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PSICOTERAPIA EXISTENCIAL FUNDAMENTOS E PRÁTICA WALMIR MONTEIRO PRIMEIRA PARTE ONTOLOGIA FENOMENOLÓGICA SARTRIANA SEGUNDA PARTE A PRÁTICA DA CLÍNICA EXISTENCIAL Aos meus filhos William e Desirée São Paulo, 2009 - Clube de Autores 2 “A idéia que jamais deixei de desenvolver é que ao fim das contas cada um é sempre responsável por aquilo que foi feito de si; mesmo se ele não puder fazer mais que assumir essa responsabilidade. Acho que um homem pode sempre fazer alguma coisa daquilo que fizeram dele. É a definição que eu daria, hoje em dia, de liberdade, este pequeno movimento que faz de um ser social totalmente condicionado, uma pessoa que não reproduz mais a totalidade daquilo que recebeu em seu condicionamento; o que faz de Genet um poeta, por exemplo, enquanto ele tinha sido rigorosamente condicionado para ser um ladrão?” (Sartre – “O Existencialismo é um Humanismo”) 3 ÍNDICE PRIMEIRA PARTE INTRODUÇÃO, 4 I – INTENCIONALIDADE, 11 II – FENOMENOLOGIA E TEMPORALIDADE, 16 III - EGO E CONSCIÊNCIA, 33 IV - A CONSTITUIÇÃO DO EGO, 39 V- EM-SI E PARA-SI, 50 VI- SER-PARA-OUTRO, 55 VII - SER-NO-MUNDO, 60 VIII - O EXISTENCIALISMO, 64 IX - A SOCIOFENOMENOLOGIA DE MAFFESOLI, 77 SEGUNDA PARTE X - PSICOTERAPIA, 90 XI - O PROJETO EXISTENCIAL, 110 XII – PROPEDÊUTICA PSICOLÓGICA, 117 XIII - DINÂMICA DA TERAPIA EXISTENCIAL, 129 XIV - TRABALHANDO COM SONHOS, 144 XV - A DROGADICÇÃO NA VISÃO EXISTENCIAL, 149 XVI - O ATENDIMENTO INFANTIL, 158 CASOS CLINICOS, 180 CONCLUSÃO BIBLIOGRAFIA 4 INTRODUÇÃO Para Sartre é o indivíduo que, pessoalmente, se constitui. Não resultamos de determinações universais ou familiares como sempre acreditamos, nem mesmo somos continuadores de qualquer história que nos preceda. Cada um de nós constrói sua própria existência. Este é o cerne do existencialismo e isto nos concede maior liberdade para a construção da nossa singularidade. O ser e o nada, as coisas e a consciência, o em-si e o para-si, são áreas ontológicas nas quais Sartre estabelece que a realidade se estrutura como resultante da relação dialética entre a subjetividade e a objetividade. E diferencia consciência de conhecimento quando diz que é a consciência que permite que se estabeleçam relações de conhecimento, fora da idéia de saber apriorístico, e como resultante de uma produção cotidiana do próprio homem. Dessa forma a ontologia sartriana rompe com as predominâncias idealistas e racionalistas da filosofia, quando repõe a epistemologia em um estágio que reconhece o homem como sujeito do conhecimento. Ao buscarmos no homem uma identidade, encontramos na verdade um não-ser, e é dessa nadificação que surge a liberdade. Mas liberdade e angústia aparecem ao mesmo tempo nessa ausência de conteúdo da consciência, sendo, então, a existência humana “consciência de angústia”. A angústia da sua própria liberdade e missão de ser alguém. Se o homem é liberdade, e se essência é aquilo que se é, poderíamos dizer que identificamos a essência do homem na sua liberdade. Contudo, mais claramente, compreendemos que a liberdade humana é anterior a qualquer essência, porquanto a existência humana é uma existência de liberdade, o ser da “realidade humana”. 5 Quando Sartre diz que somos liberdade, isto quer dizer que a liberdade não é uma coisa que a gente tem ou conquista ou produz, mas uma coisa que a gente é. Por outro lado, todavia, é igualmente verdade que em certo sentido temos conquistado (ou perdido) a liberdade de demonstrarmos, de afirmarmos que somos liberdade. Porque, qual seria o contrário da liberdade? Se compreendermos, dentro do pensamento existencial, que o homem é liberdade e não pode deixar de ser, então não existirá o contrário da liberdade, já que não se pode tratar do que não se pode achar, do que não há. Sim, não há contrário de liberdade, porque a ausência do fundamento liberdade tornaria o homem uma impossibilidade. Não há o que seja o contrário de liberdade, mas há o que é contrário à liberdade. Tratemos, então, da liberdade em outro sentido: Se sou obrigado a escolher entre, por exemplo, subordinar-me a um ditador ou ser condenado à morte, eis o contrário da liberdade: essa força que me faz escolher entre coisas que não desejo: a subordinação ou a morte. Aqui, o que é contrário à liberdade é a escravização, a subjugação por meio da força, da ameaça fatal. Mas posso ser uma liberdade exercida em todas as ações em que não há o que chamo de contingência fatal, que é a escravização tal como encontramos em alguns povos e épocas. Faz parte da condição humana a liberdade de fazermos o que quisermos com a nossa vida, inclusive com a nossa liberdade. Se sou explorado e não reajo, exerço a liberdade de permitir-me ser explorado sem reagir. Mas se não reajo e escravizo-me à exploração, deixo de manifestar que sou livre inclusive nesse sentido, o sentido de não admitir nenhuma forma de escravização, tomando aqui a escravização como o contrário da liberdade. Ao concluirmos que nossas escolhas nos constituem, somos tentados a perguntar: e o que constitui nossas escolhas? 6 Nossa liberdade. Esta é a resposta automática já que pensamos existencialmente. Todavia, convidados a problematizar, coloquemos entre parênteses essa resposta óbvia para prosseguirmos indagando se nossas escolhas em geral são feitas baseadas em nossos desejos ou em nossas possibilidades. Esta questão não nos afasta do raciocínio existencial, porquanto nossa Liberdade se manifesta no contorno das nossas possibilidades “que não são poucas”, acrescentaria Sartre, que acentua que todo homem é livre para aceitar ou rejeitar cada uma de suas limitações. Se por um lado é verdade que aceitamos muitas coisas por não termos nada melhor a fazer, também é verdade que não somos obrigados a aceitá-las e podemos definir que o melhor a fazer é rejeitar. Se rejeito, escolho, e assim exerço a liberdade de forma plena. O fato é que há plenitude em minha liberdade, para dizer sim ou não, a qualquer coisa, a qualquer um, a qualquer momento. É fato também que certas contingências acompanham muitas das nossas opções. Contingências estas que sempre surgem mescladas às oportunidades. Vale dizer que há oportunidades que simplesmente surgem, outras nós criamos, buscamos, procuramos. E o que nos faz criar, buscar, procurar? A Liberdade. Em relação às contingências que contornam a nossa liberdade, e portanto também contornam as nossas escolhas precisamos ser cautelosos, porque há uma necessária análise das forças dessas contingências para entendermos o tanto de vontade pessoal que há na escolha e o tanto de contingência, e como resultado dessa equação, por extensão, o tanto de má-fé. Cabe lembrar que Sartre em sua primeira fase filosófica olhava a liberdade como algo absoluto, mas depois começou a admitir as contingências. A proeminência dessa liberdade absoluta e de sua fatalidade ele colocou de modo bem enfático em “A Náusea”, onde Roquentin não pôde fazer outra coisa a não ser reconhecer a contingência absoluta das coisas (do em-si) em contraste com sua 7 liberdade. As coisas têm o que Sartre chama de “facticidade” e disto conclui que sua existência é, em certo sentido, absurda. O absurdo do mundo é simplesmente uma função de sua contingência bruta e isto produz a náusea. Sartre estava na guerra e escreveu para Simone de Beauvoir: “Esta guerra é uma escolha minha, porque eu poderia abandonar a França ou até me matar, mas escolhi estar aqui”. Um filho de lavrador não é obrigado a seguir a profissão do pai, caso queira coisa diferente. A contingência que acompanha estarealidade será a possível dificuldade de fazer essa mudança, mas ele (re)criará sua realidade, porque sua vida não terá que ser necessariamente a mesma vivida por seu pai. Na fenomenologia-existencial não olhamos a liberdade como uma coisa boa, como uma benesse que está aí para ser usada, consumida e comemorada como algo maravilhosamente bom. Não. A liberdade envolve responsabilidade, e isto faz com que ela quase sempre nos traga mais angústias do que prazer. E se as minhas escolhas não são justificadas pelo meu passado, torno-me totalmente solitário e único responsável por elas, o que também me angustia. Sei que jamais me livrarei dessa angústia, posto que ela é fundamento do meu ser. Posso ter amigos, família, religião, um ótimo terapeuta, recursos para fazer incríveis viagens e maravilhosas compras, e tudo isso pode atenuar minha angústia. Mas jamais eliminá-la. Sempre estaremos com uma sensação de que algo anda errado, de que algo poderia (e deveria) ser diferente, e que em algum momento temos cometido erros fatais em relação a determinadas escolhas. E tal sensação não significa necessariamente que estamos perdidos na condução da nossa vida, pelo contrário, significa que estamos de posse dessa condução em liberdade. Em “O ser e o nada” a angústia é explicada como a tomada de consciência da liberdade, ou o modo de ser da liberdade como 8 consciência de ser. Porque “é na angústia que a liberdade está em seu ser, colocando-se a si mesma em questão”1. Diante de tal sentimento ela aparece com o mesmo sentido retratado por Kierkegaard, que consiste em diferenciá-la do medo, visto que este, geralmente, surge de um fator externo, enquanto que aquela corresponde a algo inerente ao ser humano. Na segunda parte desta obra apresentamos a realidade da terapia de um modo geral, independente de linhas ou abordagens, focando naquilo que é comum e necessário a qualquer trabalho psicoterapêutico. Um lado trata especificamente da psicoterapia existencial, aprofundando os estudos sobre os fundamentos fenomenológicos, o existencialismo, o projeto existencial, a dinâmica da clínica existencial, o trabalho com os sonhos e a visão fenomenologico- existencial da drogadicção; além de um capítulo sobre o atendimento infantil. O outro lado trata da psicoterapia de um modo geral, apresentando seus fundamentos, a relação terapêutica, a propedêutica do atendimento psicológico e diversos casos clínicos para discussão. A evolução da psicoterapia fenomenologico-existencial (ou: análise existencial) depende muito de uma compreensão mais clara do que ela efetivamente é. Alberti e Figueiredo erram quando reafirmando as diferenças que acham entre psicanálise e psicoterapia, tratam toda psicoterapia como comportamental, demonstrando total desconhecimento da prática existencial; e ainda afirmam que a psicoterapia (que psicoterapia?) tem em sua origem a proposta de confortar os homens de sua angústia. Todavia, o tema “angústia” é tratado pela fenomenologia-existencial como o cerne da análise da existência compreendendo-a como um necessário componente da existência humana que não é alvo de tratamento e sim de aproveitamento e 1 P. 72 9 contemplação na forma como surge, impondo-se como uma oportunidade do ser mergulhar compreensivamente nos sentidos de suas angústias que não são vistas como sintomas e sim como a própria oportunidade de autoconhecimento e apropriação da sua visão de mundo, do seu modo de ser. Também a psicoterapia existencial não se dispõe a tratar ninguém nos termos da psicoterapia comportamental e muito menos afirmar-se como “promessa de apaziguar o mal-estar inerente ao sujeito através da eliminação do sintoma”[1]. Parafraseando Alberti e Figueiredo ao se referirem aos objetivos da psicanálise, também afirmamos que a prática existencial igualmente não visa eliminar a angústia do sujeito, pois é a partir dela que o ser tem a possibilidade de atribuir um sentido à sua vida. A análise existencial, da mesma forma, não promete dissipar o mal- estar, não promete nenhum bem e sim um meio diferenciado de posicionamento do sujeito frente ao seu (dito) mal-estar. Podemos pensar no existencialismo como uma corrente filosófica que apresenta fundamentos para entender o homem em sua estrutura, sua angústia e o seu modo de ser e de se relacionar com o mundo. É, portanto, a teoria que embasa a prática nessa abordagem. Fenomenologia por sua vez, é o caminho que seguimos para encarar as sessões de terapia e vivenciar o nosso encontro com o cliente. É, portanto, a Fenomenologia, o nosso método. A proposta existencialista é a de conhecer as fundamentações do homem, analisando as questões que ele coloca em pauta e que revelam a estrutura desse ser-no-mundo. Existir é simplesmente você ser afetado por aquilo que vem ao seu encontro, e o homem só existe enquanto “ser abertura” e “ser-com”, aquele que se relaciona e é afetado pelo mundo, pelos outros homens, seres e coisas. Assim, vemos o ser humano a partir de suas relações e da maneira como ele é afetado por elas, como lida com os fenômenos. 10 O psicólogo existencial não procura algo por trás do que se diz, mas entende o próprio dizer e as pequenas manifestações como sendo em si mesmas reveladoras do sujeito, buscando analisar o modo do seu cliente se relacionar com o mundo e de estabelecer vínculos. Coisas que revelam a sua estrutura. Isto possibilita tanto o esclarecimento de sua essência, como o processo de constituição dessa estrutura de ser, sua identidade. No momento do encontro com o cliente, não há julgamento, nem valores, uma vez que a teoria entrará num segundo momento (epoché). Cabe ao terapeuta estar presente e disponível a esse encontro, e cabe ao cliente apresentar o que há de importante, evidenciando o que deve ser trabalhado. O papel do analista existencial é seguir esse caminho, iluminando-o e revelando-o. Nós, psicólogos existenciais nos esforçamos em encontrar o outro onde esse outro está, buscando compreender o que ele entende da forma como entende, para que ele se reconheça e assuma as responsabilidades de suas escolhas e do que continua escolhendo como sua forma de ser, porque o homem é um ser livre, capacitado a escolhas e ao delineamento de sua própria vida. O homem, sim, é livre para escolher, mas isto não significa que suas possibilidades são ilimitadas. O campo existencial do homem revela limites relacionados a aspectos culturais, condições corporais, historicidade e sua ambiência, sendo que esse conjunto define suas possibilidades de escolha. Mas, por mais que se estreitem os nossos graus de liberdade, sempre teremos uma faixa de escolha e nela desfrutaremos da possibilidade de mudar a nossa existência. 11 I – INTENCIONALIDADE Nunca me é interior: tudo o que viso é mundo transcendente. Em alguma dispersão ou intencionalmente, consciência de algo que vejo: uma flor, um abraço, um beijo. Fora de mim está meu desejo. (Walmir Monteiro) A ontologia fenomenológica de Sartre é o conjunto de estudos onde ele demonstra sua concepção de ser. Antes, todavia, é preciso que compreendamos a questão da intencionalidade da consciência. Husserl disse que toda consciência é consciência de alguma coisa e isso quer dizer que a minha consciência existe porque percebe objetos, porque capta esses objetos com sua atenção e também pode se dispersar em relação a eles. E se, porventura, a consciência não pudesse “ter consciência” de algum objeto, ela simplesmente não existiria, porque “ser consciência de” é a única forma de a consciência acontecer. A intencionalidade da consciência é um conceito proveniente de Franz Brentano (1838-1917), psicólogo austríaco e professor de Husserle Freud. Brentano refere-se à consciência enquanto ato, em oposição à consciência enquanto conteúdo. Para a psicologia mentalista, derivada de Wundt, analisar a consciência era identificar o que ela era em termos de percepções, imagens, lembranças e vontades. O problema era descobrir uma via de acesso a estes “conteúdos internos”, ao que estava dentro de cada mente. A solução então veio pelo método introspectivo. Brentano, porém, veio mostrar o inverso disso: a consciência não está dentro do sujeito, ela é apenas mediadora entre o sujeito 12 e o mundo. A consciência é um ato que visa um objeto e não um invólucro de conteúdos. Como compreender então a relação entre consciência e objeto? Como compreender o que é intencionalidade? Você, por exemplo, neste momento, é consciência do texto que está diante de você. Mas daqui a pouco pode ser consciência de uma campainha que toca, do telefone que chama ou de alguém que passa e atrai sua atenção. E quando você se dispersa do texto para prestar atenção em algo fora da sua leitura, então você é consciência dessa dispersão. Então, tudo que a sua consciência toma como objeto, está fora dela. O texto, o telefone, a pessoa, nada disso está no interior da consciência, porque todo objeto da consciência está no mundo transcendente, já que na consciência nada cabe e o mundo lhe é exterior por essência. Se nada há no interior da consciência, também o Eu não habita na consciência. A análise da consciência se divide em dois níveis: consciência de primeiro grau e consciência de segundo grau. A consciência de primeiro grau é aquela que ultrapassa a si mesma para atingir determinado objeto e esgota nessa posição. Trata-se de uma consciência perceptiva que ignora a si mesma para ter consciência de um objeto ou de um ato. Sartre a denominou cogito pré-reflexivo ou consciência irreflexiva. É irreflexiva, pois não depende do conteúdo psíquico do eu. O que é psíquico só pode ser apreendido pela reflexão. O segundo nível de consciência, nas palavras de Sartre, “é a consciência que é consciente de ser consciente do seu objeto”. Existe um eu que é consciente daquilo que tem consciência. Chamou-a, por isso, de consciência reflexiva. É específica do ser humano. Vamos a um outro exemplo: Carlos passeia de bicicleta pela orla de uma praia no Rio de Janeiro. A tarde praiana está repleta, e ele sabe que precisa dirigir com atenção. Carlos procura se concentrar nos movimentos, observa 13 as curvas da ciclovia, os obstáculos do caminho e também fica atento aos demais ciclistas. Contudo, sente o cheiro da maresia, sente a brisa do mar que bate em seu rosto, distingue que está circulando por uma orla belíssima e também percebe aquele mar de lindas ondas com montanhas de pedras às suas margens. Ele ouve um carro de som que passa tocando músicas de carnaval e se dá conta que o carnaval está próximo. Volta sua atenção à bicicleta mas logo diminui a velocidade quando se interessa em contemplar o mar buscando o infinito para notar que o sol resiste forte e cintilante apesar de já passar das quatro da tarde. Ao retornar seu olhar para o calçadão se dá conta de que sua atenção não está na bicicleta, mas na paisagem. Carlos se assusta e segura firme o guidão preocupado com crianças que às vezes atravessam desatentas a ciclovia. Ele, notando que as pessoas frequentam mais o calçadão e passeiam a essa hora, fica admirando a beleza do bronzeado das moças que passam, além de rir de alguns tipos bem excêntricos que roubam a sua atenção. Algumas pessoas gritam ao longe e ele tenta saber o que está acontecendo pelo movimento que se cria na rua. Carlos quase cai da bicicleta quando não percebe uma interrupção no leito da ciclovia. Ele se dá conta que novamente dispersou sua atenção que fora desviada para os passantes e também para uma altíssima onda que pegou um grupo de turistas desprevenidos e os derrubou na praia. Carlos se preocupa com a cena, mas logo percebe que eles se divertiram com o próprio susto. E, admirando-se de não ter caído, volta outra vez sua atenção para a bicicleta, notando que uma porção de coisas diferentes foram objetos de sua consciência e constata a sua dispersão em relação ao mais importante que era a direção da bicicleta. Vejam que a consciência de Carlos durante esse passeio teve como objeto pessoas, crianças, ondas do mar, turistas, músicas, o sol, e outras coisas. A consciência foi, de fato, durante todo esse tempo, consciência de alguma coisa. Não se detectou consciência sem 14 objeto em nenhum momento desse passeio e mesmo em qualquer outra experiência em que haja uma rigorosa descrição da mesma, não se achará em nenhum momento, uma consciência sem objeto, porque ser “consciência de” é a única forma de a consciência ocorrer. Não se pode recusar que quando o ciclista era consciência da onda do mar derrubando banhistas, ele era consciência dessa onda sendo consciência de ser; enquanto ele era consciência das moças bronzeadas que passavam, ele era consciência de estar sendo consciência das moças; quando ele se deu conta de sua dispersão, ele era consciência de ser consciência de sua dispersão, ou seja, a consciência é necessariamente consciência-si. E, neste sentido, não podemos deixar de destacar que tudo o que a consciência tomou como objeto, estava na praia, no mar, no calçadão, na ciclovia ou na rua, mas nada era “interior” a ela, tudo o que a consciência tomou por objeto, estava no mundo transcendente. Está sempre fora de mim o meu desejo. E se tudo que tomo como objeto está no mundo transcendente, nenhum desses objetos depende de mim para existir e nenhum deles é conteúdo de minha consciência, apenas são objetos para a minha consciência sem nela habitarem, já que por essência o mundo é exterior à consciência. A consciência pela própria forma de se dar, não tem como conter alguma coisa, e sendo assim não tem como conter o Eu. Isso não é uma questão lógica. Não estamos dizendo que o Eu não está no interior da consciência, porque senão não dá para usar o conceito de intencionalidade, estamos constatando que a realidade mesma da consciência, verificável por cada um de nós, impossibilita que um eu a habite. Constatamos desta forma que a consciência, ou seja, o nada, é essa intencionalidade que escapa a cada momento, é comprovável, visível e descritível que nada a governa, a consciência dos gritos ao longe é a pura relação a esse objeto que se impõe: o grito. Nada determina a consciência a ser consciência do grito. Neste sentido, 15 como coloca Sartre, essa não determinação da consciência torna-se uma característica essencial de sua existência: “A consciência é uma plenitude da existência, e essa determinação de si por si é uma característica essencial dela.” Sartre diz que se perguntarmos se há um lugar para um “Eu” na consciência a resposta será claramente “não”, pois quando se introduz a opacidade de um “Eu” na consciência, se contradiz a definição tão fecunda que nos damos a todo instante, em fenomenologia, esquecendo de que ela é uma espontaneidade: ao contrabandear para dentro dela aquele germe de opacidade. Enfim, somos forçados a abandonar a constatação original e profunda onde a consciência se evidencia um absoluto não-substancial: pura translucidez. Neste sentido, ao compararmos a realidade com a tradição filosófica, temos constatado o primeiro grande problema na relação do Eu com a consciência: o ego não “cabe” na consciência, a própria descrição desta o constata. Se ignorarmos essa evidência, podemos elocubrar “n” causas para esta consciência, e a tese fundamental da fenomenologia: a intencionalidade, passará a ser um detalhe bem adaptado às elucubrações filosóficas forçadas. Queremos marcar com isso, que com a descrição da consciência, evidencia-se já o fatoque rompe com as filosofias e conseqüentes psicologias metafísicas: O Eu não pode habitar a consciência pelo simples fato de que ela não tem interior para ser habitado. Assim, se levarmos a sério o fato que é a intencionalidade, ou em outros termos, se levarmos em conta a realidade da consciência, ficaremos “dispensados do Eu - interior porque finalmente tudo está fora, até nós mesmos: fora, no mundo, entre os outros. Então não será em nenhum refúgio que nos encontraremos, será na rua, na cidade, no meio da multidão, coisa entre as coisas, homem entre os homens” 16 II – FENOMENOLOGIA E TEMPORALIDADE Acerca da idéia de fenômeno, Sartre falava da antagonia entre dualismos e monismo, acreditando que os dualismos embaraçavam a filosofia e sugeria que fossem substituídos pelo monismo do fenômeno. E reflete que quando o pensamento moderno, em comparação ao vigente na antiguidade, reduziu o existente à série de aparições que o manifestam, visava suprimir certo número de dualismos (causa-efeito, por exemplo) que embaraçavam a filosofia, substituindo-os pelo monismo do fenômeno (causa em si mesmo), e alcançou nisto considerável progresso. E prossegue considerando a eliminação do dualismo existente na oposição interior-exterior: “Não há mais um exterior do existente, se por isso entendemos uma pele superficial que dissimulasse ao olhar a verdadeira natureza do objeto”2 A supressão do dualismo interior-exterior torna-se possível desde que se reduza o existente à série de aparições que o manifestam, ou seja, o existente é aquilo que aparece diante de mim. E aqui ele já começa a dar uma idéia de sua ontologia, que seria a de que o ser é aquilo que aparece em série de aparições que manifestam esse ser: “As aparições que manifestam o existente não são interiores nem exteriores: equivalem entre si”3. Sartre então se utiliza do fenômeno força (no sentido de energia elétrica) para comparar o que é o ser (ou o existente) dizendo que a força é o conjunto dos seus efeitos: o conjunto das ações físico- químicas que a manifestam. Nenhuma das ações individuais e parciais da força é suficiente para revelá-la. 2 O ser e o nada. P.15 3 Opus cit. P.15 17 Então, “a aparência remete à série total das aparências e não a uma realidade oculta que drenasse para si todo o ser do existente”. Considerando Kant e o conceito de noumeno como aquilo que nunca se apresenta à sensibilidade nem ao entendimento e, logo, não pode ser conhecido já que é objeto da metafísica, Sartre discute que nesse nível kantiano a aparência mostra-se negativa, “aquilo que não é o ser”, ou seja, a aparência não revelaria o ser. Igualmente, Sartre propõe que nos desvencilhemos daquilo que Nietzsche denominava “a ilusão dos trás-mundos”, que não acolhamos a idéia do ser-detrás-da-aparição para que a aparência torne-se plena positividade, porque “o ser de um existente é exatamente o que o existente aparenta” para que cheguemos à idéia de fenômeno tal como é encontrada em Husserl e Heidegger. Ressalva, porém, que o fenômeno se mantém na relatividade já que o “aparecer” pressupõe em essência alguém a quem aparecer, sem, entretanto, a dupla relatividade do fenômeno kantiano que é constituído de fenômeno e noumeno, ou seja, o que nos é dado conhecer e o que não nos é dado conhecer. Em mais uma reflexão constante em “O ser e o nada”, Sartre refere-se ao fim da dualidade de potência e ato: “Tudo está em ato. Por trás do ato não há nem potência nem hexis (hábito), nem virtude.”4 Sartre diz que uma pessoa é genial não por aquilo que ela produz de genial nem por sua genial capacidade de produzir, mas pela “obra considerada como o conjunto das manifestações da pessoa”. E com esta reflexão ele rejeita o dualismo aparência-essência: “A aparência não esconde a essência, mas a revela: ela é a essência. A essência de um existente já não é mais uma virtude embutida no seio deste existente: é a lei manifesta que preside a sucessão de suas aparições, é a razão da série”. Sartre acrescenta às suas reflexões sobre a teoria do fenômeno observações complementares e pertinentes acerca da aparição do 4 Opus cit. P.16 18 objeto e da série de aparições desse objeto que designam o ser, lembrando que na aparição o que aparece é somente um aspecto do objeto que se manifesta totalmente neste aspecto e também totalmente fora dele, simplesmente porque ao mesmo tempo em que se manifesta indicando-se a si mesmo como estrutura da aparição, também depende que esta aparição surja em uma série para que isto resulte na concepção do ser. O FENÔMENO DO SER E O SER DO FENÔMENO Para fazer uma clara distinção entre “fenômeno do ser” e “ser do fenômeno”, recorramos a um exemplo concreto: - O psicoterapeuta está diante do seu paciente. Nesse momento ele se depara com o “fenômeno do ser” que lhe é imediato, visual, e muito do cliente vai ser rapidamente conhecido através de suas aparências (o que ele mostra, o que ele fala, o que faz, sua história, etc.) e tudo isto ajuda o psicólogo a identificar o fenômeno que é o seu cliente. Todavia, existe uma transfenomenalidade desse cliente, desse “ser do fenômeno”, e para que eu, terapeuta, possa compreender de modo mais amplo e profundo esse cliente, preciso colocá-lo em uma ótica mais ampla e mais crítica, e isto corresponde ao “ser do fenômeno”. RIBEIRO (2002) exemplifica bem isto com uma frase: “Talvez possamos dizer: as aparências não nos enganam, elas apenas não nos dizem tudo, não revelam tudo”5 É que em relação às coisas que vemos - todas as coisas – sejam materiais, físicas, humanas e até espirituais, não podemos nos limitar ao que vemos, porque ali pode existir uma condição além, algo que transcende o que se apresenta aos nossos sentidos de visão e audição, por exemplo. É que estando diante do “fenômeno do ser”, preciso aspirar o acesso ao “ser do fenômeno”. 5 Gestalt-terapia – RIBEIRO, Jorge Ponciano – P. 50. 19 ‘ Então, como vimos, a aparição do ser - a manifestação do ser exatamente como ocorre é o “fenômeno do ser”: aquele que a mim aparece, o ser que a mim se revela. Mas tal manifestação seria “da mesma natureza do ser dos existentes que me aparecem?”6 Sartre nos lembra que Husserl resolveu tal questão aludindo à redução eidética que nos permite ultrapassar o fenômeno concreto até sua essência; acrescentando uma comparação dessa solução husserliana com o conceito de “realidade humana” de Heidegger que é ôntico-ontológica, ou seja, que permite que o fenômeno seja ultrapassado até o seu ser. E isto se realiza de modo até simples, considerando que o conjunto objeto-essência constitui um todo organizado: “A essência não está no objeto, mas é o sentido do objeto, a razão da série de aparições que o revelam. Mas o ser não é nem uma qualidade do objeto captável entre outras, nem um sentido do objeto (...) o ser é simplesmente a condição de todo desvelar: é ser-para- desvelar, e não para ser desvelado”7. Em suma, o ser não está para ser desvendado totalmente. E Sartre exemplifica ser do fenômeno e fenômeno do ser quando mostra que em um objeto qualquer – mesa ou cadeira – identifico o fenômeno-objeto (fenômeno-mesa) sem indagar o que é ser mesa, pois se o faço, quando o faço, transcendo do fenômeno-mesa para o fenômeno-ser. Então, “o ser dos fenômenos não se soluciona (não se desvenda) em um fenômeno de ser”. O ser do fenômeno nos remete a uma profundidade maior, porque o ser acolhe o ente: “O fenômeno do ser mora no ser do fenômeno”, e assim como o fenômeno transcende a aparência, o ser do fenômeno transcende ao fenômeno do ser.6 Opus cit. P.19 7 Opus cit. P.20 20 FENOMENOLOGIA O termo fenomenologia foi utilizado por Aristóteles, Kant e Hegel com diferentes significações. A fenomenologia kantiana pensava o ser como o que limita a pretensão do fenômeno enquanto ele próprio permanece fora de alcance, já na fenomenologia hegeliana o fenômeno é reabsorvido num conhecimento sistemático do ser. Verificaremos neste capítulo a fenomenologia de Edmund Gustav Albert Husserl (1859-1938) que deu um conteúdo novo a essa antiga palavra que se origina do verbo grego phaínesthai, que significa "mostrar-se", enquanto fenômeno, como vimos anteriormente, quer dizer “aquilo que se mostra em si mesmo. O que se revela". Embora discordantes em aspectos centrais, Kant, Hegel e Brentano foram fontes que de algum modo contribuíram à formação do pensamento de Husserl. Verifiquemos, pois, alguns pontos da temática fenomenológica segundo os filósofos citados: Immanuel Kant (1724-1804) defendeu a idéia de que não podemos conhecer inteiramente as coisas, porque nem todos os sinais que delas recebemos são receptivos à nossa mente, e em função disso não podemos conhecer inteiramente o real, mas apenas o “fenômeno”, que é aquilo que a mente pode assimilar. Assim, o que podemos conhecer “a priori” são os fenômenos, e não as coisas em si, ou seja, em linguagem kantiana, os “noumenos”. O centro de argumentação é o seguinte: uma coisa é a realidade tal como ela é, e outra coisa é a maneira como essa mesma realidade aparece diante de mim enquanto sujeito do conhecimento. A realidade, tal como ela é, em sua essência (noumeno), é incognoscível, ou seja, não podemos conhecê-la. Contudo, eu posso conhecer o modo como ela me aparece (fenômeno), posto que o modo de seu aparecimento não dependerá só dela, mas de mim também. Portanto, jamais conhecemos as coisas em si (noumeno), mas somente tal como elas nos aparecem (fenômeno). 21 O noumeno é aquilo que nunca se apresenta à sensibilidade nem ao entendimento, mas é afirmado pelo pensamento puro, logo não pode ser conhecido já que é objeto da metafísica. Husserl mais tarde iria reformar essa visão kantiana, dizendo que não se pode separar fenômeno e noumeno que constituiriam, em conjunto, a coisa em si, o próprio fenômeno. Hegel (1770-1831) para quem as coisas só existem para a consciência na medida em que se manifestam. O mundo é fenômeno, e o fenômeno é o conhecimento que temos dele. A consciência é aquilo que une sujeito e objeto, ou seja, a consciência é a relação entre sujeito e objeto, sendo assim, qualquer alteração em um dos dois altera o outro. Para Hegel, “voltar às coisas mesmas” significa que o fenômeno esgota toda a realidade, pois a essência do fenômeno é o próprio fenômeno na sua manifestação. Para ele, a realidade é apreendida como se manifesta, não há essência anterior ou em sua base. Hegel defendeu a essência como algo simultâneo à existência. Sem embargo, essa fenomenologia é apenas uma propedêutica à ontologia, ciência sistemática do ser; todavia, no lugar de revelar a impossibilidade dessa ontologia, fornece todo o seu arsenal ao filósofo que não tem senão que pensar sua ordem oculta e dizer sua significação absoluta. Brentano (1838-1917) fundou a psicologia do ato, argumentando que o fenômeno psíquico se constitui como atividade e não como conteúdo. As idéias de Brentano serão as bases para as concepções da Fenomenologia de Husserl (consciência de) e vão dar início a uma psicologia que irá buscar as propriedades da consciência através da experiência interna. A partir da sistematização de sua teoria vão surgir a psicologia da Gestalt, a teoria de Lewin e a psicologia fenomenológica. Enfim, toda a psicologia cuja ênfase recaia sobre a consciência com sua característica essencial: a intencionalidade. Brentano rejeitou a consciência como algo permanentemente real, afirmou que a consciência só existe se for 22 direcionada por algum objeto, “existência dentro de”, propondo a intencionalidade como a principal característica da consciência. Assim, o sujeito passa a ser visto como construtor de significado por meio de sua percepção de mundo, já que a consciência é uma intenção dirigida para o objeto. Era interesse de Husserl conceder à filosofia um fundamento de racionalidade que lhe conferisse uma condição científica, e por ser a mais fundamental das ciências, a filosofia deveria manter-se livre de suposições. Surge, então, a fenomenologia, inicialmente como uma ciência da experiência, chamada de “psicologia rigorosa descritiva”. Em "Investigações Lógicas", Husserl demonstrou que a psicologia não pode ser fundamentada por leis lógicas, já que o psíquico é para ele um fenômeno e não uma coisa física e palpável, compreendendo o fenômeno como consciência, fluxo temporal de vivências, e tendo a intencionalidade como estrutura, consciência de algo. A fenomenologia surge, então, com o objetivo de examinar a experiência humana de forma rigorosa, por meio de uma ciência da experiência. Assim, a reflexão se faz necessária a fim de tornar possível observar as coisas como se manifestam em sua pureza original e descrevê-las. É a investigação daquilo que é genuinamente possível de ser descoberto e que está potencialmente presente, mas nem sempre visto, através de procedimentos próprios e adequados. Um encontro com as coisas mesmas. Para tanto, Husserl propõe a suspensão de qualquer julgamento, abandonando os pressupostos em relação ao fenômeno que se apresenta. A isto ele denomina “suspensão fenomenológica” ou epoché. Phenomenom + logos, ou seja, fenomenologia, é o discurso sobre aquilo que se mostra como é, caracterizando-se como a ciência que está em contato direto com o ser absoluto das coisas, dirigindo o conhecimento para o que há de essencial nas coisas. É a filosofia do inacabado, do devir, do movimento constante onde o vivido aparece e 23 é sempre ponto de partida para se chegar a algo. A Fenomenologia de Husserl propõe o método que dá início ao conhecimento compreensivo, não mais o explicativo-causal-dedutivo, mas o fenomenológico-descritivo-compreensivo. A lógica para Husserl, ou seja, a teoria das ciências, necessita também de um embasamento na sua própria essência de teoria. Fundamentar a lógica e fundamentar a filosofia são expressões equivalentes para este pensador, que crê que este alicerce só se torna possível por meio da fenomenologia. Sua teoria iria influenciar diversos pensadores que, de alguma forma acabam divulgando esta filosofia e atribuindo a ela outros rumos, como: Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty, Gabriel Marcel, e outros. Deve-se ainda à fenomenologia influências sobre outras ciências como: psicologia, psiquiatria, antropologia e filosofia da religião. Husserl, portanto, funda a sua Fenomenologia como uma atitude e um método, dizendo que é necessário avançar para as próprias coisas, e esta é a regra primeira e fundamental do método fenomenológico. Por coisas entenda-se simplesmente o dado, aquilo que temos diante da nossa consciência. A Fenomenologia, dessa forma, visa exclusivamente o dado, sem querer decidir se este dado é uma realidade ou uma aparência, apenas consistindo em “mostrar” o que é dado e em esclarecer este dado, sustentando como tema apenas aquilo que se constitui como objeto da experiência possível: os fenômenos. Para ele as evidências apodíticas às quais a Fenomenologia deve se ater, e a respeito das quais ela pode se constituir como ciência rigorosa serão apenas os atos da consciência intencional (consciência de) e seus respectivos objetos imanentes. A fenomenologia será então a ciência descritiva destes objetos, a que se chega através da intuição pura, numa apreensão imediata da “coisa mesma” enquanto pura essência. Também é objetivo da fenomenologia compreenderas estruturas formais que operam de forma encoberta na organização da 24 experiência, segundo os diferentes modos da consciência visar seus objetos. O conhecimento da obra de Brentano fez Husserl despertar para a insuficiência das ciências do homem tais como elas se desenvolveram sob seus olhos por volta dos anos 1900. O que ele nelas questionou, especialmente na psicologia, é terem extraído seus métodos das ciências naturais, aplicando-os sem o cuidado de observar que seu objetivo é diferente. Essa crítica já se fazia presente em Dilthey, cujas Idéias Concernentes a uma Psicologia Descritiva e Analítica (1894), Husserl leu, ratificando o fato de que a vida psíquica é um dado imediato que não exige reconstruções, apenas uma descrição. “Explicamos a natureza e compreendemos a vida psíquica” é uma afirmação de Dilthey, filósofo responsável pela equiparação e distinção entre ciências naturais e ciências do espírito (humanas). As ciências naturais explicam o objeto, enquanto as ciências humanas compreendem o objeto. No compreender não ocorre uma distinção clara entre sujeito e objeto (já que o sujeito do conhecimento toma a si mesmo como seu objeto de conhecimento). Para Ricoeur, por exemplo, compreender é mais que um modo de conhecer, é um modo de ser: “O problema hermenêutico torna-se assim uma pronúncia da Analítica deste ser, o Dasein, que existe compreendendo” (Ricoeur, 1969). O fato é que cada vez mais a realidade deixa de ser uma coisa concreta, uma coisa dada e acessível aos sentidos para tornar-se algo construído pelo homem, de natureza representativa, essencialmente produzido na linguagem e nela reconstruído. A Fenomenologia irá então servir como base metodológica da Psicologia Existencial, sabendo-se que nada é definitivo, mas transitório e mutável, e que a força da nossa disposição de escolha é bem maior e mais decisiva que supúnhamos, fazendo com que resgatemos a fé numa dimensão bem maior, quando nos damos conta que são muitas as possibilidades que podem se postar à nossa frente, 25 caso invistamos mais em nós mesmos, no sentido de “assumir a responsabilidade” pelo que nos acontecerá, já que somos autores da maioria dos nossos fatos. Edmund Husserl (1859-1938) ao apresentar a intencionalidade da consciência adotou o lema de que “toda consciência é consciência de alguma coisa” Assim, a percepção é percepção de um percebido, o desejo é desejo de um desejado e a imaginação é imaginação de um objeto imaginado. É que, por outro lado, o sujeito, tal como Descartes o concebia, não se relacionava diretamente a coisas e objetos. Ele só se relacionava diretamente a idéias que ele sustentava acerca dessas coisas. Assim, afirmar que “toda consciência é consciência de alguma coisa” é dizer que ela se relaciona diretamente ao mundo, não está fechada sobre si mesma, mas abre-se imediatamente ao “exterior”. É esse resultado, sobretudo, que Sartre aplaudirá, já que ele lhe permitirá dizer, contra seus velhos mestres da Sorbonne, que nossa consciência nos lança diretamente no mundo, no meio da multidão. Husserl com este postulado fenomenológico da intencionalidade (ou responsabilidade) da consciência faz surgir uma reflexão diante do sujeito cartesiano com seu estoque de idéias inatas, ou o sujeito (segundo Locke) mera tabula rasa na qual o mundo inscreverá suas “idéias”. Nos dois casos a consciência ou a subjetividade só entra em cena como uma instância essencialmente passiva, que não contribui em nada para a constituição do mundo da nossa experiência. O ato intencional da consciência será chamado de “apreensão” ou “noese” – termo derivado do nous grego, que designa o momento específico do pensamento, ato responsável pela doação de sentido, que vai animar aquele conjunto de sensações opacas, fazendo com que a consciência se torne “direção” a um objeto transcendente, um fenômeno, diante de mim. E será justamente esse conceito de fenômeno que exigirá o reconhecimento de outras figuras da 26 intencionalidade. Se as sensações e os atos intencionais são habitantes da interioridade da consciência, o fenômeno, ao contrário, não está “em mim”, mas “diante de mim”. É esse conceito de fenômeno que leva Husserl a falar em uma fenomenologia, certa lógica dos fenômenos. E o que é um fenômeno? É a apresentação de um objeto para a consciência. É ele que determina essa consciência, porque ela (a consciência) sem um objeto intencionado não é nada. A consciência só é consciência quando sustenta a consciência de alguma coisa. Daí afirmarmos que é o fenômeno (o objeto) que faz existir a consciência. TEMPORALIDADE O tempo, matematizado como é, dividido nos pretensos elementos passado, presente e futuro - é pura convenção, disse Sartre, que compreende a temporalidade em termos de uma “síntese original” de seus “pretensos elementos” passado-presente-futuro, acolhidos como momentos estruturados, porque o passado não é mais, o futuro ainda não é e o presente instantâneo “é o limite de uma divisão infinita, como o ponto sem dimensão”8. Mesmo considerando-a um tanto quanto vaga, Sartre faz referência à Teoria das Impressões Cerebrais, aquela que diz que a melhor definição para o passado é “passou”, que sustenta que a partir da constatação do desvanecimento desse passado, ele não é mais que as lembranças que temos dele, considerando ainda que tais lembranças não ocorrem no passado, mas no presente, é preciso que ocorra apenas a título de modificação presente de nosso ser. Essa teoria defende que toda recordação, toda lembrança impressa em nossa mente, tudo do passado que nos acompanha na verdade é 8 O ser e o nada. P. 158 27 presente. O passado que te acompanha, não passou. E se não passou, não é passado, é presente. Na verdade nós escolhemos esse passado presentificado, há uma seleção. Há coisas que não importam, que não visitam nossas memórias e interesses atuais – estas são as coisas que efetivamente passaram. Outra teoria lembrada por Sartre em “O ser e o nada” e igualmente considerada imprecisa é a concepção de que o passado teria uma espécie de existência honorária. Ser passado, para um acontecimento, seria simplesmente estar recolhido, perder a eficiência, sem perder o ser. Como observou Bergson: “Entrando no passado, um acontecimento não deixa de ser, apenas deixa de agir, mas permanece “em seu lugar”, em sua data, para toda a eternidade”. Sartre entende que o passado não produz o presente, já que a cada dia, a cada etapa, a cada situação, escolhemos as nossas direções e não realizamos um simples “follow-up” de retomada do ponto em que deixamos alguma coisa, ainda que, nada impede que a minha escolha seja uma escolha de retomada, de prosseguimento, mas nem aí há qualquer determinação de que o meu passado tenha me condicionado a utilizá-lo em minhas decisões. Por outro lado, não rejeitamos a historicidade – que não pode nem deve ser anulada. Não pode porque seria impraticável a adoção de uma atitude amnésica em relação ao tempo vivido e às experiências acumuladas; não deve porque o passado – ainda que não nos dê direção determinada – o seu conteúdo é um arquivo cultural que nos permite renovar nossas vivências ou mesmo repetir as vivências que merecem nossa reescolha. Em suma, sou livre do meu passado, mas não temos porque sustentar em relação a ele qualquer obsessão de esquecimento. Sartre faz o alerta de que quando tentamos anular o passado e só nos relacionamos com o presente, nos colocando no meio do mundo “perdemos toda a possibilidade de distinguir o que não é mais daquilo que não é” e toca nessa questão se referindo ao fato de que o 28 que ocorreu no passado (o que não é mais) sustenta um nexo com o ser, já o que nunca ocorreu (o que nãoé) jamais me chegou, jamais chegou a (o) ser. Por outro lado, o que é ser? – O ser é. E o ser se manifesta com sua presença de ser. Daí entendermos que aquilo que é temporalmente ausente, não tendo como se manifestar de alguma maneira, não tem como ser, porque “o ser que é esgota-se inteiramente no ato de ser; nada tem a ver com o que não é e com o que não é mais. Sartre propõe que se considere o fenômeno temporal em sua totalidade. E que se comece por uma substituição conceitual importante já que a expressão “ter” um passado supõe passividade em relação ao passado, devendo ser substituída por “ser seu próprio passado”. O ser presente é, pois, o fundamento de seu próprio passado. Seguindo essa resolução conceitual Sartre propõe reflexões a partir de uma frase: “Paulo era aluno da Escola Politécnica”. Neste contexto, o que significa “era”? Sartre responde que aqui o termo “era” designa o salto ontológico do presente ao passado e representa uma síntese original desses dois modos de temporalidade. E a basilar diferença é que considerando o termo “era” como um modo de ser, quando refiro “eu era” estou dizendo que eu sou o meu passado no lugar de dizer que “eu tenho o meu passado”. E neste sentido uma importante justificativa é que eu não tenho como negar minha solidariedade com o meu passado: “Aquilo que dizem acerca de um ato que pratiquei ontem ou de um estado de espírito que manifestei, não me deixa indiferente: fico magoado ou lisonjeado, reajo ou pouco me importo, sou afetado até a medula. Não me desassocio de meu passado”9. 9 O ser e o nada. P. 167 29 Sartre acrescenta que sem dúvida, e secundariamente, diante de novas escolhas, novos interesses, novos tempo, a tendência é que nos desassociamos do passado alegando mudança, desenvolvimento, etc. Mas isto não é negar solidariedade a um passado que é minha presença. Finalmente, compreendemos que Sartre, ao contrário do que muitos pensam, não nega o passado e nem prega a concentração do homem no seu presente. Sua idéia é que o passado não determina o que nos tornamos, mas o nosso ser é presença de modo indubitável nesse passado que deve ser visto a partir da presença original, ou seja, na conjugação uníssona de todos os elementos que “constituem” a temporalidade. O grande enigma do presente é a dificuldade de localizá-lo, e isto nos parece amplamente paradoxal, porque em uma primeira reflexão o presente sendo aquilo que é, em oposição ao passado que não é mais e o futuro que ainda não é, deveria o presente ser visto de modo mais legível, já que ele é tudo o que há diante de mim, aqui e agora. Mas não é tão simples assim, embora seja simples convencer- se de que o instante presente é sobremaneira fugaz. E isto nos leva a um raciocínio estranho que é concebermos o presente como sendo o que é mas ao mesmo tempo admitir o presente como sendo aquilo que praticamente não existe. Isto em função da fugacidade do presente. Sartre diz: “quanto ao presente instantâneo, todos sabem que não existe: é o limite de uma divisão infinita, como o ponto sem dimensão”10. Assim, se formos separar do presente tudo o que não seja presente, restará apenas um instante infinitesimal. O presente é o mais volátil dos três elementos que designam a temporalidade. Desta forma, diferenciamos o presente do agora. Como? Presente, diz Sartre, é estar presente a alguma coisa. Agora, por exemplo, estou presente diante de um teclado, de um monitor, de um “mouse”, de um aparelho telefônico que agora toca e de uma 10 Opus cit. P.158 30 garrafa Dágua e um copo. O aluno que está “presente à aula” quando é feita a chamada, responde “presente”. Isto mostra que a característica fundamental do presente é ser presente diante de alguma coisa ou de alguém. O celular pisca e avisa que há mensagem. Isto me torna presente à mensagem, mas não à pessoa que a enviou. Se o celular toca e é uma ligação da pessoa que enviou a mensagem, estou presente diante da sua voz que ouço. O agora, de modo diferente, assinala a temporalidade no que diz respeito ao tempo (e somente ao tempo) em que as coisas acontecem. Agora, por exemplo, gaúchos tomam chimarrão, maranhenses dançam o boi-bumbá e há uma roda animada em minas com rabeca, viola e pandeiro. No Rio praia lotada nesta manhã, e a tarde promete maracanã cheio. Este é um agora que acontece em lugares próximos e distantes de mim, sem necessidade de que o agora para ser precise de alguma presença. As coisas acontecem no agora, com presença ou com ausência, sendo que o depois que aparece agora em minha expectativa (a tarde promete...) faz com que o agora seja o agora da expectativa e não do que poderá acontecer depois. O Passado é Em-si porque ele é completo, acabado, não pode ser modificado. O Presente é Para-si porque está por se fazer e pode ser modificado. Sartre diz que “O Para-si é presente ao ser em forma de fuga”, isto porque o presente desaparece desatrelado do passado e do futuro. Quando digo que agora é uma hora em ponto, quando acabo de dizer já não é mais, pois se passaram alguns segundos. Mas o presente não é só dilema, porque ele enquanto Para-si está fora de si, tanto no passado quanto no futuro. Podendo-se dizer do presente que ele não é o que é (passado) e é o que não é (futuro). O que é o futuro? Sartre diz que o futuro é o que tenho de ser na medida em que posso não sê-lo. A princípio surge como contradição, pois como 31 tenho de ser se, ao mesmo tempo, posso não sê-lo? Mas esse tem-de- ser corresponde à falta que a extrai, enquanto falta, do Em-si da presença”. O futuro é prerrogativa do para-si, e opera como um em-si, no sentido de que brota como possibilidade, mas irrealizável. Definimos o futuro como o que eu seria se eu não fosse livre, e o que devo ser porque sou livre. O problema para uma compreensão mais fluida da ontologia da temporalidade sartriana particularmente no que diz respeito ao futuro é que sempre tentamos considerar o futuro objetivamente, como algo homogêneo, regrado, cronológico, constituído de momentos que virão. A tentativa de ver as coisas assim visa simplificar e também diminuir nossa angústia frente ao absurdo que é o ser da temporalidade, mas é uma tentativa fadada ao fracasso. Já foi demonstrado que o futuro não-é, mas adota as características do em-si: um ser concluído, imóvel e imodificável. Este mesmo futuro, modo de ser da consciência, ligado às características do ser em busca dos possíveis. E o futuro sou eu mesmo, que me aguardo como presença para além do ser. Projeto-me no futuro, para me juntar àquilo que me falta e que, sinteticamente acrescentado no meu presente, fará com que eu seja aquilo que sou. Sartre fala em porvir referindo-se ao tempo espacializado. O porvir é uma noção prisioneira desse tempo espacializado. O porvir se refere aos acontecimentos que estarão lá naquele tempo por vir. Já o devir trata do movimento de construção desses acontecimentos, ele (o devir) remete à qualidade da existência quando ela se projeta para o futuro. O devir, ou tempo-devir, ou ainda: o vir-a-ser é ao mesmo tempo objetivo e subjetivo. Ele se impõe (claro: não escolhemos envelhecer), mas o diferenciador é que se é verdade que o envelhecer se impõe a nós, é preciso lembrar que existem várias maneiras de envelhecer. 32 Da mesma forma muitos outros exemplos acerca dos conteúdos da nossa vida que escolhemos tratar com habilidade para produzir qualidade em todas as coisas que fazemos e que nos vão acontecendo, porque na medida, por exemplo, que o envelhecimento é uma mutação, podemos escolher a orientação do nosso envelhecer, dando-lhe vitalidade, dignidade, alegria e prazer. Somos sim, responsáveispelo nosso próprio devir. 33 III – EGO E CONSCIÊNCIA Para muitos filósofos, o Ego é um “habitante” da consciência, com sua presença formal no seio das experiências vividas como um princípio vazio de unificação. Outros pensam descobrir sua presença material, como centro dos desejos e dos atos, em cada momento de nossa vida psíquica. Aqui esperamos mostrar que o Ego não está nem formal, nem materialmente na consciência: ele está fora, no mundo; é um ser do mundo, como o Ego de outrem. Sartre observa que “toda consciência é posicional na medida em que se transcende para alcançar um objeto” e ela se esgota no fato de que “tudo quanto há na minha consciência atual está dirigido para o exterior”11, portanto, o que há na consciência? Nada. Para Sartre a consciência é um “eu - nada” e por isso critica o substancialismo de Descartes com o seu “Eu penso” na medida em que esse “penso” é substância do “eu”. É esse “nada” da consciência que remete o homem a uma liberdade, a um fazer-se (essência) através das suas escolhas, criando essência. Assim, a liberdade é que pode “encher” a consciência fazendo dela (liberdade) o ser da consciência, porque a consciência só é alguma coisa quando (por causa da liberdade) transcende, visa algo, e é absoluta nisso porque é ela própria a experiência, o fenômeno, a aparição. Se toda consciência é consciência de alguma coisa, num vetor de intencionalidade, não há nada na consciência (ou no eu) que lhe seja próprio (ao eu), e tudo que a consciência visa, visa fora de si, porque em si mesma ela não é nada. 11 O ser e o nada. P.22 34 E a consciência se unifica na medida em que ela própria se transcende para alcançar os objetos. Mas a consciência não assimila o objeto, ela apenas desliza sobre ele sem apreendê-lo como conteúdo, porque o ser não é entificado por apreensões. A entificação significaria a atribuição de conteúdo ou essência ao ser, e isto no homem não é definitivo porque ele não se entifica enquanto ser para- si. Isto explica que somos um constante vir-a-ser, nos transformamos, somos metamórficos. Esta visão constante no parágrafo anterior destitui a idéia de um Eu na consciência, afastando essa presença egológica na consciência e aproximando a idéia de uma consciência aberta, sem essência interior, mas a consciência como consciência posicional do mundo. O homem não pensa a si mesmo, porque se o fizer se depara com o vazio do seu ser. O ser é para-si e o seu pensamento é o cogito do para-si que envolve o ser e a sua existência ou a sua consciência eivada de intencionalidade. Então, o Eu (ou a consciência) “é o que não é” na medida em que só pode ser fora de si (na relação intencional com objetos) e “não é o que é” na medida em que essas relações que o fazem ser não são apreendidas em seu interior como conteúdo para dar-lhe qualquer permanência. Assim, o cogito existe num contínuo transcender a si mesmo, ou seja, para a exterioridade, com menor foco no pensamento e maior foco na experiência. Efetivamente, a definição da consciência sartriana corresponde ao fato de que o foco sobre o pensamento deve ceder lugar à experiência existencial. É importante termos presente as possibilidades de a consciência ocorrer, pois, como podemos verificar, há consciências totalmente absorvidas no objeto, onde o Eu não aparece, e consciências onde o Eu aparece. Esta compreensão é fundamental para elucidarmos em que consiste o ser do ego, ou em outros termos, 35 qual a consistência de ser da personalidade. É precisamente esta questão que trabalharemos aqui. Consciência do grito ao longe, consciência de crianças que brincam na areia, consciência das montanhas de pedras. Estas consciências quando se deram, eram consciências totalmente absorvidas nos seus objetos. Eram consciências de seus objetos, sendo consciência de sê-lo. Elas não se tomaram a elas mesmas como objeto, não são consciências posicionais de si, são simplesmente consciências de si. Essas consciências, no momento em que ocorreram eram consciências irrefletidas eram, consciências de primeiro grau. O que queremos destacar aqui é que no plano irrefletido, ou nas consciências de primeiro grau, o Eu não está presente. Ou, em outros termos, ao descrevermos a consciência que ouve um carro de som que passa, a consciência que percebe o sol forte, a consciência que se absorve nas montanhas de pedra, constatamos que não há Eu nessa consciência. Destacamos aqui um aspecto central essencial: constatamos com as descrições acima que no plano irrefletido não há o Eu, e isso implica termos muito claramente o fato de que não é o Eu que nos possibilita refletir. Constatamos isso, quando conversamos com o outro sobre o outro e suas questões, quando eu não sou meu objeto de consciência, no entanto há uma consciência refletindo, discutindo sobre o outro e suas questões. Então o Eu não aparece em todas as consciências que temos. Não aparece nas consciências irrefletidas. Constatamos que o Eu não estando presente nas consciências de primeiro grau, isto não impossibilita a reflexão, ou seja, refletimos sem ter a necessidade de tomar o Eu como objeto de consciência, a consciência que reflete não precisa de Eu para refletir. E aí concluímos que a consciência precisa ser considerada autônoma, pois, constitui uma experiência que não demanda outra consciência. Um exemplo de surgimento da consciência de Eu: 36 A praia está deserta à noite e Carlos senta em um banco de cimento no calçadão e se põe a contemplar as ondas que se quebram na praia. Carlos admira a preamar, em silêncio, simplesmente fica olhando e imaginando os fatores que causam a preamar. De repente um amigo toca-lhe o ombro e pergunta o que Carlos está fazendo. Nesse momento Carlos se dá conta do que faz e responde: “pesquisando”. Notemos que as consciências de mar, de ondas, de conjeturas sobre as causas da preamar, eram consciências de primeiro grau, ou seja, eram totalmente absorvidas no objeto, e o eu não aparecia para elas, eram consciências irrefletidas. Entretanto, depois que perguntaram o que Carlos estava fazendo, ele voltou sua consciência para essas consciências até então irrefletidas, tomou-as como objeto e constatou: “Eu estou pesquisando”. Essa segunda consciência que tomou como objeto as consciências irrefletidas é uma consciência de segundo grau. Ela se caracteriza exatamente por tomar como objeto outra consciência. E com este ato de segundo grau, surge um objeto que não estava presente nas consciências de primeiro grau: o Eu. O que Sartre denomina “circuito da ipseidade” é justamente esse ir e vir entre “je” e “moi” – que explicaremos adiante -, ou seja a alternatividade entre consciência de primeiro grau (pré-reflexiva) e de segundo grau (reflexiva). O Eu (no estado “je” - presença ausente) é o nada, ou seja, o estado anterior à transcendência egóica, onde não pode haver consciência, e havendo consciência esse estado nadificado é preenchido pelo objeto de consciência. “Na ipseidade, meu possível reflete-se sobre minha consciência e a determina como aquilo que é. A ipseidade representa um grau de nadificação mais avançado que a pura presença a si do cogito pré-reflexivo, no sentido de que o possível que sou não é pura presença ao Para-si e sim presença ausente”12. 12 Opus cit. P. 156 37 Desta forma, concluímos que o Eu somente tem condições ontológicas de aparecer para a consciência titular, ou seja, para a própria pessoa que se vê no que faz, quando ela retoma uma experiência anterior ou quando põe uma consciência irrefletida como objeto de reflexão. Fica compreendido,então, que Carlos não se via pesquisando até que tomou sua consciência de mar como objeto, e encontrou o seu Eu. É contrariando Husserl que Sartre faz a conexão entre Je e Moi, pronomes cujo emprego na ontologia fenomenológica explicaremos logo a seguir. O primeiro seria o aspecto ativo e o segundo o aspecto concreto unificador destes aspectos distintos do ego. O próprio Sartre alude a essas expressões assim: “Sabeis como concebo o moi – não mudei: é um objeto que está diante de nós. Isto é, o moi aparece para a reflexão quando ela unifica as consciências refletidas: há então um pólo de reflexão que chamo o moi, o moi transcendente e que é um quase-objeto.” (Sartre, 1976, p. 100). Segundo Sartre, o campo transcendental de que fala a fenomenologia de Husserl deve ser caracterizado como impessoal, ou melhor, como pré-pessoal, ou seja, sem eu. O eu é, como as outras coisas do mundo, um objeto para a consciência. Ele é uma unidade noemática, não uma unidade noética. O ego é, assim, constituído, na reflexão impura, como sujeito dos estados e qualidades (trata-se do Moi) e das ações (trata-se do Je). No esquema abaixo vemos a diferença entre a adoção do Je (Eu) e do Moi (Eu) por parte de Sartre. Comecemos por recordar que o Ego (Eu) somente existe em relação de intencionalidade, e que fora da intencionalidade o Ego é uma impossibilidade. Então, a transcendência do ego se dá mediante a intencionalidade, reafirmando que o Ego somente existe na situação de transcendência e é aí que o denominamos MOI que é um pronome 38 da língua francesa, assim como JE que é reservado para designar o Eu na condição não-transcendente. Fazemos também referência nesse esquema do que Sartre denomina consciência de primeiro e de segundo graus. Em primeiro grau está o irrefletido, não posicional de si porque consciência de si enquanto consciência de um objeto transcendente. Em segundo grau está a consciência refletidora (réfléchissante) enquanto não posicional de si mas posicional da consciência refletida (atos irrefletidos de reflexão). Em terceiro grau (ato tético em segundo grau) está a consciência refletidora enquanto posicional de si. Segundo SASS, Sartre define a estrutura do Je da seguinte maneira: a) O Je é um existente. Ele se dá como transcendência. b) Ele se entrega a uma intuição de gênero especial. c) Aparece somente através de um ato reflexivo Seu processo de constituição se dá do seguinte modo: 1) Há um ato irrefletido de reflexão sem Je que se dirige sobre uma consciência refletida. 2) Este torna-se objeto da consciência refletidora, sem cessar de afirmar seu objeto próprio (cadeira, verdade matemática, etc). Como na ontologia fenomenológica a ausência de transcendência, de consciência e de intencionalidade caracteriza de certa maneira o Em-si, e como o Eu nessa mesma falta é denominado JE, então adotou-se o JE como designação do Eu na condição Em-si. A TRANSCENDÊNCIA DO EGO Ego: objeto intrapsíquico transcendente JE MOI EU em-si para-si 39 EM-SI consciência de primeiro grau intencionalidade tomada de consciência consciência de segundo grau formação egóica PARA-SI 40 IV - A CONSTITUIÇÃO DO EGO Podemos afirmar que há ego porque há consciência, e jamais o contrário. Antecipamos também que o ser do ego se constitui como um pólo de estados, ações e facultativamente qualidades. Isso, a princípio pode não dizer muita coisa, mas o nosso objetivo é que no decorrer desta trajetória constatemos que o ego está no mundo, na realidade transcendente, queiramos ou não. Podemos dizer que há pelo menos dois níveis de sentimentos: um mais casual, outro mais permanente; ou um mais superficial, outro mais profundo. Estes sentimentos podem ser positivos ou negativos, em relação ao outro ou em relação a si mesmo. Sãos os “estados” referidos por Sartre, que aparecem à nossa consciência reflexiva e se constituem objeto de uma intuição concreta”: “Se odeio a Pedro o meu ódio por ele é um estado que posso apreender pela reflexão. Ele está ante a consciência reflexiva como seu objeto real” (Sartre, 1965). É por meio da reflexão que me dou conta do meu ódio pela pessoa A ou B, ou seja, o meu estado se coloca como objeto ante a minha consciência reflexiva crítica. Mas há uma diferença entre o sentimento mais profundo que sinto por um, de uma experiência mais simples que sinto por outro. Posso ter experiência repulsiva quando sinto raiva de alguém em um dado momento, por um motivo presente, numa consciência imediata daquele objeto que se posta diante de mim. E este sentimento pode ser apenas momentâneo ainda que este “momento” leve semanas ou até meses. O que importa não é o tempo em que este sentimento fica tomando conta de mim, mas a sua profundidade e gravidade. Este é um estado. Outro estado, explicado por Sartre, mais profundo, é quando alguém sente um ódio que transcende a situação em si, porque assimila a idéia de que a pessoa é assim e vai continuar sempre sendo. 41 Ou seja, trata-se de um sentimento que comprometendo um passado e um futuro, escapa à instantaneidade de uma consciência. E talvez aqui esteja a chave que elucida essa diferença: a consciência imediata de um sentimento ou sensação que em mim se desperta diante de um fenômeno casual, passageiro, que me concede um estado (negativo ou positivo) que não veio para ficar, fica na superfície, e isto não refere ao tamanho do sentimento, mas ao tempo em que ele permanece vigente. Já em um nível mais profundo, um sentimento qualquer, ultrapassa o instante, a superfície, a imediatez do contato da consciência com o fenômeno e se aprofunda e permito que o meu sentimento seja o mediador da relação com a pessoa que odeio ou amo ou sinto qualquer outra coisa. Sempre que a vejo, vejo-a através do meu ser odiante ou amante. O meu sentimento por ela passa a fazer parte do meu ser. Sabemos que, nesse caso, o sentimento, além de fazer parte de mim, se faz presente também por características do ser da pessoa a quem o dirijo, ratificando sua permanência para além de cada experiência de gosto ou desgosto. Parece que o processo é que inicialmente tenho uma experiência de repulsão (ou atração), mas esse ódio, ou esse amor, seja que sentimento for, transcendendo à experiência imediata, não se limita a ela: “O sentimento me vem e (...) ao mesmo tempo afirma sua permanência para além dele”. (Sartre, 1965). Mas eu não penso o tempo todo na pessoa que odeio (ou amo). Só penso nela quando alguma coisa me remete a ela: quando alguém me fala dela, ou quando ela aparece. Compreendemos, portanto, que o sentimento se dá exatamente na relação com o objeto, impõe-se como mediação entre mim e a pessoa, cada vez que a vejo. Assim, quando ela se torna meu objeto de consciência o meu sentimento se impõe por inteiro, impõe-se todo novamente. Como 42 assinala Sartre, o sentimento “implica por ele mesmo uma distinção entre ser e aparecer, visto que se dá como continuando a ser, mesmo quando estou absorvido por outras ocupações e nenhuma consciência o revela. Eis o suficiente para se afirmar que o sentimento - quando profundo - transcende a intensidade da consciência e não se submete à sua lei absoluta, para a qual não há distinção possível entre a aparência e o ser. Um sentimento de profundo ódio, por exemplo, é um objeto transcendente. A diferença exata entre o estado daquilo que sinto pela pessoa que (por exemplo) odeio, e a simples repulsão que experimento por uma outra é que eu não apareci para minha consciência, o meu ser não estava implicado no futuro. Tratava-se de uma consciência irrefletidaperante um objeto repugnável, essa qualidade de repugnável encontrava-se naquela pessoa naquele momento. O que ocorreu foi uma consciência sem Eu, que tomou como objeto aquela pessoa desagradável. Não há aqui a implicação do meu ser no futuro. Quando tenho uma experiência de repulsão com essa pessoa, não são essas experiências desagradáveis presentes na repulsão que medeiam a minha relação com ela. Assim, mesmo que nessa situação de cólera (ou paixão) eu dissesse que a odeio (ou amo), isso não seria verdade, pois o estado não depende da minha idéia, o estado, diferentemente da experiência de repulsão ou paixão, exige tempo para se consumar, e é transcendente ao que eu penso dela. Semana passada, para mudar de objeto de consciência, alterar um pouco sua rotina, Carlos, de férias no Rio, levou diversos alimentos para uma Instituição de Caridade que fica no bairro de Botafogo. Queria fazer uma higiene mental, mudar de objeto de consciência em relação ao trabalho. Carlos ajudou na cozinha e atuou servindo comida a centenas de pessoas que procuraram naquele dia aquele restaurante público beneficiente. No final do dia Carlos se sentiu orgulhoso por aquela ação, sentia-se bem ao ver pessoas 43 carentes se beneficiando daquela ação. O fato é que olhando aquelas pessoas felizes após a refeição, Carlos também se sentia feliz e podia se ver na felicidade de cada rosto, de cada pessoa que ali esteve. Fica fácil neste exemplo observar que ‘servir refeições’ foi uma ação que Carlos realizou. Mas, do mesmo modo que os estados, as consciências irrefletidas que eram consciências de-refeições-sendo- servidas, precisam ser tomadas como objeto de uma consciência reflexiva para serem unificadas e apropriadas por mim: ações minhas. Verdade que nem todas as ações são tão evidentemente transcendentais quanto “servir refeições”. Queremos com isso destacar apenas que: “as ações puramente psíquicas, como duvidar, raciocinar, meditar, pôr uma hipótese, devem elas também ser concebidas como transcendentes”. Enquanto isso, do outro lado da cidade, Sheyla trabalhando no escritório observa que a nova secretária tem recebido muitas deferências especiais do chefe, tratamento gentis que ela que está ali há mais de cinco anos, jamais recebera. Sheyla, então, arquiteta um plano: envia flores para o chefe, para a residência dele, em nome da nova secretária. No cartão agradece o passeio de barco e o almoço na ilha. Tudo ficção, tudo invenção. Uma confusão é criada no casamento do chefe, e a nova secretária é demitida. Com este exemplo iniciamos a análise das ações de má-fé. Sheyla agiu de má-fé numa típica conduta popularmente conhecida como má-fé. Ela foi movida por ciúmes e pretendendo angariar mais atenção e afeto usou um recurso desonesto para criar uma situação insustentável que geraria, como gerou, uma demissão. Mas um outro exemplo, exposto pelo próprio Sartre em “O ser e o nada” capta melhor a atitude de má-fé que ocorre com mais sutileza. Trata-se da mulher que é convidada por um homem para jantar. O que procuramos ininterruptamente é escapar da angústia. Encontrar garantias, alguma segurança, é como se invejássemos a definição total do ser-em-si. Sartre chegar a tratar do ser-para-si-em-si 44 como o grande alvo fantasioso do para-si que é dispor de uma essência e de escapar da angústia da existência que se faz e se refaz a todo tempo, gostaríamos de ter algo pronto que nos orientasse – valores, regras rígidas de conduta –, enfim, encontrar uma identidade definitiva, um porto seguro a partir do qual eu creia que aquilo vai continuar sendo sempre, e aí não preciso mais ter de escolher minha vida a cada momento porque já sou o que jamais deixarei de ser. Este é o sonho. Historicamente o mundo viveu isto. Esta é talvez a principal diferença de paradigmas entre a Era Moderna e a Pós- Moderna. O mundo vivia a prevalência da lógica racional binária de separação com determinismos absolutos, onde se via tudo compartimentado: alma ou corpo; razão ou misticismo; certo ou errado, etc. O paradigma que surgiu com a pós-modernidade chegou criticando as verdades absolutas dos positivistas, declarando que toda verdade é relativa. Mas as crenças absolutas da Era Moderna eram como muletas que nos ajudavam a ir levando a vida. Sem autenticidade, porém. E muitas vezes baseado no que Sartre chama de má-fé. Má-fé significa construir uma imagem de você e do mundo e se apegar àquilo. Como se aquilo fosse você. É uma tentativa de mentir para você mesmo. A partir daí se constrói alguma coisa com a qual você se identifica. Isso dá certa segurança, certa estabilidade nesse processo de existência. Todo mundo de uma maneira ou de outra tenta realizar isso para poder ter uma vida mais segura, mais estável, mais previsível e com menos conflitos porque a cada momento de escolha inevitavelmente se têm conflitos. A teoria da personalidade em Sartre, como não poderia deixar de ser, dá mais ênfase à ação do que a qualquer outra coisa. Para exemplificar como que Sartre compreende o processo de formação da personalidade, vamos aqui nos referir a um exemplo do campo da aprendizagem: 45 Um dos processos pedagógicos de ensino de idiomas defende que é preciso falar para aprender e não aprender para falar. Quer dizer: você deve aprender um idioma da mesma forma como uma criança aprende a falar o idioma do país onde nasceu: ela ouve, repete, erra e aprende. Primeiro ela fala, depois aprende. Primeiro aprende a conversar, depois aprende a gramática, as normas cultas do idioma e etc. É mais ou menos assim, que segundo Sartre, a nossa personalidade se constitui: entrando em contato com as nossas ações, com as nossas experiências que depois serão consolidadas (ou não) na personalidade. Erlich apresenta assim essa questão em Sartre: “Se observarmos como a personalidade se constitui, notaremos que primeiramente ocorrem as experiências, e que estas, uma vez totalizadas constituem os estados e as ações e que as totalizações destes possibilitam as qualidades. É um caminho que vai sempre do concreto para o abstrato, da existência para a essência”. E prossegue esclarecendo que não nascemos com o ego constituído, mas ele vai constituir-se ao longo da nossa existência. É que primeiramente existimos, para depois nos essencializarmos. Portanto, estados e ações, em Sartre, são experienciados concretamente e vividos concretamente como uma mediação na relação com as pessoas, com as coisas que faço e assim demarcam minha identidade. As qualidades, por outro lado, são abstrações, totalizações dos estados e das ações. Elas são objetos transcendentes, mas não são experimentadas concretamente numa relação. Sou colérico, sou rancoroso, sou antipático, sou gentil, sou estudioso; estas são totalizações de estados e ações. As qualidades devem ser vistas por dentro, ou seja, como a própria pessoa unifica, totaliza estados e ações dela no mundo. Nesse sentido, as qualidades são facultativas, 46 pois as pessoas podem ser estudiosas objetivamente, mas não se totalizarem como tal. Uma qualidade advém não da ação em si, mas da totalização que o sujeito faz de sua ação que torna algo. E o que significa se totalizar? É algo como se identificar com a ação e permitir que aquela ação (ou série de ações) fale por mim. É fundamental compreender que os estados e ações não decorrem das qualidades, mas, ao contrário, as qualidades são totalizações de estados e ações concretas no mundo. Vimos até agora que o ego é um objeto transcendente constituído por estados, ações e facultativamente por qualidades. Mas como esses elementos são articulados? Tem alguma coisa por detrás desses elementos que os organiza em forma de ego? Ou seriam já esses elementos os constitutivos do ser do ego? Pensemos essas questões
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