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 EPSJV – Fundação Oswaldo Cruz. Doutora em História e Filosofia das Ciências, das Técnicas e 
Epistemologia. 
** HCTE – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutoranda em História e Filosofia das Ciências, das 
Técnicas e Epistemologia. 
 
Um experimento crucial em Química? A síntese de Williamson e seu significado na 
construção do conhecimento químico do século XIX 
TÂNIA DE OLIVEIRA CAMEL*, ZULENA DOS SANTOS SILVA **. 
 
 A proposta de Francis Bacon (1561-1626) de método experimental aplica-se à 
Química do século XIX? O que temos como problema é se cabe transpor a concepção de 
método científico de Francis Bacon para uma investigação científica do século XIX. Há 
algum valor apriorístico nas práticas científicas, alheio às transformações históricas? Faz 
sentido pensar em método para a ciência, a qual pode ser uma prática sujeita ao processo 
histórico? 
 Pretendemos com este trabalho examinar se a síntese do éter etílico realizada por 
Alexander William Williamson (1824-1904) procede conforme as prescrições do método 
experimental concebido por F. Bacon, mais precisamente se a investigação de Williamson 
realiza algum experimento crucial, conforme afirma T. Benfey em From vital force to 
structural formulas. (1975: 50-61 ). É nessa etapa do método científico, conforme pensada 
por F. Bacon, que vamos nos concentrar. O artigo desenvolve-se através dos itens a seguir: 
I) Exposição breve sobre o pensamento de F. Bacon e o contexto das discussões 
acadêmicas em que ele se encontra. 
II) Definição do que F. Bacon entende por ‘experimento crucial’ 
III) Exposição do trabalho de Williamson com vistas a identificar as fórmulas 
correspondentes ao álcool e ao éter. 
IV) Discussão sobre a experimentação de Williamson: um experimento crucial na 
sua investigação ou não? 
V) Apresentação de algumas interpretações críticas à pretensão de se alcançar 
verdade sobre os fatos da natureza por meio da ideia de ‘experimento crucial’. 
VI) Discussão de mais algumas questões. 
 
I) Razão e Experiência no pensamento de Francis Bacon 
 
 Francis Bacon, na sua obra Novum Organum (NO), de 1620, a respeito da ciência 
da natureza, adota o lema de que é preciso conhecimento dos fatos reais, e não do que devem 
ser. Assim, em vista da explicitação de um método, um modo de conduzir a observação dos 
 
 
2 
fenômenos naturais, empreende, em contrapartida, críticas à concepção aristotélica da física, 
em vigência, sustentada pela Escolástica. A Física de Aristóteles, no início da Idade Moderna, 
foi gradativamente substituída por outra concepção da Natureza. Tal processo de 
reformulação de ideias ou visão de mundo ou da natureza constitui um dos aspectos do que 
denominamos Revolução Científica do século XVII. 
 Para F. Bacon, aquela física estabelecida estava impregnada de ‘antecipações da 
mente’, ou seja, preconceitos que inviabilizavam a “leitura” do que ocorre na natureza, o que 
em nada contribuía para avanço do conhecimento, desviando o foco da observação para 
discussões estéreis sobre conceitos que não correspondiam à ocorrência dos fatos naturais, 
mas às especulações humanas sem direção. Segundo este pensador inglês, há que se ocupar 
com o método que se oriente pelas sensações, e não por argumentação distanciada destas. 
Assim ele afirma no Prefácio do NO (BACON, 1984: 5-6): 
 
 Nosso método, contudo, é tão fácil de ser apresentado quanto difícil de se aplicar. 
Consiste no estabelecer os graus de certeza, determinar o alcance exato dos 
sentidos e rejeitar, na maior parte dos casos, o labor da mente, calcado muito de 
perto sobre aqueles, abrindo e promovendo, assim, a nova e certa via da mente, 
que, de resto, provém das próprias percepções sensíveis. (...) 
 (...) aqueles dentre os mortais, mais animados e interessados, não no uso presente 
das descobertas já feitas, mas em ir mais além; que estejam preocupados, não com 
a vitória sobre os adversários por meio de argumentos, mas na vitória sobre a 
natureza, pela ação; não em emitir opiniões elegantes e prováveis, mas em conhecer 
a verdade de forma clara e manifesta; esses, como verdadeiros filhos da ciência, 
que se juntem a nós, para, deixando para trás os vestíbulos das ciências, por tantos 
palmilhados sem resultado, penetrarmos em seus recônditos domínios. E, para 
sermos melhor atendidos e para maior familiaridade, queremos adiantar o sentido 
dos termos empregados. Chamaremos ao primeiro método ou caminho Antecipação 
da Mente e ao segundo de Interpretação da Natureza. 
 
 Uma interpretação que importa aqui ressaltar é quanto a ciência moderna não ser 
mais vista como mera descrição passiva da natureza, contemplativa desta, mas que permite 
intervenção sobre ela, ou seja, a natureza torna-se objeto da atividade humana, esta que por 
seus experimentos pretende extrair alguma conclusão do que se observa. 
 Cabe aqui lembrar que na concepção de Aristóteles a natureza tem que ser deixada 
intocável, manifestar-se como ela é por si mesma – e ela sendo no mundo físico em vista do 
repouso; observando-a é que galgamos etapas do processo de conhecimento que vai do que se 
quer conhecer, para o como e alcançamos enfim o porquê, o nível mais elevado de saber: os 
princípios últimos e fundamentais, as causas primeiras de todas as coisas, o ser enquanto ser. 
Estas causas revelam-se ao se percorrer o trajeto de manifestação da Natureza em direção ao 
 
 
3 
seu fundamento, algo subjacente a ela ou está para além dela, algo metafísico a ser 
contemplado. 
 A predisposição pelo conhecimento como interventor na natureza, e não 
contemplativo, já é anunciada por F. Bacon quando diz em seu NO que há que se conjugar “a 
observação dos fatos” e “o trabalho da mente”, um sem o outro não seriam eficientes em vista 
do conhecimento da natureza. Vejamos citação do Livro I, Aforismos I e II, do NO (BACON, 
1984: 13): 
 
O homem, ministro e intérprete da natureza, faz e entende tanto quanto constata, 
pela observação dos fatos ou pelo trabalho da mente, sobre a ordem da natureza; 
não sabe nem pode mais. 
Nem a mão nua nem o intelecto, deixados a si mesmos, logram muito. Todos os 
feitos se cumprem com instrumentos e recursos auxiliares, de que dependem, em 
igual medida, tanto o intelecto quanto as mãos. Assim como os instrumentos 
mecânicos regulam e ampliam o movimento das mãos, os da mente aguçam o 
intelecto e o precavêm. 
 
Vemos com F. Bacon que a recorrência à experiência sensível legitima a ciência, a 
teoria precisa se ajustar ao que observa na natureza, e isso é efetuado através daqueles 
procedimentos avaliativos por comparação e experimentos, de modo que a observação seja 
orientada pelo intelecto, e este, por sua vez, opere sobre a natureza de acordo com o que esta 
revela por si mesma. 
Sendo assim, segundo F. Bacon, a indução é o meio seguro para se empreender 
conhecimento; e sua preocupação é com a sistematização do método indutivo – daí sua 
formulação de um procedimento comparativo de observações e experimentos, dentre eles um 
crucial, sobre o que veremos a seguir. 
Digno de nota que, no contexto em que F. Bacon formula suas ideias, é controvertido o 
entendimento do que seja uma explicação verdadeira sobre a natureza, uma vez que, no 
tocante aos eventos celestes, p.ex., teorias concorriam para ‘salvar os fenômenos’, i.e., 
mostravam-se consistentes, mas, segundo seus críticos, não demonstravam a verdade dos 
fatos – à época, a teoria Copernicana tentava sobrepor-se à Ptolomaica, temos o confronto de 
ideias sobre o sistema astronômico ser ou não heliocêntrico, se a Terra se move ou não. São 
correntes nesse período os comentários sobre ser o Copernicanismo uma teoria sem 
fundamento empírico, uma teoria como outra qualquer, válida apenas como artifício e 
tentativa de ‘salvar as aparências’. 
Ora, se assim sem provase certezas as explicações oferecidas por um sistema 
astronômico, que como tal mostra-se como mais uma compreensão entre outras do Universo 
 
 
4 
físico real, então este sistema é hipotético. E como afirma Paolo Rossi: “Ampliando 
desmesuradamente os confins do Universo, chegando simplesmente à afirmação do Universo 
infinito, a nova astronomia deu a muitos a sensação precisa do fim de todas as visões e 
considerações tradicionais do cosmos.” (ROSSI, 1992: 161). 
Uma questão que pode ser destacada mediante essas controvérsias é sobre a função da 
hipótese, como observa Paolo Rossi, o que diz respeito à divergência entre realistas e os que 
entendem que os sistemas astronômicos, físicos, científicos são apenas hipotéticos, uma vez 
que não correspondem à realidade. 
E vale indagar o que se compreende por realidade e como acessá-la com precisão e 
descrição fidedigna de como os fatos ocorrem. Frente a esses problemas é que se encontra F. 
Bacon. Podemos imaginar que daí o seu interesse pelo método experimental e a defesa da 
indução como caminho para o conhecimento verdadeiro da natureza. 
 
II) Uma etapa do método científico: a Instancia Crucial 
 
 O método indutivo comporta uma importante etapa, a do “experimento crucial” _ 
“vocábulo tomado às cruzes que se colocam nas estradas para indicar as bifurcações” (Bacon, 
1984: 161) __ como entendido por F. Bacon, uma das instancias prerrogativas do método 
indutivo, o que podemos conferir no Livro II, Aforismo XXXVI, do NO (BACON, 1984: 
161): 
 
Quando, na investigação de uma natureza, o intelecto 
se acha inseguro e em vias de se decidir entre duas ou mais naturezas que se devem 
atribuir à causa da natureza examinada, em vista do concurso frequente e comum 
de mais naturezas, em tais situações, as instancias cruciais indicam que o vínculo 
de uma dessas naturezas com a natureza dada é constante e indissolúvel, enquanto 
o das outras é variável e dissociável. A questão é resolvida e é aceita como causa 
da primeira natureza, enquanto as demais são afastadas e repudiadas. Tais 
instâncias são muito esclarecedoras e têm uma significativa autoridade. Muitas 
vezes, nelas termina o curso da investigação ou em muitas outras este é por elas 
completado. Mas às vezes as instâncias cruciais aparecem entre as instancias antes 
indicadas; mas, em sua maior parte, são buscadas, aplicadas intencionalmente e 
estabelecidas com trabalho árduo e diligente. 
 
 O experimento crucial, como vemos, concerne ao momento em que o intelecto 
precisa decidir entre duas ou mais possibilidades de identificar qual a causa ou o porquê de 
um fenômeno natural investigado. Uma das possibilidades limites, expostas pelo experimento 
crucial, confirma a hipótese explicativa. 
 
 
 
5 
III) A síntese de Williamson e seu significado na construção do conhecimento 
químico do século XIX 
 
 O artigo, Results of a Research on Aetherification, de Williamson sobre a 
constituição do éter apareceu em 1850. 1 
 
 
Figura 1 – Referência do artigo de 1850 de A. W. Williamson 
 
 Segundo Benfey, o artigo de Williamson descreve o que se pode precisamente 
denominar de um experimento crucial, uma vez que o artigo nos revela como Williamson 
chegou à conclusão sobre qual era a fórmula correspondente ao álcool e a correspondente ao 
éter. Williamson desejava produzir alcoóis superiores e projetou um método para substituir 
hidrogênio por etil no álcool etílico, entretanto, ele obteve éter comum. A reação química 
envolvida, de acordo com as ideias expressas na teoria da substituição, pode ser 
esquematizada da seguinte forma: 
• Álcool + potassa � produto A 
• Produto A + etil-iodo ���� Produto B 
 
 De acordo com o artigo de Williamson, há duas possibilidades para a fórmula do 
álcool: 
• na primeira, o álcool tem fórmula C2H6O e um átomo de álcool pesa 23, para 
O=8 e C= 6 e H=1/2. Para formar o éter, dois átomos de álcool são necessários, 
de modo que um toma C2H4 do outro e libera H2O. 
• na segunda, o álcool tem fórmula C4H10O. H2O e pesa 46. Sua constituição é 
binária, contém éter e água. 
 Na primeira, temos a fórmula baseada na teoria unitária de Laurent e na segunda a 
fórmula de constituição binária na teoria dos radicais de Liebig. 
 
1
 Philosophical Magazine, [3] 37 (1850), 350-356. 
 
 
6 
 Williamson desejava saber qual das duas expressões corresponde à constituição do 
álcool. De acordo com o artigo original de Williamson, para o primeiro caso tem-se a reação 
representada na figura 2: 
 
 
Figura 2 – Reação do álcool, de acordo com a teoria de Laurent 
 
 Na primeira visão, álcool é realmente água na qual metade do hidrogênio foi 
substituído por C2H5. Éter é água quando os dois hidrogênios são substituídos por C2H5, de 
acordo com as fórmulas tipo exibidas no artigo original na figura 3. 
 
 
Figura 3 - Fórmulas tipo água para o álcool e para o éter 
 
 Pela segunda teoria temos: o composto com potássio contém éter e potássio que se 
separa, e é substituído por C4H10, conforme o fragmento do artigo original na figura 4. 
 
 
Figura 4 – Reação do álcool, de acordo com a teoria de Liebig 
 
 A diferença entre as duas teorias é que na teoria unitária a substituição se dá na 
molécula como um todo formando um só produto orgânico e na teoria dos radicais a 
substituição ocorre só no K2O, um dos constituintes, formando dois produtos orgânicos, neste 
caso, iguais, ou um com dois oxigênios. 2 
 Williamson então propôs um segundo experimento para eliminar uma das teorias, a 
partir de uma síntese assimétrica, que resultaria em dois produtos orgânicos diferentes na 
teoria de Liebig e um único na teoria de Laurent. A reação representada por Benfey para a 
 
2Neste caso era um éster, até então incluído nos éteres. Pela descrição de Williamson em seu artigo, ele obteve 
um éster. 
 
 
7 
síntese assimétrica pode ser observada na figura 5, embora Williamson não as tenha exposto 
no artigo original. 
 
 
Figura 5 – Reações propostas por Benfey, de acordo com Liebig 
 
 Uma vez eliminada a teoria dos radicais de Liebig, Williamson estendeu o 
experimento para ácidos e predisse a possibilidade de obter o anidrido acético por substituição 
do hidrogênio do ácido acético por C2H3O. De acordo com Williamson: “se dois átomos de 
hidrogênio na água podem ser substituídos por otila 3 (etil-oxigênio), deveríamos ter o 
anidrido do ácido acético”. (WILLIAMSON, 1902: 16, orig.1850). 
 Em 1852, Gerhardt obteve o anidrido seguindo as orientações de Williamson. A teoria 
da substituição e as teorias do tipo e da estrutura foram extraordinariamente bem sucedidas 
em produzir e predizer novos resultados, incluindo a síntese de dezenas de milhares de 
compostos nas próximas décadas. (NYE, 1993: 67). 
 As investigações de Williamson sobre os éteres conduziram-no à sua teoria do “tipo 
água”, assim como a prova experimental de que a água era H2O e não HO, o que levou à 
adoção das fórmulas de dois volumes, ao reconhecimento da hipótese de Avogadro, pois no 
sistema de dois volumes os gases hidrogênio e oxigênio são considerados diatômicos, e 
consequentemente ao uso do peso 16 para o oxigênio e não de 8. 
 Se a fórmula da água é H2O, a proporção de combinação entre os átomos de 
hidrogênio e de oxigênio e a reação é representada como se segue: 
 
 
 
3
 Atualmente corresponde ao radical acetil. 
 
 
8 
Átomos 2 H + O � H2O 
Partes/peso: 2x1 + 16 � 18 
Partes/vol.: 2 + 1 � 2 
 
A síntese de Williamson forneceu evidências para a posterior concepção unitária de 
moléculas epara a ideia de que oxigênio poderia unir dois radicais. O artigo também é 
significativo por oferecer uma generalização da noção casual de Williamson da basicidade de 
átomos e de radicais. Odling sugeriu que o “valor de substituição” de um átomo podia ser 
representado por um número apropriado de aspas a direita do símbolo do elemento: H’, O’’, 
N’’’. Bases complexas, assim como ácidos, podiam ser representadas pela substituição em 
uma ou mais moléculas de água. O tipo água foi estendido para “tipos múltiplos de água”. O 
ácido fosfórico, por exemplo, teria a seguinte fórmula: (ROCKE, 1984: 252). 
 
 
Figura 6 – Fórmula tipo do ácido fosfórico 
 
 Na teoria de Williamson estas fórmulas podiam ser interpretadas como a 
representação de uma molécula composta de átomos unidos, porém Odling e Gerhardt não 
estavam muito convencidos a este respeito. Odling sugeriu as duas fórmulas para o ácido 
hipossulfúrico e de acordo com o seu critério somente a segunda fórmula para o ácido 
hipossulfúrico podia ser interpretada no sentido unitário, uma vez que nesta, o tipo múltiplo 
mantinha-se unido por átomos ou grupos de átomos que fossem capazes de substituir mais do 
que um átomo de hidrogênio. (ROCKE, 1984: 252). 
 
 
Figura 7 – Fórmula tipo do ácido hipossulfúrico 
 
 Williamson claramente expressou a ideia de equilíbrio químico como um balanço 
entre dois conjuntos de moléculas nas quais alguns átomos ou radicais (sem carga) podem 
existir livremente por curtos períodos de tempo nos artigos Results of a Research on 
Etherification e Suggestions for a Dynamics of Chemistry Derived from the Theory of 
Etherification. (NYE, 1993: 116). 
 
 
9 
 A síntese foi amplamente reproduzida em outras sínteses durante os anos 1850, 
fornecendo evidências adicionais para a adoção da reforma de Gerhardt-Laurent dos pesos 
atômicos e moleculares, levando a consolidação dos pesos atômicos sugeridos por Cannizzaro 
no congresso de 1860. Como consequência, a maioria das fórmulas (fórmulas de quatro 
volumes) deveria ser dividida por dois. 
 O papel central de Williamson na “Quiet revolution” dos anos 1850 é incontestável e 
seu artigo de 1850 influenciou o pensamento de químicos e físicos sobre o grau e o tipo de 
movimento dos átomos na molécula, assim como, sobre o movimento da molécula como um 
todo, como é possível observar com Clausius em 1857. 
 A síntese de Williamson do éter comum ou sulfúrico a partir do álcool comum, em 
1850, citada por Benfey como um experimento crucial tem sua importância epistemológica 
ressaltada por vários historiadores da ciência, como por exemplo, por ROCKE (1986: 18): 
 
Foi esta conquista e o desenvolvimento de suas implicações teóricas na próxima 
década que conduziu à primeira evidência química para um conjunto de grandezas 
atômicas com a qual todos podiam concordar. Em um sentido mais amplo, a síntese 
do éter também conduziu ao surgimento da teoria da valência e da estrutura, 
especialmente nas mãos de Kekulé. 
Esta síntese forneceu suporte para a decisão entre a teoria de Liebig e a de Laurent sobre 
a constituição do álcool. A consequência imediata foi a reforma do sistema de pesos atômicos, 
que resultou na divisão das fórmulas à metade. Esta atitude significava padronizar o peso do 
carbono e do oxigênio em 12 e 16, respectivamente, e estava de acordo com a classificação de 
Gerhadt. 
 
IV) Reflexões e Problemas acerca da Instancia Crucial 
 
 A respeito da ideia de “instancia crucial” como etapa do método científico, podemos 
indicar os seguintes problemas: 
 
1) Seguindo o modus tollens, pode-se refutar a premissa proposta por uma hipótese ou 
teoria, mas não confirmá-la, a partir de um experimento e observação empírica, como 
entendia Bacon. Ou seja, o experimento crucial, conforme aquele silogismo lógico, não seria 
uma etapa definitiva do método, por não se poder garantir que o experimento confirme uma 
teoria ou explicação buscada em uma investigação científica; antes seria uma etapa que 
 
 
10 
deixaria a teoria científica em aberto, em última análise, sempre hipotética, pois no máximo, 
pode a experiência refutar ou não refutar a explicação ou teoria científica. 
 A compreensão de que a ciência tem seu procedimento investigativo pela forma 
lógica do modus tollens remonta ao pensamento de Karl Popper, filósofo da ciência no século 
XX, que apresenta o conceito de ‘falseabilidade’ como critério de demarcação de teorias 
científicas frente às não científicas; este conceito caracteriza a ciência como investigação 
incessante, não dogmática, que se motiva por problemas, gerando mais problemas; isso não é 
demérito para a ciência, pois uma teoria não pode ser confirmada por alguma experiência, 
apenas refutada ou não refutada, segundo ele. 
 Modus tollens consiste em um silogismo hipotético da forma “Se t, então p; ~ p, ~ t”. 
Mas se recairia em falácia deduzir que “Se t, então p; p, t”. Ou seja, é válido que se um 
enunciado científico hipotético, em que se afirma hipoteticamente t, e que então seja possível 
que o enunciado p decorra; mas “se não p, não t”. Mas é inválido, afirmando-se 
hipoteticamente t, e então p, deduzir que uma vez que p ocorre então t é verdadeira. A 
invalidade disso está em que p pode ocorrer e não necessariamente decorrer de t; a relação de 
p com t é a de uma decorrência possível, hipotética. 
 
2) Por outro lado, pode-se entender que a experiência que parece refutar pode ser 
absorvida pela teoria em questão; portanto, não havendo possibilidade de experimento crucial 
não porque a experiência possa apenas refutar a teoria e não confirmá-la (o caso mencionado 
no item 1), mas sim porque, grosso modo, toda experiência ou observação já pressupõe uma 
visão que a compreende, uma teorização por assim dizer; e com isso ajusta-se a experiência, a 
princípio falseadora, à teoria que se pretende refutar. Com isso nos referimos à concepção de 
Lakatos, para quem uma teoria científica constitui-se de um núcleo não falseável, quer dizer, 
àquele que não se permitiria aplicar o modus tollens; antes sim a ele se articula “hipóteses 
auxiliares”, as quais formam, segundo Lakatos, ‘o cinto de proteção em torno do núcleo’, e é 
para tais hipóteses que o modus tollens vem a ser dirigido. Ou seja, os testes avaliam as 
hipóteses auxiliares que formam o cinturão da teoria, este é que se ajusta ou se reajusta, ou 
mesmo torna-se descartável, deixando-se protegida com isso a teoria. A isso Lakatos 
denomina de ‘heurística negativa’. Em outras palavras, é como que um modo de compreender 
com que se observa e molda o campo empírico. 
 Por sua vez, como designado por Lakatos, ‘heurística positiva’ consiste no conjunto 
de ideias, sugestões para explorar “variantes refutáveis”, de modo a tornar o cinto protetor 
 
 
11 
refutável mais sofisticado, o qual por fim ajusta as refutações, não apenas as predizendo, 
antecipando-as, produzindo-as. 
 Mediante essas considerações, parece que não podemos mais pensar na possibilidade 
de instancia crucial, pois experimentos confrontam fenômenos com a teoria para confirmá-la, 
o núcleo teórico se preserva, qualquer experimento em vista de explicação de fenômenos 
corrobora a teoria, i.e., a teoria já se antecipa aos fatos e coordena os experimentos e as 
variantes refutáveis, de modo a não haver possibilidade de instancia crucial, de haver dúvida 
pelo que se decidir como explicação, essa já está pressuposta a partir do programa de pesquisa 
configurado no núcleo. O fenômeno confrontado será explicado à luz da teoria que se 
pretende refutar. 
 
3) A perspectiva de I. Lakatos lembra a idéia de Pierre Duhem sobre ‘salvar os 
fenômenos’. 
 A compreensão da teoria científica como ‘salvando fenômenos’ – i.e. forjando 
explicações artificiais, instrumentais, consistentes (mas não necessariamenteverdadeiras) para 
ocorrências que se mostram insubordinadas a alguma teoria vigente – indica que a ideia de 
experimento crucial não é suficiente para se recusar uma teoria sobre a natureza como não 
válida. Como vemos, teorias científicas são como instrumentos de cálculo que oferecem 
explicação satisfatória sobre o que se observa, mas não descrevem a realidade tal como esta se 
constitui; portanto, como se poderia realizar um experimento crucial para confirmar uma 
teoria, se esta não descreve em última análise a realidade? 
 Notamos com as reflexões de P. Duhem que podemos não negar o domínio dos 
fenômenos para a ciência da natureza, mas não podemos deixar de admitir que o acesso e 
descrição de sua verdade é algo controvertido... 
 O valor dado ao método experimental toma como válido que uma experiência 
“convencendo sobre o erro de um sistema, confere a certeza ao sistema oposto; a Ciência 
positiva progride por uma seqüência de dilemas dos quais cada um é resolvido com ajuda de 
um experimentum crucis.” (DUHEM, 1984: 100). 
 Para P. Duhem, contudo, essa compreensão em voga na época de Galileu – e tomada 
como característica da ciência moderna em diversos manuais – é falsa porque a possibilidade 
de um sistema não “salvar”, não explicar consistentemente fenômenos, não implica que um 
sistema oposto a esse seja verdadeiro. E do fato que um sistema salve fenômenos, pode-se 
inferir que seja plausível, possivelmente verdadeiro, mas não se pode concluir que seja 
efetivamente verdadeiro. E como ele prossegue: “... para legitimar essa conclusão, seria 
 
 
12 
preciso provar, antes, que não poderia ser imaginado nenhum outro conjunto de hipóteses que 
permitisse igualmente bem salvar as aparências.” (DUHEM, 1984:100). Ou seja, há a 
necessidade de demonstrar que hipóteses opositoras a um sistema não são melhores ou mais 
consistentes do que este concorrente; para isso, no entanto, recorre-se a um domínio não mais 
experimental, mas de avaliação de teorias, com o que não nos ocupamos aqui. 
 
V) O ‘experimento crucial’ no procedimento de Williamson 
 
 Conforme exposto no item III deste escrito, Williamson realizou um ‘experimento 
crucial’, no sentido proposto por F. Bacon? Vejamos o porquê dessa questão. Ele considerou 
haver duas possibilidades para a fórmula do álcool. Uma delas baseava-se na teoria unitária de 
Laurent e a outra na fórmula binária da teoria dos radicais de Liebig. Williamson desejava 
estabelecer qual das duas expressões era mais adequada à constituição do álcool e 
consequentemente eliminar uma das teorias, o que de fato conseguiu. 
 Mediante essas considerações podemos investigar como ele procedeu para atingir seu 
objetivo, ou seja, averiguar qual ‘experimento crucial’ realizou para decidir qual das duas 
fórmulas em sua investigação era válida, isto é qual das duas teorias era a mais adequada à 
descrição dos compostos orgânicos. 
 Seu experimento – para eliminar uma das teorias de sustentação para a fórmula do 
álcool – consistiu em partir de uma síntese assimétrica que resultaria em dois produtos 
orgânicos diferentes na teoria dos radicais de Liebig e em um na teoria unitária de Laurent. 
Em que sentido ocorre aqui um ‘experimento crucial’, como etapa do método científico 
pensado por F. Bacon? Como tal experimento permite fazer valer a compreensão unitária do 
álcool, e não uma compreensão de constituição binária? 
 Mesmo respondendo as questões anteriores afirmativamente, ainda é possível 
questionar se o sucesso em produzir e predizer novos resultados a partir da teoria vencedora é 
suficiente para se indicar que o procedimento de Williamson como ‘experiência crucial’ 
apontou a teoria correta. Em outras palavras, as seguintes questões se apresentam pertinentes: 
não haveria possibilidade de a teoria dos radicais de Liebig poder ser bem sucedida também 
na predição e produção de novos resultados? Por que não? 
Cumpre observar que a teoria dos radicais retornou pelas mãos de Kolbe, nos anos 
1850, após os experimentos de 1848, ocasião em que Kolbe e Frankland pensaram ter isolado 
os radicais metil, etil, valil e amil. Na tradição da teoria dos radicais, estes não eram apenas 
unidades, mas unidades subordinadas e sua constituição interna podia ser ignorada, o que, a 
 
 
13 
partir dos anos 1850, não era mais possível provocando, portanto, modificações à teoria. 
Kolbe consolidou, refinou e estendeu sua visão sobre a constituição dos radicais orgânicos em 
um longo artigo publicado em 1850. 4 
Cabe ainda questionar se a teoria dos radicais na sua nova versão poderia ter (ainda que 
em tese) o mesmo sucesso que a teoria unitária? Se sim, então não podemos afirmar que a 
síntese de Williamson expressasse um experimento crucial. Antes sim, sua síntese expressaria 
uma perspectiva teórica com valor instrumental, i.e. que ‘salva os fenômenos’, como na visão 
de Duhem. A questão que temos é quanto, a saber, como e por que a teoria de constituição 
binária, não pode ser bem sucedida com o experimento da síntese assimétrica. 
 
VI) Considerações Finais 
 
 Mediante a concepção de F. Bacon sobre a etapa do método científico denominada 
“instância crucial”, e o procedimento de Williamson para constatar qual a fórmula do álcool, 
por meio de experimento crucial, pode-se propor mais algumas questões: 
 
i) As ponderações de Duhem, Popper e Lakatos, resumidas anteriormente, sobre a 
‘experiência crucial’, continuam valendo mediante o caso da pesquisa de Williamson? 
 
ii) A Química do século XIX, propriamente a Química Orgânica, amadurecida com a 
investigação de Williamson, revela tardiamente uma compreensão de ciência do contexto 
histórico de F. Bacon, o século XVI? Estaria a Química Orgânica em descompasso com as 
mudanças históricas? Faz sentido assim perguntar, pressupondo a ideia de “progresso na 
história”? Ou apesar das mudanças ao longo do tempo em diversas expressões da cultura, 
como a sociedade, a economia, os valores religiosos, políticos, enfim, há possibilidade para 
uma história das ideias em ciência independente das possíveis interferências desses aspectos 
culturais, como no caso aqui apresentado que faz repercutir no século XIX uma concepção de 
ciência do século XVI? Ou ainda, tal descompasso temporal é possível e se justifica pelas 
singularidades desse campo científico? 
 
iii) Seria então a ‘experiência crucial’ um modus operandi estrutural da Química, e mais 
precisamente da Química Orgânica? 
 
4
 KOLBE, Ueber die chemishe Constitution und Natur der organischen Radicale, Ann. 75 (1850): 211-39, 76 
(1850): 1-73. 
 
 
14 
 
iv) Ou a Química futura, a dos dias de hoje, mostra-se reveladora de um 
instrumentalismo, i.e. teoria pertinente para ‘salvar os fenômenos’, como sugeriram Duhem e 
Lakatos, p.ex. ao indicarem ser a ‘experiência crucial’ uma pretensão que não confirma nem 
descreve fenômenos naturais? 
 
 Fiquemos por enquanto com essas questões, reconhecendo o papel de Willianson 
para a história e conquistas da Química, ele proporcionando também inquietações ou 
“ebulições” em nosso pensamento... 
 
Bibliografia: 
 
ARISTÓTELES. Metafísica de Aristóteles. Edição trilingue por Valentin Garcia Yebra. 
Madrid: Editora Gredos, 1982. 
BACON, Francis. Novum Organum. Tradução José Aluysio Reis Andrade. São Paulo: Abril 
Cultural, 1984 (Coleção Os Pensadores). 
BENFEY, O. T. From vital force to structural formulas. Washington: Chemical Heritage 
Foundation, 1975. 
DUHEM, Pierre. Salvar os Fenômenos, in Cadernos de História e Filosofia da Ciência. 
Suplemento 3. Campinas: UNICAMP, 1984. 
LAKATOS, Imre. O Falseamento e a Metodologia dos Programas de Pesquisa Científica, in 
A crítica e o desenvolvimento do conhecimento. Tradução de Octavio MendesCajado. São 
Paulo: Editora Cultrix, 1979. 
NYE, M. J. From chemical philosophy to theoretical chemistry: dynamics of matter and 
dynamics of disciplines, 1800 - 1950. Londres: Univ. of California Press, 1993. 
POPPER, Karl. A lógica da investigação científica. Tradução Pablo Rubén Mariconda. São 
Paulo: Abril Cultural, 1980 (Coleção Os Pensadores, Segunda Parte). 
ROCKE, A. J. Chemical Atomism in the Dalton to Cannizzaro. Ohio: Ohio State 
University Press, 1984. 
ROCKE, A. J. Convention versus Ontology in Nineteenth-Century Organic Chemistry. In: 
TRAYNHAM, J. G. Essays on the History of Organic Chemistry. Louisiana: Louisiana 
State University Press, 1986, p. 1-22. 
ROSS, David. Aristóteles. Luís Filipe Bragança S. S. Teixeira. Publicações Dom Quixote. 
Lisboa: Portugal. 1ª ed., 1987. 
 
 
15 
ROSSI, Paolo. A ciência e a filosofia dos modernos. Trad.: Álvaro Lorencini. Editora 
UNESP. São Paulo, SP, Brasil. 1992. 
WILLIAMSON, A. W. Results of a Research on Aetherification in Papers on Etherification 
and on the Constitution of salts. Alembic Club Reprints, Edinburgh, 16, 1902, orig.1850. 7-
17. Disponível em janeiro de 2008 em www.archive.org. 
 
 
 
 
Figuras 
Figura 1 – Referência do artigo de Williamson. (WILLIAMSON, 1902, orig.1850, p. 7). 
Figura 2 – Reação do álcool, de acordo com Laurent, 1850. (BENFEY, 1975, p. 52). 
Figura 3 - Fórmulas tipo água para o álcool e para o éter. (BENFEY, 1975, p. 52). 
Figura 4 - Reação do álcool, de acordo com Liebig, 1850. (BENFEY, 1975, p. 52). 
Figura 5 - Reações propostas por Benfey, de acordo com Liebig. (BENFEY, 1975, p. 52). 
Figura 6 – Fórmula tipo do ácido fósfórico. Retirado de (ROCKE, 1984, p. 252). 
Figura 7 – Fórmula tipo do ácido hipossulfúrico. (ROCKE, 1984, p. 252).

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