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Do falatório à poesia

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ALLYSSON LEITE LOPES 
 
 
 
 
 
DO FALATÓRIO À POESIA: REFLEXÕES SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE ARTE 
E INCONSCIENTE NA PSICANÁLISE FREUDIANA 
 
 
 
 
 
 
Brasília- DF 
2018 
 
 
 
 
 
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Centro Universitário de Brasília - UniCEUB 
Faculdade de Ciências da Educação e da 
Saúde - FACES 
Curso de Psicologia 
 
ALLYSSON LEITE LOPES 
 
 
 
DO FALATÓRIO À POESIA: REFLEXÕES SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE ARTE 
E INCONSCIENTE NA PSICANÁLISE FREUDIANA 
 
 
 
Monografia apresentada à Faculdade de 
Psicologia Centro Universitário de Brasília 
– UniCEUB como pré-requisito básico para 
a realização da disciplina de monografia. 
 
Professora orientadora: Me. Morgana 
Queiroz 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Brasília-DF 
2018 
 
 
 
 
BANCA EXAMINADORA 
 
Monografia apresentada ao curso de Psicologia do Centro Universitário de Brasília - 
UniCEUB, de autoria de Allyson Leite Lopes, sob o título DO FALATÓRIO À POESIA: 
REFLEXÕES SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE ARTE E INCONSCIENTE NA 
PSICANÁLISE FREUDIANA. 
 
 
 
BRASÍLIA (data da apresentação) 
 
 
BANCA EXAMINADORA 
 
 
 
(Nome do Professor) 
 
 
 
 
(Nome do Professor) 
 
 
 
 
(Nome do Professor) 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Uma afetação steliana 
Quero chorar 
Com Stela estalando 
Lagrimar o mar 
um mar 
de lamentos 
Lamento não ter tempo 
não aproveitar o mérito 
mérito histórico, histérico, Stélo, estalo o estado 
estando aqui todo o meu sentimento 
de não conseguir ir ir ir 
minha história aqui também está 
será? que morri ri ri ri 
A loucura, minha cura 
O normal, meu mal 
Minha escola de psicologia 
Meu encontro humano 
ano, dia, mês semana, 
e eu voando, passou voando facul 
vai tomar no olho 
porque no outro você já tomou faz tempo 
Agora morro, moro 
no gozo vivo, espero por viver 
viver e viver até viver. 
Allyson, 2017 
RESUMO 
 
 
 
Pretendemos analisar neste trabalho o texto de Stela do Patrocínio denominado 
"Reino dos Bichos e dos Animais é o Meu Nome" mediante as relações entre arte e 
psicanálise a partir do conceito de inconsciente proposto por Freud. Com isso 
vislumbramos mostrar de que maneira os diálogos chamados por ela de "falatório" 
adquirem status artístico e implicações nos processos da constituição subjetiva. O que 
nos leva a contemplar a percepção freudiana sobre a arte. Essa visão traduz-se na 
relação entre arte e inconsciente, na qual O “falatório” é ponderado a partir da análise 
do discurso proposta por Orlandi. Essa autora compreende o trabalho simbólico do 
discurso como produtor do sentido da existência humana. A construção do processo 
discursivo-subjetivo é feita mediante categorizações da ordem da Análise de Discurso 
através da ocorrência da palavra “Eu”, características do inconsciente em Freud e 
crítica da condição asilar feita por Stela. Dessa forma chegamos à questão da arte 
como expressão política. E por fim, chegamos também à ligação estreita entre arte e 
inconsciente. 
 
Palavras-chave: Psicanálise; Análise do discurso; Psicologia; Subjetivação 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
SUMÁRIO 
 
INTRODUÇÃO 8 
2. O CONTEXTO HISTÓRICO EXISTENCIAL DE STELA 16 
2.1 A REFORMA PSIQUIÁTRICA E O MOVIMENTO ANTIMANICOMIAL 18 
2.2 STELANDO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A LOUCURA 20 
2.3 QUEM FOI STELA DO PATROCÍNIO MUITO BEM PATROCINADA? 21 
3. COSTURANDO ARTE E INCONSCIENTE 24 
3.1 DEFINIÇÕES DE INCONSCIENTE 24 
3.2 DEFINIÇÕES DE INCONSCIENTE EM FREUD 25 
3.3 INCONSCIENTE E A PULSÃO: UMA BREVE CONSIDERAÇÃO 26 
3.4 SOBRE O OBJETO ARTÍSTICO 27 
3.5 A RELAÇÃO ENTRE ARTE E PSICANÁLISE 28 
 3.5.1 A dimensão artística do inconsciente 33 
4. ANÁLISE DA OBRA NA PERSPECTIVA DO MODELO DE ANÁLISE DO 
DISCURSO SEGUNDO ORLANDI (2009) 36 
4.1 ANÁLISE DO DISCURSO DE STELA 36 
4.1. Categoria 1 - Ocorrência da palavra "Eu" 36 
4.2 Categoria 2 - Características do inconsciente em Freud 38 
4.3 Categoria 3 - A crítica da condição asilar feita por Stela 42 
CONSIDERAÇÕES FINAIS 46 
ANEXO 54 
 
 
 
 
 
8 
 
 
1. INTRODUÇÃO 
 
Denise Corrêa, psicóloga, em 1986, convidou alguns artistas plásticos e a 
professora da Escola de Artes Visuais, Neli Gutmacher, e seu grupo de alunos, para 
montar um ateliê de artes plásticas na Colônia Juliano Moreira. Por um período de 
dois anos foram expostos diversos trabalhos, dentre eles algumas “falas” de uma 
interna, transcritas para vários quadros, e, também, a produção plástica de vários 
autores, culminando em uma exposição no Paço Imperial, tendo como foco o trabalho 
de Stela do Patrocínio (PATROCÍNIO, 2001). 
Stela do Patrocínio, “negra, alta, dignidade no porte, parecendo rainha” (ibdem, 
p.14) se diferenciava das demais por sua forma própria de se colocar no tempo e no 
espaço. Nasce para o mundo das instituições psiquiátricas com o diagnóstico de 
“personalidade psicopática mais esquizofrenia hebefrênica, evoluindo sob reações 
psicóticas” (PATROCÍNIO, 2001, p. 14) Algumas vezes apresentava-se enrolada em 
um cobertor com o rosto e os braços pintados de branco. No grupo, onde Stela se 
diferenciava, preferia claramente usar a palavra, cuja fala incisiva era pronunciada 
com gosto (PATROCÍNIO, 2001). 
Stela não queria produzir o que lhe era oferecido livremente. Gostava de falar 
e escrever em um papelão o que chamava de “falatório”. Suas terapeutas e mais tarde, 
a psicanalista e poeta Viviane Mosé percebendo ali poesias, resolveram publicar os 
poemas transpostos de falas e escritos de Stela. Mosé descreve em detalhes como 
essa transposição ocorreu. Assim, no que Patrocínio chamava de “falatório”, Mosé 
escutou poesia (PATROCÍNIO, 2001). 
Partindo dessa escuta poética, propomo-nos a trabalhar a questão da produção 
subjetiva, na perspectiva da relação entre psicanálise e arte para uma maior 
compreensão do significado desses poemas, pois entendemos que as duas epistemes 
estão entrelaçadas, de sorte que podemos ter sugestões do inconsciente de Mosé 
perpassando cada etapa da evolução da produção de Stela e cada linha concebida 
como expressão das relações inconscientes das poetisas. 
 
 
9 
 
 Para Sousa e Tessler (2001) a potência de uma obra de arte funda-se em nos 
permitir a possibilidade do encontro. Propõe assim, pensar a própria psicanálise como 
atividade criativa
— como elemento capaz de contribuir ativamente para uma 
modificação criativa nos afetos e na dinâmica de vida do paciente. Ou mesmo de 
constituir-se tal como uma arte, não só em seu domínio clínico, mas também teórico 
e cultural (MARTINS, 2002). 
Freud formulou a hipótese do inconsciente pela análise dos sonhos de seus 
pacientes através da qual considerou que os conteúdos recalcados se tornam 
inconscientes e produzem sintomas como: os chistes, atos falhos e sonhos 
(LAPLANCHE; PONTALIS, 2001). Entre a formulação da primeira tópica 
(Inconsciente, Pré-consciente e Consciência) e da segunda tópica do aparelho 
psíquico (Id, Ego e Supereu), a noção de inconsciente perde um pouco seu destaque. 
No entanto, a hipótese do inconsciente é retomada através de teóricos posteriores a 
Freud (ROUDINESCO; PLON, 1998), em específico por Lacan, a partir de sua 
proposta de retorno a Freud. 
Surgiram do campo acima descrito as seguintes questões mobilizadoras: de 
que maneira o conceito de inconsciente nos permite compreender e aprofundar as 
relações entre psicanálise e arte? Em que medida o interesse de Freud pela 
expressão artística nos permite compreender o processo de formação do conceito de 
inconsciente na psicanálise? Quais as possibilidades teóricas abertas pela hipótese 
freudiana do psiquismo inconsciente no sentido de examinar a emergência do estatuto 
artístico do discurso de Stela? Ou seja, qual o lugar do inconsciente nesse processo 
pelo qual o falatório transmuta-se em poesia? 
Estas questões são decorrentes da visão de Freud sobre a arte. Em Escritos 
criativos e devaneio (1907), no qual Freud "tece sua teoria geral sobre o fazer 
artístico", o artista é interpretado como sendo impulsionado por seus "desejos 
insatisfeitos", buscando, através da criação artística, "uma correção da realidade 
insatisfatória". Em O estranho (1919), o artista e sua obra são vistos como tendo "uma 
função insidiosa e mistificadora, papel contrário ao do psicanalista", que trabalharia 
sob as "forças das luzes" da razão, a fim de "alcançar a verdade" (MARTINS, 2002, 
p. 335). 
 
 
10 
 
Assim, nossa pesquisa se estrutura em torno dessas indagações. 
Pretendemos, por conseguinte, investigar as relações entre arte e psicanálise a partir 
do conceito de inconsciente proposto por Freud, buscando mostrar de que maneira os 
diálogos de Stela do Patrocínio, chamados por ela de "falatório", adquiriram status 
artístico e implicações nos processos da constituição subjetiva. Para isso, 
trabalhamos o conceito de inconsciente em Freud, sobretudo no tocante à sua ligação 
com a arte; o que implicou numa construção reflexiva sobre o livro "Reino dos Bichos 
e dos Animais é o Meu Nome" (PATROCÍNIO, 2001). 
Destacamos, nesse sentido, que esse percurso contribuiu, mesmo que 
inicialmente, para o desenvolvimento do pensar científico sobre o tema que envolve a 
relação entre arte e psicanálise, na medida em que dialoga com as produções 
acadêmicas sobre o assunto. Ao contemplar o olhar da poesia steliana, sob a ótica 
psicanalítica do inconsciente, pretendemos discutir e dialogar com a questão arte e 
inconsciente a partir dos teóricos referentes. 
Nesse sentido, além da obra freudiana, destacamos que Rivera (2005) contribui 
com as associações entre psicanálise e arte, Frayse-Pereira (2005) nos coloca que a 
própria psique é uma obra de arte e diante do feito artístico se depara com novas 
perguntas. Diante do conceito da falta, assunto de destaque psicanalítico, Sousa e 
Tesler (2001) ressaltam a importância de inventar a vida. Kon (1996), por seu turno, 
mostra que a proposição científica psicanalítica permite novos entendimentos do 
homem. Como diz Rosenfeld (1999, p. 350): 
Freud negou a cumplicidade com a arte em função de seu dilema (afinidade-
temor) frente ao estatuto do imaginário. No entanto, recusar o imaginário não 
é apenas livrar-se da ilusão, mas sobretudo recusar a criação de "figuras 
novas do pensável", é recusar o poder de "fazer ser o novo". É preciso aceitar 
a positividade do imaginário e da criação. O passado só pode ser recuperado 
enquanto ficção, a própria memória é ato criador. É preciso, ainda, romper 
com a dicotomia que separa sujeito e objeto, e com todas as dicotomias dela 
derivadas e que embasam a atitude científica. Assim, o fazer psicanalítico é 
criação de realidades novas, e não desvelamento arqueológico de realidades 
esquecidas, o que o torna comprometido com o fazer artístico. Para Kon 
(1996), é preciso fazer de nossa atividade um ato criador, tendo o fazer 
artístico, fundado na criação imaginária, como cúmplice: "Possuímos, agora, 
uma compreensão que nos permite abandonar os temores freudianos frente 
ao imaginário; é hora de nos deixarmos fertilizar pela potência criadora 
explicitada na atividade artística." (p.207). 
 
 
 
11 
 
 
Método 
Buscamos, através de nossa pesquisa, correlacionar psicanálise, análise do 
discurso e arte. Utilizamos de uma abordagem qualitativa, com análise de um texto 
literário, mediante revisão da literatura a partir da metodologia psicanalítica e da 
análise do discurso para apreender os sentidos apresentados no texto de Stela do 
Patrocínio. 
 Antes de buscar elucidar o método de per se, faz-se necessário destacar que, 
por um lado, a psicanálise não se identifica a um "exercício virtuoso de uma técnica" 
(BIRMAN, 1994, p. 27), no sentido que esta apresenta uma variação extensa, que 
exige um ponto de partida a partir de um marco zero. Podemos dizer que “os pilares 
da técnica analítica - associação livre e escuta flutuante - indicam praticamente uma 
ausência de procedimentos, antes que um corpo técnico que se preste ao 
virtuosismo” (COELHO; SANTOS,2012, p.93). 
Entretanto, se de um lado temos essa ausência estruturante de uma 
epistemologia psicanalítica, podemos, por mais que pareça contraditório, asseverar 
que o método psicanalítico tem sua rigorosidade firmada nos pilares da fala 
(associação livre) e da escuta (flutuante) e “regulada pelo impacto transferencial” 
(COELHO; SANTOS,2012, p.93). 
O rigor exigido para este tipo de abordagem metodológica, entretanto, implica 
no deslocamento do lugar do saber, que se situa naquele portador da fala, mesmo 
sendo este fato desconhecido a este, significando, então, uma relação de 
dependência daquilo que se produz como saber teórico como saber do enunciante, 
ou seja, a própria experiência do inconsciente (cf. COELHO; SANTOS,2012). Assim, 
[...] o método é a escuta e interpretação do sujeito do desejo, em que o saber 
está no sujeito, um saber que ele não sabe que tem e que se produz na 
relação que será chamada de transferencial. [...] O método psicanalítico vai 
do fenômeno ao conceito, e constrói uma metapsicologia não isolada, mas 
fruto da escuta psicanalítica, que não enfatiza ou prioriza a interpretação, a 
teoria por si só, mas integra teoria, prática e pesquisa (ROSA, 2004, p. 341). 
 
 
Importa dizer que a atividade interpretativa e a escuta, próprias da psicanálise, 
não se restringem a análise enquanto tal. Se reconhecermos a indissociabilidade da 
 
 
12 
 
atividade analítica e a pesquisa, então, é-nos propositado aplicar esse método em 
outras circunstâncias não analíticas. Ou seja, 
 
Isso implica na possibilidade de o pesquisador realizar um trabalho pautado 
na escuta psicanalítica de depoimentos e entrevistas, colhidos em função da 
questão que se pretende investigar. Ademais, a partir das contribuições da 
mencionada autora, podemos inferir que o método psicanalítico - pautado na 
escuta e na interpretação - pode inclusive ser empregado em outras 
modalidades de coleta de dados, por exemplo, em uma leitura-escuta 
(IRIBARRY, 2003, p. 127) 
 
 
A proposta é,
portanto, uma leitura guiada pela escuta e ou atenção flutuante, 
já “que seus resultados se modificam à medida em que seus pesquisadores se 
posicionam diante de novos sentidos produzidos pelo texto de publicidade da 
pesquisa” (IRIBARRY, 2003, p.117). 
 Concomitante com a perspectiva psicanalítica como método, propomos a 
interlocução com a análise do discurso, pois, consideramos que o papel do 
inconsciente “faz parte da constituição histórica dos discursos que circulam (de modo 
inconsciente) na sociedade, através de uma formação discursiva em uma conjuntura 
dada ” (BATISTA-SOARES, 2016, p. 223). 
 Laureano (2008) apresenta a correlação entre as duas nuances epistêmicas 
asseverando que nas duas disciplinas os dados passam a ser fatos, pois “a linguagem 
não pode ser reduzida a origem do sujeito, mas deve ser entendida como a posição 
que define a todo falante, o que implica trazer para nossa discussão a língua” (p. 46) 
Temos, então, que a maneira de significar diante do real é o que dá origem a 
análise do discurso. Para Orlandi a análise do discurso busca o sentido da linguagem, 
sua “capacidade de significar e significar-se”. Para ela, o trabalho simbólico do 
discurso é o que produz existência humana (2009, p. 15). 
 
[...] a formação discursiva se define como aquilo que em numa formação 
ideológica dada – ou seja, a partir de uma conjuntura sócio histórica dada – 
determina o que pode e deve ser dito. [...] As formações discursivas podem 
ser vistas como regionalizações do interdiscurso, configurações específicas 
dos discursos em suas relações. O interdiscurso disponibiliza dizeres, 
determinando pelo já dito, aquilo que constitui uma formação discursiva em 
relação a outra (ORLANDI, 2010, p. 43-44). 
 
 
 
13 
 
 Stela, mediante estes elementos discursivos constitui-se pelo que chama de 
falatório, pelo seu discurso, pela sua poesia. Não se trata apenas de transmissão de 
informações pura e simples, “o discurso é efeito de sentidos entre locutores” 
(ORLANDI, 2009, p.21). Falamos aqui de um cuidado, isto é, o cuidar próximo ao do 
campo transferencial: cuidar para que o inconsciente do analista não tome a sessão 
é perceber que o analista é afetado e afeta com seu próprio inconsciente. 
Figueiredo (2008) nos relembra os ensinamentos de Freud que freava as 
pretensões científicas, o furor pesquisante em detrimento do caminhar do processo 
terapêutico, de deixar vir o inconsciente do paciente. Seguindo o mesmo ethos, a 
Análise do Discurso se diferencia na análise de conteúdo justamente porque não 
procura o que o texto quer dizer, mas como o texto significa o que está dizendo. A 
análise do discurso considera a discursividade do texto que tem materialidade 
simbólica própria e significativa: uma “espessura semântica” (ORLANDI, 2009, p. 18). 
Em vista disso, o método da análise do discurso vem ao encontro da proposta 
metodológica psicanalítica por tentar “compreender como os objetos simbólicos 
produzem sentidos” (ORLANDI, 2009, p.26). No falatório de Stela, Mosé viu poesia. 
Assim, analisamos em nossa pesquisa, a poesia procurando o inconsciente. Tem-se 
então como os sentidos produzidos por esse método estão investidos de significância 
para Stela e suas primeiras ouvintes. Isto porque, como diz Orlandi, a proposta é de 
“construir escutas que permitam levar em conta esses efeitos e explicitar a relação 
com esse ‘saber’ que não se aprende, não se ensina, mas que produz seus efeitos” 
(2009, p. 34). 
Através de categorizações propostas por Orlandi em seu livro “Análise de 
Discurso: princípios e procedimentos” (2009), a saber, o sujeito e sua forma histórica; 
autor e sujeito: o imaginário e o real e o dito e o não-dito (dentro do escopo semântico) 
pudemos desenvolver categorias para análise da poética de Stela. 
Subdividimos em três categorias o ato discursivo de Stela. A primeira, a 
ocorrência da palavra “Eu”, evoca a dimensão subjetiva, ou melhor, o sujeito histórico 
do discurso. Nele transparece a questão da contradição do contexto social deste 
sujeito, sendo este ao mesmo tempo submisso e livre – a isso denomina-se 
“assujeitamento” (ORLANDI, 2009, p. 50). Pela perspectiva psicanalítica Freud 
(1923/2011) relaciona o Eu à consciência e relativiza a separação do inconsciente 
 
 
14 
 
com a consciência. O autor expõe a íntima e muito próxima ligação da consciência 
com o inconsciente. 
A segunda categoria, características do inconsciente em Freud, apresenta 
ocorrências de chistes e ironia, de repetição, ambiente onírico, atemporalidade, o não 
considerar a realidade. Além das questões psicanalíticas inerentes a estes aspectos, 
encontramos na dialética autor e sujeito proposta por Orlandi (2009) o 
desenvolvimento de um ato que visa produzir uma compreensão dos modos como os 
sentidos são aí produzidos. No que tange ao discurso oral, foco do texto, a autora trata 
de desfazer a identidade entre forma e funcionamento ao mostrar que um discurso da 
escrita pode ser oralizado e um discurso oral pode ser escrito. 
 
O fundamental aí são duas relações com a história e com a necessidade de 
atestar autoria: enquanto o discurso da escrita remete à inscrição no arquivo, 
na memória institucional, o discurso oral funciona como inscrição no 
interdiscurso, mexendo na filiação dos sentidos, trabalhando uma memória 
local e produzindo uma nova ordem de discursividade (FERNANDES; 
FONSECA, 2012, p. 281). 
 
A terceira categoria constitui-se de um falatório-denúncia como crítica da 
condição asilar feita por Stela. Este fator dentro do contexto discursivo traz consigo a 
ponderação de que um dos pontos expressivos da Análise do Discurso é “re-significar 
a noção de ideologia a partir da consideração da linguagem” (ORLANDI, 2009, p. 45), 
trata-se de uma definição discursiva da ideologia. 
Podemos dizer que a ideologia faz parte, ou melhor, é a condição para a 
constituição dos sujeitos e dos sentidos. O indivíduo é interpelado em sujeito 
pela ideologia para que se produza o dizer. Partindo da afirmação de que a 
ideologia e o inconsciente são estruturas-funcionamento, M. Pêcheux diz que 
sua característica comum é de dissimular sua existência no interior de seu 
próprio funcionamento, produzindo um tecido de evidências “subjetivas” 
(ORLANDI, 2009, p.45-46). 
Maingueneau (2008a) compreende o discurso como a prática enunciativa 
inserida em um determinado lugar institucionalizado socialmente. Apropria-se do 
conceito de formação discursiva, fundamentado por Foucault (2012) e propõe a 
categoria do interdiscurso, que afeta a discursividade para além da relação direta 
entre língua e história e reflete que os enunciados de um discurso estabelecem uma 
relação dialógica com enunciados anteriores. Este diálogo permite a valorização dos 
aspectos sócio-histórico-culturais para a construção dos efeitos de sentido de um 
discurso, como no caso do falatório de Stela do Patrocínio. 
 
 
15 
 
Nesse sentido cabe ressaltar que o próprio surgimento da psicanálise instaura 
um novo método, uma nova ética, um novo saber e novas práticas valendo-se muitas 
vezes da arte. O fazer clínico e o fazer artístico se encontram intimamente 
relacionados na psicanálise. Muitos textos de Freud (1908,1910,1913,1914, 1916) 
evidenciam isso. Psicanálise e arte inegavelmente possuem muitas relações 
importantes. Tais laços são tão estreitos de forma que a arte influenciou a psicanálise 
bem como por ela foi influenciada. 
Levando esses dados em consideração, é perceptível o lugar da estética como 
destaque na obra de Freud. Ele próprio chama os escritores de “aliados preciosos” 
(SAFATLE, 2006, p.194), e em “O tema da escolha dos cofrinhos” isso se mostra bem 
nítido. Freud (1913/2010),
a partir desse título, tece a análise do texto shakespeariano 
valendo-se de várias outras obras literárias para justificar a interpretação deste. Dessa 
forma evidencia-se o recurso artístico para elaboração do movimento psicanalítico que 
se iniciara. 
Ao se olhar para a produção artística de Stela do Patrocínio, colocamo-nos 
diante do inconsciente das primeiras ouvintes que gravaram suas falas, como também 
do inconsciente de Mosé, que fizeram alterações mínimas a partir de seus não-
saberes para publicá-las, bem como diante do inconsciente do próprio Freud do qual 
se valerá a pesquisa para tais reflexões e, por último ou primeiramente, o inhabitado 
autoral que se move a elaborar uma tecitura contando com o auxílio de inconscientes 
outros. 
 
 
 
 
 
 
16 
 
 
2. APRESENTANDO STELA: O CONTEXTO HISTÓRICO E EXISTENCIAL DE 
STELA 
 
Patrocínio, nossa poetisa, foi carioca, nasceu em 1941 e, desde 1962, foi 
internada no Centro Psiquiátrico Dom Pedro II, não tendo mais saído das instituições 
asilares até a sua morte em 1992, aos 51 anos, por uma infecção generalizada. Foi 
admitida no Pedro II aos 21 anos, sob o diagnóstico “personalidade psicopática e 
esquizofrenia hebefrênica, evoluindo sob reações psicóticas” (PATROCÍNIO, 2001, p. 
14). 
 Em 1966 foi transferida para a Colônia Juliano Moreira. Instituição que passou 
por algumas mudanças na década de oitenta, no intuito de humanizar e resgatar a 
cidadania dos usuários dos serviços de saúde mental, sob a política da reforma 
psiquiátrica. Nessa época, com base nessa nova estruturação, foram abolidos os 
castigos, as celas, o eletrochoque etc. Stela teve oportunidade de se beneficiar desta 
reforma psiquiátrica, de modo que a sua fala passou, de alguma forma, por menos 
desqualificação e seus escritos menos banalizados como excentricidades 
(PATROCÍNIO, 2001). 
Até os anos 70, a Colônia Juliano Moreira foi um dos hospitais psiquiátricos 
mais cheios do país, chegando a abrigar 7.700 pacientes. Nessa década, há um 
declínio do número de pessoas internadas, conforme explicita o cronograma 
panorâmico da saúde mental no Brasil disponível no site do Museu Bispo do Rosário1: 
1974 - Início da diminuição de novas internações na Colônia, em função dos 
avanços da farmacologia e da expansão do setor privado, através da 
contratação de leitos nas clínicas e hospitais psiquiátricos conveniados com 
a União. Esse movimento de migração para o setor privado ficou conhecido 
como “Indústria da Loucura” por gerar lucro explorando a internação sem se 
preocupar com a qualidade do atendimento prestado aos seus usuários. 
 
 
A Colônia Juliano Moreira foi inaugurada em 1924 no Rio de Janeiro com nome 
de Colônia de Psicopatas Homens de Jacarepaguá. A colônia era conhecida como "a 
cidade dos rejeitados de Jacarepaguá" (ABELHA, 2004). Nesse mesmo manicômio 
 
1 Disponível em http://museubispodorosario.com/colonia/historico/ Acesso em: 23 de nov. 2017 
 
 
17 
 
também esteve internado na condição de paciente Arthur Bispo do Rosário, conhecido 
por seus mantos bordados e outras produções têxteis, e também reconhecido como 
artista. 
O documentário “Colônia Juliano Moreira – 80 anos”, apresenta a colônia 
Juliano Moreira, idealizada por Franco da Rocha e Teixeira Brandão, inaugurada em 
1924 no Rio de Janeiro, baseada nos mais modernos conceitos da psiquiatria na 
época e, portanto, recebiam pacientes de diversas cidades do Brasil que possuíam 
histórico de diversas internações e que não teriam como ser “curados” (ABELHA, 
2014). A autora ainda descreve como eram as instalações do hospital psiquiátrico, 
onde os internos não possuíam camas, dormindo “amontoados”. 
 A Colônia aderiu a reforma psiquiátrica e, através de uma gestão conjunta do 
Ministério da Saúde com o INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica da 
Previdência Social) é iniciado o programa de ressocialização com a criação do Projeto 
de Etapas (ABELHA et al, 2014). 
 Este projeto consistia de três etapas: 
 A primeira etapa incluía remunerar os pacientes por seus trabalhos, como 
forma de compensação pela exclusão social. Ao final dessas três etapas, os pacientes 
poderiam ir embora da Colônia Juliano Moreira. No entanto, o Ministério da Saúde, na 
época, ordenou uma intervenção militar que colocou fim a esse projeto (ABELHA et 
al, 2014). 
 Em 1996 a Colônia é municipalizada e mudam o nome de Colônia Juliano 
Moreira para Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira. Em 1997, 
este instituto passa a ter residências terapêuticas, que são lares de acolhimento. Em 
homenagem a Bispo do Rosário, foi renomeado o Museu da Colônia Juliano Moreira 
(CJM) no ano de 2000. O museu, que era chamado desde 1982 de Museu Nise da 
Silveira, abrigava, desde sua criação em 1952, as produções dos ateliês de arte-
terapia (ABELHA et al, 2014). 
No ano de 2001 foi publicado o livro de poemas de Stela "Reino Dos Bichos e 
Dos Animais é o Meu Nome". A obra foi publicada postumamente, sendo fruto de um 
 
 
18 
 
trabalho de edição supervisionada por Viviane Mosé. Ela organizou um projeto de 
transcrição de gravações feitas quinze anos antes pela artista plástica Neli 
Gutmacher. A artista chega à colônia convidada a realizar atividades artísticas com as 
pessoas ali internadas e nesse trabalho armazenou falas de Stela do Patrocínio. Era 
um momento de abertura e questionamento do sistema psiquiátrico brasileiro. 
O conteúdo trabalhado toca o tema da reforma psiquiátrica. Nas análises 
produzidas veremos que o discurso daqueles com relevante sofrimento psíquico se 
revela como algo importante nas dinâmicas sociais, inclusive políticas, como será 
demonstrado no decorrer de nossa análise. 
Stela considerava seu discurso um falatório. E tal discurso, ouvido 
cuidadosamente, revelou-se uma potente forma de expressão poética. A 
transmutação, em poesia, daquilo que Stela nomeava falatório, chama atenção para 
a temática das relações entre arte e psicanálise, na medida em que aponta para um 
processo no qual a palavra adquire sentidos para além das intenções deliberadas e 
conscientes daquele que a enuncia. 
As falas de Stela foram gravadas em fitas cassetes, realizadas no período de 
1986 a 1989. Anos depois foram transcritas, organizadas e publicadas pela escritora 
Viviane Mosé (2001). Stela faleceu em 1992, nas dependências da Colônia, sozinha, 
pois seus parentes nunca reclamaram sua ausência. 
2.1 A REFORMA PSIQUIÁTRICA E O MOVIMENTO ANTIMANICOMIAL 
 
A reforma psiquiátrica no Brasil ocorreu após este movimento ter se iniciado na 
Europa, pautado pela Antipsiquiatria e a Psiquiatria Democrática Italiana, com Franco 
Basaglia de precursor. Ele dirigiu dois hospitais psiquiátricos durante a reforma na 
Itália, porém, só no segundo hospital conseguiu envolver a comunidade, as famílias 
dos pacientes, os médicos e enfermeiros e promoveu até a formação de empresas 
locais para que os pacientes tivessem mais que uma reinserção social, a saber, uma 
inserção no mercado de trabalho (BRANDÃO, 2014). 
A proposta da reforma psiquiátrica é de olhar para o sujeito e ver além de seu 
diagnóstico, ver sua situação de saúde física, situação social, financeira, todos os 
aspectos do indivíduo e dar um cuidado além das medicações, fornecendo meios do 
 
 
19 
 
sujeito se sentir integrado à família e à sociedade como um todo, como explicita 
Brandão (2014). 
Amarante (1994) esclarece que o objetivo de Basaglia era de sanar a criação 
de justificativas para a internação de indivíduos, com o isolamento de quem realmente 
precisava da internação e dar um fim a crença de que os internos
não teriam como se 
recuperar psicologicamente. A busca de todo o movimento de reforma psiquiátrica foi 
pela humanização dos pacientes, internar aqueles que realmente necessitavam de 
internação e depois o foco seria reinserir esses pacientes na sociedade, atender de 
uma maneira que desse de fato a ajuda necessária, e não mais razões para manter 
os pacientes internados (AMARANTE, 1994). 
No Brasil, um dos grandes nomes da reforma psiquiátrica foi Nise da Silveira, 
que foi pioneira ao não considerar o tratamento da época único, suficiente e capaz de 
compreender toda a complexidade da loucura. Destaca-se também o Manual de 
Psiquiatria Social de Luiz Cerqueira e seu combate à “indústria da loucura” 
(DELGADO, 2011, p. 4702), assim como Juliano Moreira, que ajudou a implantar a 
“primeira lei de assistência aos loucos, em 1902” e que lutou contra a camisa-de-força, 
fosse a física ou a medicamentosa (DELGADO, 2011, p. 4702). Importante também a 
Portaria 189, de 1991, de Domingos Sávio, coordenador de Saúde Mental do 
Ministério da Saúde, “que financiou procedimentos e dispositivos de incentivo a outras 
formas de assistência” (p. 4702). 
Foi a primeira lei de desospitalização e desmanicomialização debatido em 
parlamento latino-americano. Os manicômios foram progressivamente extintos e 
substituídos por outros recursos assistenciais. Essa é uma lei social, eis que se orienta 
pela atenção preventiva, curativa, reabilitadora, continuada, personalizada e 
participativa. A reforma tem um forte sentido cultural, além de sustentação técnica e 
científica, e na evolução da medicina compreendida socialmente (DELGADO, 2011). 
A ideia principal da reforma psiquiátrica é construir um centro de gravidade 
baseado no paciente e em suas possibilidades terapêuticas. É no sistema aberto que 
se vislumbra o futuro da psiquiatria moderna. É preciso que o paciente esteja protegido 
em espaços, onde possa ter uma história, com nome e sobrenome, sem a 
manipulação da sua identidade. Enfim, transformar o paradigma, que sustentava os 
serviços de recolhimento de problemas, passando a vigorar os serviços de 
acolhimento de pessoas. 
 
 
20 
 
Para tanto temos a Lei 10.216 de 2001, da qual o principal eixo é o cuidado. O 
apoio da sociedade e da família é primordial para mudanças de comportamentos e 
hábitos, pois, tal norma se destina a pessoas enfermas vistas por todos como sem 
determinação nem autonomia. A Lei não contesta a doença mental, mas, o modo de 
tratá-la; faz com que se eleve o modelo da vida cotidiana do paciente. Uma vez que 
tal doença não é contagiosa, dispensa isolamento. Assim, com o avanço da medicina 
foi permitido ao indivíduo a reinserção social e direito à convivência familiar. 
(DELGADO, 2011). 
 
O doente mental é também beneficiário do ambiente jurídico oriundo da 
Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, como qualquer 
outro paciente. Seu tratamento não é um ato cirúrgico desde que foi abolida 
a lobotomia. Só a avaliação permanente do tratamento livra a psiquiatria da 
ideologia. Não há sucesso médico-terapêutico sem afeto, cultura, história da 
doença, escuta do sofrimento, subjetividade [... ] (DELGADO, 2011, p. 4705). 
 
 
2.2 STELANDO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A LOUCURA 
 
Ao tratarmos da questão sobre a loucura temos que considerar a filosofia 
foucaultiana. Na “História da Loucura” Foucault (2014) diz que a loucura é a antítese 
necessária ao surgimento do que é racional e, sendo assim, necessária para 
manutenção do poder. Ele traz uma concepção de loucura como linguagem 
transgressora das próprias leis da linguagem. O louco vê o signo vazio, sem sentido, 
sem fundamento e isso permite a aproximação de obra e loucura. (MACHADO, 2000) 
Sobre a literatura, Foucault a trata como um tipo específico e especial do saber 
moderno, onde tal interesse complementa suas análises arqueológicas. Para ele a 
linguagem literária apresenta resistência ao status quo social pela contestação e 
transgressão superando assim a própria tradição filosófica (MACHADO, 2000). 
A experiência literária da linguagem pode ser transgressora, o que se confirma 
na fala de Stela. Enquanto a própria obra é ameaçada pelo seu grau de loucura, esta 
segue além dos limites impostos pela racionalidade, o que lhe confere um status 
paradoxal; se confirma no fato de que Stela chama sua obra de falatório, talvez a 
protegendo dos rigores do saber instituído. 
 
 
21 
 
Sobre tal paradoxo, Foucault (2014) nunca desconsiderou a loucura como 
desmoronamento total, ruptura absoluta, ao passo que a literatura é construção do 
desmoronamento da linguagem. Enquanto a loucura é a verdade do psiquiatra, o 
desmoronamento é a verdade da obra. Se, por um lado, o patológico é a condição do 
normal, por outro, o vazio, sem sentido é a condição para a obra de arte (MACHADO, 
2000). Nesse aspecto, Barthes (1987, p. 11) faz consonância afirmando: 
 
Nem a cultura nem a sua destruição são eróticas; é a fenda entre uma e outra 
que se torna erótica. O prazer do texto é semelhante a esse instante 
insustentável, impossível, puramente romanesco, que o libertino degusta ao 
termo de uma maquinação ousada, mandando cortar a corda que o 
suspende, no momento em que goza. 
 
Sobre a instituição asilar, Foucault (2014) nos mostra que esta nasce com a 
utilidade de perpetuar valores morais. “Os valores da família e do trabalho, todas as 
virtudes reconhecidas imperam no asilo” (2014, p. 487). 
O filósofo continua: 
Antes de mais nada, elas [referindo-se às virtudes conhecidas] imperam de 
fato no âmago da própria loucura; sob as violências e a desordem da 
alienação, a natureza sólida das virtudes essenciais não se rompe. Uma 
moral existe, inteiramente primitiva, que normalmente não é ofendida, mesmo 
pela pior demência; é ela que ao mesmo tempo aparece e opera na cura. 
(FOUCAULT, 2014, p. 487) 
 
 
2.3. QUEM FOI STELA DO PATROCÍNIO MUITO BEM PATROCINADA? 
 
Nascida a 09 de janeiro de 1941, filha de Manoel do Patrocínio e Zilda Xavier 
do Patrocínio, Stela se dizia solteira, doméstica, de instrução secundária. Afirmava ter 
duas irmãs, Ruth e Olivia, já falecidas. E um cunhado, pai de três sobrinhos, Reinaldo, 
Cosme e Eduardo. Dizia ter como familiar responsável seu sobrinho Reinaldo, que a 
visitou por algum tempo. 
Embora as análises das poesias de Stela se deem mais a frente, é 
importantíssimo (o que também adiante se mostrará a razão), respeitar a arte dela, na 
qual a própria Stela se apresenta, por intermédio de suas práxis, na poesia, “Eu sou 
Stela do Patrocínio, muito bem patrocinada”: 
 
Aqui no hospital não tem quem pensa 
 
 
22 
 
Não tem nenhum que pense 
Eles vivem sem pensar 
Comem bebem fumam 
No dia seguinte querem saber 
De recontinuar o dia que passou 
Mas não tem ninguém que pense 
E trabalhe pela inteligência 
 
 
Não trabalho com a inteligência 
Nem com o pensamento 
Mas também não uso a ignorância [...] 
(PATROCÍNIO, 2001, p.53) 
Eu sou Stela do Patrocínio, 
bem patrocinada 
estou sentada numa cadeira 
pegada numa mesa nega preta e crioula 
Eu sou uma nega preta e crioula 
Que a Ana me disse [...] 
(PATROCÍNIO, 2001, p.58) 
 
 
Essa é a concepção do “Eu” de Stela, onde ela se apresenta situada como 
alguém que não faz uso do pensamento, mas que ao mesmo tempo não ignora o que 
está acontecendo. Esta constatação é confirmada no caráter singular de sua obra, 
quando se mostra crítica quanto à situação em que se encontra: presa, isolada, 
mulher, negra, pobre e em luta contra a alienação institucional. 
No asilo, participava das atividades propostas e não perdia a lucidez, mesmo 
cuspindo os medicamentos prescritos. Somente era medicada quando ameaçava
se 
jogar pela janela. Contava com 45 anos de vida quando conheceu os profissionais do 
ateliê. Lá as pessoas começaram a chamá-la de poeta e filósofa, ao que Stela 
respondia: “quem me dera”. 
Por uma hiperglicemia grave, amputou uma perna, fato que a entristeceu. Stela 
morreu em decorrência de infecção generalizada pelo fato da ferida não ter 
cicatrizado. 
Assim, tem-se que Stela era, além de mulher, negra e excluída, uma pessoa 
que se diferenciava dos reclusos manicomiais. Por sua forma própria de se colocar, 
Mosé registra: 
Parecia uma rainha, não se portando como as outras, que se 
aglomeravam, pedindo sempre. Diferenciava, em um silêncio agudo, 
sua forma própria de se colocar no espaço. Impossível era não vê-la: 
negra, alta, com muita dignidade no porte, algumas vezes enrolada 
em um cobertor com o rosto e os braços pintados de branco 
(PATROCÍNIO, 2001, p. 13). 
 
 
23 
 
Mesmo excluída de várias formas, inclusive do ambiente escolar, Stela 
consegue uma postura crítica que amiúde não se vê nem mesmo dentre alunos 
universitários. Faz-se poeta e a poesia a faz. A todo momento se constitui pela sua 
poesia: 
 
 
Olha quantos estão comigo 
Estão sozinhos 
Estão fingindo que estão sozinhos 
Pra poder estar comigo 
Eu sou Stela do Patrocínio 
Bem patrocinada 
Estou sentada numa cadeira 
Pegada numa mesa nega preta e crioula 
Eu sou uma nega preta e crioula 
Que a Ana me disse 
(PATROCÍNIO, 2001, p.57) 
 
Mosé depreende com respeito a poesia de Stela que 
sua palavra é capaz de se manter sem se sustentar, necessariamente, nos 
limites gramaticais e lógicos, ou seja, não é exatamente esse tipo de 
ordenação que sua linguagem ou seu psiquismo buscava. Ousaria dizer que 
Stela se sustentava em uma ordenação delirante, uma ordenação móvel, 
fundada na afirmação de sua própria fragmentação. A palavra lhe parecia 
muito íntima, muito próxima, não a palavra da comunicação, do “rebanho”, 
como diria Nietzsche, mas uma palavra deslocada da interioridade e da 
subjetividade cotidianas (PATROCÍNIO; MOSÉ, 2001, p.19). 
 
De acordo com o que apresentamos até este ponto, a expressão de Stela do 
Patrocínio desponta como algo que diverge das ideias estabelecidas ao mesmo tempo 
em que dialoga sensivelmente com tais ideias. Sua expressão criativa permitiu sua 
organização subjetiva e social na medida em que era reconhecida por sua 
excentricidade. Feito aqui o panorama histórico e existencial de Stela, no próximo 
capítulo traremos algumas considerações teóricas sobre arte e inconsciente; que nos 
serão por fundamento às análises da obra de Stela do Patrocínio. 
 
 
 
 
24 
 
3. COSTURANDO ARTE E INCONSCIENTE 
Aqui temos o aporte teórico que permitirá o entrelaçamento das ideias de 
inconsciente e arte. As ideias sobre o inconsciente em Freud, arte e as relações entre 
arte e psicanálise serão apresentadas nessa ordem. 
 
3.1 DEFINIÇÕES DE INCONSCIENTE 
O conceito de inconsciente surgiu bem antes de Freud publicar sobre ele, como 
deixa claro Xavier (2010). O inconsciente é a real conexão com a natureza, por ser 
alicerce do ser, arraigado ao que é invisível e o quanto ele se encontra conectado as 
formas de estado psíquico, onde quando este estado se encontra alterado, por 
exemplo um estado de sonolência, é possível acessar fenômenos do inconsciente 
(ELLENBERG, 1970 apud XAVIER, 2010). 
Ainda, na ideia do conceito de consciente precedente ao escrito por Freud, 
aparece outra definição que liga intimamente a natureza ao inconsciente: “o 
inconsciente é a expressão subjetiva que designa o que objetivamente conhecemos 
sob o nome de natureza” (CARUS, 1846, p. 9 apud FILLOUX, 1988). Filloux (1988) 
ainda fala da divisão que Carus fazia entre dois tipos de inconsciente, um absoluto 
onde não há nenhum sinal da consciência e um inconsciente relativo, onde seus 
conteúdos já foram temporariamente conscientes, mas voltaram a ser inconsciente. 
Vergeiro (2008) entende que, na visão de Jung, o inconsciente origina a 
realidade psíquica do indivíduo e é que, a partir de seu desenvolvimento, essa 
realidade se torna consciente e essencial para a diferenciação entre homens e 
animais. O autor ainda fala de como esse inconsciente participa da coletividade dos 
indivíduos tanto quando participa de suas particularidades. 
Fiori demonstra, através de um de seus relatos, que o inconsciente pôde ser 
acessado em uma sessão de hipnose, provando também assim que o inconsciente 
comandava ações da pessoa hipnotizada, apesar de que o sujeito não percebesse 
tais comandos (FIORI, 1981), a saber, a existência de comandos que contrariavam 
princípios do hipnotizado, levando o sujeito a acordar da hipnose e a desenvolver 
resistência à sessão de hipnose. Desta sorte, podemos dizer que “fica estabelecida 
a existência de uma vida psíquica inconsciente, paralela à consciência, e que pode 
ser dominante sobre esta” (FIORI, 1981, p. 17). Tal existência ainda remete aos 
 
 
25 
 
traumas que os sujeitos adquirem ao longo da vida, que são recalcados, indo 
automaticamente para o inconsciente, e por não serem elaborados, se tornam os 
sintomas mencionados por Laplanche e Pontalis (2001). 
Por fim, vê-se que o inconsciente, por abrigar traumas recalcados pelo 
sujeito, é um depósito de repressões, como especifica Zimerman (2007, p. 83), assim 
como contém memórias da época de criança do sujeito, trazendo “experiências e 
sensações provindas de todos os órgãos dos sentidos, como o da visão, audição, 
tato, etc”. 
 
3.2 DEFINIÇÕES DE INCONSCIENTE EM FREUD 
 
Pensar a psicanálise é entrelaçar o inconsciente em todos os conceitos 
basilares que perpassam os construtos humanos. Dessa forma, pensar o inconsciente 
como a irrupção de um novo saber que iria subverter o pensamento estruturado sobre 
a psique foi a proposta freudiana. Uma proposta que deixou um novo paradigma 
psicológico. 
Freud (1915/2010) inicia seu capítulo sobre o inconsciente esclarecendo que o 
conteúdo ali presente pode ser acessado apenas quando se tornar consciente. E isso 
se tornará possível se o sujeito puder ultrapassar as resistências que formou acerca 
do conteúdo reprimido, e por consequência, transferido para o inconsciente. Explicita 
a relevância de considerar a presença do inconsciente, visto que há diversas lacunas 
nos sujeitos, sejam eles sadios ou adoecidos, e tais lacunas se apresentam através 
de sonhos, atos falhos e pensamentos espontâneos de origens desconhecidas. 
Freud (1915/2010) sustenta sua ideia de inconsciente dizendo que a 
consciência só é capaz de abranger pouco conteúdo da realidade percebida, e a maior 
parte fica em estágio de latência por algum longo tempo. No texto em questão, destaca 
da parte que o sujeito percebe, mas não consegue conectar aquela percepção com o 
restante de sua vida psíquica, “tem de ser julgado como se pertencesse a uma outra 
pessoa”. Para Freud, essa percepção de algo incoerente em nós, não remete ao 
inconsciente, mas a uma segunda consciência, e a uma terceira e a uma quarta, 
infinitamente. Assim diz de uma consciência inconsciente (FREUD, 1915/2010). 
 
 
26 
 
As explicações freudianas sobre este ponto indicam que de alguma forma 
poderíamos não distinguir consciência de inconsciente. Isso porque existe o 
inconsciente latente, com conteúdos perceptivos “temporariamente latentes, mas, que 
de resto, não se diferenciam em nada dos conscientes” e processos como os 
“reprimidos, que, caso se tornem conscientes, contrastariam de maneira mais crua 
com os restantes de conscientes” (FREUD, 1915/2010, p. 108). 
Freud aponta, ainda, como características do inconsciente a atemporalidade 
(não possui nenhuma relação com o tempo) e, portanto,
as referências ao tempo 
fazem parte do sistema consciente, que leva em consideração a realidade. Por estar 
sujeito ao princípio do prazer o escopo do sistema Inconsciente “só depende da 
intensidade de cumprir ou não as exigências da regulação prazer-desprazer” (FREUD, 
1915/2010, p. 128). O inconsciente é algo vivo e capaz de desenvolver-se, não há 
nada discricionário nos movimentos dinâmicos psíquicos, todos são predestinados. 
Honda (2013) enfatiza que “a dinâmica inconsciente ao mesmo tempo que está 
na base da determinação dos sonhos, sintomas e sofrimentos psíquicos de toda 
ordem, é-nos inteiramente alheia, desconhecida pela consciência, invisível e 
inaudível” (2013), dando a entender que só através da escuta analítica é que podemos 
apreender o que escapa e subverte a fala do sujeito que vemos o inconsciente ali se 
manifestando. 
3.3 INCONSCIENTE E A PULSÃO: UMA BREVE CONSIDERAÇÃO 
Freud (1920-1976) no livro “Além do princípio do prazer” (p.57) apresenta ideia 
“do caráter regressivo das pulsões” no sentido de que “todas as pulsões” querem 
reproduzir algo anterior (p.37) Gutiérrez-Terrazas (2002) entende que essa sugestão 
dá a entender que a pulsão de morte é regida pelo “princípio de nirvana” atingiu o 
ápice da condição existencial, a morte em si, ”O desinvestimento absoluto”, isto é, um 
modelo exclusivamente instintivo, nada pulsional (2002). 
A partir desses elementos, devemos considerar o princípio de constância, que 
efetivamente contrário ao princípio da inércia. O princípio da constância é um devir, 
tem um caráter deontológico, que transcende as necessidades de caráter biológico e 
gera uma via para as descargas dos instintos, ou seja, como diz Gutiérrez-Terrazas 
 
 
27 
 
(2002) há algo impossibilitando de ligar-se e, consequentemente, de descarregar, que 
fixa um modo de descarga que leva a uma compulsão à repetição traumática. 
Mas então essa compulsão não é “o mais originário” ou “o mais elementar”, 
dito de outro modo: a compulsão à repetição não é a origem, não é o ponto 
de partida, mas, sim, uma consequência da presença pulsional no ser 
humano, ou no funcionamento do psiquismo (GUTIÉRREZ-TERRAZAS, 
2002, p.91). 
 
Nesse sentido, cabe colocar aqui também a característica do inquietante, o 
assustador que se liga ao que é conhecido e bastante familiar. No texto de 1919 fica 
clara a característica que o inquietante revela de tendência à repetição e integração 
das pulsões de vida e de morte. Este é um conceito valoroso a nós na medida em que 
as expressões artísticas são poderosas formas de expressar estas pulsões. É possível 
também perceber a dimensão do inconsciente presente na poesia de Stela, onde nos 
brinda com a seguinte expressão: 
Da noite pro dia eu fiquei branca 
Ou se foi do dia pra noite que eu fiquei branca 
Eu fiquei preta 
Eu sei que eu tomei cor 
Nos gases eu me formei 
Eu tomei cor 
(PATROCÍNIO, 2001, p.73) 
 
3.4 SOBRE O OBJETO ARTÍSTICO 
A arte para Fischer é uma forma de equilibrar o mundo e o homem, uma forma 
do homem domar seus sentimentos, visando comunicar-se com aqueles que irão ter 
contato com sua arte, a saber, “a arte é o meio indispensável para essa união do 
indivíduo como o todo; reflete a infinita capacidade humana para a associação, para 
a circulação de experiências e ideias” (FISCHER, 1981, p. 13). Também, pode surgir 
como forma de diminuir diferenças sociais e ela ainda tem o condão de eternizar a 
história do mundo (FISCHER, 1981). Coli (1995) adverte, porém, que existem 
manifestações artísticas que não se registram, nem conseguem se registrar, no 
entanto não deixam de ser artísticas. A fala de Patrocínio é um bom exemplo disso: 
se não tivesse sido gravada não deixaria de ter produzido seus efeitos. 
 
 
28 
 
Desta forma, artes são “certas manifestações da atividade humana diante das 
quais nosso sentimento é admirativo, isto é: nossa cultura possui uma noção que 
denomina solidamente algumas de suas atividades e as privilegia” (COLI, 1995, p. 8). 
O discurso sobre o objeto artístico tem a capacidade de conferir-lhe tal estatuto, 
competência e autoridade. Assim também a cultura produz locais específicos para que 
a arte seja arte; o aparato cultural, portanto, é o que determina o que é ou não arte. 
Além disso, esses instrumentos criam uma hierarquia dos objetos artísticos, mas não 
necessariamente o que é ou não é arte (COLI, 1995, p. 13). O que nos faz lembrar os 
atuais ataques moralizantes às manifestações nos museus. 
Coli (1995) destaca, em suas perscrutações sobre o ser da arte, da 
característica de gratuidade dela, que vai para além do embelezamento. Coloca, 
também, como arte, o deslocamento do objeto; como a colher de pau da avó em um 
museu. O autor defende que, ao se por tal objeto em pedestal, já se evocam 
sentimentos novos com relação à arte ali presente. Essa característica de gratuidade 
confere à arte uma certa fragilidade, porque ela não é necessária, não é útil. 
Ainda, com relação ao aspecto da gratuidade, e já numa perspectiva mais 
psicanalítica, Roland Barthes (1987) coloca o escritor como substituto residual do 
Mendigo, do Monge, do Bonzo: improdutivo e alimentado. Stela (2001) também diz 
em sua fala poética: 
Não dependia de nada 
Não fazia nada 
Era como uma parasita 
Uma paralisia um câncer 
Minha vida é só comer beber e fumar 
Só presto pra beber comer e fumar (p. 94) 
 
3.5 A RELAÇÃO ENTRE ARTE E A PSICANÁLISE 
Em alguns de seus textos Freud fala sobre a arte, em outros sobre o artista e 
em outros momentos discorre sobre o processo criativo, no entanto sempre torna a 
ponderar sobre o quanto a vida do artista influenciou sobre a obra. (AUTUORI; 
RINALDI, 2014). Ele usa a literatura para colocar a relação dele com ele mesmo na 
teoria, bem como usa os sonhos, observações esparsas e acontecimentos familiares 
(TEIXEIRA, 2005). 
Sendo assim, a pergunta de Mezan é pertinente: “A psicanálise tem ou não o 
direito de se pronunciar sobre fenômenos exteriores à situação analítica? ” (1988, p. 
 
 
29 
 
61). A cultura não é algo desconhecido pela psicanálise, já que o sujeito se encontra 
imerso nas tradições e costumes de onde se encontra e a arte faz parte da cultura da 
humanidade em geral, portanto a psicanálise teria a liberdade de analisá-la (MEZAN, 
1988). Isso emerge da obra de Stela que, apesar de marginalizada dos ambientes de 
produção cultural formal, encontra em sua fala peculiar um jeito de dialogar com a 
cultura de seu tempo. 
Ao tecer considerações sobre o que seja arte, Coli (1995) ressalta que o em si 
da obra de arte não é imanência, é uma projeção. Nesse sentido, o fazer psicanalítico 
também se aproxima do fazer artístico visto que o inconsciente do analista é o primeiro 
a ser analisado, seja em uma sessão, seja na produção cultural. Inclusive se configura 
como nuance ética dessa ciência. Soma-se a isso o caráter projetivo do suposto saber 
projetado pelo analisando. 
Em harmonia Mezan (1988) coloca que a análise de obras artísticas seria o 
início da análise do inconsciente do artista, assim como o terapeuta analisa a fala de 
seus pacientes, no entanto tal análise do paciente só poderia ocorrer caso se dê pelo 
encontro do inconsciente do terapeuta com o inconsciente do paciente, sem partir de 
uma visão mecanizada das teorias psicanalíticas. 
No texto “O Tema da Escolha dos Cofrinhos”, Freud (1913/2010) direciona sua 
escrita para a peça “O Mercador de Veneza”, de William Shakespeare. Inicialmente 
ele fala sobre a cena onde os candidatos a casar com uma das personagens tem que 
escolher entre três cofrinhos, um de ouro, o outro de prata e o último de chumbo. O 
pretendente que achasse a foto da personagem dentro do cofrinho
poderia se casar 
com a moça. 
 Tal cena leva Freud (1913/2010) a associá-lo a textos romanos antigos, de 
onde teria surgido essa ideia da escolha entre três opções. Mais à frente, o autor 
compara tal cena com outra de Shakespeare, onde o rei Lear decide com quais filhas 
ficará seu reino; assim como compara a escolha do personagem do príncipe em “A 
Gata Borralheira”, bem como mais uma escolha da fábula do Apuleio. 
 As escolhas mencionadas acima sempre levam a um terceiro personagem das 
histórias que Freud (1913/2010), pelas características e semelhanças entre as 
histórias e mitos, se vinculam a uma representação da morte. A nossa ideia é de que, 
enquanto vivos e conscientes, não faríamos a escolha pela morte, no entanto, em uma 
 
 
30 
 
peça como a de William Shakespeare, escolher a morte seria o inconsciente nos 
apontando para o contrário do que o consciente indicaria. Compreende-se que, no 
lúdico, a morte pode ser escolhida pois ela não se tornará real. 
 Em “O Moisés de Michelangelo”, Freud (1914/2012) analisa a escultura de 
Michelangelo a partir de sua visão de leigo comparando-a com a visão de outros 
autores mais experientes, onde ele questiona-se: “estaria Moisés irado? Levantar-se-
ia? ” O autor observa os detalhes da escultura, podendo chegar a hipóteses de qual 
situação Michelangelo estaria retratando, mas pouco fala sobre o inconsciente do 
artista. A arte, assim como a psicanálise, vale-se de técnicas para obtenção de efeitos, 
e este fato deve nos chamar a atenção. 
Conhecer perspectiva, anatomia, a forma de pôr a tinta no quadro, o preparo 
da tinta, as nuances de tons das cores e sons, tudo isso são os meios para o fazer 
artístico. Mas, importa lembrar, que o domínio de uma técnica não determina a 
existência de um artista, sendo esta a percepção do ponto de vista do crítico. E, em 
se tratando de psicanálise, partindo deste elemento perceptivo, é possível se fazer um 
paralelo ao inconsciente de quem escuta. 
 Em “Uma Recordação de Infância de Leonardo Da Vinci” (FREUD, 1910/2013), 
onde são analisadas as obras de Leonardo Da Vinci a partir da vida do artista, são 
explicitadas razões para as quais pode-se crer que Leonardo era homossexual e que 
ele reprimia seus desejos sexuais em suas artes e invenções, sendo tais ações 
definidas como sublimação por Freud. 
Freud (1910/2013) menciona o fato de Da Vinci demorar a concluir suas 
pinturas, isso quando as concluía, e que tal demora poderia ser devida ao fato do 
artista buscar uma perfeição que não encontra em si e nem em seus trabalhos. E, por 
último, ainda fala do famoso quadro Mona Lisa, onde o sorriso enigmático se torna 
marca registrada dos quadros de Da Vinci, o que, pela análise Freud, seria o sorriso 
característico da mãe do artista que termina por ser representado inúmeras vezes nos 
quadros de Da Vinci. 
Para melhor elucidar as relações entre arte e psicanálise, voltemos um pouco 
ao começo dessas conexões. Segundo DeVita temos que: 
 
 
31 
 
 
desde seus primórdios a psicanálise tem sido integrada em diversas teorias 
e interpretações artísticas, [...] representando uma forma moderna de olhar-
se ao comportamento humano num momento em que vários movimentos 
celebravam a modernidade (2010, p. 2). 
 
Sendo assim, é com o advento da psicanálise, no final do século XIX e início 
do século XX, que se inicia, de forma sistemática e formal, um interesse mais evidente 
pela dimensão psicológica das produções artísticas. Isso ocorre junto com o início das 
vanguardas artísticas europeias. Em especial, o dadaísmo e o surrealismo celebraram 
as incursões freudianas ao inconsciente, e seus precursores – Andrè Breton, Salvador 
Dalí, Tristan Tzara, entre outros – dedicaram, em suas teorizações e críticas, bastante 
discussão sobre o trabalho de Freud: 
 
Principalmente a partir da Primeira Guerra Mundial, contudo, movimentos de 
vanguarda literária e artística farão referência explícita à psicanálise. Em 
nome de um novo cânone estético, que se afirma por uma negação virulenta 
de todos os parâmetros vigentes e pela busca de uma expressão 
revolucionária que irromperia do inconsciente, alguns artistas se aproximarão 
das ideias de Freud (RIVERA, 2005, p. 8). 
 
Freud, por sua vez, era avesso à ideia de que a arte moderna poderia ser 
considerada arte, como descreve Rivera (2005), mesmo tendo sido de alguma forma 
interlocutor daqueles precursores, recebendo-os para conversas e até trocando 
correspondência científica em algumas ocasiões. O autor ainda fala que mesmo Freud 
sendo um ícone para os líderes das vanguardas, o teórico deixa explícito que 
produtores de arte moderna sequer teriam direito de serem considerados artistas, no 
caso dos expressionistas. 
Ao fazer a análise do Moisés de Michelangelo, Freud (1914/2012) se declara 
leigo em artes (p. 374), ao mesmo tempo em que revela um interesse pelos efeitos 
produzidos pelas construções artísticas e pela análise das mesmas. Parte-se do 
princípio aqui de que tais efeitos são expressões do inconsciente. 
Diante disso, temos algumas considerações sobre o inconsciente em Freud. 
Segundo o Vocabulário de Psicanálise de LaPlanche e Pontalis: 
 
O inconsciente freudiano é, em primeiro lugar, indissoluvelmente uma noção 
tópica e dinâmica, que brotou da experiência do tratamento. Este mostrou 
que o psiquismo não é redutível ao consciente e certos “conteúdos” só se 
 
 
32 
 
tornam acessíveis à consciência depois de superadas certas resistências 
(2001, p. 236). 
 
Seria assim, o inconsciente um lugar desconhecido pela consciência. Tal lugar 
concebido como um sistema portador de mecanismos específicos, conteúdos próprios 
e, quiçá energia própria. Em “O Inconsciente”, Freud (1915/2010) denomina esses 
conteúdos do inconsciente de “representantes da pulsão”, sendo assim, na concepção 
freudiana tais conteúdo são acessíveis apenas pelos seus derivados: sonhos, 
sintomas, atos falhos, chistes, lapsos e outros. 
Retomando a análise de Freud à infância de Leonardo da Vinci (1910), ele 
observa nas produções artísticas davincianas as sublimações sexuais infantis 
representadas; nessa correlação de inconsciente e arte, destaca: 
 
Bondosamente, a natureza deu ao artista a habilidade de exprimir seus 
impulsos anímicos mais secretos, dele mesmo ocultos, em criações que 
afetam poderosamente outros indivíduos que não o conhecem, sem que eles 
próprios saibam dizer de onde vem tal emoção (p. 177). 
 
Esse trecho justifica a relação percebida por Freud entre arte e inconsciente. 
Ele evidencia a arte como uma das formas de expressão e contemplação do 
inconsciente, isto é, se o artista consegue expressar o seu inconsciente, o observador 
também o percebe. Baseados nessa premissa, podemos fundamentar nossa 
investigação sobre o inconsciente expresso nos poemas de Stela. 
Freud declara: “No meu modo de ver, aquilo que nos emociona fortemente 
pode ser apenas a intuição do artista, na medida em que conseguiu expressá-la na 
obra e torná-la apreensível para nós” (FREUD,1914/2012, p. 375). No texto é 
salientada a dificuldade da expressão do que é dito pelas grandes obras e da análise 
como um instrumento possível para lidar com tais expressões, acreditando que o 
sentido e conteúdo da obra artística se revela pelas interpretações, sendo assim 
possível chegar ao significado do afeto provocado pela obra. 
Ao descrever “o inquietante” postula um domínio que se relaciona com o 
terrível, àquilo que “desperta angústia e horror” (FREUD, 1919, p. 329). Nessa 
descrição é posto que “é raro o psicanalista sentir-se inclinado a investigações 
estéticas, mesmo quando a estética não é limitada à teoria do belo, mas definida como 
teoria das
qualidades de nosso sentir” (FREUD, 1919, p. 329). O teórico convoca à 
 
 
33 
 
integração entre ética e estética, isso se desenvolve nos estudos de psicanálise e arte 
de forma muito íntima. 
Em “O escritor e a fantasia” (FREUD, 1908/2015, p. 326) é feito o paralelo da 
criatividade com o fantasiar, e deste com o brincar da criança se tornando possível 
pensar que o brincar não se opõe à seriedade, visto que, para a criança, o brincar é 
algo sério. Apresenta algo de muita importância para as reflexões aqui pretendidas: 
“o oposto da brincadeira não é a seriedade, mas sim - a realidade” (p.327). Da mesma 
forma, o escritor está, ao escrever, em um estado particular de consciência. Assim, o 
devaneio é uma espécie de fundamento subjetivo das fantasias. Ideia essa de grande 
alcance para a compreensão dos sentidos da hipótese freudiana acerca da existência 
de processos psíquicos inconscientes. 
Ainda, sobre essa relação, é possível salientar que Freud delimita a psicanálise 
a uma perspectiva que não se confunde com o “anexo de uma mitologia” (TEIXEIRA, 
2005, p. 117). Ele usa o material mitológico produzido pela cultura apenas como 
sugestão para o inconsciente dos psicanalistas. 
 
3.5.1 A dimensão artística do inconsciente 
 
Da abertura que a psicanálise apresenta, tão própria e ao mesmo tempo 
necessária para sua renovação constante, entende-se importante o entrecruzamento 
entre arte e psicanálise por ser uma técnica e uma ética de se investigar o inconsciente 
dos pacientes. Essa costura parece significativa porque aproxima o modo de produção 
de conhecimento artístico do científico, possibilitando enfatizar a ética própria da 
clínica psicanalítica, na qual se elabora e se perlabora com o material próprio do 
encontro, mais do que significativo: simbólico. 
Amiúde o pensamento científico tem sido utilizado para produzir técnicas úteis 
e precisas com serventia aos mais variados sistemas de relações humanas. Mas, 
quando se trata em observar o universo pessoal, esses sistemas podem não dar conta 
de trazer a satisfação prometida pelo pensamento científico cartesiano. À vista disso, 
mergulhar nas escuras águas do não-saber e produzir artifícios, artefatos, artesanatos 
é a contribuição da práxis artística na clínica. 
Conforme o trabalho de João Frayze-Pereira (2005), a psicanálise não chega 
às artes sabendo o que são suas obras, ela se abre aos trabalhos artísticos visando 
 
 
34 
 
alcançar a si própria. Sendo assim, cada vez ela se desnuda para mais perguntas, 
mais mistérios. Partimos da premissa de que a própria psiquê é uma obra de arte, e, 
por conseguinte, acreditamos na possibilidade da análise do material produzido pela 
fala de Patrocínio, a saber, revelar a arte de sua alma. 
O próprio Freud (1908/2015) percebeu que o ethos artístico permite a produção 
de uma ciência do inconsciente. Diante dos limites estabelecidos pela razão, 
repetidamente buscou na arte recursos para talhar sua teoria (IANNINI, 2015). A 
Literatura lhe possibilitou visualizar a dinâmica do Complexo de Édipo, por exemplo. 
 Com isso, foi possível à psicanálise elaborar suas pretensões de cientificidade 
com outro ânimo, desvinculado dos ideais utilitaristas. De sorte que, na medida em 
que o inconsciente é desvelado em sua dimensão artística, a psicanálise estabelece 
uma relação profundamente crítica com as ciências. 
Outro argumento presente na obra freudiana sobre essa estreita relação entre 
inconsciente e arte é o de que “algumas das criações artísticas grandiosas e 
arrebatadoras, permanecem refratárias à nossa compreensão” (FREUD, 1914/2012, 
p. 374), ou seja, coloca o inconsciente como elemento provocador do efeito causado 
pela obra de arte, algo que vai além do percebido pela consciência. Ao se debruçar 
sobre a fala de Patrocínio, cheia de alma, onde vira poesia, é possível perceber tal 
efeito provocador do inconsciente. 
Ao se percorrer a obra freudiana, observando nuances da relação inconsciente 
e arte, também é possível se deparar com a ideia presente na análise do caso 
Schreber em 1911, onde é discutida a metáfora delirante de ser mulher de Deus como 
função organizadora. Freud (2010) coloca esta questão como uma invenção 
espontânea para dar conta do conflito, onde não havia ordem simbólica alguma. A 
partir da produção delirante, por conseguinte, um novo sentido pode ser vivido. Esses 
elementos teóricos nos apresentam novamente um inconsciente produzindo 
invenções. 
Nesse sentido, Souza e Tesler (2001) defendem que a vida tem que ser 
inventada. Nessa lida do inventor, a própria experiência traz as faltas, os acidentes, 
desequilíbrios e vazios, de maneira que a solução, segundo esses autores, é 
reinventar sempre. A clínica psicanalítica bem como o fazer artístico representam 
terrenos para que tal invenção ocorra. 
 
 
35 
 
Ainda, com relação à ideia de invenção, Kon (1996, p. 53) alega que a fantasia 
científica instaurada por Freud, permite um novo lugar para novas verdades gerando 
possibilidades para outros entendimentos do homem. Ela explica melhor no seguinte 
trecho: 
A obra de Freud, sua força de literatura, nesse sentido, ampliaria a noção de 
verdade, ao mesclar, ou mesmo imiscuir, ficção e teoria, ao criar conceitos, 
tais como pulsão e realidade psíquica. Sua busca da verdade implicaria, 
justamente, a transmutação desse conceito e de seu próprio objetivo ao 
introduzir a criação, pela inauguração de uma nova inteligibilidade do homem, 
no lugar de um desvendamento da verdade pronta e dada desde sempre 
(idem). 
 
O texto latente escondido no trabalho artístico é o perseguido por Freud, ora 
ele o faz como desvelamento da gramática do desejo, ora como espaço de 
organização de uma gramática do desejo (SAFATLE, 2006, p. 195). Safatle nos coloca 
a dupla função do trabalho artístico, enquanto aprimora e sublinha a importância da 
relação psicanálise e arte; propõe duas searas dos conceitos metapsicológicos: a 
clínica e a análise das produções culturais e teoria social. Ambos se configuram como 
campos de legitimação do saber analítico. Percebemos, ainda, que a partir da 
contribuição teórica de Lacan, a ligação da arte com a intervenção psicanalítica segue 
para além de legitimação das contribuições metapsicológicas se configurando como 
campo indutor de modo de subjetivação na clínica (SAFATLE, 2006, p. 196). 
Ademais é possível encontrar produções intelectuais demonstrando o fazer 
clínico ligado à arte na medida em que permite que o mundo interno possa ser 
compartilhado. No dizer de Rossi (2009, p. 27) consideramos que: 
A arte da psicanálise consiste nessa capacidade de compartilhar espaços 
mentais secretos e proibidos, de maneiras aceitáveis pela civilização, com a 
perspectiva de ampliar as potencialidades dos participantes, produzindo 
novos sentidos e tornando suas vidas mais criativas e significativas. É assim 
que ela participa da construção da mais importante e específica das 
características do humano: a subjetividade. 
 
 
 Duarte (1998) traz, com base em Adorno, uma crítica à economia do desejo 
freudiana, enfatizando o valor da expressão na obra de arte. Isso mitiga a ideia de 
uma psicanálise adaptativa, na contramão do exposto acima por Safatle e também 
por Rossi, o que pode ser muito válido para o trabalho. 
 
 
36 
 
Como primeiro argumento, Duarte (1998) enfatiza que a arte nem sempre é 
bem aceita em sua época, portanto uma atitude que foge à ideia de sublimação na 
medida em que a sublimação deveria servir para adaptação do sujeito à realidade, e, 
no argumento seguinte, defende que a obra de arte é antagonista das produções 
culturais (p.333), o que nos instiga a desenvolver estes pressupostos em nossa
investigação sobre a fala de Stela. 
Demonstramos, mesmo que suscintamente, os fundamentos da relação entre 
arte e inconsciente que servirão de subsídio para o exercício de pensar como o que 
Stela do Patrocínio chamava de falatório adquire status artístico. 
 
 
4. ANÁLISE DA OBRA NA PERSPECTIVA DO MODELO DE ANÁLISE DO 
DISCURSO SEGUNDO ORLANDI (2009) 
Demonstrada a relação entre arte e inconsciente retomaremos agora a obra 
que será analisada para considerar as três categorias de análise do discurso: 
Ocorrência da palavra "Eu"; características do inconsciente em Freud; e a crítica da 
condição asilar feita por Stela. 
Todo esse livro possui um enlace narrativo que se esconde por trás da poesia 
e, demonstra o caráter de sutileza e insinuação próprio do que é literário (Barthes, 
1987). Porém, para os fins do presente trabalho, optamos por analisar as duas 
primeiras das oito poesias da obra (PATROCÍNIO, 2001), cujos títulos são “Um 
homem chamado cavalo é o meu nome” e “Eu sou Stela do Patrocínio, muito bem 
patrocinada” (PATROCÍNIO, 2001). 
 
4.1 Categoria 1 - Ocorrência da palavra “Eu” 
 
Pela ocorrência da palavra “Eu” no texto analisado é possível trazer as 
reflexões de Freud (1923/2011) sobre o eu e o inconsciente, onde ele afirma que a 
ideia de eu é quem tem a consciência e a diferença entre consciência e inconsciente 
não é tão demarcada quanto se pensava até a época. Coloca a consciência como 
responsável pelas sensações, sentimentos e pensamentos, não os isolando do 
inconsciente. 
 
Diante disso é possível destacar do texto: 
 
 
37 
 
 
“Eu estou num asilo de velhos/num hospital de tudo que é doença” (2001, p. 39). Eu 
estava com saúde/ adoeci/ eu não ia adoecer sozinha não/ mas eu estava com saúde/ 
me adoeceram (2001, p. 43). Eu vim do pronto socorro do Rio de Janeiro (2001, p. 
45). O remédio que eu tomo me faz passar mal /Eu ando um pouquinho cambaleio, 
fico cambaleando, quase levo um tombo (2001, p. 46). Eu não posso sair, não deixam 
eu passar pelo portão/ Eu estou aqui há vinte e cinco anos ou mais (2001, p.47). Eu 
sou seguida acompanhada imitada assemelhada (2001, p.55). Eu sou Stela do 
Patrocínio/ bem patrocinada/ Eu sou uma nega preta e crioula/ Que a Ana me disse 
(2001, p. 58). Eu já fui operada várias vezes/ fiz várias operações/Eu pensei que ia 
acusar/ se eu tenho alguma coisa no cérebro/Eu já estou nesse ponto de estudo, de 
categoria (2001, p. 61). Eu era viajante/ viajei no rio de Janeiro São Paulo Petrópolis 
Belo Horizonte Minas Gerais Engenho de Dentro Sacra família Itanhandu/ Eu não 
esperava vir parar aqui no Teixeira brandão/ Porque eu tive dentro do trem elétrico 
(2001, p. 62). Eu estava em lugares grandes iguais a este/ a serviço a trabalho e a 
estudo/ Eu bacharelei no estudo/ Estou aposentada de casa de família (2001, p. 63). 
Eu sei que o meu passado/Eu pensei bem atenção como foi/ o presente/ Eu continuo 
prestando atenção/ Mas o futuro/ Eu não sei como vai ser/ É difícil descobrir” (2001, 
p. 66). 
 
Freud construiu a ideia de que “a importância funcional do Eu se expressa no 
fato de que normalmente lhe é dado o controle dos acessos à motilidade” (FREUD, 
1923/2011, p.31). O psicanalista relaciona o Eu à consciência, que se dá a partir do 
recalque, ou seja, intimamente ligada ao inconsciente. Também fala que o Ego é 
incumbido de importantes tarefas. O Ego é aquele que faz o que tem que ser feito, é 
o que trabalha, é o que é útil, é o que se relaciona com os valores sociais (FREUD, 
1923/2011). Assim é possível verificar que Stela constitui seu Eu através de seus 
versos: “Eu estava em lugares grandes iguais a este/ a serviço a trabalho e a estudo/ 
Eu bacharelei no estudo/ Estou aposentada de casa de família” (2001, p. 63) 
É possível destacar Stela se posicionando, nos seguintes trechos: “Ainda era 
Rio de Janeiro, Botafogo/Eu me confundi comendo pão/ Eu perdi o óculos” 
(PATROCÍNIO, 2001, p.42); “Dias semana meses o ano inteiro/Minuto segundo toda 
hora/Dia tarde a noite inteira/Querem me matar” (PATROCÍNIO, 2001, p.56); “O futuro 
 
 
38 
 
eu queria/ Ser feliz/ E encontrar a felicidade sempre/ E não perder nunca o gosto de 
estar gostando” (PATROCÍNIO, 2001, p.65). Esses são trechos nos quais Stela se 
situa no tempo e espaço, colocando suas percepções para o ouvinte ou leitor dela. As 
situações referem-se às condições imediatas passadas e futuras de uma determinada 
experiência (FIGUEIREDO, 2008). 
Os sujeitos linguístico e psicanalítico se entrelaçam, o sujeito está aí e sendo 
dito, utilizando e sendo utilizado pela palavra. “O sujeito da psicanálise, o inconsciente, 
é aquele que advém sem estar preparado para um determinado fim, não planeja uma 
linguagem bonita, tampouco com intenções sedutoras; ele não purifica sua linguagem; 
pelo contrário, seu material está em completa desordem” (COSTA, 2006, p. 15). 
Quando objetivamos o Eu, o categorizamos dentro do sintagma construtivo da 
linguagem, onde este se relaciona com as interlocuções projetivas no mundo 
buscando uma fala de si sobre si. 
 
4.2 Categoria 2 - Características do Inconsciente em Freud 
 
Do potente caldo do desejo é possível retirar também a complexidade do 
inconsciente, bem como percebê-lo como um emaranhado do qual não se sabe 
começo ou fim, onde polaridades são unidas, integradas, dissolvidas umas nas outras. 
Até a prepotente e arrogante consciência se perde ao encontrar o profundo e sombrio 
inconsciente. 
 
a. Ocorrência de chistes ou Ironias 
 
Em muitos momentos de sua poesia, Stela fala coisas que podem ser 
entendidas como jocosas, mas, também, como ironias. Interessa destacar que, 
enquanto o chiste, sendo o material do inconsciente, traz o humor, a graça; a ironia, 
como figura de linguagem, serve para falar coisas duras de uma forma sutíl. A figura 
de linguagem pode ser entendida como uma ferramenta da arte literária enquanto o 
chiste como percepção do inconsciente em Freud. 
Esses momentos nos quais podemos perceber o chiste e a ironia se revelam 
nos seguintes trechos: 
 
 
39 
 
Trecho 1 - Estou num hospício, lugar de maluco louco doido (2001, p. 39). Um homem 
chamado cavalo é o meu nome/ O bom pastor dá a vida pelas suas ovelhas (2001, p. 
42). Aqui Patrocínio se situa no espaço do hospício trazendo também a característica 
da repetição que provoca o chiste. Se o nome dela é “um homem chamado cavalo” e 
“o bom pastor dá a vida por suas ovelhas”, aparentemente nada diz sobre cuidar de 
cavalos. 
Trecho2 - Eu estava com saúde/ Adoeci/ Eu não ia adoecer sozinha não/ Mas eu 
estava com saúde/ me adoeceram/ O hospital parece uma casa/ O hospital é um 
hospital (2001, p. 43). O trecho aponta para o lado relacional da loucura que será 
tratado adiante ao falar de que não iria adoecer só, comunicando isso com humor. 
Outro ponto que aparece é que o hospital deve assemelhar-se à uma casa; entretanto, 
é um hospital, evidenciando a consciência de que Stela sabe sobre sua situação 
social: insitucionalizada. 
Trecho 3 - Eu vim do pronto Socorro do Rio de Janeiro/ Onde a alimentação era 
eletrochoque, injeção e remédio (2001, p. 45). O uso de metáforas nesse excerto 
salienta a prevalência da figura de ironia como elemento recursivo textual. 
Trecho 4 - O remédio que eu tomo me faz passar mal/ e eu não gosto de tomar 
remédio para ficar passando mal (2001, p. 46). Não trabalho com a inteligência/ Nem 
com o pensamento/ Mas também não uso a ignorância (2001, p. 54). Aqui poderíamos 
pensar que a equipe cuidadora, os médicos, enfermeiros seriam paradoxalmente os 
inteligentes que usam o pensamento, e ao mesmo tempo ignorantes da identidade 
subjetiva da humana Stela. 
Trecho

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