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1 Ética, Cultura e Arte 2º semestre / 2018 2 PRÓ-REITORIA DE ENSINO COLETÂNEA FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA Ensino Presencial (2º semestre) EAD (MÓDULO 53) Organizadoras Cristina Herold Constantino Débora Azevedo Malentachi Colaboradores Edson Dias dos Santos Fabiana Sesmilo de Camargo Caetano Letícia Matheucci Zambrana Rebeca Sabrina Vaz Lencina Direção Geral Pró-Reitor Valdecir Antônio Simão 3 Sumário Apresentação........................................................................................................................................................ 04 Considerações Iniciais.......................................................................................................................................... 05 Leitura: etapas, níveis e estratégias.................................................................................................................... 06 Textos Selecionados............................................................................................................................................. 12 O eclipse da ética na atualidade.............................................................................................................................. 12 O que se entende por cultura: uma reflexão............................................................................................................ 14 Cultura e Humanização............................................................................................................................................ 15 Ética e jeitinho brasileiro.......................................................................................................................................... 18 Vídeo: Ética no mundo contemporâneo................................................................................................................... 19 O iceberg cultural..................................................................................................................................................... 19 Redes sociais em pé de guerra contra a apropriação cultural................................................................................. 21 Cultura para todos?.................................................................................................................................................. 23 Inclusão e acessibilidade na cultura........................................................................................................................ 24 Dia Mundial da Diversidade Cultural para o Diálogo e o Desenvolvimento............................................................. 26 Contracultura: o que é, como se faz........................................................................................................................ 27 Qual o papel da literatura no mundo de hoje?......................................................................................................... 35 A arte como fonte de conhecimento e da expressão humana................................................................................. 37 “A arte pode convidar à reflexão sobre a desigualdade”......................................................................................... 38 Quando a tatuagem se torna arte?.......................................................................................................................... 41 Pichação: protesto, arte ou vandalismo?................................................................................................................. 43 Arte e reciclagem para diminuir lixo nos oceanos................................................................................................... 45 Arte no lixo............................................................................................................................................................... 46 Vídeo: Pimp My Carroça.......................................................................................................................................... 48 A arte e a beleza do Wabi Sabi............................................................................................................................... 48 O complexo do ser humano: ser humano................................................................................................................ 51 Filme........................................................................................................................................................................ 54 Músicas e Poesias................................................................................................................................................... 55 Charges................................................................................................................................................................... 59 Considerações Finais............................................................................................................................................ 61 4 Apresentação A Formação Sociocultural e Ética (FSCE) compõe um dos Projetos de Ação da UniCesumar, cujo principal objetivo é aperfeiçoar habilidades e estratégias de leitura fundamentais para seu desempenho pessoal, acadêmico e profissional. Nesse sentido, esta disciplina corresponde à missão institucional, a qual consiste em “Promover a educação de qualidade nas diferentes áreas do conhecimento, formando profissionais cidadãos que contribuam para o desenvolvimento de uma sociedade justa e solidária”. Conforme slogan da FSCE, “Quem sabe mais faz a diferença!”, o conhecimento adquirido por meio da leitura é a mola propulsora capaz de formar e transformar sujeitos passivos em cidadãos ativos, preparados para fazer a diferença na sociedade como um todo. Na FSCE, você terá contato com vários assuntos e fatos que ocorrem na sociedade atual e que devem fazer parte do repertório de conhecimentos de todos os que buscam compreender criticamente seu entorno social, nacional e internacional. Em síntese, no intuito de atender ao objetivo desta disciplina, a FSCE está dividida em cinco grandes eixos temáticos: Ética e Sociedade; Ética, Política e Economia; Ética, Cultura e Arte; Ética, Ciência e Tecnologia; Ética e Meio Ambiente, sendo que nos dois primeiros eixos estão incluídos temas complementares e pertinentes propostos pelo Observatório Social do Brasil. Este material, também chamado de Coletânea, é o principal instrumento de estudo da FSCE. Recebe o nome de Coletânea porque reúne vários gêneros textuais criteriosamente selecionados para estimular sua reflexão e análise pontuais. Textos retirados de diferentes fontes, com a finalidade de abordar recortes temáticos relacionados ao conteúdo de cada eixo supracitado. Tem como principal objetivo ser um material de apoio à sua formação geral, servindo-lhe de estímulo à leitura, interpretação e produção textual. Uma Coletânea como esta é organizada a cada duas semanas, ou seja, a realização completa desta disciplina ocorre no período de 10 semanas. Cada Coletânea apresenta-se, inicialmente, com uma introdução, seguida por aspectos relacionados à leitura, interpretação e/ou escrita, os quais antecedem a apresentação dos diversos textos referentes aos respectivos eixos. A sequência de textos normalmente é finalizada com os gêneros: música, poesia ou frases e charges, sendo finalmente concluída com breves considerações finais. Você tem em suas mãos, portanto, uma compilação por meio da qual terá acesso a um conteúdo seleto de textos basilares para sua reflexão,aprendizagem e construção de conhecimentos valiosos. Textos compostos por fatos, notícias, ideias, argumentos, aspectos veiculados nos principais meios de comunicação do país, links de acesso a entrevistas, depoimentos, vídeos relacionados ao eixo temático, além de respaldos teóricos e práticos acerca da linguagem que poderão servir como suporte à sua vida em todas as instâncias. Também, importa lembrar que a organização deste e demais materiais da FSCE não pressupõe qualquer tendência político-partidária e/ou apologia a qualquer grupo religioso em detrimento de outros, sendo que estamos disponíveis ao recebimento de indicações de textos, sites, tanto quanto às sugestões de conteúdos relacionados aos referidos eixos. Faça, portanto, da FSCE sua porta de entrada para a aquisição de novos conhecimentos. Vista a camisa do conhecimento e seja MAIS! 5 Considerações Iniciais Escrever ou falar sobre cultura e arte é ir direto ao encontro do conhecimento acerca de nós mesmos. Nossas características, costumes e hábitos, nossas crenças e descrenças, nossas mazelas e riquezas, singularidades e diversidades. Estudar cultura e arte é partir do geral e chegar ao particular. É testemunhar o concreto e sonhar com o abstrato. É olhar o outro e, ao mesmo tempo, enxergar com mais clareza a nós mesmos. É pensar no povo que, coletiva e progressivamente, desenha a cultura nacional e, nesse percurso, arriscamos entender a individualidade que se forma em nós a partir da cultura que tanto influencia nossos gostos, desgostos, nossas escolhas... Nesse sentido, esta Coletânea pretende ser um convite à informação e à reflexão acerca da arte e da cultura, sob o viés da ética, numa jornada cujos passos nos levem a pensar sobre algumas de nossas características como povo brasileiro e de nossas complexidades como seres humanos. Vamos tratar sobre a diversidade de culturas que enriquecem o contexto brasileiro, acrescentam valores ao universo humano, ampliam conhecimentos e revelam grandes possibilidades de interação. Apresentamos recortes temáticos que vão desde o jeitinho brasileiro, passando pela apropriação cultural, para, enfim, chegarmos na contracultura. Em seguida, visitamos o lixo que vira arte e fazemos uma parada na arte que é jogada no lixo, dentre outros muitos assuntos relevantes para reflexão... No percurso da leitura dos textos aqui apresentados, são várias as possibilidades de questionamentos. Dentre eles, como ser um cidadão brasileiro que assimila a sua cultura, nutre amor e respeito genuíno por ela, faz parte dela, mas, também, reflete e age eticamente sobre essa cultura? Para começo de conversa, aproveite a seção inicial que trata especificamente sobre leitura. Esperamos que você faça uso apropriado de cada dica, de tal forma que suas habilidades de leitura se aperfeiçoem continuamente, a cada novo mergulho crítico que faz nos textos que circulam na academia e na sociedade, transformando e elevando seus potenciais de acadêmico, pessoa e cidadão a níveis elevados! Sucesso! Organizadoras 6 Leitura: etapas, níveis, estratégias Conforme procedimento que adotamos na elaboração das Coletâneas da Formação Sociocultural e Ética, dedicamos esta seção inicial para cultivar um pouco mais desta amizade profunda, confidente e indispensável com a LEITURA. Uma amizade que, tantas vezes, pode até começar por obrigação e, quase sempre, transformar-se em paixão. É inevitável! Quem ama o conhecimento apaixona-se pela leitura! A leitura é a porta de entrada para a interação com o outro, com o mundo e consigo mesmo em sua totalidade. Ler não é unicamente interpretar os símbolos gráficos, mas interpretar o mundo em que vivemos. Na verdade, passamos todo o nosso tempo lendo: lemos as imagens, as pessoas, suas palavras, seus gestos, seus olhares e até mesmo seu silêncio; lemos outdoors, placas e sinais de trânsito; lemos textos informativos e tantos outros gêneros que circulam na sociedade; lemos textos impressos, textos virtuais, textos verbais e não verbais. Lemos tudo, mesmo que inconscientemente. Entretanto, nem tudo o que é lido é compreendido por leitores habituados à leitura superficial. Conforme já explicamos na Coletânea anterior, lembre-se que leitura é processo que requer do leitor “um trabalho ativo de compreensão e interpretação do texto, a partir de seus objetivos, de seu conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de tudo o que sabe sobre a linguagem”. (Parâmetros Curriculares Nacionais; terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa/Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília: MEC/SEF, 1998, pp. 69-70). Em outras palavras, o leitor não pode se colocar na posição de sujeito passivo nas leituras que realiza. Seu nível de leitura e o modo como lê, isto é, as estratégias que aplica nas suas leituras, principalmente as que são exigidas na vida acadêmica, é o segredo para a sua capacidade de compreensão leitora, para a formação do leitor proficiente, maduro, experiente, habilidoso. O segredo para o sucesso! E, o melhor de tudo, é que a leitura é um processo a ser aprendido! Nesse sentido, caro aluno, é muito importante que você mantenha o foco. Continue se autoavaliando enquanto leitor no percurso das suas leituras. Agora, propomos a você que conheça as etapas de leitura. Em seguida, considere seus níveis. De modo geral, a leitura consiste em quatro etapas: 1. DECODIFICAÇÃO: é o reconhecimento das letras, suas ligações com outras e com os seus significados. Decodificar é apenas o início do processo de leitura. Por exemplo, quando realizamos uma pesquisa sobre o escritor Oswald de Andrade e nos deparamos com a informação de que Oswald de Andrade é um modernista dionisíaco, na medida em que desconhecemos o exato significado da expressão modernista dionisíaco é fundamental, primeiro, tentar depreender seu significado a partir do contexto geral apresentado no texto onde a informação está registrada. Se necessário, ou ainda para confirmar o significado depreendido, é fundamental consultar o dicionário e/ou fazer uma busca pela internet a fim de saber qual o sentido de ambas as palavras. Nessa busca é possível chegar à compreensão de que Dionísio era o deus grego equivalente a Baco dos romanos; portanto, dionisíaco diz respeito ao prazer da ação, à inspiração, ao instinto. 7 2. COMPREENSÃO: é assimilar as informações de um texto; é, a partir da leitura nas linhas, captar suas ideias principais. Nessa etapa, é importante que o leitor tenha conhecimentos prévios sobre o assunto tratado no texto, para que tenha condições de compreendê-lo. Por exemplo: você só poderá compreender a veracidade ou totalidade da informação citada no exemplo anterior se obtiver a informação sobre quem foi Oswald de Andrade, o que é o movimento modernista e relacionar todas essas informações ao que fora pesquisado anteriormente. 3. INTERPRETAÇÃO: é a capacidade de análise crítica do leitor frente ao texto e só ocorre depois da compreensão; é a leitura nas entrelinhas e por trás das linhas. Se não há compreensão, não é possível ao leitor interpretar o que leu. Nesta etapa, o leitor recupera todas as informações e conhecimentos prévios sobre o assunto, estabelece a intertextualidade entre os textos, questiona, julga e tira conclusões a respeito do que leu, concorda com as palavras do autor, ou as contesta. Por exemplo: a partir de sua compreensão acerca de todo o texto, e com base nos conhecimentos advindos de outros lidos anteriormente, a que conclusões você pode chegar a respeito do que determinado autor diz acerca de Oswald de Andradequando refere-se a ele como modernista dionisíaco? Este adjetivo o descreve bem? Existe algum pesquisador/autor que diz algo contrário a isso? Qual a sua opinião? 4. RETENÇÃO: nesta etapa, ocorre a memorização das informações mais importantes, as quais ficam arquivadas na memória de longo prazo do leitor, seu repertório de conhecimentos. Desse repertório, o leitor resgata seus conhecimentos internalizados para dialogar com as novas leituras que realizará. Por exemplo: a informação de que Oswald de Andrade é um modernista dionisíaco transforma-se em conhecimento a partir do momento em que essa ideia volta à sua mente frente a situações ou conteúdos que tenham alguma relação, direta ou indireta, com esse assunto. É importante considerar cada uma dessas etapas de leitura no processo de autoavaliação. Seu desempenho nessas etapas depende da qualidade ou nível das suas leituras. São, basicamente, três níveis: 1. Leitura superficial: neste nível, o leitor fica preso na superficialidade das palavras, decodifica- as, relaciona cada uma delas ao seu significado; se não conhece o significado de alguma, simplesmente a ignora, em vez de consultar um dicionário. O leitor não consegue depreender o assunto geral do texto, muito menos compreendê-lo em sua totalidade. 2. Leitura adequada: já neste nível, o leitor extrapola a mera decodificação e não fica preso na superfície das linhas textuais. Ele consegue compreender o assunto geral e atribuir, ao menos, um significado ao texto, fazendo uso de seus conhecimentos prévios (de mundo, textuais e linguísticos, abordados mais adiante). 3. Leitura complexa: neste nível, além de ler e compreender o que está escrito nas linhas do texto, o leitor lê nas entrelinhas e por trás delas. Ele produz vários sentidos para o texto e estabelece intertextualidades nesse processo. É um leitor crítico. Tão importante quanto conhecer e refletir sobre as etapas e níveis de leitura, importa retomar, aqui, a tese – ler é um processo que pode ser aprendido. Por isso, o avanço de uma etapa para outra e de um nível para outro é perfeitamente possível, para qualquer pessoa, de qualquer idade, desde que haja vontade e empenho! 8 Estratégias No eixo anterior da Formação Sociocultural e Ética, vimos que “antes de iniciar qualquer leitura, é fundamental que tenhamos muito bem definido, ao menos, um objetivo para realizá-la”. Observe, prezado(a) aluno(a), que DEFINIR OBJETIVOS IMPLICA NA ESCOLHA DE ESTRATÉGIAS. E isso, é claro, não vale apenas para a leitura. Se você pretende alcançar o objetivo X, precisará das estratégias W, Y e Z. Escolhidas as estratégias, faça delas seu Norte. Se perceber que alguma delas não foi uma escolha adequada, faça mudanças! Empenhe-se nas estratégias que o ajudem a atingir seu objetivo da melhor forma possível. Vamos conhecer algumas das principais estratégias de leitura? Façamos isso a partir da citação a seguir: “Trata-se de uma atividade que implica estratégias de seleção, antecipação, inferência e verificação, sem as quais não é possível proficiência. É o uso desses procedimentos que possibilita controlar o que vai sendo lido, permitindo tomar decisões diante de dificuldades de compreensão, avançar na busca de esclarecimentos, validar no texto suposições feitas.” (Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos de ensino fundamental: língua portuguesa/Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília: MEC/SEF, 1998, pp. 69-70) Em suma, um leitor competente coloca em prática as estratégias supracitadas: SELECIONAR – é uma das estratégias primordiais na vida de qualquer leitor. Qualquer indivíduo já é seletivo por natureza. Você, provavelmente, não abre todas as mensagens que chegam ao seu e-mail, não é mesmo? Você não tem tempo para isso, sem contar as ameaças de spam... Um leitor competente aperfeiçoa, cada vez mais, suas habilidades seletivas, de modo consciente. Em algumas situações, mais que em outras, é impossível ler tudo o que queremos ou todos os títulos que nos mandam ler em tão pouco tempo para cumprir certa tarefa. Precisamos, por exemplo, nos manter informados, mas para isso não precisamos ler todos os jornais ou assistir a todos os telejornais; basta selecionar os de boa qualidade. O mesmo ocorre nas pesquisas acadêmicas. Para atingir certo objetivo em determinada pesquisa, importa selecionar títulos, capítulos, parágrafos e fragmentos de texto. Selecionar as palavras-chave, por exemplo, também contribui para a compreensão das leituras que realizamos, na medida em que essa prática nos orienta a focar a nossa atenção no assunto do texto ou do parágrafo. Se esse tipo de estratégia ainda não faz parte de sua prática, experimente-a. Se o texto é virtual e você não pretende providenciar uma cópia impressa do material, use as ferramentas do Word para realçar as palavras-chave. Palavras-chave são aquelas em torno das quais estão vinculadas ou relacionadas as demais palavras, em torno das quais se desenvolvem as ideias. As palavras-chave deste e do parágrafo anterior, por exemplo, são estratégia e selecionar. As demais palavras e as ideias apresentadas procuram explicar e exemplificar o ato seletivo como estratégia de leitura. Não existem receitas ou fórmulas matemáticas para identificar as palavras-chave de um texto. Existe, sim, a necessidade da prática constante. ANTECIPAR – essa estratégia implica em fazer previsões ou levantar hipóteses sobre o que será lido antes mesmo de realizarmos a leitura propriamente dita. Por exemplo, a partir de nossos conhecimentos prévios, podemos levantar hipóteses sobre os fatos noticiados no jornal impresso já a partir do que lemos em sua manchete. A partir de nosso conhecimento sobre determinado autor, também podemos fazer previsões sobre os assuntos tratados em certo livro com base no seu título e nos subtítulos. 9 Antecipar é uma estratégia que contribui para colocar nossos neurônios em atividade constante. Não é algo mecânico, mas espontâneo. Quantas vezes, por exemplo, você já fez previsões sobre o enredo de um filme a partir do seu título? Quantas vezes levantou hipóteses sobre como seria o final de um filme? Algumas vezes acertou, porque as cenas do filme caminharam para um final altamente comum e previsível, outras vezes não acertou, pois as cenas não revelaram abertamente o final que, na verdade, foi bastante incomum, pouco ou nada previsível. Cena a cena, ou página a página, você levanta hipóteses e, concomitantemente, as confirma ou não. Para confirmá-las ou refutá-las, você lança mão (não de modo mecânico, mas espontâneo) de outra estratégia: a verificação. Entretanto, antes de tratarmos desta, há ainda uma outra cuja prática é fundamental: a inferência. INFERIR – esta estratégia implica em ler o que não está escrito no texto. Como assim?! Nem tudo o que o autor intenciona nos dizer está explícito em suas palavras. O texto também pode trazer informações implícitas. Inferir, portanto, é ler as informações que estão nas entrelinhas ou por trás das linhas do texto, a partir de seu raciocínio lógico, das pistas textuais e das advindas de outras leituras, bem como da relação que se pode estabelecer entre os textos (intertextualidade). Inferir também consiste em deduzir, por exemplo, o significado de uma palavra a partir do contexto em que está inserida. Em situações de leitura em que o contexto não traz pistas linguísticas suficientes para que possamos inferir significados de determinados vocábulos, é sempre importante recorrer ao dicionário, pois o desconhecimento de uma palavra pode comprometer a compreensão de um texto. Vamos colocarem prática a estratégia da inferência e aproveitar este exercício, também, para rever dois conceitos importantes: a informação implícita subentendida e a informação implícita pressuposta. Leia a tirinha a seguir: (Disponível em: <http://toda-mafalda.blogspot.com.br/2013/05/la-democracia.html> Acesso em: 06 set. 2018) Salvador Dalí 10 Qual a informação implícita que se pode inferir da tirinha da Mafalda? Quais as pistas ou elementos textuais da tirinha a partir dos quais você fez essa inferência? E que tipos de conhecimentos você utilizou para chegar a essa conclusão? Com base nessa tira, exemplificamos um tipo de texto que requer um nível de leitura, ao menos, adequada, realizada por leitores que leem nas entrelinhas. O primeiro quadrinho é o único que traz um texto verbal. Mafalda lê o significado da palavra democracia no dicionário e, na sequência, cai na gargalhada. Logo, inferimos que a personagem ri porque a democracia que se vê na realidade não está de acordo com a definição apresentada no dicionário. Essa informação não está explícita na tira. Em nenhum momento a Mafalda, ou qualquer outro personagem ali apresentado, disse isso. Porém, o texto apresenta a gargalhada como a principal pista que nos permite chegar a essa inferência. A atitude da menina após ler a explicação desse termo no dicionário, e por passar o dia todo nessa condição do riso, causando espanto ou estranhamento nos membros de sua família, leva-nos, então, a inferir uma informação implícita. Temos aqui uma informação implícita subentendida. Não existem marcas linguísticas que comprovem esse tipo de informação. A informação subentendida pode, portanto, ser questionada e, também, negada ou contestada. Se vivenciássemos essa experiência ao vivo e a cores, poderíamos questionar se Mafalda quis dizer exatamente o que inferimos de sua fala e de sua atitude, mas ela poderia negar a nossa inferência, alegando, por exemplo, que no exato momento em que leu o significado da palavra democracia no dicionário, lembrou-se de um episódio engraçado que aconteceu na escola e que, de repente, veio à sua lembrança, sendo este o motivo do seu riso. Entretanto, conhecendo a natureza crítica da Mafalda e a partir do conhecimento de mundo que temos acerca da democracia em nosso país, estabelecemos a relação entre as pistas da tira e, por fim, atribuímos-lhe uma inferência coerente. A seguir, apresentamos uma frase que foi pronunciada há alguns anos por um empresário, e com este exemplo demonstramos a importância de ler nas entrelinhas e, também, o quanto é preciso cuidar das palavras que usamos para expressar nossas ideias. Ela é inteligente, apesar de ser mulher. (Mário Amato, referindo-se à Dorothéa Verneck) Disponível em: <https://brasildelonge.com/tag/ela-e-inteligente- apesar-de-ser-mulher/> Acesso em: 27 mar. 2018. Quais as informações explícitas nessa frase? Qual a informação implícita? Na época em que pronunciou essa frase, Mário Amato, autor de tantos outros dizeres polêmicos, conquistou a antipatia das mulheres. Ele disse, explicitamente, que Dorothéa é mulher e que é inteligente. Temos, então, duas informações escritas (portanto explícitas) na linha do texto. Por outro lado, pode-se inferir outra informação, a que está implícita: as mulheres não são inteligentes. Diferente do que ocorre na tira da Mafalda, esse tipo de informação não pode ser negada. Trata- se de uma informação pressuposta, implícita no conectivo “apesar de”, uma marca linguística que comprova a informação implícita nas entrelinhas. VERIFICAR – é a estratégia que permite a você monitorar a qualidade da sua leitura, de modo a tomar as providências necessárias para que, de fato, os textos lidos sejam compreendidos em sua totalidade. 11 Trata-se de uma estratégia que permite ao leitor: - confirmar ou refutar as previsões feitas e, também, ter a certeza de que suas inferências estão coerentes e de acordo com o texto, considerando suas pistas textuais e outros fatores extra-textuais necessários à sua interpretação, como, por exemplo, o momento e o contexto histórico em que foi produzido; - avaliar se você está empregando as estratégias de leitura necessárias para a compreensão e interpretação adequada dos textos; - investigar se o significado que você inferiu de determinada palavra condiz com o sentido adequado ao texto; - tomar a iniciativa de recorrer a outras leituras prévias para compreender satisfatoriamente determinado texto; - rever a seleção que fez dos livros que constam em uma listagem bibliográfica para atingir os objetivos de determinada pesquisa; - interromper a leitura, porque não está assimilando ou processando o conteúdo do modo como gostaria, e percebe a necessidade de reler parágrafos para resgatar a linha de raciocínio; ou ainda, decidir se deve prosseguir a leitura, pois algumas vezes o parágrafo seguinte pode esclarecer o(s) anterior(es). Há uma infinidade de outros aspectos que requerem a sua verificação nos momentos de leitura. Enquanto leitor, é importante que esteja atento para tomar as decisões necessárias frente aos textos, de modo que possa desenvolver habilidades leitoras fundamentais para o seu desempenho acadêmico, profissional e pessoal. E lembre-se: todas as estratégias apresentadas são importantes, estão correlacionadas e ocorrem de modo concomitante. Ao praticá-las, de modo consciente e frequente, o leitor desenvolve características que demonstram sua competência leitora. 12 Textos Selecionados Nas entrelinhas da arte e da cultura, como em tudo na vida, perpassam questões éticas. Nesse sentido, inicialmente, propomos considerar a pluralidade dessas questões, uma vez que, frente às diversidades culturais e à dinâmica da globalização, não há como engessá- las, pois os ideais éticos se transformam e, no ritmo em que a humanidade caminha, nem sempre sobrevivem aqueles valores imprescindíveis para a formação humana, como, por exemplo, a ética da justiça, da solidariedade e da responsabilidade universal. Como preservar a ética e, consequentemente, salvar a humanidade dos e nos homens? Para refletir... O eclipse da ética na atualidade Leonardo Boff Em julho de 2018, realizou-se um congresso internacional organizado pela Sociedade de Teologia e Ciências da Religião (SOTER) em torno dos temas: Religião, Ética e Política. As exposições foram de grande atualidade e de qualidade superior. Refiro-me apenas à discussão acerca do Eclipse da Ética que me coube introduzir. A meu ver dois fatores atingiram o coração da ética: o processo de globalização e a mercantilização da sociedade. A globalização mostrou os vários tipos de ética, consoante às diferenças culturais. Relativizou-se a ética ocidental, uma entre tantas. As grandes culturas do Oriente e as dos povos originários revelaram que podemos ser éticos de forma muito diferente. Por exemplo, a cultura maia coloca tudo centrado no coração, já que todas as coisas nasceram do amor de dois grandes corações, do Céu e da Terra. O ideal ético é criar em todas as pessoas corações sensíveis, justos, transparentes e verdadeiros. Ou a ética do “bien vivir y convivir” dos andinos, assentada no equilíbrio com todas as coisas, entre os humanos, com a natureza e com o universo. Tal pluralidade de caminhos éticos teve como consequência uma relativização generalizada. Sabemos que a lei e a ordem, valores da prática ética fundamental, são os pré-requisitos para qualquer civilização em qualquer parte do mundo. O que observamos é que a humanidade está cedendo diante da barbárie rumo a uma verdadeira idade das trevas mundial, tal é o descalabro ético queestamos vendo. Pouco antes de morrer, em 2017, advertia o pensador Sigmund Bauman: “ou a humanidade se dá as mãos para juntos nos salvarmos ou então engrossaremos o cortejo daqueles que caminham rumo ao abismo”. Qual é a ética que nos poderá orientar como humanidade vivendo na mesma Casa Comum? O segundo grande empecilho à ética é a mercantilização da sociedade, aquilo que Karl Polaniy chamava já em 1944 de “A Grande Transformação”. É o fenômeno da passagem de uma economia de mercado para uma sociedade puramente de mercado. Tudo se transforma em mercadoria, coisa já prevista por Karl Marx em seu texto A miséria da Filosofia de 1848, quando se referia ao tempo 13 em que as coisas mais sagradas como a verdade e a consciência seriam levadas ao mercado; seria “tempo da grande corrupção e da venalidade universal”. Pois vivemos este tempo. A economia, especialmente a especulativa, dita os rumos da política e da sociedade como um todo. A competição é sua marca registrada e a solidariedade praticamente desapareceu. O que é o ideal ético deste tipo de sociedade? É a capacidade de acumulação ilimitada e de consumo sem peias, gerando uma grande divisão entre um pequeníssimo grupo que controla grande parte da economia mundial e as maiorias excluídas e mergulhadas na fome e na miséria. Aqui se revelam traços de barbárie e de crueldade como poucas vezes na história. Precisamos refundar uma ética que se enraíze naquilo que é específico nosso, enquanto humanos e que, por isso, seja universal e possa ser assumida por todos. Estimo que, em primeiríssimo lugar, é a ética do cuidado que, segundo a fábula 220 do escravo Higino e bem interpretada por Martin Heidegger em Ser e Tempo, constitui o substrato ontológico do ser humano, aquele conjunto de fatores sem os quais jamais surgiria o ser humano e outros seres vivos. Pelo fato de o cuidado ser da essência do humano, todos podem vivê-lo e dar-lhe formas concretas, consoante suas culturas. O cuidado pressupõe uma relação amigável e amorosa para com a realidade, da mão estendida para a solidariedade e não do punho cerrado para a dominação. No centro do cuidado está a vida. A civilização deverá ser biocentrada. Outro dado de nossa essência humana é a solidariedade e a ética que daí se deriva. Sabemos hoje pela bioantropologia que foi a solidariedade de nossos ancestrais antropoides que permitiu dar o salto da animalidade para a humanidade. Buscavam os alimentos e os consumiam solidariamente. Todos vivemos porque existiu e existe um mínimo de solidariedade, começando pela família. O que foi fundador ontem, continua sendo-o ainda hoje. Outro caminho ético, ligado à nossa estrita humanidade, é a ética da responsabilidade universal. Ou assumimos juntos responsavelmente o destino de nossa Casa Comum, ou então percorreremos um caminho sem retorno. Somos responsáveis pela sustentabilidade de Gaia e de seus ecossistemas para que possamos continuar a viver junto com toda a comunidade de vida. O filósofo Hans Jonas que, por primeiro, elaborou “O Princípio Responsabilidade”, agregou a ele a importância do medo coletivo. Quando este surge e os humanos começam a dar-se conta de que podem conhecer um fim trágico e até de desaparecer como espécie, irrompe um medo ancestral que os leva a uma ética de sobrevivência. O pressuposto inconsciente é que o valor da vida está acima de qualquer outro valor cultural, religioso ou econômico. Por fim, importa resgatar a ética da justiça para todos. A justiça é o direito mínimo que tributamos ao outro, de que possa continuar a existir, e dando-lhe o que lhe cabe como pessoa. Especialmente as instituições devem ser justas e equitativas para evitar os privilégios e as exclusões sociais que tantas vítimas produzem, particularmente em nosso país, um dos mais desiguais, vale dizer, mais injustos do mundo. Daí se explica o ódio e as discriminações que dilaceram a sociedade, vindos não do povo, mas daquelas elites endinheiradas que sempre viveram do privilégio e não aceitam que os pobres possam subir um degrau na escala social. Atualmente, vivemos sob um regime de exceção, no qual tanto a Constituição e as leis são pisoteadas ou mediante o Lawfare (a interpretação distorcida da lei que o juiz pratica para prejudicar o acusado). 14 A justiça não vale apenas entre os humanos, mas também para com a natureza e a Terra que são portadores de direitos, e por isso devem ser incluídos em nosso conceito de democracia sócio ecológica. Estes são alguns parâmetros mínimos para uma ética, válida para cada povo e para a humanidade, reunida na Casa Comum. Devemos incorporar uma ética da sobriedade compartida para lograr o que dizia Xi Jinping, chefe supremo da China “uma sociedade moderadamente abastecida”. Isto significa um ideal mínimo e alcançável. Caso contrário, poderemos conhecer um armagedon social e ecológico. Disponível em: <https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/O-eclipse-da-etica-na-atualidade/4/40925> Adaptado. Acesso em: 8 ago. 2018. Definir cultura não é uma tarefa tão simples quanto parece e fazê-lo sem o aprofundamento necessário pode resultar em definições superficiais. O texto a seguir traz respostas mais pontuais a respeito, sob a perspectiva da antropologia. Falar de cultura é falar do homem, do seu modo de viver, de tudo aquilo que ele próprio cria para viver, do modo como interage e age com e pelo outro. É falar, também, de coletividade e educação. Confira! O que se entende por cultura: uma reflexão João Nunes da Silva - Doutor em comunicação e cultura contemporâneas, Mestre em Sociologia e professor da UFT Campus de Arraias. Trabalha como projeto em cinema e educação. “A cultura também envolve o modo como pensamos o mundo e agimos nele, nas relações sociais e, mais ainda, significa que nossas ideias de alguma forma se materializam, criam modos de viver, influenciam e recebem influências dos outros” Cultura é um termo que parece simples, mas não é como geralmente costumamos imaginar. Com a antropologia entendemos que cultura não apresenta uma definição precisa e suficiente para reunir uma compreensão totalizante do que desejamos ou entendemos sobre o seu significado. Não é por acaso que a ciência antropológica se encarrega de estudar exclusivamente a cultura e suas influências nas diferentes sociedades e na nossa vida. Deixando de lado o que pode se mostrar mais complexo na antropologia para se referir à cultura, podemos defini-la como tudo aquilo que o ser humano cria para viver. Assim incluímos tudo o que não é natureza, por exemplo: o modo de se alimentar, de vestir-se, de trabalhar, de se relacionar com as divindades ou com a espiritualidade, que é uma maneira de utilizar as crenças. Também com essa definição de cultura incluímos o uso do conhecimento, a educação, a ciência, os negócios, o comércio, as viagens, as pinturas, o esporte, entre outras coisas. Essa definição simples de cultura nos permite ir bem longe, o máximo possível, para entender, ou pensar melhor sobre o mundo em que vivemos e, principalmente, refletir sobre a educação em nossos dias, seus impactos e influências no cotidiano das pessoas e grupos sociais. A cultura também envolve o modo como pensamos o mundo e agimos nele, nas relações sociais e, mais ainda, significa que as nossas ideias de alguma forma se materializam, criam modos de viver, influenciam e recebem influências dos outros. Com isso, podemos dizer que a cultura apresenta uma estreita relação com a ideologia, que é a forma como as ideias das pessoas, dos grupos, comunidades e instituições orientam suas ações, moldam e até provocam fortes impactos sobre os outros. Isso inclui os indivíduos e suas particularidades assim como, numaperspectiva macro, a sociedade mundo, os diversos países com suas histórias entrelaçadas com outros povos, especialmente se pensarmos como aconteceram as colonizações e o que pensavam os homens que planejaram e colocaram em prática suas ideias sobre o mundo, sobre as coisas e sobre os outros. 15 A educação, por exemplo, é uma forma institucionalizada, no caso da formal, de se fazer cultura; isto é, de se colocar em prática ideias de como vemos ou temos de mundo e, de certa forma, formatar essas ideias a partir do momento em que elas são materializadas na sociedade. A educação formal, na perspectiva dos mandatários, aqueles que chegaram ao poder pela exploração, existe praticamente de forma exclusiva para atender ao mercado de trabalho; nesse caso, a educação coisifica tudo, transforma tudo em negócio, passa a ser objeto de consumo e para o consumo. E tudo isso para manter a maioria sobre controle a partir dos interesses e necessidades dos grupos econômicos. Se pensarmos melhor nessa forma de educação, podemos questionar sobre sua utilidade, para que ou para quem serve e como nos colocamos diante dela. Pensar, por exemplo, até que ponto isso é bom ou é ruim para cada um de nós, para nossa particularidade e individualidade e para a vida em sociedade. Uma vez que a cultura está ligada diretamente à coletividade, podemos concluir que nem tudo o que é cultura é positivo, até mesmo para quem pertence a uma dada cultura. Por exemplo, uma cultura que se mostra machista é positiva para quem, senão para os que se beneficiam com o machismo? Disponível em: <http://www.atitudeto.com.br/o-que-se-entende-por-cultura-uma-reflexao/> Acesso em: 20 ago. 2018. De que modo podemos compreender e relacionar cultura e humanização? O que é preciso fazer para conservar o que há de humano no homem e a que ponto ele mesmo é capaz de criar ou provocar sua desumanização? A seguir, o artigo favorece noções mais profundas acerca da cultura e da relação desta com o indivíduo, sua socialização e educação. Cultura e Humanização Há muitos anos, nos Estados Unidos, Virgínia e Maryland assinaram um tratado de paz com os índios das Seis Nações. Ora, como as promessas e os símbolos da educação sempre foram muito adequados a momentos solenes como aquele, logo depois os seus governantes mandaram cartas aos índios para que enviassem alguns de seus jovens às escolas dos brancos. Os chefes responderam; agradecendo e recusando. A carta acabou conhecida porque alguns anos mais tarde Benjamin Franklin adotou o costume de divulgá-la aqui e ali. Eis o trecho que nos interessa: "[...] Nós estamos convencidos, portanto, que os senhores desejam o bem para nós e agradecemos de todo o coração. Mas aqueles que são sábios reconhecem que diferentes nações têm concepções diferentes das coisas e, sendo assim, os senhores não ficarão ofendidos ao saber que a vossa ideia de educação não é a mesma que a nossa. [...] Muitos dos nossos bravos guerreiros foram formados nas escolas do Norte e aprenderam toda a vossa ciência. Mas, quando eles voltavam para nós, eles eram maus corredores, ignorantes da vida da floresta e incapazes de suportarem o frio e a fome. Não sabiam como caçar o veado, matar o inimigo e construir uma cabana, e falavam a nossa língua muito mal. Eles eram, portanto, totalmente inúteis. Não serviam como guerreiros, como caçadores ou como conselheiros. Ficamos extremamente agradecidos pela vossa oferta e, embora não possamos aceitá-la, para mostrar a nossa gratidão oferecemos aos nobres senhores de Virgínia que nos enviem alguns dos seus jovens, que Ihes ensinaremos tudo o que sabemos e faremos, deles, homens". (Apud (ar/os Rodrigues Brandão) Noção de cultura Na linguagem comum, o homem "culto" seria aquele que tem instrução, teve acesso à produção intelectual da civilização a que pertence (ciência, filosofia, literatura, artes em geral). Muitas vezes, 16 só porque alguém conhece algumas línguas estrangeiras, imediatamente é considerado "culto", da mesma forma que, se não frequentou os bancos escolares, é classificado como "inculto". Ora, esse modo de pensar resulta da sociedade hierarquizada, que separa o trabalho humano em atividades intelectuais e manuais, valorizando as primeiras em detrimento das últimas. É isso justamente o que está em questão na epígrafe do capítulo: os homens da civilização americana consideram um bem universal o que oferecem em suas escolas e, como tal, desejam estendê-lo aos indígenas, sem perceber que nas tribos não existe ainda a separação entre o pensar e o agir. Trata-se de uma outra cultura. Agora, portanto, passamos a usar a palavra cultura como o resultado de tudo o que o homem produz para construir sua existência. No sentido amplo, antropológico, cultura é tudo o que o homem faz, seja material ou espiritual, seja pensamento ou ação. A cultura exprime as variadas formas pelas quais os homens estabelecem relações entre si e com a natureza: como constroem abrigos para se proteger das intempéries; como organizam suas leis, costumes e punições; como se alimentam, casam e têm filhos; como concebem o sagrado e como se comportam diante da morte. O contato do homem com a natureza, com outros homens e consigo mesmo é intermediado pelos símbolos, isto é, signos - arbitrários e convencionais -, por meio dos quais o homem representa o mundo. Portanto, ao criar um sistema de representações aceitas por todo o grupo social (ou seja, a linguagem simbólica), os homens se comunicam de forma cada vez mais elaborada. Nesse sentido, pode-se dizer que a cultura é o conjunto de símbolos elaborados por um povo em determinado tempo e lugar. Dada a infinita possibilidade de simbolizar, as culturas são múltiplas e variadas. Cultura e socialização O processo de socialização se inicia por meio da ação exercida pela comunidade sobre os homens. É conhecida a história das meninas-lobo encontradas na Índia, em 1920, vivendo numa matilha. Seu comportamento em tudo se assemelhava ao dos lobos: andavam de quatro, comiam carne crua ou podre, uivavam à noite, não sabiam rir e nem chorar. Só iniciaram o processo de humanização ao conviver com outras pessoas. O mundo cultural é, dessa forma, um sistema de significados já estabelecidos por outros, de modo que, ao nascer, a criança encontra um mundo de valores dados, onde ela se situa. A língua que aprende, a maneira de se alimentar, o jeito de sentar, andar, correr, brincar, o tom de voz nas conversas, as relações sociais, tudo, enfim, se acha estabelecido em convenções. Até a emoção, que é uma manifestação espontânea, sujeita-se a regras que dirigem de certa forma a sua expressão. Basta observar como a nossa sociedade, ainda preocupada com uma visão estereotipada da masculinidade, vê com complacência o choro feminino e recrimina a mesma manifestação no homem. É possível dizer, então, que a condição humana não resulta da realização hipotética de instintos, mas da assimilação de modelos sociais: o ser do homem se faz mediado pela cultura. Nem o ermitão consegue anular a presença do mundo cultural. A escolha de se afastar faz permanecer o tempo todo, em cada ato seu, a negação e, portanto, a consciência e a lembrança da sociedade rejeitada. Seus valores, mesmo colocados contra os da sociedade, situam-se também a partir dela. A recusa de se comunicar é ainda um modo de comunicação. Por isso, a condição humana não apresenta características universais e eternas, pois variam as maneiras pelas quais os homens respondem socialmente aos desafios, a fim de realizar sua existência, sempre historicamente situada. Uma tendência conservadora, no entanto, leva muitos a definirem sua própria cultura como a correta, estranhando os comportamentos de outrospovos ou mesmo de segmentos diferentes em 17 sua própria sociedade. Chegam a achar "naturais" certos atos e valores que se opõem a outros, considerados "exóticos". O filósofo Montaigne, no século XVI, ao analisar a perplexidade dos europeus em relação aos costumes dos povos indígenas das terras recém-descobertas, já percebia o teor tendencioso das avaliações: "Não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem aqueles povos; e, na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra". Mais adiante, questiona o horror de muitos diante do relato de canibalismo dos selvagens, quando não causava igual espanto o costume dos religiosos de seu tempo de "esquartejar um homem entre suplícios e tormentos e o queimar aos poucos, ou entregá-lo a cães e porcos, a pretexto de devoção e fé". Aceitar as diferenças entre as culturas é importante para evitar o etnocentrismo, isto é, o julgamento de outros padrões (morais, estéticos, políticos, religiosos etc.) a partir de valores do seu próprio grupo. Esse comportamento geralmente leva à xenofobia (horror ao estrangeiro), que é uma forma de preconceito e caminho certo para o exercício da violência, pois a partir dela surgem determinados critérios de superioridade e inferioridade que justificam indevidamente a dominação de um grupo sobre outro. Sociedade e indivíduo A natureza modificada pelo trabalho humano não é apenas a do mundo exterior, mas também a da individualidade humana, pois nesse processo o homem se autoproduz, isto é, faz a si mesmo homem. O autoproduzir-se humano se completa em dois movimentos contraditórios e inseparáveis: por um lado, a sociedade exerce sobre o indivíduo um efeito plasmador, a partir do qual é construída uma determinada visão de mundo; por outro, cada um elabora e interpreta a herança recebida na sua perspectiva pessoal. É bem verdade que o teor dessas mudanças varia conforme o tipo de sociedade: no mundo contemporâneo de intensa urbanização, as alterações são muito mais velozes do que nas tribos indígenas ou nas comunidades tradicionais. Mesmo assim, não há sociedade estática: em maior ou menor grau, todas mudam, estabelecendo uma dinâmica que resulta do embate entre tradição e ruptura, herança e renovação. A transformação produzida pelo homem pode ser caracterizada como um ato de liberdade, entendendo-se liberdade não como alguma coisa que é dada ao homem, mas como o resultado da sua capacidade de compreender o mundo, projetar mudanças e realizar projetos. Pelo trabalho, o homem aprende a conhecer as próprias forças e limitações, desenvolve a inteligência, as habilidades, impõe-se uma disciplina, relaciona-se com os companheiros e vive os afetos de toda relação. Nesse sentido, dizemos que o homem se autoproduz, pois, ele se modifica e se constrói a partir de sua ação. E nesse movimento tece sua liberdade. O que foi dito um pouco antes a respeito da ação multiforme dos modelos sociais não contraria a relação estabelecida entre trabalho e liberdade. Isso se explica pelo fato de que, se, por um lado, há sempre a necessidade de um ponto de partida para que cada um possa se compreender - e esse solo é a herança social -, por outro, o ser do homem exige a superação daquilo que ele herda, numa constante recriação da cultura. Cultura e educação Vimos, até aqui, que a cultura é uma criação humana: ao tentar resolver seus problemas, o homem produz os meios para a satisfação de suas necessidades e, com isso, transforma o mundo natural e a si mesmo. Por meio do trabalho instaura relações sociais, cria modelos de comportamento, instituições e saberes. O aperfeiçoamento dessas atividades, no entanto, só é possível pela transmissão dos conhecimentos adquiridos de uma geração para outra, permitindo a assimilação 18 dos modelos de comportamento valorizados. É a educação que mantém viva a memória de um povo e dá condições para a sua sobrevivência material e espiritual. A educação é, portanto, fundamental para a socialização do homem e sua humanização. Trata-se de um processo que dura a vida toda e não se restringe à mera continuidade da tradição, pois supõe a possibilidade de rupturas, pelas quais a cultura se renova e o homem faz a história. Se o homem não tem oportunidade de desenvolver e enriquecer a linguagem, torna-se incapaz não só de compreender o mundo que o cerca, mas também de agir sobre ele. Na literatura, é belo (e triste) o exemplo que Graciliano Ramos nos dá com Fabiano, personagem principal de Vidas secas. A pobreza de vocabulário prejudica a tomada de consciência da exploração a que é submetido, e a intuição de sua situação não é suficiente para ajudá-lo a reagir. Se a palavra, que distingue o homem dos outros seres vivos, se encontra enfraquecida na sua possibilidade de expressão, é o próprio homem que se desumaniza. Disponível em: <http://estudando.weebly.com/cultura-e-humanizaccedilatildeo.html> Adaptado. Acesso em: 30 ago. 2018. Por falar em ética, lembramos do jeitinho brasileiro. Quais as faces desse famoso jeitinho que burla desde as pequenas até as grandes regras? E quais seriam as consequências da cultura da desigualdade a qual dissemina a falsa ideia de que as regras existem para as pessoas comuns? Para pensar e tirar suas próprias conclusões... Ética e jeitinho brasileiro Luís Roberto Barroso, ministro do Supremo Tribunal Federal. Jeitinho brasileiro é uma expressão que comporta múltiplos sentidos. Na sua faceta positiva, o jeitinho se manifesta em algumas características da alma nacional: uma certa leveza de ser, que combina afetividade, bom humor, alegria de viver e uma dose de criatividade. Este é o lado bom, que deve ser preservado. O jeitinho constitui, também, um meio de enfrentar as adversidades da vida. Está, muitas vezes, ligado à sobrevivência diante das desigualdades sociais, das deficiências dos serviços públicos e das complexidades legislativas e burocráticas. Há um critério relativamente singelo para saber se o jeitinho é aceitável ou não: verificar se há prejuízo para alguém ou para o grupo social. Se a resposta for afirmativa, dificilmente haverá salvação. A face negativa do jeitinho é bem conhecida de todos nós. Ela envolve a pessoalização das relações, para o fim de criar regras particulares para si, flexibilizando ou quebrando normas que deveriam se aplicar a todos. Esse pacote negativo inclui o improviso, a colocação do sentimento pessoal ou das relações pessoais acima do dever e uma certa cultura da desigualdade que ainda caracteriza a vida brasileira. O improviso se traduz na incapacidade de planejar, de cumprir prazos e, em última análise, de cumprir a palavra. Vive-se aqui a crença equivocada de que tudo se ajeitará na última hora, com um sorriso, um gatilho e a atribuição de culpa a alguma fatalidade. O sentimento pessoal acima do dever se manifesta no favorecimento dos parentes e dos amigos, no compadrio, na troca de favores, 19 "o toma lá, dá cá". A cultura da desigualdade expressa a crença generalizada de que as regras são para os outros, para os comuns, "e não para os especiais como eu". Vem daí a permissão para furar a fila ou parar o carro na calçada. Essa facilidade para quebrar regras sociais, em um passo, se transforma em violação direta e aberta da lei. E aí vêm as pequenas fraudes, como: o atestado médico falso, a consulta com recibo ou sem recibo e a nota superfaturada para aumentar o reembolso. Depois, sem surpresa, vem a corrupção graúda, de quem paga propina para vencer a licitação, obtém inside information para investir no mercado financeiro ou paga ao diretor do fundo de pensão estatal para colocar o dinheiro dos associados em um negócio poucovantajoso. Improviso, sentimentos e interesse pessoais acima do dever, compadrio, cultura da desigualdade, quebra de normas sociais e violação da lei que vale para todos, não são traços virtuosos, não podem fazer parte do charme de um povo e muito menos ser motivo de orgulho. Em todas essas situações, o jeitinho traz um elevado custo moral, por expressar um déficit de honestidade pessoal e de republicanismo. Somos uma sociedade que já consegue separar o joio do trigo. O problema são os que preferem o joio. É a velha ordem, que reluta em sair de cena. Mas há muitas coisas novas acontecendo no Brasil. Há uma revolução silenciosa em curso. O velho já morreu. Só falta remover os corpos. O novo vem vindo. Há uma imensa demanda por integridade, idealismo e patriotismo. Esta é a energia que muda o curso da história. É preciso ter fé. Para tudo existe um jeitinho. Do bem. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/rio/artigo-etica-jeitinho-brasileiro-21784078> Acesso em: 7 ago. 2018. Ética no mundo contemporâneo Economista e coordenadora do Insper, Luciana Yeung, fala da importância da ética em tempos de relações mediadas pela tecnologia. Ela ressalta que o tema deve ganhar mais espaço nas universidades. ASSISTA: https://www.institutomillenium.org.br/milleniumtv/etica-no- mundo-contemporaneo/ A parte visível de um iceberg simboliza a pequena porção de um todo muito maior. Comparativamente, as pessoas costumam pensar sobre a cultura como as numerosas características visíveis de um grupo que podemos ver com os nossos olhos, como a comida, dança, música, artes etc. Porém, essas características são apenas uma manifestação externa dos componentes mais detalhados e amplos da cultura, ou seja, as ideias, preferências, atitudes e valores. O breve texto a seguir, bem como a imagem, propõe reflexões acerca do que há abaixo da “linha de água”... O Iceberg cultural Como um iceberg, há coisas que podemos ver e descrever facilmente, mas também há muitas ideias profundamente enraizadas que só podemos compreender por meio da análise de valores, 20 estudando as instituições e, em muitos casos, refletindo sobre os nossos próprios valores fundamentais. Bem abaixo da "linha de água" estão os valores centrais de uma cultura. Esses são principalmente ideias aprendidas sobre o que é bom, certo, desejável e aceitável, bem como o que é ruim, errado, indesejável e inaceitável. Em muitos casos, os diferentes grupos culturais compartilham valores centrais semelhantes (tais como "honestidade", "respeito" ou "família"), mas esses são, muitas vezes, interpretados de maneira diferente em diferentes situações e incorporados de forma única em atitudes específicas que se aplicam em situações do cotidiano. Em última análise, essas forças internas se tornam visíveis para o observador casual, sob a forma de comportamentos visíveis, como as palavras que usamos, a forma como agimos, as leis que aprovamos e as formas como nos comunicamos uns com os outros. Também é importante observar que os valores fundamentais de uma cultura não mudam rapidamente ou facilmente. Eles são passados de geração para geração, por diversas instituições que nos rodeiam. Essas instituições de influência são forças poderosas que nos orientam e nos ensinam. Embora um sistema econômico possa mudar, uma nova metodologia na escola pode ser adotada, ou novas definições de "comum e normal" podem ser percebidas na televisão, há inumeráveis forças que continuam a moldar uma cultura como o fizeram no passado. Então, como um iceberg, há coisas que podemos ver e descrever facilmente..., mas também há muitas ideias profundamente enraizadas que só podemos compreender por meio da análise de valores, estudando as instituições e, em muitos casos, refletindo sobre os nossos próprios valores fundamentais. Disponível em: <https://www.languageandculture.com/o-iceberg-cultural> Acesso em: 20 ago. 2018. 21 Cópia ou criatividade? Em que consiste e quais as implicações da apropriação cultural? A identidade de um povo pode ficar comprometida diante de episódios dessa natureza? Qual a diferença entre apropriação e homenagem? Vale a pena considerar as implicações deste assunto... Redes sociais em pé de guerra contra a apropriação cultural O cineasta Wes Anderson foi questionado por sua visão fantasiosa do Japão em “Isle of Dogs” ou o cantor Bruno Mars acusado de roubar a cultura negra… O conceito de “apropriação cultural” é um tema delicado nas redes sociais e deixa sob pressão muitos artistas e marcas. É preciso detectar nisso uma tendência do politicamente correto ou uma reivindicação mais legítima? Não se passa uma semana sem que haja uma polêmica em torno de apropriações culturais: turbantes usados por modelos da Gucci, denunciados pela comunidade sikh, ao álbum dos Rolling Stones em homenagem ao blues, passando pelos adornos de cabeça indianos nos desfiles da Victoria’s Secret. Todos foram reprovados por se apropriar de uma cultura que não é deles, sem autorização e negligenciando a dimensão, às vezes, simbólica das coisas. O assunto tornou-se tão sensível que muitos artistas questionados por apropriação cultural optam por um pedido público de desculpas. Em uma entrevista recente, a cantora Katy Perry desculpou-se por ter usado tranças africanas em um clipe, antes de lamentar seus “privilégios de branco” ante um representante do movimento “Black Lives Matter”. Uma situação impensável há poucos anos, quando astros pop não hesitavam em multiplicar as “homenagens”, sem provocar controvérsia. “Os romanos copiaram os gregos e as sociedades em todo o mundo sempre se inspiraram umas nas outras. E não há nada de errado com isso”, estima o antropólogo George Nicholas, da Universidade Simon Fraser, no Canadá. Capitol Records Equilíbrio de forças O que é problemático para este arqueólogo de formação é a mercantilização de especificidades culturais dos ameríndios e outras comunidades indígenas, ameaçando sua autenticidade e modo de vida. Nascido nos anos 90 no meio acadêmico, o conceito anglo-saxão de apropriação cultural deriva do pensamento pós-colonialista. Ele se espalhou com as redes sociais, que acentuaram sua dimensão reivindicativa. A apropriação cultural rima com uma demanda de reparação e faz parte de um equilíbrio de poder entre cultura dominante (principalmente branca) e cultura minoritária. “Os povos indígenas ou grupos minoritários denunciam aqueles que se atribuem elementos estranhos a sua cultura, sem ter pago o custo social e histórico”, resume a etnóloga francesa Monique Jeudy-Ballini. 22 Quando a comunidade negra denuncia artistas que tomam emprestado a cultura afro-americana, aponta para a baixa presença de modelos negras nas passarelas. Quando os aborígines se indignam com a comercialização de um bumerangue pela Chanel, recordam que sua cultura há muito tem sido denegrida. O perigo deste debate: a guetização, com artistas proibidos de tratar de uma outra cultura. A cineasta Kathryn Bigelow foi criticada por seu filme “Detroit” sobre a violência policial contra os negros na década de 1960. “Estou em melhor posição para contar essa história? Certamente não. Mas consegui fazê-lo”, respondeu a diretora vencedora do Oscar. Detroit (2017) Criatividade ao invés de cópia “Querer que cada cultura, seja ela minoritária ou não, continue uma unidade fechada, recusando qualquer cruzamento, é perigoso”, argumenta Monique Jeudy-Ballini, que defende “informação e discussão” face à “proibição estereótipos”. No entanto, nem sempre é fácil distinguir entre apropriação e homenagem. “A chave definitiva para a apropriação cultural positiva não é a cópia servil, mas a criatividade”, estima Susan Scafidi, diretora do Fashion Law Institute, uma empresa deconsultoria jurídica do setor da moda com sede em Nova York. Para esta especialista em propriedade intelectual, é necessário questionar a origem de um empréstimo cultural (a comunidade em questão), o significado do empréstimo (é um objeto sagrado?) e as semelhanças entre o original e o objeto que é inspirado por ele. “Os artistas também devem considerar colaborações diretas, inclusive com artesãos tradicionais”, diz ela. Uma linha compartilhada por George Nicholas, autor de um guia para o mundo da moda (“Think before you appropriate”), aconselha empresas no Canadá, fabricantes de roupas infantis que querem reproduzir estampas indígenas, sem ferir as comunidades em causa. “Esse tipo de atitude voluntária sugere que muitas pessoas têm boas intenções, mas nem sempre sabem como fazer”, indica. Disponível em: <http://blogs.ne10.uol.com.br/mundobit/2018/04/11/redes-sociais-em-pe-de-guerra-contra-apropriacao-cultural/> Acesso em: 16 ago. 2018. 23 Mesmo diante de tantos avanços na legislação e nas tecnologias, as pessoas com deficiência ainda não têm assegurado o acesso a bens culturais. É evidente que essa situação requer mais que reflexão. Os dois textos a seguir trazem ideias, sugestões e diferentes perspectivas a esse respeito. Cultura para todos? Apesar dos avanços na legislação e nas tecnologias, as pessoas com deficiência ainda não têm assegurados o acesso a bens culturais São vários os direitos garantidos pela Lei Brasileira de Inclusão: acesso a bens culturais; acesso a programas de televisão, cinema e teatro em formato acessível; acesso a monumentos e locais de importância cultural; adoção de soluções para eliminar, reduzir e superar barreiras que impeçam o acesso ao patrimônio cultural; promoção da participação de pessoas com deficiência em atividades artísticas, intelectuais, culturais e esportivas. Na prática, entretanto, os direitos não são efetivados e o acesso aos bens culturais ainda é uma realidade distante. Apesar do avanço dos recursos tecnológicos, o acesso das pessoas com deficiência às programações e aos espaços de arte no Brasil ainda é obstruído por uma série de barreiras. Izabeli Sales Matos - integrante da Associação dos Cegos do Estado do Ceará - explica que os mecanismos existem em abundância e vem evoluindo cada vez mais. "Entretanto, infelizmente, na prática, ainda são poucos os equipamentos preocupados e dispostos a fazer uso desses recursos e estratégia para que haja acessibilidade", acredita. Para Nilton Câmara, doutorando em Linguística e intérprete da Língua Brasileira de Sinais (Libras) há 20 anos, a pior barreira é a atitudinal. Ele explica que, em algumas situações, as apresentações teatrais e shows musicais são taxados como acessíveis, mas o que acontece na realidade é uma "gambiarra" - pois não há preocupação com a visibilidade do intérprete ou com a logística de iluminação, por exemplo. Recentemente, Nilton ganhou voz nas redes sociais ao questionar a atitude do youtuber Whinderson Nunes, que, durante apresentação no programa global Caldeirão do Huck, fez uma espécie de "piada" simulando gestos atribuídos a Libras. "Quantos milhões de telespectadores assistiram e vão achar que Libras é qualquer coisinha", indaga Nilton. Ele se manifestou no Facebook e foi seguido pela comunidade surda. Como resultado, o youtuber pediu desculpas publicamente, se reconheceu "ignorante" diante do universo surdo e disse estar buscando um professor em São Paulo para aprender a língua. "O lado bom é que abriu uma discussão", pondera Nilton Câmara, que também é professor de Libras na Universidade Estadual do Ceará (UECE). Galiana Brasil - gerente do Núcleo de Artes Cênicas e também membro do Comitê de Acessibilidade do Instituto Itaú Cultural, localizado em São Paulo - explica que há um déficit histórico quando se analisa o acesso das pessoas com deficiência aos bens culturais. O instituto desenvolve uma série de ações para trazer o público com deficiência, transtornos globais de desenvolvimento e altas habilidades para as dependências do equipamento. "O que estamos fazendo não é só cumprimento de lei, é um dever histórico. Os direitos foram negados para essas pessoas por muitos anos", pontua. As ações incluem mecanismos que facilitem a compreensão e a apreciação de exposições, presença de intérprete de Libras em todas as programações - presenciais ou virtuais -, e a eficácia de estruturas físicas, que incluem rampas e outros elementos. O custo para desenvolver as ações, apontado como vilão por muitos gestores de centros culturais, é tratado por Galiana como um investimento. "Se a gente vestir a capa do 'é caro', a gente não avança. Tem custo, sim. É preciso 24 trabalho, capacitação de pessoal, estudo. Mas é necessário avaliar como investimento, e não como custo. É um público em potencial que fica muito reprimido. E os equipamentos culturais não precisam atrair público? Precisamos olhar nessa perspectiva", sustenta a gestora. Disponível em: <https://www.opovo.com.br/jornal/vidaearte/2018/07/cultura-para-todos.html> Acesso em: 16 ago. 2018. Inclusão e acessibilidade na cultura Recentemente, o projeto Cinema Inclusivo, realizado em Brasília, pensou na expansão do acesso a deficientes físicos em espaços culturais. Em meio a escassez de espaços culturais na cidade, há quem tenha que se ausentar ainda mais do contato com a criação artística. Há um público de pessoas com deficiência que deixa de frequentar espetáculos, palestras e apresentações pela falta ou precariedade de espaços acessíveis a toda a população em lugares que nascem com a ideia de propagar arte e cultura ao mais amplo e diversos público possível. A acessibilidade é tanto um direito por si só, quanto um recurso para que as pessoas com e sem deficiência usufruam com equiparação de oportunidades de bens e serviços. O direito à acessibilidade garante o direito à vida. Jornalista e especialista em comunicação acessível, Claudia Werneck lembra que todos usufruem de uma oferta maior ou menor de recursos de acessibilidade, conscientemente ou não. A jornalista estuda a condição humana da deficiência desde 1991 e a pratica na edição de seus livros desde 1993. Idealizadora da ONG Escola de Gente – Comunicação em Inclusão, Claudia destaca que não se pratica inclusão sem comunicação acessível e inclusiva, lembrando que estes são dois conceitos diferentes. Werneck se interessou pela deficiência a partir da Síndrome de Down, quando escreveu uma reportagem sobre o assunto e percebeu que não abordava a deficiência como tema cotidiano, apenas em dias festivos. “O mais eficiente é entender que a deficiência faz parte da vida, não é um detalhe da vida. Assim, adolescentes com deficiência podem participar de uma reportagem romântica sobre o primeiro beijo, pais e mães com deficiência têm opinião sobre economia doméstica e mulheres com deficiência podem ser fotografadas e darem seus depoimentos sobre como é, por exemplo, amamentar sem braços”. A especialista lembra que a acessibilidade é um direito que beneficia toda a população, e não somente a população com deficiência. Mas, como bens culturais acessíveis são raros, o impacto deles na vida cultural de pessoas com deficiência é maior. Cinema Inclusivo Pensando na expansão deste acesso, projetos como o Festival de Cinema Inclusivo, que ocorreu recentemente no Cine Brasília, se empenham em levar informação e debate a respeito das questões ligadas à deficiência e seu direito de acesso cultural. Curadora do projeto e de outras inciativas na área, Barbara Barbosa, enfatiza que o acesso à cultura é direito de todos e é importante que o público com deficiência tenha esse direito respeitado com acessibilidade e autonomia. É essencialque esses espaços sejam pensados para todas as pessoas e tipos de plateia, respeitando a Lei Brasileira de Inclusão. 25 Barbara, intérprete de Libras e Joaquim Emanuel, presidente da Abrasso (foto: Iano Andrade/CB/D.A Press) Barbara lembra que a cultura educa, transforma, diverte, traz experiências sociais importantes para o desenvolvimento individual e coletivo, permite a troca de opiniões e sensações entre as pessoas. “Quando a pessoa com deficiência pode fazer parte dessa experiência tão corriqueira e autônoma para quem não tem deficiência, ela tem a certeza de que está incluída na sociedade em que vive”, afirma. A Instrução Normativa nº 128, de 2016, da Agência Nacional do Cinema (Ancine), determina a obrigação das distribuidoras em lançar os títulos com o recurso da audiodescrição. Mas, por ser uma decisão nova, muitos deles ainda não são acessíveis. As pessoas estão cada vez mais abertas às questões ligadas à deficiência, mas ainda existe falta de conhecimento para lidar com o assunto e criar espaços plenamente acessíveis. “O preconceito está muito mais ligado à ignorância do que à discriminação pura e simples. Por isso, a inclusão é tão importante”, afirma Barbara. Ela lembra que o festival inclusivo é importante por respeitar o direito de toda a população a se divertir e ter acesso aos meios culturais. Pessoas com deficiência representam 28,3% da população do Distrito Federal. “Se considerarmos que essa parcela pode ter sempre um acompanhante, pelo menos, teremos quase 50% da população total que deixa de ir ao cinema, por exemplo, por falta de acessibilidade”, destaca Barbara. A acessibilidade cultural permite que essa experiência seja plena e prazerosa tanto quanto é para alguém que não tenha deficiência. Joaquim Emanuel, surdo de nascença, é presidente da Associação Brasileira dos Surdos Oralizados (Abrasso) e conta que ficou afastado de espaços culturais por muito tempo, especialmente no que se refere à música, ao teatro e ao cinema nacional. “No teatro, me faltam as legendas da peça, para os surdos que usam Libras, falta o intérprete; para o cego, a audiodescrição; para o cadeirante, rampas, nivelamento, banheiros acessíveis”, afirma. Por essas razões, Joaquim e toda a sua família deixaram de ir ao cinema, que perdeu quatro pessoas em seu público. “Pense isso multiplicado em 25% da população”. Ele ressalta que o direito de ir e vir é fundamental. Duas perguntas / Claudia Werneck Qual a importância de tornar mais acessíveis e inclusivos os espaços culturais? 26 Não há democratização da cultura sem ampla e diversificada oferta de acessibilidade física e na comunicação. E essa oferta de acessibilidade não pode estar localizada, deve permear todas as etapas da produção do bem cultural. Pessoas com deficiência podem estar na plateia, ser atrizes, pensadoras, produtoras, iluminadoras, cenógrafas... A Escola de Gente idealizou em 2011 a campanha ‘Teatro Acessível. Arte, Prazer e Direitos’, com o objetivo de garantir mais autonomia e participação de pessoas com deficiência, baixo letramento e mobilidade reduzida, entre outras condições, na vida cultural de suas cidades. Que questões acha que precisam ser abordadas com mais ênfase? Ainda existe muito preconceito? Desde cedo nossas famílias e escolas nos ensinam a discriminar, em função de diferenças e desigualdades. A criança cresce sem intimidade com o tema que é o mais humano de todos os temas: a nossa humanidade. Somos um conjunto indivisível de seres humanos e únicos. Nascemos embaralhados e chegamos ao mundo de forma desorganizada. Nunca nasceu alguém idêntico a alguém. Nesse contexto, “o diferente” ou “a diferente” não existe. Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/diversao-e-arte/2017/02/06/interna_diversao_arte,570909/claudia- werneck-defende-inclusao-e-acessibilidade-na-cultura.shtml>Acesso em: 16 ago. 2018. A diversidade cultural confere riqueza, cor e dinamismo à nossa vida. Trata-se de uma abertura intelectual e de uma força motora para o desenvolvimento social e o crescimento econômico. Entretanto, conforme demonstrado no texto a seguir, a diversidade cultural, por si só, não gera paz e progresso. É necessário aprender sobre a alteridade, desenvolver a habilidade de desviar o foco de si mesmo, de modo a dialogar e reconhecer o valor implícito em cada cultura. Dia Mundial da Diversidade Cultural para o Diálogo e o Desenvolvimento Mensagem de Audrey Azoulay, diretora-geral da UNESCO, por ocasião do Dia Mundial da Diversidade Cultural para o Diálogo e o Desenvolvimento, 21 de maio de 2018 O Dia Mundial da Diversidade Cultural nos convida a ir além do reconhecimento da diversidade, para que possamos identificar os benefícios do pluralismo cultural, considerado um princípio ético e político de respeito igualitário pelas identidades e tradições culturais. Esse princípio está no cerne da Declaração Universal da UNESCO sobre a Diversidade Cultural, aprovada pela Organização em 2001, que reconhece a diversidade cultural como parte do patrimônio comum da humanidade e como uma força motora para a paz e a prosperidade. As questões levantadas por essa Declaração, elaborada após os atentados de 11 de Setembro, continuam sendo muito relevantes. Em primeiro lugar, existe a necessidade de proteger as diferentes formas de expressão cultural (línguas, artes, artesanatos e estilos de vida), em especial dos povos considerados como minorias, para que elas não desapareçam pelo movimento de padronização que acompanha a globalização. Estes são elementos essenciais para definir as identidades individuais e coletivas e, com isso, sua proteção se enquadra no respeito à dignidade humana. Em segundo lugar, existe a questão do acesso à vida cultural das pessoas de uma comunidade e de um país. Este é também um direito consagrado no Artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, cujo 70º aniversário é comemorado neste ano: “Todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios”. 27 Enquanto a revolução tecnológica tornou muitas formas culturais e artísticas mais facilmente acessíveis, e o comércio em todo o mundo aumentou exponencialmente, ainda existem muitos obstáculos ao acesso igualitário a bens e serviços. Isso afeta em particular as mulheres, as pessoas socialmente desfavorecidas e as comunidades minoritárias em seus próprios países. É por isso que a UNESCO, neste Dia Mundial, está organizando em Paris um painel de debates sobre essa questão central: “Como podemos fazer com que a cultura seja acessível a todos?”. Por último, ser capaz de construir livremente a própria identidade, tomando como base várias fontes culturais, assim como ser capaz de desenvolver de forma criativa o próprio patrimônio, são os fundamentos de um desenvolvimento pacífico e sustentável de nossas sociedades. Essa é uma questão essencial, assim como um desafio para o futuro: integrar a cultura em uma visão global de desenvolvimento. Esse é o desafio lançado, por exemplo, pela Rede de Cidades Criativas, apoiada pela UNESCO: abrangendo 180 cidades em 72 países, essa rede tem como objetivo promover um modelo de desenvolvimento urbano sustentável, com foco nas artes criativas e com base na cooperação ativa entre cidades de todo o mundo. “Eu não quero que a minha casa seja murada por todos os lados, nem que as minhas janelas sejam obstruídas. Eu quero que a cultura de todos os lugares seja soprada através da minha casa da forma mais livre possível”. Com essas imagens, Mahatma Gandhi sugeria que a cultura não é um patrimônio gravado nas pedras, mas um patrimônio que vive e respira, aberto
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