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PSICOTERAPIA EXISTENCIAL FP

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PSICOTERAPIA EXISTENCIAL 
FUNDAMENTOS E PRÁTICA 
 
WALMIR MONTEIRO 
 
 
PRIMEIRA PARTE 
ONTOLOGIA FENOMENOLÓGICA SARTRIANA 
SEGUNDA PARTE 
A PRÁTICA DA CLÍNICA EXISTENCIAL 
 
 
Aos meus filhos William e Desirée 
 
São Paulo, 2009 - Clube de Autores 
 
 
 2
 
 
 
 
 
 
 “A idéia que jamais deixei de desenvolver é que ao fim das 
contas cada um é sempre responsável por aquilo que foi feito de si; 
mesmo se ele não puder fazer mais que assumir essa 
responsabilidade. Acho que um homem pode sempre fazer alguma 
coisa daquilo que fizeram dele. É a definição que eu daria, hoje em 
dia, de liberdade, este pequeno movimento que faz de um ser social 
totalmente condicionado, uma pessoa que não reproduz mais a 
totalidade daquilo que recebeu em seu condicionamento; o que faz de 
Genet um poeta, por exemplo, enquanto ele tinha sido rigorosamente 
condicionado para ser um ladrão?” (Sartre – “O Existencialismo é um 
Humanismo”) 
 
 
 
 3
ÍNDICE 
PRIMEIRA PARTE 
INTRODUÇÃO, 4 
I – INTENCIONALIDADE, 11 
II – FENOMENOLOGIA E TEMPORALIDADE, 16 
III - EGO E CONSCIÊNCIA, 33 
IV - A CONSTITUIÇÃO DO EGO, 39 
V- EM-SI E PARA-SI, 50 
VI- SER-PARA-OUTRO, 55 
VII - SER-NO-MUNDO, 60 
VIII - O EXISTENCIALISMO, 64 
IX - A SOCIOFENOMENOLOGIA DE MAFFESOLI, 77 
SEGUNDA PARTE 
X - PSICOTERAPIA, 90 
XI - O PROJETO EXISTENCIAL, 110 
XII – PROPEDÊUTICA PSICOLÓGICA, 117 
XIII - DINÂMICA DA TERAPIA EXISTENCIAL, 129 
XIV - TRABALHANDO COM SONHOS, 144 
XV - A DROGADICÇÃO NA VISÃO EXISTENCIAL, 149 
XVI - O ATENDIMENTO INFANTIL, 158 
CASOS CLINICOS, 180 
CONCLUSÃO 
BIBLIOGRAFIA 
 4
INTRODUÇÃO 
 
 Para Sartre é o indivíduo que, pessoalmente, se constitui. Não 
resultamos de determinações universais ou familiares como sempre 
acreditamos, nem mesmo somos continuadores de qualquer história 
que nos preceda. Cada um de nós constrói sua própria existência. Este 
é o cerne do existencialismo e isto nos concede maior liberdade para a 
construção da nossa singularidade. 
 O ser e o nada, as coisas e a consciência, o em-si e o para-si, 
são áreas ontológicas nas quais Sartre estabelece que a realidade se 
estrutura como resultante da relação dialética entre a 
subjetividade e a objetividade. E diferencia consciência de 
conhecimento quando diz que é a consciência que permite que se 
estabeleçam relações de conhecimento, fora da idéia de saber 
apriorístico, e como resultante de uma produção cotidiana do próprio 
homem. 
 Dessa forma a ontologia sartriana rompe com as 
predominâncias idealistas e racionalistas da filosofia, quando repõe a 
epistemologia em um estágio que reconhece o homem como sujeito 
do conhecimento. 
 Ao buscarmos no homem uma identidade, encontramos na 
verdade um não-ser, e é dessa nadificação que surge a liberdade. Mas 
liberdade e angústia aparecem ao mesmo tempo nessa ausência de 
conteúdo da consciência, sendo, então, a existência humana 
“consciência de angústia”. A angústia da sua própria liberdade e 
missão de ser alguém. 
 Se o homem é liberdade, e se essência é aquilo que se é, 
poderíamos dizer que identificamos a essência do homem na sua 
liberdade. Contudo, mais claramente, compreendemos que a liberdade 
humana é anterior a qualquer essência, porquanto a existência 
humana é uma existência de liberdade, o ser da “realidade humana”. 
 5
 Quando Sartre diz que somos liberdade, isto quer dizer que a 
liberdade não é uma coisa que a gente tem ou conquista ou produz, 
mas uma coisa que a gente é. 
 Por outro lado, todavia, é igualmente verdade que em certo 
sentido temos conquistado (ou perdido) a liberdade de 
demonstrarmos, de afirmarmos que somos liberdade. 
 Porque, qual seria o contrário da liberdade? Se 
compreendermos, dentro do pensamento existencial, que o homem é 
liberdade e não pode deixar de ser, então não existirá o contrário da 
liberdade, já que não se pode tratar do que não se pode achar, do que 
não há. Sim, não há contrário de liberdade, porque a ausência do 
fundamento liberdade tornaria o homem uma impossibilidade. 
 Não há o que seja o contrário de liberdade, mas há o que é 
contrário à liberdade. Tratemos, então, da liberdade em outro sentido: 
Se sou obrigado a escolher entre, por exemplo, subordinar-me a um 
ditador ou ser condenado à morte, eis o contrário da liberdade: essa 
força que me faz escolher entre coisas que não desejo: a subordinação 
ou a morte. Aqui, o que é contrário à liberdade é a escravização, a 
subjugação por meio da força, da ameaça fatal. 
 Mas posso ser uma liberdade exercida em todas as ações em 
que não há o que chamo de contingência fatal, que é a escravização 
tal como encontramos em alguns povos e épocas. 
 Faz parte da condição humana a liberdade de fazermos o que 
quisermos com a nossa vida, inclusive com a nossa liberdade. Se sou 
explorado e não reajo, exerço a liberdade de permitir-me ser 
explorado sem reagir. Mas se não reajo e escravizo-me à exploração, 
deixo de manifestar que sou livre inclusive nesse sentido, o sentido de 
não admitir nenhuma forma de escravização, tomando aqui a 
escravização como o contrário da liberdade. 
 Ao concluirmos que nossas escolhas nos constituem, somos 
tentados a perguntar: e o que constitui nossas escolhas? 
 6
Nossa liberdade. Esta é a resposta automática já que pensamos 
existencialmente. Todavia, convidados a problematizar, coloquemos 
entre parênteses essa resposta óbvia para prosseguirmos indagando se 
nossas escolhas em geral são feitas baseadas em nossos desejos ou em 
nossas possibilidades. Esta questão não nos afasta do raciocínio 
existencial, porquanto nossa Liberdade se manifesta no contorno das 
nossas possibilidades “que não são poucas”, acrescentaria Sartre, que 
acentua que todo homem é livre para aceitar ou rejeitar cada uma de 
suas limitações. 
 Se por um lado é verdade que aceitamos muitas coisas por não 
termos nada melhor a fazer, também é verdade que não somos 
obrigados a aceitá-las e podemos definir que o melhor a fazer é 
rejeitar. Se rejeito, escolho, e assim exerço a liberdade de forma 
plena. O fato é que há plenitude em minha liberdade, para dizer sim 
ou não, a qualquer coisa, a qualquer um, a qualquer momento. 
 É fato também que certas contingências acompanham muitas 
das nossas opções. Contingências estas que sempre surgem mescladas 
às oportunidades. Vale dizer que há oportunidades que simplesmente 
surgem, outras nós criamos, buscamos, procuramos. E o que nos faz 
criar, buscar, procurar? A Liberdade. 
 Em relação às contingências que contornam a nossa liberdade, 
e portanto também contornam as nossas escolhas precisamos ser 
cautelosos, porque há uma necessária análise das forças dessas 
contingências para entendermos o tanto de vontade pessoal que há na 
escolha e o tanto de contingência, e como resultado dessa equação, 
por extensão, o tanto de má-fé. 
 Cabe lembrar que Sartre em sua primeira fase filosófica 
olhava a liberdade como algo absoluto, mas depois começou a 
admitir as contingências. A proeminência dessa liberdade absoluta e 
de sua fatalidade ele colocou de modo bem enfático em “A Náusea”, 
onde Roquentin não pôde fazer outra coisa a não ser reconhecer a 
contingência absoluta das coisas (do em-si) em contraste com sua 
 7
liberdade. As coisas têm o que Sartre chama de “facticidade” e disto 
conclui que sua existência é, em certo sentido, absurda. O absurdo do 
mundo é simplesmente uma função de sua contingência bruta e isto 
produz a náusea. 
 Sartre estava na guerra e escreveu para Simone de Beauvoir: 
“Esta guerra é uma escolha minha, porque eu poderia abandonar a 
França ou até me matar, mas escolhi estar aqui”. Um filho de 
lavrador não é obrigado a seguir a profissão do pai, caso queira coisa 
diferente. A contingência que acompanha estarealidade será a 
possível dificuldade de fazer essa mudança, mas ele (re)criará sua 
realidade, porque sua vida não terá que ser necessariamente a mesma 
vivida por seu pai. 
 Na fenomenologia-existencial não olhamos a liberdade como 
uma coisa boa, como uma benesse que está aí para ser usada, 
consumida e comemorada como algo maravilhosamente bom. Não. A 
liberdade envolve responsabilidade, e isto faz com que ela quase 
sempre nos traga mais angústias do que prazer. E se as minhas 
escolhas não são justificadas pelo meu passado, torno-me totalmente 
solitário e único responsável por elas, o que também me angustia. 
 Sei que jamais me livrarei dessa angústia, posto que ela é 
fundamento do meu ser. Posso ter amigos, família, religião, um ótimo 
terapeuta, recursos para fazer incríveis viagens e maravilhosas 
compras, e tudo isso pode atenuar minha angústia. Mas jamais 
eliminá-la. Sempre estaremos com uma sensação de que algo anda 
errado, de que algo poderia (e deveria) ser diferente, e que em algum 
momento temos cometido erros fatais em relação a determinadas 
escolhas. 
 E tal sensação não significa necessariamente que estamos 
perdidos na condução da nossa vida, pelo contrário, significa que 
estamos de posse dessa condução em liberdade. 
 Em “O ser e o nada” a angústia é explicada como a tomada de 
consciência da liberdade, ou o modo de ser da liberdade como 
 8
consciência de ser. Porque “é na angústia que a liberdade está em seu 
ser, colocando-se a si mesma em questão”1. Diante de tal sentimento 
ela aparece com o mesmo sentido retratado por Kierkegaard, que 
consiste em diferenciá-la do medo, visto que este, geralmente, surge 
de um fator externo, enquanto que aquela corresponde a algo inerente 
ao ser humano. 
 Na segunda parte desta obra apresentamos a realidade da 
terapia de um modo geral, independente de linhas ou abordagens, 
focando naquilo que é comum e necessário a qualquer trabalho 
psicoterapêutico. 
 Um lado trata especificamente da psicoterapia existencial, 
aprofundando os estudos sobre os fundamentos fenomenológicos, o 
existencialismo, o projeto existencial, a dinâmica da clínica 
existencial, o trabalho com os sonhos e a visão fenomenologico-
existencial da drogadicção; além de um capítulo sobre o atendimento 
infantil. 
 O outro lado trata da psicoterapia de um modo geral, 
apresentando seus fundamentos, a relação terapêutica, a propedêutica 
do atendimento psicológico e diversos casos clínicos para discussão. 
 A evolução da psicoterapia fenomenologico-existencial (ou: 
análise existencial) depende muito de uma compreensão mais clara do 
que ela efetivamente é. 
Alberti e Figueiredo erram quando reafirmando as diferenças 
que acham entre psicanálise e psicoterapia, tratam toda psicoterapia 
como comportamental, demonstrando total desconhecimento da 
prática existencial; e ainda afirmam que a psicoterapia (que 
psicoterapia?) tem em sua origem a proposta de confortar os homens 
de sua angústia. Todavia, o tema “angústia” é tratado pela 
fenomenologia-existencial como o cerne da análise da existência 
compreendendo-a como um necessário componente da existência 
humana que não é alvo de tratamento e sim de aproveitamento e 
 
1 P. 72 
 9
contemplação na forma como surge, impondo-se como uma 
oportunidade do ser mergulhar compreensivamente nos sentidos de 
suas angústias que não são vistas como sintomas e sim como a 
própria oportunidade de autoconhecimento e apropriação da sua visão 
de mundo, do seu modo de ser. 
Também a psicoterapia existencial não se dispõe a tratar 
ninguém nos termos da psicoterapia comportamental e muito menos 
afirmar-se como “promessa de apaziguar o mal-estar inerente ao 
sujeito através da eliminação do sintoma”[1]. 
Parafraseando Alberti e Figueiredo ao se referirem aos 
objetivos da psicanálise, também afirmamos que a prática existencial 
igualmente não visa eliminar a angústia do sujeito, pois é a partir dela 
que o ser tem a possibilidade de atribuir um sentido à sua vida. A 
análise existencial, da mesma forma, não promete dissipar o mal-
estar, não promete nenhum bem e sim um meio diferenciado de 
posicionamento do sujeito frente ao seu (dito) mal-estar. 
Podemos pensar no existencialismo como uma corrente 
filosófica que apresenta fundamentos para entender o homem em sua 
estrutura, sua angústia e o seu modo de ser e de se relacionar com o 
mundo. É, portanto, a teoria que embasa a prática nessa abordagem. 
Fenomenologia por sua vez, é o caminho que seguimos para encarar 
as sessões de terapia e vivenciar o nosso encontro com o cliente. É, 
portanto, a Fenomenologia, o nosso método. 
A proposta existencialista é a de conhecer as fundamentações 
do homem, analisando as questões que ele coloca em pauta e que 
revelam a estrutura desse ser-no-mundo. Existir é simplesmente você 
ser afetado por aquilo que vem ao seu encontro, e o homem só existe 
enquanto “ser abertura” e “ser-com”, aquele que se relaciona e é 
afetado pelo mundo, pelos outros homens, seres e coisas. Assim, 
vemos o ser humano a partir de suas relações e da maneira como ele é 
afetado por elas, como lida com os fenômenos. 
 10
O psicólogo existencial não procura algo por trás do que se 
diz, mas entende o próprio dizer e as pequenas manifestações como 
sendo em si mesmas reveladoras do sujeito, buscando analisar o 
modo do seu cliente se relacionar com o mundo e de estabelecer 
vínculos. Coisas que revelam a sua estrutura. Isto possibilita tanto o 
esclarecimento de sua essência, como o processo de constituição 
dessa estrutura de ser, sua identidade. 
No momento do encontro com o cliente, não há julgamento, 
nem valores, uma vez que a teoria entrará num segundo momento 
(epoché). Cabe ao terapeuta estar presente e disponível a esse 
encontro, e cabe ao cliente apresentar o que há de importante, 
evidenciando o que deve ser trabalhado. O papel do analista 
existencial é seguir esse caminho, iluminando-o e revelando-o. 
Nós, psicólogos existenciais nos esforçamos em encontrar o 
outro onde esse outro está, buscando compreender o que ele entende 
da forma como entende, para que ele se reconheça e assuma as 
responsabilidades de suas escolhas e do que continua escolhendo 
como sua forma de ser, porque o homem é um ser livre, capacitado a 
escolhas e ao delineamento de sua própria vida. O homem, sim, é 
livre para escolher, mas isto não significa que suas possibilidades são 
ilimitadas. O campo existencial do homem revela limites relacionados 
a aspectos culturais, condições corporais, historicidade e sua 
ambiência, sendo que esse conjunto define suas possibilidades de 
escolha. Mas, por mais que se estreitem os nossos graus de liberdade, 
sempre teremos uma faixa de escolha e nela desfrutaremos da 
possibilidade de mudar a nossa existência. 
 
 
 
 
 
 
 11
 
I – INTENCIONALIDADE 
 
Nunca me é interior: tudo o que viso é mundo transcendente. 
Em alguma dispersão ou intencionalmente, consciência de algo que 
vejo: uma flor, um abraço, um beijo. Fora de mim está meu desejo. 
(Walmir Monteiro) 
 
 
 A ontologia fenomenológica de Sartre é o conjunto de estudos 
onde ele demonstra sua concepção de ser. Antes, todavia, é preciso 
que compreendamos a questão da intencionalidade da consciência. 
Husserl disse que toda consciência é consciência de alguma coisa e 
isso quer dizer que a minha consciência existe porque percebe 
objetos, porque capta esses objetos com sua atenção e também pode 
se dispersar em relação a eles. E se, porventura, a consciência não 
pudesse “ter consciência” de algum objeto, ela simplesmente não 
existiria, porque “ser consciência de” é a única forma de a 
consciência acontecer. 
 A intencionalidade da consciência é um conceito proveniente 
de Franz Brentano (1838-1917), psicólogo austríaco e professor de 
Husserle Freud. Brentano refere-se à consciência enquanto ato, em 
oposição à consciência enquanto conteúdo. 
 Para a psicologia mentalista, derivada de Wundt, analisar a 
consciência era identificar o que ela era em termos de percepções, 
imagens, lembranças e vontades. O problema era descobrir uma via 
de acesso a estes “conteúdos internos”, ao que estava dentro de cada 
mente. A solução então veio pelo método introspectivo. 
 Brentano, porém, veio mostrar o inverso disso: a consciência 
não está dentro do sujeito, ela é apenas mediadora entre o sujeito 
 12
e o mundo. A consciência é um ato que visa um objeto e não um 
invólucro de conteúdos. 
 Como compreender então a relação entre consciência e 
objeto? Como compreender o que é intencionalidade? 
 Você, por exemplo, neste momento, é consciência do texto 
que está diante de você. Mas daqui a pouco pode ser consciência de 
uma campainha que toca, do telefone que chama ou de alguém que 
passa e atrai sua atenção. E quando você se dispersa do texto para 
prestar atenção em algo fora da sua leitura, então você é consciência 
dessa dispersão. Então, tudo que a sua consciência toma como objeto, 
está fora dela. O texto, o telefone, a pessoa, nada disso está no interior 
da consciência, porque todo objeto da consciência está no mundo 
transcendente, já que na consciência nada cabe e o mundo lhe é 
exterior por essência. Se nada há no interior da consciência, também 
o Eu não habita na consciência. 
 A análise da consciência se divide em dois níveis: consciência 
de primeiro grau e consciência de segundo grau. A consciência de 
primeiro grau é aquela que ultrapassa a si mesma para atingir 
determinado objeto e esgota nessa posição. Trata-se de uma 
consciência perceptiva que ignora a si mesma para ter consciência de 
um objeto ou de um ato. Sartre a denominou cogito pré-reflexivo ou 
consciência irreflexiva. É irreflexiva, pois não depende do conteúdo 
psíquico do eu. O que é psíquico só pode ser apreendido pela 
reflexão. 
 O segundo nível de consciência, nas palavras de Sartre, “é a 
consciência que é consciente de ser consciente do seu objeto”. Existe 
um eu que é consciente daquilo que tem consciência. Chamou-a, por 
isso, de consciência reflexiva. É específica do ser humano. 
 Vamos a um outro exemplo: 
 Carlos passeia de bicicleta pela orla de uma praia no Rio de 
Janeiro. A tarde praiana está repleta, e ele sabe que precisa dirigir 
com atenção. Carlos procura se concentrar nos movimentos, observa 
 13
as curvas da ciclovia, os obstáculos do caminho e também fica atento 
aos demais ciclistas. Contudo, sente o cheiro da maresia, sente a brisa 
do mar que bate em seu rosto, distingue que está circulando por uma 
orla belíssima e também percebe aquele mar de lindas ondas com 
montanhas de pedras às suas margens. Ele ouve um carro de 
som que passa tocando músicas de carnaval e se dá conta que o 
carnaval está próximo. Volta sua atenção à bicicleta mas logo diminui 
a velocidade quando se interessa em contemplar o mar buscando o 
infinito para notar que o sol resiste forte e cintilante apesar de já 
passar das quatro da tarde. 
 Ao retornar seu olhar para o calçadão se dá conta de que sua 
atenção não está na bicicleta, mas na paisagem. Carlos se assusta e 
segura firme o guidão preocupado com crianças que às vezes 
atravessam desatentas a ciclovia. Ele, notando que as pessoas 
frequentam mais o calçadão e passeiam a essa hora, fica admirando a 
beleza do bronzeado das moças que passam, além de rir de alguns 
tipos bem excêntricos que roubam a sua atenção. Algumas pessoas 
gritam ao longe e ele tenta saber o que está acontecendo pelo 
movimento que se cria na rua. Carlos quase cai da bicicleta quando 
não percebe uma interrupção no leito da ciclovia. Ele se dá conta que 
novamente dispersou sua atenção que fora desviada para os passantes 
e também para uma altíssima onda que pegou um grupo de turistas 
desprevenidos e os derrubou na praia. Carlos se preocupa com a cena, 
mas logo percebe que eles se divertiram com o próprio susto. E, 
admirando-se de não ter caído, volta outra vez sua atenção para a 
bicicleta, notando que uma porção de coisas diferentes foram objetos 
de sua consciência e constata a sua dispersão em relação ao mais 
importante que era a direção da bicicleta. 
 Vejam que a consciência de Carlos durante esse passeio teve 
como objeto pessoas, crianças, ondas do mar, turistas, músicas, o sol, 
e outras coisas. A consciência foi, de fato, durante todo esse tempo, 
consciência de alguma coisa. Não se detectou consciência sem 
 14
objeto em nenhum momento desse passeio e mesmo em qualquer 
outra experiência em que haja uma rigorosa descrição da mesma, não 
se achará em nenhum momento, uma consciência sem objeto, porque 
ser “consciência de” é a única forma de a consciência ocorrer. 
 Não se pode recusar que quando o ciclista era consciência da 
onda do mar derrubando banhistas, ele era consciência dessa onda 
sendo consciência de ser; enquanto ele era consciência das moças 
bronzeadas que passavam, ele era consciência de estar sendo 
consciência das moças; quando ele se deu conta de sua dispersão, ele 
era consciência de ser consciência de sua dispersão, ou seja, a 
consciência é necessariamente consciência-si. 
 E, neste sentido, não podemos deixar de destacar que tudo o 
que a consciência tomou como objeto, estava na praia, no mar, no 
calçadão, na ciclovia ou na rua, mas nada era “interior” a ela, tudo o 
que a consciência tomou por objeto, estava no mundo transcendente. 
Está sempre fora de mim o meu desejo. E se tudo que tomo como 
objeto está no mundo transcendente, nenhum desses objetos depende 
de mim para existir e nenhum deles é conteúdo de minha consciência, 
apenas são objetos para a minha consciência sem nela habitarem, já 
que por essência o mundo é exterior à consciência. 
 A consciência pela própria forma de se dar, não tem como 
conter alguma coisa, e sendo assim não tem como conter o Eu. Isso 
não é uma questão lógica. Não estamos dizendo que o Eu não está no 
interior da consciência, porque senão não dá para usar o conceito de 
intencionalidade, estamos constatando que a realidade mesma da 
consciência, verificável por cada um de nós, impossibilita que um eu 
a habite. 
 Constatamos desta forma que a consciência, ou seja, o nada, é 
essa intencionalidade que escapa a cada momento, é comprovável, 
visível e descritível que nada a governa, a consciência dos gritos ao 
longe é a pura relação a esse objeto que se impõe: o grito. Nada 
determina a consciência a ser consciência do grito. Neste sentido, 
 15
como coloca Sartre, essa não determinação da consciência torna-se 
uma característica essencial de sua existência: “A consciência é uma 
plenitude da existência, e essa determinação de si por si é uma 
característica essencial dela.” 
 Sartre diz que se perguntarmos se há um lugar para um “Eu” 
na consciência a resposta será claramente “não”, pois quando se 
introduz a opacidade de um “Eu” na consciência, se contradiz a 
definição tão fecunda que nos damos a todo instante, em 
fenomenologia, esquecendo de que ela é uma espontaneidade: ao 
contrabandear para dentro dela aquele germe de opacidade. Enfim, 
somos forçados a abandonar a constatação original e profunda onde a 
consciência se evidencia um absoluto não-substancial: pura 
translucidez. Neste sentido, ao compararmos a realidade com a 
tradição filosófica, temos constatado o primeiro grande problema na 
relação do Eu com a consciência: o ego não “cabe” na consciência, a 
própria descrição desta o constata. Se ignorarmos essa evidência, 
podemos elocubrar “n” causas para esta consciência, e a tese 
fundamental da fenomenologia: a intencionalidade, passará a ser um 
detalhe bem adaptado às elucubrações filosóficas forçadas. 
 Queremos marcar com isso, que com a descrição da 
consciência, evidencia-se já o fatoque rompe com as filosofias e 
conseqüentes psicologias metafísicas: O Eu não pode habitar a 
consciência pelo simples fato de que ela não tem interior para ser 
habitado. Assim, se levarmos a sério o fato que é a intencionalidade, 
ou em outros termos, se levarmos em conta a realidade da 
consciência, ficaremos “dispensados do Eu - interior porque 
finalmente tudo está fora, até nós mesmos: fora, no mundo, entre os 
outros. Então não será em nenhum refúgio que nos encontraremos, 
será na rua, na cidade, no meio da multidão, coisa entre as coisas, 
homem entre os homens” 
 
 
 16
 
 
II – FENOMENOLOGIA E TEMPORALIDADE 
 
 Acerca da idéia de fenômeno, Sartre falava da antagonia entre 
dualismos e monismo, acreditando que os dualismos embaraçavam a 
filosofia e sugeria que fossem substituídos pelo monismo do 
fenômeno. E reflete que quando o pensamento moderno, em 
comparação ao vigente na antiguidade, reduziu o existente à série de 
aparições que o manifestam, visava suprimir certo número de 
dualismos (causa-efeito, por exemplo) que embaraçavam a filosofia, 
substituindo-os pelo monismo do fenômeno (causa em si mesmo), e 
alcançou nisto considerável progresso. E prossegue considerando a 
eliminação do dualismo existente na oposição interior-exterior: “Não 
há mais um exterior do existente, se por isso entendemos uma pele 
superficial que dissimulasse ao olhar a verdadeira natureza do 
objeto”2 
 A supressão do dualismo interior-exterior torna-se possível 
desde que se reduza o existente à série de aparições que o 
manifestam, ou seja, o existente é aquilo que aparece diante de mim. 
E aqui ele já começa a dar uma idéia de sua ontologia, que seria a de 
que o ser é aquilo que aparece em série de aparições que manifestam 
esse ser: “As aparições que manifestam o existente não são interiores 
nem exteriores: equivalem entre si”3. 
 Sartre então se utiliza do fenômeno força (no sentido de 
energia elétrica) para comparar o que é o ser (ou o existente) dizendo 
que a força é o conjunto dos seus efeitos: o conjunto das ações físico-
químicas que a manifestam. Nenhuma das ações individuais e parciais 
da força é suficiente para revelá-la. 
 
2 O ser e o nada. P.15 
3 Opus cit. P.15 
 17
 Então, “a aparência remete à série total das aparências e não a 
uma realidade oculta que drenasse para si todo o ser do existente”. 
 Considerando Kant e o conceito de noumeno como aquilo que 
nunca se apresenta à sensibilidade nem ao entendimento e, logo, não 
pode ser conhecido já que é objeto da metafísica, Sartre discute que 
nesse nível kantiano a aparência mostra-se negativa, “aquilo que não 
é o ser”, ou seja, a aparência não revelaria o ser. 
 Igualmente, Sartre propõe que nos desvencilhemos daquilo 
que Nietzsche denominava “a ilusão dos trás-mundos”, que não 
acolhamos a idéia do ser-detrás-da-aparição para que a aparência 
torne-se plena positividade, porque “o ser de um existente é 
exatamente o que o existente aparenta” para que cheguemos à idéia 
de fenômeno tal como é encontrada em Husserl e Heidegger. 
 Ressalva, porém, que o fenômeno se mantém na relatividade 
já que o “aparecer” pressupõe em essência alguém a quem aparecer, 
sem, entretanto, a dupla relatividade do fenômeno kantiano que é 
constituído de fenômeno e noumeno, ou seja, o que nos é dado 
conhecer e o que não nos é dado conhecer. 
 Em mais uma reflexão constante em “O ser e o nada”, Sartre 
refere-se ao fim da dualidade de potência e ato: “Tudo está em ato. 
Por trás do ato não há nem potência nem hexis (hábito), nem 
virtude.”4 Sartre diz que uma pessoa é genial não por aquilo que ela 
produz de genial nem por sua genial capacidade de produzir, mas pela 
“obra considerada como o conjunto das manifestações da pessoa”. E 
com esta reflexão ele rejeita o dualismo aparência-essência: “A 
aparência não esconde a essência, mas a revela: ela é a essência. A 
essência de um existente já não é mais uma virtude embutida no seio 
deste existente: é a lei manifesta que preside a sucessão de suas 
aparições, é a razão da série”. 
 Sartre acrescenta às suas reflexões sobre a teoria do fenômeno 
observações complementares e pertinentes acerca da aparição do 
 
4 Opus cit. P.16 
 18
objeto e da série de aparições desse objeto que designam o ser, 
lembrando que na aparição o que aparece é somente um aspecto do 
objeto que se manifesta totalmente neste aspecto e também totalmente 
fora dele, simplesmente porque ao mesmo tempo em que se manifesta 
indicando-se a si mesmo como estrutura da aparição, também 
depende que esta aparição surja em uma série para que isto resulte na 
concepção do ser. 
 
O FENÔMENO DO SER E O SER DO FENÔMENO 
 
 Para fazer uma clara distinção entre “fenômeno do ser” e “ser 
do fenômeno”, recorramos a um exemplo concreto: 
- O psicoterapeuta está diante do seu paciente. Nesse momento ele se 
depara com o “fenômeno do ser” que lhe é imediato, visual, e muito 
do cliente vai ser rapidamente conhecido através de suas aparências 
(o que ele mostra, o que ele fala, o que faz, sua história, etc.) e tudo 
isto ajuda o psicólogo a identificar o fenômeno que é o seu cliente. 
Todavia, existe uma transfenomenalidade desse cliente, desse “ser do 
fenômeno”, e para que eu, terapeuta, possa compreender de modo 
mais amplo e profundo esse cliente, preciso colocá-lo em uma ótica 
mais ampla e mais crítica, e isto corresponde ao “ser do fenômeno”. 
 RIBEIRO (2002) exemplifica bem isto com uma frase: 
 “Talvez possamos dizer: as aparências não nos enganam, elas 
apenas não nos dizem tudo, não revelam tudo”5 
 É que em relação às coisas que vemos - todas as coisas – 
sejam materiais, físicas, humanas e até espirituais, não podemos nos 
limitar ao que vemos, porque ali pode existir uma condição além, 
algo que transcende o que se apresenta aos nossos sentidos de visão e 
audição, por exemplo. É que estando diante do “fenômeno do ser”, 
preciso aspirar o acesso ao “ser do fenômeno”. 
 
5 Gestalt-terapia – RIBEIRO, Jorge Ponciano – P. 50. 
 19
‘ Então, como vimos, a aparição do ser - a manifestação do ser 
exatamente como ocorre é o “fenômeno do ser”: aquele que a mim 
aparece, o ser que a mim se revela. Mas tal manifestação seria “da 
mesma natureza do ser dos existentes que me aparecem?”6 
 Sartre nos lembra que Husserl resolveu tal questão aludindo à 
redução eidética que nos permite ultrapassar o fenômeno concreto até 
sua essência; acrescentando uma comparação dessa solução 
husserliana com o conceito de “realidade humana” de Heidegger que 
é ôntico-ontológica, ou seja, que permite que o fenômeno seja 
ultrapassado até o seu ser. E isto se realiza de modo até simples, 
considerando que o conjunto objeto-essência constitui um todo 
organizado: 
 “A essência não está no objeto, mas é o sentido do objeto, a 
razão da série de aparições que o revelam. Mas o ser não é nem uma 
qualidade do objeto captável entre outras, nem um sentido do objeto 
(...) o ser é simplesmente a condição de todo desvelar: é ser-para-
desvelar, e não para ser desvelado”7. Em suma, o ser não está para ser 
desvendado totalmente. E Sartre exemplifica ser do fenômeno e 
fenômeno do ser quando mostra que em um objeto qualquer – mesa 
ou cadeira – identifico o fenômeno-objeto (fenômeno-mesa) sem 
indagar o que é ser mesa, pois se o faço, quando o faço, transcendo do 
fenômeno-mesa para o fenômeno-ser. Então, “o ser dos fenômenos 
não se soluciona (não se desvenda) em um fenômeno de ser”. 
 O ser do fenômeno nos remete a uma profundidade maior, 
porque o ser acolhe o ente: “O fenômeno do ser mora no ser do 
fenômeno”, e assim como o fenômeno transcende a aparência, o ser 
do fenômeno transcende ao fenômeno do ser.6 Opus cit. P.19 
7 Opus cit. P.20 
 20
FENOMENOLOGIA 
 
 O termo fenomenologia foi utilizado por Aristóteles, Kant e 
Hegel com diferentes significações. A fenomenologia kantiana 
pensava o ser como o que limita a pretensão do fenômeno enquanto 
ele próprio permanece fora de alcance, já na fenomenologia hegeliana 
o fenômeno é reabsorvido num conhecimento sistemático do ser. 
Verificaremos neste capítulo a fenomenologia de Edmund Gustav 
Albert Husserl (1859-1938) que deu um conteúdo novo a essa antiga 
palavra que se origina do verbo grego phaínesthai, que significa 
"mostrar-se", enquanto fenômeno, como vimos anteriormente, quer 
dizer “aquilo que se mostra em si mesmo. O que se revela". 
 Embora discordantes em aspectos centrais, Kant, Hegel e 
Brentano foram fontes que de algum modo contribuíram à formação 
do pensamento de Husserl. Verifiquemos, pois, alguns pontos da 
temática fenomenológica segundo os filósofos citados: 
 Immanuel Kant (1724-1804) defendeu a idéia de que não 
podemos conhecer inteiramente as coisas, porque nem todos os sinais 
que delas recebemos são receptivos à nossa mente, e em função disso 
não podemos conhecer inteiramente o real, mas apenas o 
“fenômeno”, que é aquilo que a mente pode assimilar. Assim, o que 
podemos conhecer “a priori” são os fenômenos, e não as coisas em si, 
ou seja, em linguagem kantiana, os “noumenos”. O centro de 
argumentação é o seguinte: uma coisa é a realidade tal como ela é, e 
outra coisa é a maneira como essa mesma realidade aparece diante de 
mim enquanto sujeito do conhecimento. A realidade, tal como ela é, 
em sua essência (noumeno), é incognoscível, ou seja, não podemos 
conhecê-la. Contudo, eu posso conhecer o modo como ela me aparece 
(fenômeno), posto que o modo de seu aparecimento não dependerá só 
dela, mas de mim também. Portanto, jamais conhecemos as coisas em 
si (noumeno), mas somente tal como elas nos aparecem (fenômeno). 
 21
 O noumeno é aquilo que nunca se apresenta à sensibilidade 
nem ao entendimento, mas é afirmado pelo pensamento puro, logo 
não pode ser conhecido já que é objeto da metafísica. Husserl mais 
tarde iria reformar essa visão kantiana, dizendo que não se pode 
separar fenômeno e noumeno que constituiriam, em conjunto, a coisa 
em si, o próprio fenômeno. 
 Hegel (1770-1831) para quem as coisas só existem para a 
consciência na medida em que se manifestam. O mundo é fenômeno, 
e o fenômeno é o conhecimento que temos dele. A consciência é 
aquilo que une sujeito e objeto, ou seja, a consciência é a relação 
entre sujeito e objeto, sendo assim, qualquer alteração em um dos 
dois altera o outro. Para Hegel, “voltar às coisas mesmas” significa 
que o fenômeno esgota toda a realidade, pois a essência do fenômeno 
é o próprio fenômeno na sua manifestação. Para ele, a realidade é 
apreendida como se manifesta, não há essência anterior ou em sua 
base. Hegel defendeu a essência como algo simultâneo à existência. 
 Sem embargo, essa fenomenologia é apenas uma propedêutica 
à ontologia, ciência sistemática do ser; todavia, no lugar de revelar a 
impossibilidade dessa ontologia, fornece todo o seu arsenal ao 
filósofo que não tem senão que pensar sua ordem oculta e dizer sua 
significação absoluta. 
 Brentano (1838-1917) fundou a psicologia do ato, 
argumentando que o fenômeno psíquico se constitui como atividade e 
não como conteúdo. As idéias de Brentano serão as bases para as 
concepções da Fenomenologia de Husserl (consciência de) e vão dar 
início a uma psicologia que irá buscar as propriedades da consciência 
através da experiência interna. A partir da sistematização de sua 
teoria vão surgir a psicologia da Gestalt, a teoria de Lewin e a 
psicologia fenomenológica. Enfim, toda a psicologia cuja ênfase 
recaia sobre a consciência com sua característica essencial: a 
intencionalidade. Brentano rejeitou a consciência como algo 
permanentemente real, afirmou que a consciência só existe se for 
 22
direcionada por algum objeto, “existência dentro de”, propondo a 
intencionalidade como a principal característica da consciência. 
Assim, o sujeito passa a ser visto como construtor de significado por 
meio de sua percepção de mundo, já que a consciência é uma 
intenção dirigida para o objeto. 
 Era interesse de Husserl conceder à filosofia um fundamento 
de racionalidade que lhe conferisse uma condição científica, e por ser 
a mais fundamental das ciências, a filosofia deveria manter-se livre de 
suposições. Surge, então, a fenomenologia, inicialmente como uma 
ciência da experiência, chamada de “psicologia rigorosa descritiva”. 
Em "Investigações Lógicas", Husserl demonstrou que a psicologia 
não pode ser fundamentada por leis lógicas, já que o psíquico é para 
ele um fenômeno e não uma coisa física e palpável, compreendendo o 
fenômeno como consciência, fluxo temporal de vivências, e tendo a 
intencionalidade como estrutura, consciência de algo. 
 A fenomenologia surge, então, com o objetivo de examinar a 
experiência humana de forma rigorosa, por meio de uma ciência da 
experiência. Assim, a reflexão se faz necessária a fim de tornar 
possível observar as coisas como se manifestam em sua pureza 
original e descrevê-las. É a investigação daquilo que é genuinamente 
possível de ser descoberto e que está potencialmente presente, mas 
nem sempre visto, através de procedimentos próprios e adequados. 
Um encontro com as coisas mesmas. 
 Para tanto, Husserl propõe a suspensão de qualquer 
julgamento, abandonando os pressupostos em relação ao fenômeno 
que se apresenta. A isto ele denomina “suspensão fenomenológica” 
ou epoché. 
 Phenomenom + logos, ou seja, fenomenologia, é o discurso 
sobre aquilo que se mostra como é, caracterizando-se como a ciência 
que está em contato direto com o ser absoluto das coisas, dirigindo o 
conhecimento para o que há de essencial nas coisas. É a filosofia do 
inacabado, do devir, do movimento constante onde o vivido aparece e 
 23
é sempre ponto de partida para se chegar a algo. A Fenomenologia de 
Husserl propõe o método que dá início ao conhecimento 
compreensivo, não mais o explicativo-causal-dedutivo, mas o 
fenomenológico-descritivo-compreensivo. 
 A lógica para Husserl, ou seja, a teoria das ciências, necessita 
também de um embasamento na sua própria essência de teoria. 
Fundamentar a lógica e fundamentar a filosofia são expressões 
equivalentes para este pensador, que crê que este alicerce só se torna 
possível por meio da fenomenologia. Sua teoria iria influenciar 
diversos pensadores que, de alguma forma acabam divulgando esta 
filosofia e atribuindo a ela outros rumos, como: Heidegger, Sartre, 
Merleau-Ponty, Gabriel Marcel, e outros. Deve-se ainda à 
fenomenologia influências sobre outras ciências como: psicologia, 
psiquiatria, antropologia e filosofia da religião. 
 Husserl, portanto, funda a sua Fenomenologia como uma 
atitude e um método, dizendo que é necessário avançar para as 
próprias coisas, e esta é a regra primeira e fundamental do método 
fenomenológico. Por coisas entenda-se simplesmente o dado, aquilo 
que temos diante da nossa consciência. A Fenomenologia, dessa 
forma, visa exclusivamente o dado, sem querer decidir se este dado é 
uma realidade ou uma aparência, apenas consistindo em “mostrar” o 
que é dado e em esclarecer este dado, sustentando como tema apenas 
aquilo que se constitui como objeto da experiência possível: os 
fenômenos. Para ele as evidências apodíticas às quais a 
Fenomenologia deve se ater, e a respeito das quais ela pode se 
constituir como ciência rigorosa serão apenas os atos da consciência 
intencional (consciência de) e seus respectivos objetos imanentes. A 
fenomenologia será então a ciência descritiva destes objetos, a que se 
chega através da intuição pura, numa apreensão imediata da “coisa 
mesma” enquanto pura essência. 
 Também é objetivo da fenomenologia compreenderas 
estruturas formais que operam de forma encoberta na organização da 
 24
experiência, segundo os diferentes modos da consciência visar seus 
objetos. 
 O conhecimento da obra de Brentano fez Husserl despertar 
para a insuficiência das ciências do homem tais como elas se 
desenvolveram sob seus olhos por volta dos anos 1900. O que ele 
nelas questionou, especialmente na psicologia, é terem extraído seus 
métodos das ciências naturais, aplicando-os sem o cuidado de 
observar que seu objetivo é diferente. Essa crítica já se fazia presente 
em Dilthey, cujas Idéias Concernentes a uma Psicologia Descritiva e 
Analítica (1894), Husserl leu, ratificando o fato de que a vida 
psíquica é um dado imediato que não exige reconstruções, apenas 
uma descrição. “Explicamos a natureza e compreendemos a vida 
psíquica” é uma afirmação de Dilthey, filósofo responsável pela 
equiparação e distinção entre ciências naturais e ciências do espírito 
(humanas). As ciências naturais explicam o objeto, enquanto as 
ciências humanas compreendem o objeto. 
 No compreender não ocorre uma distinção clara entre sujeito 
e objeto (já que o sujeito do conhecimento toma a si mesmo como seu 
objeto de conhecimento). Para Ricoeur, por exemplo, compreender é 
mais que um modo de conhecer, é um modo de ser: “O problema 
hermenêutico torna-se assim uma pronúncia da Analítica deste ser, o 
Dasein, que existe compreendendo” (Ricoeur, 1969). O fato é que 
cada vez mais a realidade deixa de ser uma coisa concreta, uma coisa 
dada e acessível aos sentidos para tornar-se algo construído pelo 
homem, de natureza representativa, essencialmente produzido na 
linguagem e nela reconstruído. 
 A Fenomenologia irá então servir como base metodológica da 
Psicologia Existencial, sabendo-se que nada é definitivo, mas 
transitório e mutável, e que a força da nossa disposição de escolha é 
bem maior e mais decisiva que supúnhamos, fazendo com que 
resgatemos a fé numa dimensão bem maior, quando nos damos conta 
que são muitas as possibilidades que podem se postar à nossa frente, 
 25
caso invistamos mais em nós mesmos, no sentido de “assumir a 
responsabilidade” pelo que nos acontecerá, já que somos autores da 
maioria dos nossos fatos. 
Edmund Husserl (1859-1938) ao apresentar a intencionalidade da 
consciência adotou o lema de que “toda consciência é consciência de 
alguma coisa” Assim, a percepção é percepção de um percebido, o 
desejo é desejo de um desejado e a imaginação é imaginação de um 
objeto imaginado. 
É que, por outro lado, o sujeito, tal como Descartes o concebia, não se 
relacionava diretamente a coisas e objetos. Ele só se relacionava 
diretamente a idéias que ele sustentava acerca dessas coisas. Assim, 
afirmar que “toda consciência é consciência de alguma coisa” é dizer 
que ela se relaciona diretamente ao mundo, não está fechada sobre si 
mesma, mas abre-se imediatamente ao “exterior”. É esse resultado, 
sobretudo, que Sartre aplaudirá, já que ele lhe permitirá dizer, contra 
seus velhos mestres da Sorbonne, que nossa consciência nos lança 
diretamente no mundo, no meio da multidão. 
 Husserl com este postulado fenomenológico da 
intencionalidade (ou responsabilidade) da consciência faz surgir uma 
reflexão diante do sujeito cartesiano com seu estoque de idéias inatas, 
ou o sujeito (segundo Locke) mera tabula rasa na qual o mundo 
inscreverá suas “idéias”. Nos dois casos a consciência ou a 
subjetividade só entra em cena como uma instância essencialmente 
passiva, que não contribui em nada para a constituição do mundo da 
nossa experiência. 
 O ato intencional da consciência será chamado de “apreensão” 
ou “noese” – termo derivado do nous grego, que designa o momento 
específico do pensamento, ato responsável pela doação de sentido, 
que vai animar aquele conjunto de sensações opacas, fazendo com 
que a consciência se torne “direção” a um objeto transcendente, um 
fenômeno, diante de mim. E será justamente esse conceito de 
fenômeno que exigirá o reconhecimento de outras figuras da 
 26
intencionalidade. Se as sensações e os atos intencionais são habitantes 
da interioridade da consciência, o fenômeno, ao contrário, não está 
“em mim”, mas “diante de mim”. 
 É esse conceito de fenômeno que leva Husserl a falar em uma 
fenomenologia, certa lógica dos fenômenos. E o que é um fenômeno? 
É a apresentação de um objeto para a consciência. É ele que 
determina essa consciência, porque ela (a consciência) sem um objeto 
intencionado não é nada. A consciência só é consciência quando 
sustenta a consciência de alguma coisa. Daí afirmarmos que é o 
fenômeno (o objeto) que faz existir a consciência. 
 
 
TEMPORALIDADE 
 
 O tempo, matematizado como é, dividido nos pretensos 
elementos passado, presente e futuro - é pura convenção, disse Sartre, 
que compreende a temporalidade em termos de uma “síntese original” 
de seus “pretensos elementos” passado-presente-futuro, acolhidos 
como momentos estruturados, porque o passado não é mais, o futuro 
ainda não é e o presente instantâneo “é o limite de uma divisão 
infinita, como o ponto sem dimensão”8. 
 Mesmo considerando-a um tanto quanto vaga, Sartre faz 
referência à Teoria das Impressões Cerebrais, aquela que diz que a 
melhor definição para o passado é “passou”, que sustenta que a partir 
da constatação do desvanecimento desse passado, ele não é mais que 
as lembranças que temos dele, considerando ainda que tais 
lembranças não ocorrem no passado, mas no presente, é preciso que 
ocorra apenas a título de modificação presente de nosso ser. Essa 
teoria defende que toda recordação, toda lembrança impressa em 
nossa mente, tudo do passado que nos acompanha na verdade é 
 
8 O ser e o nada. P. 158 
 27
presente. O passado que te acompanha, não passou. E se não passou, 
não é passado, é presente. Na verdade nós escolhemos esse passado 
presentificado, há uma seleção. Há coisas que não importam, que não 
visitam nossas memórias e interesses atuais – estas são as coisas que 
efetivamente passaram. 
 Outra teoria lembrada por Sartre em “O ser e o nada” e 
igualmente considerada imprecisa é a concepção de que o passado 
teria uma espécie de existência honorária. Ser passado, para um 
acontecimento, seria simplesmente estar recolhido, perder a 
eficiência, sem perder o ser. Como observou Bergson: 
 “Entrando no passado, um acontecimento não deixa de ser, 
apenas deixa de agir, mas permanece “em seu lugar”, em sua data, 
para toda a eternidade”. 
 Sartre entende que o passado não produz o presente, já que a 
cada dia, a cada etapa, a cada situação, escolhemos as nossas direções 
e não realizamos um simples “follow-up” de retomada do ponto em 
que deixamos alguma coisa, ainda que, nada impede que a minha 
escolha seja uma escolha de retomada, de prosseguimento, mas nem 
aí há qualquer determinação de que o meu passado tenha me 
condicionado a utilizá-lo em minhas decisões. Por outro lado, não 
rejeitamos a historicidade – que não pode nem deve ser anulada. Não 
pode porque seria impraticável a adoção de uma atitude amnésica em 
relação ao tempo vivido e às experiências acumuladas; não deve 
porque o passado – ainda que não nos dê direção determinada – o seu 
conteúdo é um arquivo cultural que nos permite renovar nossas 
vivências ou mesmo repetir as vivências que merecem nossa 
reescolha. Em suma, sou livre do meu passado, mas não temos porque 
sustentar em relação a ele qualquer obsessão de esquecimento. 
 Sartre faz o alerta de que quando tentamos anular o passado e 
só nos relacionamos com o presente, nos colocando no meio do 
mundo “perdemos toda a possibilidade de distinguir o que não é mais 
daquilo que não é” e toca nessa questão se referindo ao fato de que o 
 28
que ocorreu no passado (o que não é mais) sustenta um nexo com o 
ser, já o que nunca ocorreu (o que nãoé) jamais me chegou, jamais 
chegou a (o) ser. 
 
 Por outro lado, o que é ser? – O ser é. E o ser se manifesta 
com sua presença de ser. Daí entendermos que aquilo que é 
temporalmente ausente, não tendo como se manifestar de alguma 
maneira, não tem como ser, porque “o ser que é esgota-se 
inteiramente no ato de ser; nada tem a ver com o que não é e com o 
que não é mais. 
 Sartre propõe que se considere o fenômeno temporal em sua 
totalidade. E que se comece por uma substituição conceitual 
importante já que a expressão “ter” um passado supõe passividade em 
relação ao passado, devendo ser substituída por “ser seu próprio 
passado”. 
 O ser presente é, pois, o fundamento de seu próprio passado. 
Seguindo essa resolução conceitual Sartre propõe reflexões a partir de 
uma frase: 
 “Paulo era aluno da Escola Politécnica”. 
 Neste contexto, o que significa “era”? Sartre responde que 
aqui o termo “era” designa o salto ontológico do presente ao passado 
e representa uma síntese original desses dois modos de 
temporalidade. E a basilar diferença é que considerando o termo “era” 
como um modo de ser, quando refiro “eu era” estou dizendo que eu 
sou o meu passado no lugar de dizer que “eu tenho o meu passado”. 
 E neste sentido uma importante justificativa é que eu não 
tenho como negar minha solidariedade com o meu passado: 
 “Aquilo que dizem acerca de um ato que pratiquei ontem ou 
de um estado de espírito que manifestei, não me deixa indiferente: 
fico magoado ou lisonjeado, reajo ou pouco me importo, sou afetado 
até a medula. Não me desassocio de meu passado”9. 
 
9 O ser e o nada. P. 167 
 29
 Sartre acrescenta que sem dúvida, e secundariamente, diante 
de novas escolhas, novos interesses, novos tempo, a tendência é que 
nos desassociamos do passado alegando mudança, desenvolvimento, 
etc. Mas isto não é negar solidariedade a um passado que é minha 
presença. 
 Finalmente, compreendemos que Sartre, ao contrário do que 
muitos pensam, não nega o passado e nem prega a concentração do 
homem no seu presente. Sua idéia é que o passado não determina o 
que nos tornamos, mas o nosso ser é presença de modo indubitável 
nesse passado que deve ser visto a partir da presença original, ou seja, 
na conjugação uníssona de todos os elementos que “constituem” a 
temporalidade. 
 O grande enigma do presente é a dificuldade de localizá-lo, e 
isto nos parece amplamente paradoxal, porque em uma primeira 
reflexão o presente sendo aquilo que é, em oposição ao passado que 
não é mais e o futuro que ainda não é, deveria o presente ser visto de 
modo mais legível, já que ele é tudo o que há diante de mim, aqui e 
agora. Mas não é tão simples assim, embora seja simples convencer-
se de que o instante presente é sobremaneira fugaz. E isto nos leva a 
um raciocínio estranho que é concebermos o presente como sendo o 
que é mas ao mesmo tempo admitir o presente como sendo aquilo que 
praticamente não existe. Isto em função da fugacidade do presente. 
 Sartre diz: “quanto ao presente instantâneo, todos sabem que 
não existe: é o limite de uma divisão infinita, como o ponto sem 
dimensão”10. Assim, se formos separar do presente tudo o que não 
seja presente, restará apenas um instante infinitesimal. O presente é o 
mais volátil dos três elementos que designam a temporalidade. Desta 
forma, diferenciamos o presente do agora. Como? 
 Presente, diz Sartre, é estar presente a alguma coisa. Agora, 
por exemplo, estou presente diante de um teclado, de um monitor, de 
um “mouse”, de um aparelho telefônico que agora toca e de uma 
 
10 Opus cit. P.158 
 30
garrafa Dágua e um copo. O aluno que está “presente à aula” quando 
é feita a chamada, responde “presente”. Isto mostra que a 
característica fundamental do presente é ser presente diante de 
alguma coisa ou de alguém. O celular pisca e avisa que há mensagem. 
Isto me torna presente à mensagem, mas não à pessoa que a enviou. 
Se o celular toca e é uma ligação da pessoa que enviou a mensagem, 
estou presente diante da sua voz que ouço. 
 O agora, de modo diferente, assinala a temporalidade no que 
diz respeito ao tempo (e somente ao tempo) em que as coisas 
acontecem. Agora, por exemplo, gaúchos tomam chimarrão, 
maranhenses dançam o boi-bumbá e há uma roda animada em minas 
com rabeca, viola e pandeiro. No Rio praia lotada nesta manhã, e a 
tarde promete maracanã cheio. Este é um agora que acontece em 
lugares próximos e distantes de mim, sem necessidade de que o agora 
para ser precise de alguma presença. As coisas acontecem no agora, 
com presença ou com ausência, sendo que o depois que aparece agora 
em minha expectativa (a tarde promete...) faz com que o agora seja o 
agora da expectativa e não do que poderá acontecer depois. 
 O Passado é Em-si porque ele é completo, acabado, não pode 
ser modificado. O Presente é Para-si porque está por se fazer e pode 
ser modificado. 
 Sartre diz que “O Para-si é presente ao ser em forma de fuga”, 
isto porque o presente desaparece desatrelado do passado e do futuro. 
Quando digo que agora é uma hora em ponto, quando acabo de dizer 
já não é mais, pois se passaram alguns segundos. 
 Mas o presente não é só dilema, porque ele enquanto Para-si 
está fora de si, tanto no passado quanto no futuro. Podendo-se dizer 
do presente que ele não é o que é (passado) e é o que não é (futuro). 
 
 O que é o futuro? 
 Sartre diz que o futuro é o que tenho de ser na medida em que 
posso não sê-lo. A princípio surge como contradição, pois como 
 31
tenho de ser se, ao mesmo tempo, posso não sê-lo? Mas esse tem-de-
ser corresponde à falta que a extrai, enquanto falta, do Em-si da 
presença”. 
 O futuro é prerrogativa do para-si, e opera como um em-si, no 
sentido de que brota como possibilidade, mas irrealizável. Definimos 
o futuro como o que eu seria se eu não fosse livre, e o que devo ser 
porque sou livre. 
 O problema para uma compreensão mais fluida da ontologia 
da temporalidade sartriana particularmente no que diz respeito ao 
futuro é que sempre tentamos considerar o futuro objetivamente, 
como algo homogêneo, regrado, cronológico, constituído de 
momentos que virão. A tentativa de ver as coisas assim visa 
simplificar e também diminuir nossa angústia frente ao absurdo que é 
o ser da temporalidade, mas é uma tentativa fadada ao fracasso. 
 Já foi demonstrado que o futuro não-é, mas adota as 
características do em-si: um ser concluído, imóvel e imodificável. 
Este mesmo futuro, modo de ser da consciência, ligado às 
características do ser em busca dos possíveis. E o futuro 
sou eu mesmo, que me aguardo como presença para além do ser. 
Projeto-me no futuro, para me juntar àquilo que me falta e que, 
sinteticamente acrescentado no meu presente, fará com que eu seja 
aquilo que sou. Sartre fala em porvir referindo-se ao tempo 
espacializado. O porvir é uma noção prisioneira desse tempo 
espacializado. O porvir se refere aos acontecimentos que estarão lá 
naquele tempo por vir. Já o devir trata do movimento de construção 
desses acontecimentos, ele (o devir) remete à qualidade da existência 
quando ela se projeta para o futuro. 
 O devir, ou tempo-devir, ou ainda: o vir-a-ser é ao mesmo 
tempo objetivo e subjetivo. Ele se impõe (claro: não escolhemos 
envelhecer), mas o diferenciador é que se é verdade que o envelhecer 
se impõe a nós, é preciso lembrar que existem várias maneiras de 
envelhecer. 
 32
 Da mesma forma muitos outros exemplos acerca dos 
conteúdos da nossa vida que escolhemos tratar com habilidade para 
produzir qualidade em todas as coisas que fazemos e que nos vão 
acontecendo, porque na medida, por exemplo, que o envelhecimento 
é uma mutação, podemos escolher a orientação do nosso envelhecer, 
dando-lhe vitalidade, dignidade, alegria e prazer. Somos sim, 
responsáveispelo nosso próprio devir. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 33
 
III – EGO E CONSCIÊNCIA 
 
Para muitos filósofos, o Ego é um “habitante” da consciência, 
com sua presença formal no seio das experiências vividas como um 
princípio vazio de unificação. Outros pensam descobrir sua presença 
material, como centro dos desejos e dos atos, em cada momento de 
nossa vida psíquica. Aqui esperamos mostrar que o Ego não está nem 
formal, nem materialmente na consciência: ele está fora, no mundo; é 
um ser do mundo, como o Ego de outrem. 
Sartre observa que “toda consciência é posicional na medida 
em que se transcende para alcançar um objeto” e ela se esgota no fato 
de que “tudo quanto há na minha consciência atual está dirigido para 
o exterior”11, portanto, o que há na consciência? Nada. Para Sartre a 
consciência é um “eu - nada” e por isso critica o substancialismo de 
Descartes com o seu “Eu penso” na medida em que esse “penso” é 
substância do “eu”. 
É esse “nada” da consciência que remete o homem a uma 
liberdade, a um fazer-se (essência) através das suas escolhas, criando 
essência. Assim, a liberdade é que pode “encher” a consciência 
fazendo dela (liberdade) o ser da consciência, porque a consciência só 
é alguma coisa quando (por causa da liberdade) transcende, visa algo, 
e é absoluta nisso porque é ela própria a experiência, o fenômeno, a 
aparição. 
Se toda consciência é consciência de alguma coisa, num vetor 
de intencionalidade, não há nada na consciência (ou no eu) que lhe 
seja próprio (ao eu), e tudo que a consciência visa, visa fora de si, 
porque em si mesma ela não é nada. 
 
11 O ser e o nada. P.22 
 34
E a consciência se unifica na medida em que ela própria se 
transcende para alcançar os objetos. Mas a consciência não assimila o 
objeto, ela apenas desliza sobre ele sem apreendê-lo como conteúdo, 
porque o ser não é entificado por apreensões. A entificação 
significaria a atribuição de conteúdo ou essência ao ser, e isto no 
homem não é definitivo porque ele não se entifica enquanto ser para-
si. Isto explica que somos um constante vir-a-ser, nos transformamos, 
somos metamórficos. 
Esta visão constante no parágrafo anterior destitui a idéia de 
um Eu na consciência, afastando essa presença egológica na 
consciência e aproximando a idéia de uma consciência aberta, sem 
essência interior, mas a consciência como consciência posicional do 
mundo. 
O homem não pensa a si mesmo, porque se o fizer se depara 
com o vazio do seu ser. O ser é para-si e o seu pensamento é o cogito 
do para-si que envolve o ser e a sua existência ou a sua consciência 
eivada de intencionalidade. 
Então, o Eu (ou a consciência) “é o que não é” na medida em 
que só pode ser fora de si (na relação intencional com objetos) e “não 
é o que é” na medida em que essas relações que o fazem ser não são 
apreendidas em seu interior como conteúdo para dar-lhe qualquer 
permanência. 
Assim, o cogito existe num contínuo transcender a si mesmo, 
ou seja, para a exterioridade, com menor foco no pensamento e maior 
foco na experiência. Efetivamente, a definição da consciência 
sartriana corresponde ao fato de que o foco sobre o pensamento deve 
ceder lugar à experiência existencial. 
 É importante termos presente as possibilidades de a 
consciência ocorrer, pois, como podemos verificar, há consciências 
totalmente absorvidas no objeto, onde o Eu não aparece, e 
consciências onde o Eu aparece. Esta compreensão é fundamental 
para elucidarmos em que consiste o ser do ego, ou em outros termos, 
 35
qual a consistência de ser da personalidade. É precisamente esta 
questão que trabalharemos aqui. 
 Consciência do grito ao longe, consciência de crianças que 
brincam na areia, consciência das montanhas de pedras. Estas 
consciências quando se deram, eram consciências totalmente 
absorvidas nos seus objetos. Eram consciências de seus objetos, 
sendo consciência de sê-lo. Elas não se tomaram a elas mesmas como 
objeto, não são consciências posicionais de si, são simplesmente 
consciências de si. Essas consciências, no momento em que 
ocorreram eram consciências irrefletidas eram, consciências de 
primeiro grau. O que queremos destacar aqui é que no plano 
irrefletido, ou nas consciências de primeiro grau, o Eu não está 
presente. Ou, em outros termos, ao descrevermos a consciência que 
ouve um carro de som que passa, a consciência que percebe o sol 
forte, a consciência que se absorve nas montanhas de pedra, 
constatamos que não há Eu nessa consciência. 
 Destacamos aqui um aspecto central essencial: constatamos 
com as descrições acima que no plano irrefletido não há o Eu, e isso 
implica termos muito claramente o fato de que não é o Eu que nos 
possibilita refletir. Constatamos isso, quando conversamos com o 
outro sobre o outro e suas questões, quando eu não sou meu objeto de 
consciência, no entanto há uma consciência refletindo, discutindo 
sobre o outro e suas questões. 
 Então o Eu não aparece em todas as consciências que temos. 
Não aparece nas consciências irrefletidas. Constatamos que o Eu não 
estando presente nas consciências de primeiro grau, isto não 
impossibilita a reflexão, ou seja, refletimos sem ter a necessidade de 
tomar o Eu como objeto de consciência, a consciência que reflete não 
precisa de Eu para refletir. E aí concluímos que a consciência precisa 
ser considerada autônoma, pois, constitui uma experiência que não 
demanda outra consciência. 
 Um exemplo de surgimento da consciência de Eu: 
 36
 A praia está deserta à noite e Carlos senta em um banco de 
cimento no calçadão e se põe a contemplar as ondas que se quebram 
na praia. Carlos admira a preamar, em silêncio, simplesmente fica 
olhando e imaginando os fatores que causam a preamar. De repente 
um amigo toca-lhe o ombro e pergunta o que Carlos está fazendo. 
Nesse momento Carlos se dá conta do que faz e responde: 
“pesquisando”. 
 Notemos que as consciências de mar, de ondas, de conjeturas 
sobre as causas da preamar, eram consciências de primeiro grau, ou 
seja, eram totalmente absorvidas no objeto, e o eu não aparecia para 
elas, eram consciências irrefletidas. Entretanto, depois que 
perguntaram o que Carlos estava fazendo, ele voltou sua consciência 
para essas consciências até então irrefletidas, tomou-as como objeto e 
constatou: “Eu estou pesquisando”. Essa segunda consciência que 
tomou como objeto as consciências irrefletidas é uma consciência de 
segundo grau. Ela se caracteriza exatamente por tomar como objeto 
outra consciência. E com este ato de segundo grau, surge um objeto 
que não estava presente nas consciências de primeiro grau: o Eu. 
 O que Sartre denomina “circuito da ipseidade” é justamente 
esse ir e vir entre “je” e “moi” – que explicaremos adiante -, ou seja a 
alternatividade entre consciência de primeiro grau (pré-reflexiva) e de 
segundo grau (reflexiva). O Eu (no estado “je” - presença ausente) é o 
nada, ou seja, o estado anterior à transcendência egóica, onde não 
pode haver consciência, e havendo consciência esse estado nadificado 
é preenchido pelo objeto de consciência. 
 “Na ipseidade, meu possível reflete-se sobre minha 
consciência e a determina como aquilo que é. A ipseidade representa 
um grau de nadificação mais avançado que a pura presença a si do 
cogito pré-reflexivo, no sentido de que o possível que sou não é pura 
presença ao Para-si e sim presença ausente”12. 
 
12 Opus cit. P. 156 
 37
 Desta forma, concluímos que o Eu somente tem condições 
ontológicas de aparecer para a consciência titular, ou seja, para a 
própria pessoa que se vê no que faz, quando ela retoma uma 
experiência anterior ou quando põe uma consciência irrefletida como 
objeto de reflexão. Fica compreendido,então, que Carlos não se via 
pesquisando até que tomou sua consciência de mar como objeto, e 
encontrou o seu Eu. É contrariando Husserl que Sartre faz a 
conexão entre Je e Moi, pronomes cujo emprego na ontologia 
fenomenológica explicaremos logo a seguir. O primeiro seria o 
aspecto ativo e o segundo o aspecto concreto unificador destes 
aspectos distintos do ego. O próprio Sartre alude a essas expressões 
assim: 
“Sabeis como concebo o moi – não mudei: é um objeto que está 
diante de nós. Isto é, o moi aparece para a reflexão quando ela 
unifica as consciências refletidas: há então um pólo de reflexão que 
chamo o moi, o moi transcendente e que é um quase-objeto.” (Sartre, 
1976, p. 100). 
 Segundo Sartre, o campo transcendental de que fala a 
fenomenologia de Husserl deve ser caracterizado como impessoal, ou 
melhor, como pré-pessoal, ou seja, sem eu. O eu é, como as outras 
coisas do mundo, um objeto para a consciência. Ele é uma unidade 
noemática, não uma unidade noética. O ego é, assim, constituído, na 
reflexão impura, como sujeito dos estados e qualidades (trata-se do 
Moi) e das ações (trata-se do Je). No esquema abaixo vemos a 
diferença entre a adoção do Je (Eu) e do Moi (Eu) por parte de Sartre. 
Comecemos por recordar que o Ego (Eu) somente existe em relação 
de intencionalidade, e que fora da intencionalidade o Ego é uma 
impossibilidade. Então, a transcendência do ego se dá mediante a 
intencionalidade, reafirmando que o Ego somente existe na situação 
de transcendência e é aí que o denominamos MOI que é um pronome 
 38
da língua francesa, assim como JE que é reservado para designar o Eu 
na condição não-transcendente. 
 Fazemos também referência nesse esquema do que Sartre 
denomina consciência de primeiro e de segundo graus. Em primeiro 
grau está o irrefletido, não posicional de si porque consciência de si 
enquanto consciência de um objeto transcendente. Em segundo grau 
está a consciência refletidora (réfléchissante) enquanto não posicional 
de si mas posicional da consciência refletida (atos irrefletidos de 
reflexão). Em terceiro grau (ato tético em segundo grau) está a 
consciência refletidora enquanto posicional de si. Segundo SASS, 
Sartre define a estrutura do Je da seguinte maneira: 
a) O Je é um existente. Ele se dá como transcendência. 
b) Ele se entrega a uma intuição de gênero especial. 
c) Aparece somente através de um ato reflexivo 
Seu processo de constituição se dá do seguinte modo: 
1) Há um ato irrefletido de reflexão sem Je que se dirige sobre 
uma consciência refletida. 
2) Este torna-se objeto da consciência refletidora, sem cessar de 
afirmar seu objeto próprio (cadeira, verdade matemática, etc). 
 Como na ontologia fenomenológica a ausência de 
transcendência, de consciência e de intencionalidade caracteriza de 
certa maneira o Em-si, e como o Eu nessa mesma falta é denominado 
JE, então adotou-se o JE como designação do Eu na condição Em-si. 
 
 
A TRANSCENDÊNCIA DO EGO 
Ego: objeto intrapsíquico transcendente 
JE MOI 
EU 
em-si para-si 
 
 39
 
 
EM-SI 
 
 
 
consciência de primeiro grau 
 
intencionalidade 
 
tomada de consciência 
 
consciência de segundo grau 
 
formação egóica 
 
 
PARA-SI 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 40
IV - A CONSTITUIÇÃO DO EGO 
 
 Podemos afirmar que há ego porque há consciência, e jamais o 
contrário. Antecipamos também que o ser do ego se constitui como 
um pólo de estados, ações e facultativamente qualidades. Isso, a 
princípio pode não dizer muita coisa, mas o nosso objetivo é que no 
decorrer desta trajetória constatemos que o ego está no mundo, na 
realidade transcendente, queiramos ou não. 
 Podemos dizer que há pelo menos dois níveis de sentimentos: 
um mais casual, outro mais permanente; ou um mais superficial, outro 
mais profundo. Estes sentimentos podem ser positivos ou negativos, 
em relação ao outro ou em relação a si mesmo. Sãos os “estados” 
referidos por Sartre, que aparecem à nossa consciência reflexiva e se 
constituem objeto de uma intuição concreta”: 
 “Se odeio a Pedro o meu ódio por ele é um estado que posso 
apreender pela reflexão. Ele está ante a consciência reflexiva como 
seu objeto real” (Sartre, 1965). 
 É por meio da reflexão que me dou conta do meu ódio pela 
pessoa A ou B, ou seja, o meu estado se coloca como objeto ante a 
minha consciência reflexiva crítica. Mas há uma diferença entre o 
sentimento mais profundo que sinto por um, de uma experiência mais 
simples que sinto por outro. 
 Posso ter experiência repulsiva quando sinto raiva de alguém 
em um dado momento, por um motivo presente, numa consciência 
imediata daquele objeto que se posta diante de mim. E este 
sentimento pode ser apenas momentâneo ainda que este “momento” 
leve semanas ou até meses. O que importa não é o tempo em que este 
sentimento fica tomando conta de mim, mas a sua profundidade e 
gravidade. Este é um estado. 
 Outro estado, explicado por Sartre, mais profundo, é quando 
alguém sente um ódio que transcende a situação em si, porque 
assimila a idéia de que a pessoa é assim e vai continuar sempre sendo. 
 41
Ou seja, trata-se de um sentimento que comprometendo um passado e 
um futuro, escapa à instantaneidade de uma consciência. 
 E talvez aqui esteja a chave que elucida essa diferença: a 
consciência imediata de um sentimento ou sensação que em mim se 
desperta diante de um fenômeno casual, passageiro, que me concede 
um estado (negativo ou positivo) que não veio para ficar, fica na 
superfície, e isto não refere ao tamanho do sentimento, mas ao tempo 
em que ele permanece vigente. 
 Já em um nível mais profundo, um sentimento qualquer, 
ultrapassa o instante, a superfície, a imediatez do contato da 
consciência com o fenômeno e se aprofunda e permito que o meu 
sentimento seja o mediador da relação com a pessoa que odeio ou 
amo ou sinto qualquer outra coisa. Sempre que a vejo, vejo-a através 
do meu ser odiante ou amante. O meu sentimento por ela passa a 
fazer parte do meu ser. 
 Sabemos que, nesse caso, o sentimento, além de fazer parte de 
mim, se faz presente também por características do ser da pessoa a 
quem o dirijo, ratificando sua permanência para além de cada 
experiência de gosto ou desgosto. 
 Parece que o processo é que inicialmente tenho uma 
experiência de repulsão (ou atração), mas esse ódio, ou esse amor, 
seja que sentimento for, transcendendo à experiência imediata, não se 
limita a ela: 
 “O sentimento me vem e (...) ao mesmo tempo afirma sua 
permanência para além dele”. (Sartre, 1965). 
 Mas eu não penso o tempo todo na pessoa que odeio (ou amo). 
Só penso nela quando alguma coisa me remete a ela: quando alguém 
me fala dela, ou quando ela aparece. Compreendemos, 
portanto, que o sentimento se dá exatamente na relação com o objeto, 
impõe-se como mediação entre mim e a pessoa, cada vez que a vejo. 
Assim, quando ela se torna meu objeto de consciência o meu 
sentimento se impõe por inteiro, impõe-se todo novamente. Como 
 42
assinala Sartre, o sentimento “implica por ele mesmo uma distinção 
entre ser e aparecer, visto que se dá como continuando a ser, mesmo 
quando estou absorvido por outras ocupações e nenhuma consciência 
o revela. 
 Eis o suficiente para se afirmar que o sentimento - quando 
profundo - transcende a intensidade da consciência e não se submete 
à sua lei absoluta, para a qual não há distinção possível entre a 
aparência e o ser. Um sentimento de profundo ódio, por exemplo, é 
um objeto transcendente. 
 A diferença exata entre o estado daquilo que sinto pela pessoa 
que (por exemplo) odeio, e a simples repulsão que experimento por 
uma outra é que eu não apareci para minha consciência, o meu ser 
não estava implicado no futuro. Tratava-se de uma consciência 
irrefletidaperante um objeto repugnável, essa qualidade de 
repugnável encontrava-se naquela pessoa naquele momento. O que 
ocorreu foi uma consciência sem Eu, que tomou como objeto aquela 
pessoa desagradável. Não há aqui a implicação do meu ser no futuro. 
 Quando tenho uma experiência de repulsão com essa pessoa, 
não são essas experiências desagradáveis presentes na repulsão que 
medeiam a minha relação com ela. Assim, mesmo que nessa situação 
de cólera (ou paixão) eu dissesse que a odeio (ou amo), isso não seria 
verdade, pois o estado não depende da minha idéia, o estado, 
diferentemente da experiência de repulsão ou paixão, exige tempo 
para se consumar, e é transcendente ao que eu penso dela. 
 Semana passada, para mudar de objeto de consciência, alterar 
um pouco sua rotina, Carlos, de férias no Rio, levou diversos 
alimentos para uma Instituição de Caridade que fica no bairro de 
Botafogo. Queria fazer uma higiene mental, mudar de objeto de 
consciência em relação ao trabalho. Carlos ajudou na cozinha e atuou 
servindo comida a centenas de pessoas que procuraram naquele dia 
aquele restaurante público beneficiente. No final do dia Carlos se 
sentiu orgulhoso por aquela ação, sentia-se bem ao ver pessoas 
 43
carentes se beneficiando daquela ação. O fato é que olhando aquelas 
pessoas felizes após a refeição, Carlos também se sentia feliz e podia 
se ver na felicidade de cada rosto, de cada pessoa que ali esteve. 
 Fica fácil neste exemplo observar que ‘servir refeições’ foi 
uma ação que Carlos realizou. Mas, do mesmo modo que os estados, 
as consciências irrefletidas que eram consciências de-refeições-sendo-
servidas, precisam ser tomadas como objeto de uma consciência 
reflexiva para serem unificadas e apropriadas por mim: ações minhas. 
 Verdade que nem todas as ações são tão evidentemente 
transcendentais quanto “servir refeições”. Queremos com isso 
destacar apenas que: “as ações puramente psíquicas, como duvidar, 
raciocinar, meditar, pôr uma hipótese, devem elas também ser 
concebidas como transcendentes”. 
 Enquanto isso, do outro lado da cidade, Sheyla trabalhando no 
escritório observa que a nova secretária tem recebido muitas 
deferências especiais do chefe, tratamento gentis que ela que está ali 
há mais de cinco anos, jamais recebera. Sheyla, então, arquiteta um 
plano: envia flores para o chefe, para a residência dele, em nome da 
nova secretária. No cartão agradece o passeio de barco e o almoço na 
ilha. Tudo ficção, tudo invenção. Uma confusão é criada no 
casamento do chefe, e a nova secretária é demitida. 
 Com este exemplo iniciamos a análise das ações de má-fé. 
 Sheyla agiu de má-fé numa típica conduta popularmente 
conhecida como má-fé. Ela foi movida por ciúmes e pretendendo 
angariar mais atenção e afeto usou um recurso desonesto para criar 
uma situação insustentável que geraria, como gerou, uma demissão. 
Mas um outro exemplo, exposto pelo próprio Sartre em “O ser e o 
nada” capta melhor a atitude de má-fé que ocorre com mais sutileza. 
Trata-se da mulher que é convidada por um homem para jantar. 
 O que procuramos ininterruptamente é escapar da angústia. 
Encontrar garantias, alguma segurança, é como se invejássemos a 
definição total do ser-em-si. Sartre chegar a tratar do ser-para-si-em-si 
 44
como o grande alvo fantasioso do para-si que é dispor de uma 
essência e de escapar da angústia da existência que se faz e se refaz a 
todo tempo, gostaríamos de ter algo pronto que nos orientasse – 
valores, regras rígidas de conduta –, enfim, encontrar uma identidade 
definitiva, um porto seguro a partir do qual eu creia que aquilo vai 
continuar sendo sempre, e aí não preciso mais ter de escolher minha 
vida a cada momento porque já sou o que jamais deixarei de ser. Este 
é o sonho. Historicamente o mundo viveu isto. Esta é talvez a 
principal diferença de paradigmas entre a Era Moderna e a Pós-
Moderna. O mundo vivia a prevalência da lógica racional binária de 
separação com determinismos absolutos, onde se via tudo 
compartimentado: alma ou corpo; razão ou misticismo; certo ou 
errado, etc. O paradigma que surgiu com a pós-modernidade chegou 
criticando as verdades absolutas dos positivistas, declarando que toda 
verdade é relativa. Mas as crenças absolutas da Era Moderna eram 
como muletas que nos ajudavam a ir levando a vida. Sem 
autenticidade, porém. E muitas vezes baseado no que Sartre chama de 
má-fé. 
 Má-fé significa construir uma imagem de você e do mundo e 
se apegar àquilo. Como se aquilo fosse você. É uma tentativa de 
mentir para você mesmo. A partir daí se constrói alguma coisa com a 
qual você se identifica. Isso dá certa segurança, certa estabilidade 
nesse processo de existência. Todo mundo de uma maneira ou de 
outra tenta realizar isso para poder ter uma vida mais segura, mais 
estável, mais previsível e com menos conflitos porque a cada 
momento de escolha inevitavelmente se têm conflitos. 
 A teoria da personalidade em Sartre, como não poderia deixar 
de ser, dá mais ênfase à ação do que a qualquer outra coisa. Para 
exemplificar como que Sartre compreende o processo de formação da 
personalidade, vamos aqui nos referir a um exemplo do campo da 
aprendizagem: 
 45
 Um dos processos pedagógicos de ensino de idiomas defende 
que é preciso falar para aprender e não aprender para falar. Quer 
dizer: você deve aprender um idioma da mesma forma como uma 
criança aprende a falar o idioma do país onde nasceu: ela ouve, 
repete, erra e aprende. Primeiro ela fala, depois aprende. Primeiro 
aprende a conversar, depois aprende a gramática, as normas cultas do 
idioma e etc. 
 É mais ou menos assim, que segundo Sartre, a nossa 
personalidade se constitui: entrando em contato com as nossas ações, 
com as nossas experiências que depois serão consolidadas (ou não) na 
personalidade. 
 Erlich apresenta assim essa questão em Sartre: 
 “Se observarmos como a personalidade se constitui, 
notaremos que primeiramente ocorrem as experiências, e que estas, 
uma vez totalizadas constituem os estados e as ações e que as 
totalizações destes possibilitam as qualidades. É um caminho que vai 
sempre do concreto para o abstrato, da existência para a essência”. 
 E prossegue esclarecendo que não nascemos com o ego 
constituído, mas ele vai constituir-se ao longo da nossa existência. É 
que primeiramente existimos, para depois nos essencializarmos. 
 Portanto, estados e ações, em Sartre, são experienciados 
concretamente e vividos concretamente como uma mediação na 
relação com as pessoas, com as coisas que faço e assim demarcam 
minha identidade. 
 As qualidades, por outro lado, são abstrações, totalizações dos 
estados e das ações. Elas são objetos transcendentes, mas não são 
experimentadas concretamente numa relação. Sou colérico, sou 
rancoroso, sou antipático, sou gentil, sou estudioso; estas são 
totalizações de estados e ações. As qualidades devem ser vistas por 
dentro, ou seja, como a própria pessoa unifica, totaliza estados e 
ações dela no mundo. Nesse sentido, as qualidades são facultativas, 
 46
pois as pessoas podem ser estudiosas objetivamente, mas não se 
totalizarem como tal. 
 Uma qualidade advém não da ação em si, mas da totalização 
que o sujeito faz de sua ação que torna algo. E o que significa se 
totalizar? É algo como se identificar com a ação e permitir que aquela 
ação (ou série de ações) fale por mim. 
 É fundamental compreender que os estados e ações não 
decorrem das qualidades, mas, ao contrário, as qualidades são 
totalizações de estados e ações concretas no mundo. 
 Vimos até agora que o ego é um objeto transcendente 
constituído por estados, ações e facultativamente por qualidades. Mas 
como esses elementos são articulados? Tem alguma coisa por detrás 
desses elementos que os organiza em forma de ego? Ou seriam já 
esses elementos os constitutivos do ser do ego? 
 Pensemos essas questões

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