência da sociedade não é o indivíduo, mas as relações ou vínculos. Para este filósofo, há dois tipos básicos de relações: as relações familiares e as relações políticas. As relações familiares têm como base o vínculo de sangue, isto é, o que une as pessoas de uma mesma família é o fato de elas possuírem o mesmo sangue .[7: Em grego, sangue é “genos”. “Genético” se origina dessa raiz grega. ]
Já as relações políticas têm como base algo diferente do sangue. As relações políticas têm como fundamento aquilo que Aristóteles designa como amizade . Para tornar mais clara a sua ideia , Aristóteles afirma que existem três tipos de amizade: 1- a amizade que tem como base o prazer; 2- a amizade na qual as pessoas se unem tendo em vista algum interesse em comum ; 3- a amizade que tem por princípio a virtude. 
As duas primeiras formas de amizade se restringem ao campo pessoal ou particular. São amizades que se limitam à nossa vida privada. Nos dias de hoje, quando pensamos em amizade, é a essas formas de amizade que normalmente nos reportamos.
Na amizade por virtude, diz Aristóteles, estabelecemos com o outro uma forma de vínculo que não é meramente privado ou pessoal. Este “outro” com o qual devo estabelecer uma amizade por virtude é exatamente o outro cidadão, não importando se ele é rico ou pobre, velho ou moço, enfermo ou saudável, meu conhecido ou não.
Quando essa amizade se estabelece, vemos então no outro um “igual”. Mais de mil anos depois, exatamente em 1789, os partícipes da Revolução Francesa deram um novo nome e extensão para essa “amizade política”. Eles a chamaram de fraternidade. Igualdade, liberdade e fraternidade: eis os ideais fundamentais da democracia e do humanismo em sua vertente política, que acrescerá mais uma exigência: a dignidade. Do ponto de vista político, a fraternidade tem preponderância. Sem ela como base das relações não há a aceitação de que o outro seja livre e igual a mim (do ponto de vista jurídico). Pode-se ver um exemplo dessa amizade também na Revolução Russa, pois os russos se diziam “camaradas” ( os socialistas se reconhecerão como com-panheiros : “aqueles que dividem o mesmo pão”).[8: Em grego: “ison”, de onde deriva “isonomia” (“igualdade perante a lei”).][9: Já que Aristóteles deixava fora dessa “amizade” pessoas que, na concepção dele, não possuíam o estatuto de “sujeitos do direito”, como as mulheres, os estrangeiros e os escravos.][10: Nos dias atuais, esta amizade política e social encontra expressão no termo “solidariedade”.]
Sem essa amizade, diz Aristóteles, torna-se impossível atingir a ética e a justiça. E quando a política se deixa determinar pela ética , ela se torna o meio de realização da justiça.
-Razão teórica e razão prática
Aristóteles também se diferenciou de seu mestre Platão ao afirmar a natureza dupla da razão. Enquanto que Platão concebia a razão como uma faculdade eminentemente teórica, que se desenvolve sobretudo pelo estudo da matemática, Aristóteles não nega a existência dessa razão teórica, mas acrescenta que também existe uma outra razão, que não se desenvolve através da matemática, e sim por intermédio das relações com os outros, e se aplica sobretudo à ética e à política . Aristóteles a designou de razão prática.
A razão teórica se desenvolve pela instrução e pelo estudo. Ela tem por objeto a ordem eterna e imutável do universo. Já a razão prática é cultivada na ação concreta, que tem lugar em um espaço e tempo determinados, e tem por objeto as escolhas que devemos fazer para justificar nossas ações. 
 A palavra “prática” provém do grego “práxis”. Ela se estende à esfera das ações humanas, nas quais o desejo desempenha um papel fundamental. Portanto, é preciso não confundir a noção de prática grega com aquela que hoje nós formamos. Infelizmente, o mundo moderno tende a confundir a prática com a “habilidade técnica para produzir algo”. Quando os gregos se referiam à prática, tinham em mente as ações humanas. A razão prática se exerce fundamentalmente em três áreas: na moral, na política e no Direito.
Segundo Aristóteles, todas as ações humanas ocorrem devido a algum fim ou finalidade. Por exemplo, as ações do médico visam a saúde do paciente; por seu turno, as ações do remador objetivam conduzir o barco ao porto; as ações do jardineiro, por sua vez, tencionam manter as flores belas, etc. 
Mas de todas as finalidades que governam as ações humanas, a mais importante é, para Aristóteles, a busca da felicidade. Se um homem busca a riqueza, é por acreditar que esta lhe trará a felicidade; se outro quer a beleza, ele assim o faz por crer que da beleza virá a felicidade. A felicidade é um bem, assim como a riqueza e a beleza. A diferença reside no seguinte ponto: a felicidade é um bem maior, isto é, ela é um bem em relação ao qual todos os outros bens são meios. Segundo Aristóteles, a riqueza não pode ser um bem maior, pois possuí-la não significa a certeza da felicidade ( o mesmo se aplica à beleza, à fama e a todos os outros bens). Sem dúvida, ter a riqueza favorece a felicidade, mas não a traz necessariamente. 
É o desejo que nos move na busca dos bens . É o desejo que prescreve os bens como fins a serem alcançados. Contudo, segundo Aristóteles, o desejo é ignorante dos meios. Ou melhor, o desejo está sempre a confundir os bens relativos ( riqueza, beleza, fama, etc.) com o bem maior ( a felicidade). Isso ocorre porque somente à razão prática pode ser confiada a tarefa de escolha dos meios que nos conduzem ao bem maior, que é o verdadeiro fim. E os meios mais confiáveis para se alcançar aquele bem maior são, segundo Aristóteles, as virtudes. O homem rico pode alcançar a felicidade através da riqueza, mas sofre com a possibilidade dessa mesma riqueza um dia escoar, tornando-o infeliz. Mas aquele que chega à felicidade através das virtudes gozará de uma felicidade mais estável e não sujeita às coisas materiais.
Não há felicidade sem prazer. Assim, a felicidade advinda do exercício das virtudes produz na alma um prazer. Contudo, nesse caso, o prazer é uma consequência, e não a finalidade a ser buscada. 
De todas as virtudes, a mais importante é a justiça. Segundo Aristóteles, a justiça é a virtude cardeal, pois ela é a soma de todas as virtudes. Pois não há como ser justo sem ser, ao mesmo tempo, corajoso, modesto, etc. E não pode ser justo quem é covarde, arrogante, etc. 
Mas o que é uma virtude?Segundo Aristóteles, a virtude é o justo meio entre dois vícios. É sempre em relação à virtude que o vício é definido. Os vícios são de duas espécies: há vícios que se definem pela ausência de uma determinada virtude. E há outros vícios, ao contrário, nos quais a virtude está em excesso. O vício, portanto, ou é carência ou é excesso da virtude correspondente. Por exemplo, a coragem sem dúvida é uma virtude. A covardia nasce da ausência de coragem. Já o excesso de coragem gera a temeridade. A coragem seria, segundo Aristóteles, a “justa medida” . 
De todas as virtudes, a justiça é a mais importante. Seguindo seu mestre Platão, Aristóteles também era de opinião que somente no homem justo é que podemos perceber o que é a justiça. Ela, a justiça, é a virtude do homem justo. A justiça é uma virtude especial porque, de todas as virtudes, ela é a que mais leva em conta o outro. O homem justo, portanto,é aquele que quer o seu bem tanto quanto o bem do outro. 
Segundo Aristóteles, o “homem é um mau juiz de si mesmo”. Isto é, quando se trata de um bem (seja esse bem a riqueza, o lucro ou a fama, por exemplo), o homem quer sempre mais. Ao contrário, quando se trata de um mal, o homem sempre quer o menos possível. Mas a vida em sociedade nos leva sempre a estabelecer relações com os outros, e muitas dessas relações assumem aspectos jurídicos, como nos contratos. Quando fazemos um contrato com o outro, não podemos apenas querer ganhar. Também não é direito que o outro leve mais vantagens . Para que haja justiça, é preciso um equilíbrio entre o ganhar e o perder: aquilo que se perde deve ser proporcional àquilo que se ganha . 
Mas zelar pela justiça dos contratos é tarefa que, muitas vezes, os próprios contratantes não têm a virtude de realizar. Nesse caso , cabe ao homem justo intervir, para assim fazer justiça. Encontrar a “justa medida” entre o ganhar e o perder, essa é a função principal da justiça enquanto virtude do homem justo. Nesse sentido, ela também é uma necessidade das instituições políticas.
A reflexão de Aristóteles sobre a Ética e a Justiça ocupa um número considerável de obras. A Ética e a Justiça são tão fundamentais para ele que elas permanecem como pano de fundo nas obras em que Aristóteles trata da Retórica e da Política . Mas de todas as obras escritas por ele, é na Ética a Nicômaco que se encontra a principal referência sobre o assunto, sobretudo o Livro V .
Há uma diferença entre as palavras “ética” e “moral”. Comumente nos deparamos com livros que empregam essas palavras de forma indistinta, como se elas tivessem o mesmo significado. Contudo, a diferença existe. Embora sutil, a diferença entre ética e moral é de suma importância. 
 - Os dois sentidos da palavra “ethos”
A confusão nasceu devido ao fato de que a palavra grega “ethos” significava, ao mesmo tempo, dois sentidos distintos. Essas diferenças de sentido ocorriam através de um pequeno detalhe na pronúncia da palavra. Quando a palavra ethos era pronunciada com o “e” fechado , costumava-se representar esse som escrevendo a palavra da seguinte forma: ĕthos. Com o “e” fechado, ethos significava “costume”. Quando , ao contrário, pronunciava-se ethos com o “e” aberto , sua grafia era assim: éthos. Neste último caso, ethos significa caráter ou hábito. Portanto, enquanto o costume remete à sociedade, o caráter ou hábito, diferentemente, diz respeito ao indivíduo. E dentre todos os indivíduos, é no sábio que vemos a maior expressão de caráter: é do caráter que procedem as virtudes. Dentre estas últimas, a mais importante sem dúvida é a justiça, considerada como virtude cardeal. Para os Gregos, então, é no sábio que percebemos a justiça como traço de caráter. [11: Como o alfabeto grego é distinto do latino, do qual proveio o português, há sempre dificuldades para traduzir para a nossa língua toda a sutiliza da língua grega.Por isso,a transliteração,que consiste em escrever ou grafar as palavras gregas conforme o nosso alfabeto, favorece a compreensão didática da ideia,embora a transliteração seja um campo também passível de heterogeneidades interpretativas.][12: Como se sabe, Aristóteles foi um filósofo defensor da razão. Para ele, como para Platão, existe uma razão suprema e divina, que estabeleceu para tudo uma ordem racional. Esta ordem está acima do indivíduo, e somente o filósofo pode conhecê-la. Por isso, a forma mais elevada de conhecimento é, segundo Aristóteles, a teologia (pois ela nos faz conhecer o Autor do mundo). Nesse sentido , embora Aristóteles tenha diferenciado ética e moral, ele subordinou a primeira delas a esta última , já que a moral seria a expressão de uma ordem divina governando o cosmos. Pois se o sábio serve de modelo para que o imitemos, a quem ele , o sábio, imita? Isto é, quem é o seu modelo? Para Aristóteles, o modelo que serve de paradigma para a ação do sábio não é outro sábio, mas a ordem perfeita que o sábio contempla no cosmos. Chega um momento em que a sabedoria do sábio se vê diante do seu limite. Ele se vê diante de algo que está além do humano. E este além do humano é exatamente a ordem racional criada por Deus, que lhe deve servir de paradigma.]
De que forma podemos aprender sua virtude? Imitando-a, repetindo-a como regra para o nosso desejo. Só assim, por imitação , podemos fazer com que as virtudes se tornem um hábito para a nossa ação, formando dessa maneira o nosso caráter. No livro V da Ética a Nicômaco, Aristóteles argumenta que a virtude não é algo natural ao ser humano, pois ela se forma pelo hábito. Temos predisposição para adquirir as virtudes, desde que guiemos nosso desejo segundo a razão. 
É pelo exercício da virtude que nos tornamos virtuosos. É da virtude que nasce a verdadeira felicidade, na qual está presente até mesmo certo prazer. Logo, o prazer é uma conseqüência da virtude, e não o fim a ser buscado como fonte exclusiva da felicidade.
Começamos essa exposição sobre Aristóteles mencionando um traço de seu caráter, pois dissemos que Aristóteles era um conciliador.Também aqui esse traço se revela,uma vez que para ele a justiça é um justo meio entre dois extremos: o egoísmo e o altruísmo. Isso significa dizer que o homem justo não pensa apenas em si ( como faz o egoísta) ou apenas no outro( à maneira do altruísta). O homem justo busca a justa medida entre o bem próprio e o bem do outro. Como diz Aristóteles, “ o homem justo deseja o seu bem tanto quanto o bem do outro”. Por isso, a felicidade trazida pela justiça é a mais rica,dado que o homem justo se torna feliz não apenas com sua própria felicidade,ele também fica feliz com a felicidade do outro, e trabalha para que ela se realize. Por isso, as ocasiões para o homem justo ser feliz são inumeráveis, enquanto que o egoísta somente é feliz com seu próprio bem ( já o invejoso terá mais oportunidades para ser infeliz, pois sua infelicidade reside na felicidade do outro...). 
 
Como se sabe, embora tenha sido discípulo de Platão, boa parte da filosofia de Aristóteles consiste em refutar seu mestre. Tomando partido pela postura racionalista, nisto seguindo a Platão, Aristóteles porém concede alguma importância a fatores que os sofistas igualmente valorizavam. Na verdade, Aristóteles também foi, além de filósofo, psicólogo, sociólogo, jurista, historiador, biólogo... enfim, um ser enciclopédico. 
É célebre a posição de Platão partidária da existência de dois mundos: o Mundo das Ideias ( ou Mundo das Essências) e o mundo sensível ( ou mundo das aparências). O primeiro é perfeito e eterno e oferece os modelos ( as Ideias) com os quais a razão deve organizar a vida humana. Para Platão, quanto mais o homem se deixa levar pelo mundo sensível (o mundo da experiência), mais ele se afasta do mundo racional das Ideias ( ou essências). Assim, para Platão há uma total incompatibilidade entre a razão e a sensibilidade. Esta pertence ao “mundo natural”, ao passo que a pátria da alma é o mundo sobre-natural ( topos uranos,lugar celeste) do qual ela ,ao nascer,caiu.Por isso, sua visão do mundo (e do Direito) é construída tendo a razão no ápice , assim buscando evitar as influências da sensibilidade. [13: “Experiência” deriva do termo grego “empiria”. E é daí que surgiu a palavra “empirismo”, ou seja, “relativo à experiência”. ]
Essa postura culmina com a sua defesa de que os problemas que ocorrem na vida social (violência, corrupção, falta de credibilidade na lei, etc.) têm seu nascimento, primeiro, na alma humana. Assim, a política (e o Direito) tem como base a psicologia: uma alma injusta é aquela na qual a razão não governa, mas sim o desejo ( ou sensibilidade). E uma alma em desgoverno trará igualmente desgoverno ao Estado que estiver sob o seu poder. Dessa forma, o governo do Estado tem que passar às mãos daqueles que , em primeiro lugar, conseguemgovernar a si mesmos. Pois, segundo Platão, a fonte legítima do poder não é o costume, o sangue ou mesmo as leis, mas a razão (enquanto sede das virtudes). 
Em seu livro intitulado Política, Aristóteles buscará, sem abrir mão da racionalidade na política e no Direito, refutar seu mestre. Seu principal objetivo será questionar a visão totalitária de Platão, que apregoava o fim da propriedade privada e da família para aqueles que fossem governar o Estado. Embora dê uma primazia ao Estado, Aristóteles não abole a família e a propriedade privada de sua cidade ideal e justa, reconhecendo que o Estado não deve estar nas mãos de uma classe privilegiada, mas nas mãos do cidadão ( que também deve ser, na esfera privada, pai e proprietário). A unidade do Estado não deve esmagar a pluralidade social.
Segundo Aristóteles, existem três tipos de ciência. Primeiramente, as ciências teoremáticas ( theoria = ato de ver). Estas consistem no conhecimento das leis que governam a natureza. A Física, a Astronomia, a Biologia, etc., seriam, segundo Aristóteles, ciências teoremáticas. 
Já as ciências poiéticas ( poiésis = fabricação ou produção) são aquelas que fabricam ou criam o objeto sobre o qual elas se aplicam. São exemplos de ciências poiéticas a Engenharia, a Arquitetura, etc. Os objetos de tais ciências são produzidos pela atividade racional humana. 
Finalmente, as ciências práticas são aquelas cujo produto é o próprio ser humano, enquanto ser agente. Ou seja, são ciências que visam a formação do próprio homem enquanto cidadão. São exemplos de ciências práticas a Política, o Direito e a Moral. Tais ciências se caracterizam, então, por estabelecer a lei como elemento formador do ser humano, já que o homem é, ao mesmo tempo, “criador” e “criatura” das leis. O “objeto” das ciências práticas é o próprio homem como ser que , ao agir ( e falar) , constrói a si mesmo como ser autônomo e livre , por intermédio da lei que o torna “igual” ( isói) ao outro cidadão.
A mais famosa frase do livro Política resume muito bem o espírito da obra. Segundo Aristóteles, “o homem é um animal político” (zoon polítikos). Com essas palavras, Aristóteles quis dizer que existe no homem certa predisposição natural à sociabilidade. Ou seja, é natural ao homem procurar se associar a outro homem. É natural ao homem, portanto, viver em comunidade. Quando Aristóteles afirma que a “sociabilidade é natural ao homem”, ele quer dizer com isso que a sociabilidade pertence à essência do homem, já que , em Aristóteles, natureza é sinônimo de essência. [14: Aristóteles, Política, Livro I. Voltaremos a essa frase mais adiante no texto. ]
Três são as formas naturais de comunidade: a família, a aldeia e a pólis (a Cidade-Estado). Em cada uma dessas comunidades, uma finalidade é buscada. E cada finalidade é buscada por intermédio de uma forma de comando ou poder. 
Na família, que é a primeira das comunidades, a finalidade buscada é a perpetuação da espécie, por intermédio da reprodução; a forma de comando repousa no poder do pai sobre a esposa, os filhos e os escravos. Na família, é o pai, portanto, a fonte do poder. E o fator que legitima tal autoridade é o sangue. [15: Aristóteles, como se sabe, considerava a escravidão algo natural. Existiam duas formas de escravidão: a natural e a por lei. Aristóteles questionava a esta última, e aceitava a primeira. Na escravidão por lei, definia-se o escravo como o homem que, no início, fora prisioneiro de guerra. Aristóteles condenava essa forma de escravidão porque quando uma cidade menos valorosa ( do ponto de vista da qualidade dos seus cidadãos, por exemplo), mas muito violenta, conseguia vencer uma cidade mais desenvolvida, por lei positiva ( isto é, convencionada) os cidadãos livres desta última se tornariam escravos dos cidadãos da primeira. Nesse caso, muitas vezes o escravo teria mais valor do que o senhor.Geralmente, os escravos naturais eram os não gregos ou filhos destes que, por não saberem falar corretamente o idioma grego, não poderiam exercer com perfeição o ato mais característico do homem livre: deliberar ( isto é, usar a palavra com fins políticos), pois os gregos achavam que apenas eles, e mais nenhum outro povo, possuíam o Logos ( a razão) que é a faculdade humana que deve presidir a deliberação. ]
Da união entre famílias surge a segunda forma de comunidade: a aldeia. Geralmente, o poder na aldeia é monopólio do rei, cuja origem está ligada à família poderosa da qual o rei proveio. A finalidade da aldeia repousa, principalmente, na vida econômica. Segundo Aristóteles, é na aldeia que começa a necessidade de as trocas serem mediadas mediante moedas, cujo valor se deve ao fato de que, nelas, a efígie do rei está impressa. O rei mantém em torno de si um exército com o qual ele oferece, em troca de obediência, segurança aos súditos. Por isso, o rei se vale da força, se necessário, para fazer valer sua vontade. Há algo de pai no rei; assim como existe um traço de rei no pai. 
Quando as aldeias se reúnem, surge a mais elevada forma de comunidade: a pólis . Nesta, a finalidade maior é a justiça, e o comando que possibilita tal finalidade é a lei jurídica. Assim, na pólis a principal fonte de poder não é o sangue ou a força, mas a lei. É na comunidade política que o homem pode realizar , enquanto cidadão,a sua natureza ou essência. 
Do mesmo modo que a família e a aldeia, a pólis também é uma realidade natural, isto é, ela não resulta da mera convenção humana, conforme defendiam os sofistas. “Portanto, diz Aristóteles, se as formas anteriores de sociedade são naturais, assim também é o Estado”. Mais adiante ele afirma: “é evidente que o Estado é uma criação da natureza e que o homem é, por natureza, um animal político”. Segundo este filósofo, o Estado é a finalidade maior das outras formas de comunidade, pois é somente no Estado ( pólis) que o homem pode realizar perfeitamente a sua natureza ou essência. [16: Aristóteles, Política , Livro I.]
Essa questão se torna mais clara quando destacamos mais um ponto que difere Aristóteles de seu mestre. Enquanto Platão fazia da matemática o modelo da razão, Aristóteles vai buscar na biologia o padrão ( ou paradigma) para se pensar a política ( e, conseqüentemente, o Direito). Por ser um grande observador da natureza, chegando até mesmo a realizar experimentos na área da biologia, Aristóteles afirmava que, na natureza, “ o todo precede as partes”. O todo tem precedência por ser ele mais racional do que as partes. Na biologia, o todo é representado pela espécie ( na lógica, por sua vez, o todo é o Conceito). Todo indivíduo, portanto, pertence a uma espécie. É a espécie o princípio de produção e inteligibilidade do indivíduo. Pela experiência sensível conhecemos os indivíduos. Mas se queremos obter um conhecimento racional da realidade, é-nos necessário conhecer a espécie, isto é, o todo. É o todo que fornece a essência. Aristóteles acreditava que somente pode haver ciência do todo, e não do indivíduo. E mais: ele defendia também que “o todo é mais do que a mera soma dos indivíduos”. Ou seja, a espécie “cão”, por exemplo, é mais do que a mera soma dos cães que já existiram, que existem e que ainda vão existir. De forma análoga, a espécie “homem”, enquanto todo, é mais do que a mera soma dos indivíduos humanos. A espécie, enfim, é uma “Forma”: esta forma já está presente em cada indivíduo enquanto princípio ou essência. Enquanto as partes são várias, no todo reside o princípio da unidade. Isto significa dizer que a unidade precede (e é mais racional) do que a pluralidade. Este pensamento é a base do racionalismo de Aristóteles. [17: Referimo-nos, aqui, à biologia tal como era compreendida àquela época. ][18: Enquanto Platão considerava que as Formas (ou Ideias) existiam em um mundo à parte (o Mundo das Ideias), para Aristóteles, diferentemente, as Formas presidem, de forma racional, o surgimento e o crescimento das coisas que existem em nosso mundo. São as Formas que definem a finalidade. A finalidade deum cão, por exemplo, é realizar com maior perfeição possível a Forma-Cão (que é o paradigma ou essência). No homem, a Forma é a razão. Assim, o homem mais perfeito é aquele que conseguiu realizar o mais possível, em si mesmo, a razão. ]
Aristóteles aplica esse modelo biológico à política. Assim, a família é o todo do qual os parentes são as partes. Mas em relação à aldeia, esta é o todo, enquanto as famílias são as partes. E quando passamos à pólis, pode aflorar então aquilo que na família e na aldeia estava apenas em potência : a razão. A pólis é o todo do qual as aldeias são as partes. Enquanto comunidade que busca a justiça, a pólis é a principal expressão política da razão. Pai, rei e lei : família, aldeia e pólis. [19: Assim como o adulto está em potência na criança; ou a árvore está em potência na semente. Quando algo existe apenas em potência , significa que lhe falta ainda o pleno desenvolvimento. Quando algo está plenamente desenvolvido, Aristóteles afirma então que este algo existe em ato ( ou seja, já está plenamente realizado). ]
Enquanto a família e a aldeia favorecem apenas ao desenvolvimento material (ou sensível) do homem, a pólis é a única comunidade que permite ao homem desenvolver as potencialidades racionais .[20: Para Aristóteles, a família e a aldeia são formas de comunidades presentes até mesmo entre os animais e insetos. Por exemplo, muitos animais constituem família; e as colméias e formigueiros são comunidades baseadas em um rei ou rainha. Somente o homem pode viver em uma comunidade verdadeiramente política. ]
Assim, quando Aristóteles afirma que “o homem é um animal político”, ele quer dizer com isso que já está em sua natureza, em germe, a semente da racionalidade, cujo desenvolvimento requer a convivência na cidade (em latim, “civitas”, de onde procede “civil”). Do mesmo modo como a espécie preside ao nascimento e desenvolvimento de cada indivíduo, o Estado preside e governa o nascimento e o desenvolvimento do cidadão. 
A finalidade da pólis era a justiça na comunidade. Aristóteles dizia ser a justiça não apenas uma virtude do homem justo, mas também um Bem. A justiça também é a organização da comunidade tendo em vista o Bem Comum. Segundo Aristóteles, existem dois tipos de bens: os partilháveis e os participáveis. Um bem é partilhável quando ele é uma quantidade que pode ser dividida e distribuída. Por exemplo, a riqueza é um bem partilhável. Por outro lado, um bem é participável quando ele é uma qualidade indivisível, não podendo ser dividida e nem distribuída, podendo apenas ser participada. Um exemplo de bem participável é o poder político (o amor e a amizade, por serem imateriais, também são bens participáveis: não podemos dar “um pedaço de amizade” a alguém, pois o amigo é aquele com o qual participamos o bem da amizade). Realizar a justiça no seio da comunidade é , por vezes, dividir e distribuir os bens partilháveis ; noutras vezes, realizar a justiça é garantir a participação do cidadão em um bem ( como o exercício do voto, por exemplo). 
Desse modo, Aristóteles acreditava que a lei jurídica tem uma função eminentemente pedagógica ou educativa. E o elo entre a lei jurídica (escrita) e a lei moral ( não escrita ) é exatamente a razão inscrita em cada ser humano. A lei jurídica deve ser criada, mas para espelhar uma lei (moral) que o homem não criou. 
Aristóteles procede também a um exame das diversas “constituições” existentes àquela época. Mas não devemos entender “constituição” conforme o sentido que lhe atribuímos hoje. Àquela época, “constituição” significava “o conjunto das leis” (incluindo aí matérias penais, comerciais , administrativas, etc.). Segundo Aristóteles, a constituição via de regra espelha o éthos ou caráter do povo que a elaborou. É por isso que as leis positivas variam no espaço e no tempo. 
Segundo ele, para certos povos que valorizam a família e a tradição, a melhor constituição seria a monarquia; para outros, que valorizam a nobreza e a honra, o mais adequado seria a aristocracia; enquanto que as comunidades políticas nas quais se valoriza a igualdade ( e nas quais a classe média seja forte), nestas o melhor seria a democracia. Quando a constituição não é adequada ao caráter do povo, ou quando aqueles que estão no poder não possuem a virtude da justiça, tais regimes dão nascimento a formas degradadas de constituição, fazendo com que as leis não sejam respeitadas. Assim, quando a monarquia se degrada, surge a tirania; a oligarquia, por sua vez, nasce quando a aristocracia passa por cima das leis; já a demagogia resulta da degradação da democracia , e da demagogia nasce a anarquia. Na tirania, é como se um dos cidadãos quisesse retornar ou à forma familiar do poder, tornando-se ele um pai que cobra de todos a obediência, ou à forma do rei da aldeia; já a demagogia resultaria da falência da constituição e das leis em representar o bem comum, levando, na anarquia, ao fim da própria ideia de comunidade, segundo pensava Aristóteles. A oligarquia é uma forma intermediária entre a tirania e a anarquia. [21: Mas não se trata, aqui, da monarquia tal como na aldeia, que era baseada apenas no sangue. A “monarquia constitucional” deve fundamentar-se, também, na lei. Temos o exemplo de tais monarquias, hoje, na Inglaterra e na Espanha.]
De tudo o que foi dito, uma ideia de Aristóteles parece valer: trata-se da ideia de que “o homem é um animal político”. Com essa frase, Aristóteles constrói do homem uma imagem completamente diferente daquela que hoje parece predominar, segundo a qual “o homem é um animal econômico”. Ou seja, para Aristóteles a essência do homem não é o egoísmo, pois em sua essência já se encontra o germe da comunidade: e é somente no seio desta que o homem pode se tornar realmente homem, isto é, cidadão. [22: Essa ideia ganha força no século XVII, e está na base da formação do Direito Liberal ou Burguês. ]

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