Buscar

Topofilia e espacialização a partir da perspectiva dos moradores em situação de rua - TCC

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 57 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 57 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 57 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

UNIVERSIDADE SALGADO DE OLIVEIRA 
CURSO DE GEOGRAFIA 
PRODUÇÃO CIENTÍFICA E GEOGRÁFICA 
 
 
 
 
 
 
SAMMIS REACHERS CRISTENCE SILVA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
TOPOFILIA E ESPACIALIZAÇÃO PELA PERSPECTIVA DOS MORADORES EM 
SITUAÇÃO DE RUA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
São Gonçalo 
2017 
SAMMIS REACHERS CRISTENCE SILVA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
TOPOFILIA E ESPACIALIZAÇÃO PELA PERSPECTIVA DOS MORADORES EM 
SITUAÇÃO DE RUA 
 
 
Trabalho de conclusão de curso apresentado ao 
Curso de Licenciatura em Geografia da 
Universidade Salgado de Oliveira como requisito 
para a obtenção da graduação em Geografia. 
 
 
Orientadora: Profa. Viviane da Silva de Alcantara 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
São Gonçalo 
2017 
Folha de aprovação 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 Dedico este trabalho ao meu amigo Carlos Antonio de Oliveira (Carlinhos), 
companheiro de trabalho, exemplo de esforço e conduta e meu maior incentivador 
para trilhar os caminhos acadêmicos. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
RESUMO 
 
 Este estudo investiga a existência, modos e características dos sentimentos 
topofílicos e topofóbicos a partir da perspectiva dos moradores em situação de rua. 
Para tanto, analisou-se a literatura geográfica humanista em busca de suas definições 
de lugar, lar e topofilia, e buscou-se embasamentos teóricos para a compreensão 
etnográfica dos moradores em situação de rua. Por fim, procedeu-se a entrevistas 
através de questionário no objetivo de compreender as características de sua 
espacialização e relação sentimental com o lugar. 
 
Palavras-chave: Topofilia; percepção ambiental; moradores em situação de rua; 
Geografia Humanista. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
ABSTRACT 
 
 This study investigates the existence, modes and characteristics of topophilic 
and topophobic feelings from the perspective of homeless people. In order to do so, it 
was analyzed the humanist geographic literature aiming its definitions of place, home 
and topophilia, and it was sought theoretical bases for the ethnographic understanding 
of the homeless people. Finally, interviews were conducted through a questionnaire in 
order to understand the characteristics of their spatialization and their relationship with 
the place. 
 
Keywords: Topophilia; environmental perception; homeless people; Humanist 
Geography. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
LISTA DE ILUSTRAÇÕES 
 
Figura 1: Croqui apresentando os bairros de Niterói e delimitando a área da pesquisa 
................................................................................................................................... 28 
Figura 2: Ponto Cem Réis. Na fotografia, em primeiro plano a ponte Rio-Niterói, sob 
a qual habitam dois dos entrevistados; ao fundo a Igreja de Santana ...................... 36 
Figura 3: Avenida Amaral Peixoto (vazia numa tarde de sábado). Sob suas marquises 
habitam diversos moradores em situação de rua ...................................................... 37 
Figura 4: Moradores em situação de rua dormem durante o dia, na Avenida Amaral 
Peixoto ...................................................................................................................... 37 
Figura 5: Rua São João, trecho em frente à Igreja de São João (ao fundo), onde 
habitam diversos moradores em situação de rua ...................................................... 38 
Figura 6: Alameda São Boaventura, trecho em que localiza-se atualmente a Dicasa 
Motos. Local de habitação de um casal de moradores em situação de rua .............. 38 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
LISTA DE GRÁFICOS 
 
Gráfico 1: Em que lugar gostariam de possuir uma casa ......................................... 35 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
SUMÁRIO 
 
1. INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 10 
1.1 Objetivo geral .................................................................................................. 11 
1.2 Objetivos específicos ...................................................................................... 11 
2. RUA E MORADOR EM SITUAÇÃO DE RUA, TOPOFILIA, LUGAR E LAR: 
EQUALIZAÇÕES ELETIVAS ................................................................................... 13 
2.1 Topofilia e topofobia ........................................................................................ 13 
2.2 Lugar ............................................................................................................... 14 
2.3 Lar ................................................................................................................... 15 
2.4. Moradores de Rua – Origens, Motivações e Caracterização ......................... 17 
2.4.1 Tipologia dos moradores de rua ............................................................... 21 
2.4.1.1 Os trecheiros .................................................................................... 22 
2.4.1.2 Os andarilhos .................................................................................... 22 
2.4.1.3 O “Louco de rua” ............................................................................... 23 
2.4.1.4 Albergados ....................................................................................... 23 
2.4.1.5 Morador de rua citadino não-albergado ............................................ 24 
2.5 O sentimento topofílico: Algumas de suas causas ou por uma morfologia do 
sentimento topofílico ............................................................................................. 26 
2.6 Recorte espacial: Niterói ................................................................................. 28 
3. METODOLOGIA ................................................................................................... 31 
4. RESULTADOS ...................................................................................................... 33 
5. DISCUSSÃO ......................................................................................................... 39 
6. CONCLUSÃO ....................................................................................................... 50 
REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 52 
OBRAS CONSULTADAS ......................................................................................... 54 
APÊNDICE 1 – Modelo de questionário ................................................................. 55 
 
 
 
 
 
10 
 
1. INTRODUÇÃO 
 
 A presente pesquisa insere-se no escopo epistemológico da Geografia Humanista. 
Esta vertente da ciência geográfica teve seu início a partir de meados do século 
passado, notadamente nos Estados Unidos, através do trabalho de geógrafos como 
Yi-Fu Tuan (1930 – ), Anne Buttimer (1938 – 2017), e Edward Relph (1944 – ). Hoje 
englobada pelo que se convencionou chamar de Geografia Cultural (MARANDOLA 
JR., 2013, p.52), notadamenteno exterior (leia-se América do Norte e Europa), no 
Brasil persiste o uso dos termos Geografia Humanista e Fenomenológica. As 
pesquisas que lhe deram origem podem desaguar em dois ramos: Geografia 
Existencialista e Geografia Fenomenológica – que, embora imbricadas em suas 
raízes, nem sempre são a mesma coisa. 
 Mas os reais primórdios da Geografia Fenomenológica e Existencial nascem da 
obra do francês Éric Dardel (1899 – 1967), que em livros como O Homem e a Terra: 
A Natureza da Realidade Geográfica, trouxe ao pensar geográfico influências do 
pensamento do filósofo alemão Heidegger (1889 – 1976) e do fundador da moderna 
fenomenologia, Edmund Husserl (1859 – 1938). 
 A carência extrema do morador em situação de rua não é apenas material, mas 
afetiva; para além disso, as condições adversas são facilitadoras de patologias 
psicológicas de variado espectro. Indivíduos sujeitos a patologias como disforia (perda 
de sentimentos, angústia indeterminada) e anedonia (perda da capacidade de sentir 
prazer), indivíduos destituídos de um lar na acepção plena do termo, acepção que 
comporta valores como afeto, segurança e conforto, podem sentir topofilia alguma? 
 Assim, uma delimitação do problema aqui abordado poderia ser expressa nos 
seguintes termos: Em que graus, modos e condições manifestam-se os sentimentos 
topofílico e topofóbico em moradores em situação de rua? 
 A justificativa para empreender-se tal pesquisa parte do pressuposto de que, se o 
sentimento topofílico tem sido estudado a contento em relação a algumas categorias 
sociais, a existência, as dimensões e especificidades deste sentimento permanecem 
em terreno nebuloso quando se trata de moradores em situação de rua, cujo próprio 
status de “sem-teto” (“sem-lugar”?) e nomadismo urbano implica uma relação singular 
com o espaço vivido e a percepção do lugar. 
 A relevância deste estudo para a Geografia estabelece-se primordialmente para 
sua vertente humanista, que elegeu o lugar como conceito central de sua 
11 
 
investigação, mas seus resultados podem interessar e beneficiar a um amplo espectro 
das ciências sociais, ao buscar promover a ampliação do entendimento sobre a 
percepção ambiental destes indivíduos sitos à margem. Tal entendimento pode 
contribuir para mais do que apenas esclarecer motivações e modos de ser-no-mundo 
destes elementos, mas tributar para a própria compreensão da relação do homem 
com seu meio, por sua vez um dos nexos temáticos/epistemológicos fundacionais da 
ciência geográfica. 
 Assim, identificar neste “desviante”, neste de alguma maneira destituído da 
segurança do lar e dos laços familiares – seu axis mundi, seus eixos sustentadores 
ontológicos - um sentimento de apreço pelo lugar, é como retomarmos o fio de sua 
humanidade, no que ela tem de mais profundo. 
 No capítulo 2, aprofunda-se a reflexão sobre os conceitos de lugar, lar e 
topofilia, a partir da perspectiva de pensadores como Bachelard e geógrafos 
humanistas, para podermos avaliar a ocorrência, os processos e características dos 
sentimentos topofílicos e topofóbicos em moradores em situação de rua. 
 Para entendimento dos moradores em situação de rua, elaboramos uma 
tipologia baseados em parte na pesquisa etnográfica de Magni (2006), e na tipologia 
coligida e trabalhada por Mattos (2006). No mesmo capítulo, buscamos elencar 
fatores com poder de provocar ou desencadear os sentimentos topofílicos, e por fim 
traçamos um muito breve panorama sobre o município de Niterói e os bairros eleitos 
como recorte espacial de nossa pesquisa. 
 
1.1 Objetivo geral: 
 
 Avaliar as formas de percepção ambiental, a ocorrência, os processos, o 
desenvolvimento e as formas do sentimento topofílico em moradores em situação de 
rua. 
 
1.2 Objetivos específicos: 
 
 Avaliar literaturas em busca de referenciais para os conceitos de lugar, lar e 
Topofilia, bem como pressupostos teóricos para a compreensão etnográfica do 
morador em situação de rua. 
 
12 
 
 Identificar a população em condição de rua e proceder à entrevistas. 
 Analisar e confrontar os dados obtidos em busca de especificidades e 
singularidades das formas de espacialização e os sentimentos topofílicos manifestos 
pelo grupo alvo da pesquisa. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
13 
 
2. TOPOFILIA, LUGAR E LAR, RUA E MORADOR EM SITUAÇÃO DE RUA: 
EQUALIZAÇÕES ELETIVAS 
 
 O conceito de topofilia foi proposto por Bachelard (1978, p.196), em livro no qual 
o autor debruça-se em reflexão sobre a casa, o lar e o conceito de habitar, a partir de 
pressupostos fenomenológicos e poéticos. Yi-Fu Tuan (1983 e 2012) aprofunda o 
conceito de topofilia, baseado em seus estudos das operações fenomenológicas e 
subjetivas da relação afetiva do sujeito com o lugar. “Topofilia é o elo afetivo entre a 
pessoa e o lugar ou ambiente físico. Difuso como conceito, vivido e concreto como 
experiência pessoal”, resume Tuan (2012, p.19). 
 Tuan, num recorte espaço-temporal, refere diversas culturas humanas no 
objetivo de demonstrar que a afeição e mesmo o amor pelo lugar é característica 
inerente ao ser humano, apesar de suas variantes. Até mesmo locais que uma cultura 
majoritária pode considerar “repulsivos” (p.ex., bairros decadentes e de altos índices 
de miséria e criminalidade norte-americanos) podem atrair e representar um nicho de 
aconchego e familiaridade para certos indivíduos. 
 Em Paisagens do Medo (TUAN, 2005) são os lugares que provocam fobias e 
repulsão que são objeto de análise. 
 Em nossa análise dos moradores em situação de rua utilizamos como 
pressupostos antropológicos e etnográficos os conceitos propostos por Cláudia Turra 
Magni, em seu livro Nomadismo Urbano (2006), além da segmentação elencada por 
Mattos (2006) e outros autores. 
 
2.1 Topofilia e topofobia 
 
 Embora possa apresentar-se relacionado a categorias como nação e território, 
acreditamos que o fenômeno da Topofilia manifesta-se de melhor e maior maneira 
quando relacionado ao lugar. Bachelard (1996, p. 196), ao estabelecer o termo 
Topofilia para designar o tipo de estudos a que se lançara, fala do estudo dos espaços 
amados, espaços louvados e espaço feliz, “proibido a forças adversas”. 
 Assim, o lugar já significado é imbuído das forças proativas da afeição, forças 
geradas pela manifestação singular ou em colaboração de diversos fatores que o 
elegem como lugar amado. 
14 
 
 Categoria fundamental nas análises espaciais da Geografia Humanista, o lugar 
é definido por Tuan (1983, p.14) como 
 
uma classe especial de objeto. Uma concreção de valor, embora não 
seja uma coisa valiosa, que possa ser facilmente manipulada ou 
levada de um lado para o outro; é um objeto no qual se pode morar. O 
espaço, como já mencionamos, é dado pela capacidade de mover-se. 
Os movimentos frequentemente são dirigidos para, ou repelidos por, 
objetos e lugares. Por isso o espaço pode ser experienciado de várias 
maneiras: como a localização relativa de objetos e lugares, como as 
distâncias e extensões que separam ou ligam os lugares, e – mais 
abstratamente – como a área definida por uma rede de lugares. 
 
 Assim, o espaço pode ser referido como uma colcha de lugares, corolário de 
espaços eleitos a partir de/sobre um espaço maior, circuito de nexos topofílicos em 
meio a um substrato neutro ou mesmo negativo (topofóbico). 
 Prosseguindo, Tuan (2012, p.135-36), esclarece que 
 
Apalavra “Topofilia” é um neologismo, útil quando pode 
ser definida em sentido amplo, incluindo todos os laços 
afetivos dos seres humanos com o meio ambiente 
material. Estes diferem profundamente em intensidade, 
sutileza e modo de expressão. A resposta ao meio 
ambiente pode ser basicamente estética: em seguida, 
pode variar do efêmero prazer que se tem de uma vista, 
até a sensação de beleza, igualmente fugaz, mas muito 
mais intensa, que é subitamente revelada. A resposta 
pode ser tátil: o deleite ao sentir o ar, água, terra. Mais 
permanentes e mais difíceis de expressar são 
sentimentos que temos para com um lugar, por ser o 
lar, o locus de reminiscências e o meio de se ganhar a 
vida. 
 
 Topofobia, por sua vez, seria, ao contrário de topofilia, o medo ou repulsa por 
um lugar, sentimento este igualmente sujeito a gradações e subjetivações as mais 
diversas. 
 
2.2 Lugar 
 
 Necessário é perguntarmos: o que é o lugar? A geografia humanista apresenta 
algumas concepções que, ainda que geralmente partindo de um locus conceitual 
comum, disseminam-se em múltiplas direções. 
15 
 
 Acreditamos que a geografia humanista é aquela que melhor presta-se a 
confrontar e perceber, liberta de dogmatismos cientificistas/positivistas, novas 
percepções do lugar, ao defrontar-se com aqueles que prefiguram o Outro, 
desligados/degredados do status quo, nisso e por isso prenhes de alteridade. E aqui 
entendemos encontrarem-se os moradores em situação de rua – com todo o seu 
amplo espectro biográfico, sociológico e psicológico. 
 Acreditamos que é em confronto com os sem-lugar que podemos (embora não 
seja esta a pretensão central deste trabalho) ampliar nosso rol de entendimentos 
sobre o que é o lugar. 
 Inspirados pelo conceito de Topofilia, nós definimos o lugar como um nexo de 
sentimento no espaço, ou nexo sentimental-espacial. Logo, o lar seria o lugar máximo, 
o nexo primal e principal dos sentimentos que se vivenciam sobre o lugar. 
 Mas, será mesmo assim? Para que possamos (re)dimensionar a amplitude das 
percepções sobre o lugar, abro aqui um parênteses: Fernando Pessoa, poeta maior 
da língua mas também excelente prosador, em seu livro (para repetir o termo, prenhe 
de alteridade) O Livro do Desassossego (1986, p.54), relata: 
 
Eram ainda horas de estar aberto o escritório. Recolhi a ele com um 
pasmo natural dos empregados, de quem me havia já despido. Então 
de volta? Sim, de volta. Estava ali livre de sentir, sozinho com os que 
me acompanhavam sem que espiritualmente ali estivessem para 
mim... era em certo modo o lar, isto é, o lugar onde não se sente. 
 
Veja que, escrevendo, claro, uma obra literária não especialmente interessada em 
geografia/espacialização e bem antes do desenvolvimento e estabelecimento dos 
conceitos geográficos humanistas, não é de despertar a reflexão o fato de o escritor, 
nas últimas linhas do trecho referido, definir o lar como “o lugar onde não se sente” 
(talvez como lugar do entorpecimento, da “anestesia” sensório-sentimento-
perceptiva?). 
 Assim, é por não acreditar em dogmatismos, e no anseio de desbravar novas 
ontologias e geograficidades, ainda que estas venham a contradizer o que temos 
necessária/provisoriamente por pressupostos, e difíceis de perceber e mensurar em 
sua alteridade, que nos lançamos a esta pesquisa. Fecha parênteses. 
 
2.3 Lar 
 
16 
 
 Acima apresentamos nosso entendimento do lar como um lugar máximo, e em 
sequência a visão destoante de Pessoa. Mas e o conceito de lar dentro das 
perspectivas humanistas? Entende-se que há aqui fundamentalmente uma promoção 
de nível: lar muitas vezes é o lugar principal de significações, aporte seguro, “centro 
de nossas vidas” (TUAN, 2011), “nosso canto do mundo” (BACHELARD, 1978, p.200), 
e Buttimer (BUTTIMER Apud HOLZER, 2013, p.24) chega a estabelecer boa parte de 
sua teoria espacial fundamentando-se na dualidade lar (inspiração) e horizonte a ser 
alcançado (expiração). 
 Se o lar é o “insubstituível centro de significações” (RELPH apud FERREIRA, 
2002, p.47), como se dá agora o jogo de significações naquele que não (mais) possui 
um lar estável, naquele que instaura um “lar” na provisoriedade do espaço público, 
repleto de não-lugares? Há sentimento topofílico que baste para um morador de rua 
chamar um canto da rua ou trecho do mobiliário urbano de “lar”, ou assim o definir 
inconscientemente? E se não é necessário este sentimento para que ele se signifique 
enquanto ente, como se dá a substituição deste “insubstituível” e dessa categoria 
espacial que propicia a “fundação de nossa identidade enquanto indivíduos e como 
membros de uma comunidade”? 
 Embora o próprio Tuan (1998, p.7) aceite e referencie a noção de lar de uma 
maneira ampla (“A Terra é o nosso lar”), e ainda assim redutível a categorias 
decrescentes, como pátria e cidade, acreditamos que a palavra lar precise 
necessariamente significar conceito mais restritivo. 
 Pitorescamente, é forçoso elaborar algumas simplificações para afinar a 
compreensão. Se digo que o lar é um centro de significações e afeições, e a Terra 
toda é meu lar, como me sentir “no lar” num mergulho na fossa das Marianas, numa 
expedição na Antártida ou no deserto de Gobi? Ao contrário, em tais contextos de 
extrema alteridade e sujeição à penúrias físicas as mais severas e diversas, seria 
então até natural manifestar-se o sentimento topofóbico e ao mesmo tempo um 
saudosismo de estar, agora sim, em meu verdadeiro lar, minha “casa” na acepção 
sentimental do termo. 
 Se entendemos a cidade como meu lar, isso pode significar já algo; morando 
na região metropolitana do Rio de Janeiro, na cidade de São Gonçalo, lembro-me de 
que, ainda bem jovem, sempre que tinha que ir até a cidade do Rio de Janeiro sozinho, 
na volta, ao descer da ponte Rio Niterói, já “do lado de cá”, em Niterói (contígua e 
conurbada com São Gonçalo) eu sentia-me claramente “em casa”; seguro, em terreno 
17 
 
conhecido segundo meus pressupostos da idade. Mas vejamos: e se sou de repente 
transportado para um bairro desconhecido dentro de meu próprio e grande município, 
São Gonçalo, e mais, um bairro dominado por determinada facção criminosa que 
suplanta o Estado e instaura a própria e dura lei? Em tal local de iminente perigo, 
ainda que em minha própria cidade natal e de onde jamais me mudei, sentir-me-ei 
confortável, “em casa”? Ou desejaria o mais brevemente possível estar fora dali, de 
volta ao meu bairro de origem, onde conheço a todos? 
 Assim, não é senão num aspecto amplo e com alguma generosidade que 
podemos entender que “a Terra é meu lar”; e mesmo que “tal cidade é meu lar”; 
preferimos, neste estudo, vincular o conceito de lar à noção de casa, moradia e abrigo, 
local de descanso, segurança e interações socioemocionais mais básicas e 
verdadeiras, pois entre familiares e amigos. 
 Claro está que nem toda casa será considerada, automaticamente, lar, embora 
a confusão de termos e conceitos seja comum entre pessoas de qualquer nível. O 
indivíduo pode morar numa casa sem desenvolver por ela sentimento positivo algum, 
sem que ela se configure psicologicamente como lar, embora o fator tempo de 
permanência tenda a propiciar tanto a eclosão quanto o aprofundamento do 
sentimento topofílico. 
 É assim que indagamos aos moradores de rua entrevistados, “você sente que 
a rua é seu lar, você sente a rua como um lar, como sua “casa”, ou como um lugar 
hostil, um abrigo temporário e insatisfatório?”. É possível gerar afeição pelo lugar na 
rua até um nível profundo, e mais, até o extremo de entende-lo cienteou 
inconscientemente como um lar no sentido referido? Quais as formas e níveis de 
topofilia em tal contexto? 
 
2.4 Moradores de Rua – Origens, Motivações e Caracterização 
 
 O espectro que abarca a origem e caracterização socio-psicológica dos 
moradores de rua pode ser muito amplo. Enquanto há aqueles que foram parar nas 
ruas por motivos que poderíamos definir como exógenos (briga familiar, expulsão de 
casa, perda de moradia em catástrofes ou despejo etc.), temos aqueles que 
simplesmente desejaram morar na rua, e aqueles acometidos por distúrbios mentais 
de variada monta. 
18 
 
Tais indivíduos podem ser considerados, sob certo prisma, “engajados numa espécie 
de negação da ordem social” (GOFFMAN apud MAGNI, 2006, p.37). Afinal (MAGNI 
2006, p.13): 
 
Infringir as fronteiras entre casa e rua, estabelecendo no público um 
espaço doméstico onde se desenvolvem as atividades cotidianas mais 
frugais de dormir, cozinhar, higienizar-se, excretar, entre outras, viola 
as regras básicas de privacidade historicamente gestadas no seio da 
burguesia. 
 
 As regiões centrais oferecem mais valores atrativos que regiões mais 
periféricas, ao congregar melhores infraestrutura e disponibilidade de recursos 
assistenciais. Tais fatores explicam a procura dos moradores de rua pelos centros das 
cidades e adjacências. O morador de rua situa-se assim no centro do ecúmeno: pelos 
centros das cidades médias e grandes, ele força espaços, amplia penetrações, 
estabelece aprofundadas ocupações: é dele a rua da urbe, onde estabelece-se como 
elemento sob alguns enfoques parasitário, sob outros presença natural embora 
decorrente de efeito colateral do sistema-mundo, do modo capitalista de organização 
socioeconômica e de apropriação do espaço. 
 Ao romper com o status quo dos fatos sociais mormente aceitos, o indivíduo 
mergulha na alteridade da condição de pária: suas ações são atos considerados 
absurdos para alguns, crimes imperdoáveis para outros: sobre seus ombros se 
lançam estigmas de depreciamento, marcas de separação. 
 Bem mais do que em pessoas com residência fixa, o sentimento topofílico sofre 
a constante ameaça da provisoriedade nos moradores de rua; uma repressão maior 
por parte dos agentes particulares (moradores, comerciantes etc.) ou estatais pode 
obrigar o morador de rua a deslocar-se em busca de novo abrigo. Na rua “se 
acumulam a hostilidade dos homens e a hostilidade do universo” (BACHELARD 1978, 
p.202). Suas territorializações são frágeis, flexíveis, pois a desterritorialização 
iminente é a espada de Dâmocles sob a qual dormem. 
 O morador de rua tem por paredes a indiferença dos transeuntes. Simmel (1973, 
p.11), em seu texto clássico A Metrópole e a Vida Mental, esclarece que a própria 
atitude blasé, a indiferença, reserva e mesmo a alguma hostilidade espontânea são 
mecanismos “normais” de defesa/adaptação psíquica do indivíduo urbano. 
19 
 
Entendemos que tais atitudes são amplificadas ao extremo em relação ao morador 
em situação de rua. Ainda assim, como lidar com essa objetalização a que são 
diminuídos pelo outro, que o vê apenas, quando muito, como peça da paisagem, 
obstáculo ou ruído? 
 Quanto às motivações que levam à fixação do indivíduo em algum ponto na rua, 
“A escolha do local e sua qualificação em melhor ou pior são feitos levando em conta 
a segurança da localidade, o acesso à rede de sobrevivência (e sua opinião sobre ela) 
e as relações estabelecidas com os transeuntes.” (ESCOREL apud ROBAINA, 1999, 
p.221). 
 
Os espaços ociosos são ocupados ao sabor das necessidades e 
oportunidades. Embora projetada para um padrão sedentário de vida, 
a cidade acaba se tornando bastante favorável para a subversão de 
seus recursos e apropriação de uma existência nômade. (Magri 2006, 
p. 64). 
 
 Mudanças sociais e econômicas de variadas escalas podem pôr a nu regiões 
antes paladinas do progresso, ou estabilizadas em relação aos seus indicadores de 
crescimento e prosperidade; um bairro que acabou sendo isolado ou preterido por 
motivo qualquer (o aporte da violência, a remoção de algum modal de transporte 
coletivo); uma cidade que perdeu sua principal fonte de divisas e empregos (uma 
montadora de automóveis, p.ex.); uma região colapsada em sua economia pela 
concorrência de outra região ou país; vácuos se abrem, homens têm diluídos os 
alicerces de sua permanência no status quo; a miséria cria novos modos e novos 
lugares (e formas outras de lugarizar), mesmo onde não havia atividade econômica 
viável, e mesmo onde era não-lugar. Claval (2007, p.133), esclarece que: 
 
O desaparecimento das frentes pioneiras nunca é definitivo: 
ressurgem no mundo urbano, à medida que este autoriza novas 
formas de marginalidade e a emergência de novos tipos de 
contraculturas; reaparecem assim que um sistema socioeconômico é 
submetido à reestruturação, que suas atividades antigas periclitam e 
que as utilizações do solo tradicionais não são mais necessárias: as 
áreas abandonadas agrícolas e industriais resultantes das grandes 
transformações econômicas contemporâneas constituem margens 
momentaneamente esterilizadas, mas que podem se prestar a novas 
combinações. 
 
20 
 
Assim vemos a emergência de cracolândias, geradoras/atratoras de rualizados; 
instalações púbicas ou particulares, em geral mas nem sempre abandonadas, 
tomadas por moradores de rua e sem-teto (estejamos cientes de que temos aqui uma 
outra categoria social) que nelas fazem morada ou ponto de apoio e descanso. E 
assim também na parte de baixo do viaduto, os fundos “abandonados” do terminal 
rodoviário, a velha padaria que faliu e cuja porta de correr foi arrombada, 
transformando o interior do edifício em local de morada, “maloca”. É o modo de vida 
nômade/rualizado que encontra campo e se instaura e instala, na assimetria de suas 
ocupações provisórias, ocupações-guerrilha. 
 A provisoriedade da situação de rua fala de risco, de ameaça a todo projeto e à 
própria ideia de continuidade, pois 
 
A casa, na vida do homem, afasta contingências, multiplica seus 
conselhos de continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso. 
Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das 
tempestades da vida. Ela é corpo e alma. É o primeiro mundo do ser 
humano. (BACHELARD, 1978, p.201) 
 
 Uma falsa dificuldade que se apresenta a este tipo de pesquisa: como 
considerar objetiva ou cientificamente válidos os dados muitas vezes subjetivos 
obtidos de pessoas consideradas (pelo status quo/paradigma psicológico vigente) 
como mentalmente perturbadas, ou ainda sob efeito, durante a entrevista, de 
substâncias entorpecentes? 
 A nosso ver, isso não representa problema algum, e ao contrário: descortina 
todo um campo de pesquisas e reflexão, pois pesquisamos aqui percepções, 
impressões e respostas subjetivas buscando o frescor de sua efetivação 
fenomenológica, no intuito de compreender não apenas a existência e formas dos 
sentimentos topofílico e topofóbico no grupo em análise, mas idealmente as nuances 
de sua percepção espacial de uma maneira em geral. 
 O homem é ser-no-mundo e ser-em-situação, senhor e servo de sua 
singularidade. Heidegger afirma que “só é possível habitar o que se constrói” 
(HEIDEGGER, 2014), com a acepção, claro, de construção do espaço existencial 
mediada pelos canais sensórios, ou espaço-vivido. Assim, é na singularidade de sua 
construção de lugar na rua que buscaremos as especificidades do fenômeno 
topofílico. 
21 
 
 A passagem de uma casa, um lar, provisório e problemático que seja, para a 
rua é sempre uma mudança de regime ontológicoradical. Se “o enraizamento ao 
mesmo tempo espacial e sociológico é mais difícil na cidade do que no campo” 
(CLAVAL, 2007, p.190), em que vias de realiza o ‘enraizamento’ daquele que habita 
as ruas movimentadas da urbe, ou seus recantos algo menos movimentados, mas 
fronteiriços à grande profusão de transeuntes, de estranhos? 
 Ao habitar o espaço urbano, ao habitar espaços cuja característica maior é o 
não-lugar ou lugares de instabilidade, a ausência de referências, de elementos 
propiciadores de Topofilia, como esta poderia se manifestar no morador em situação 
de rua? 
 Reconhecer-se solicita uma relação sensorial com o espaço, “reconhecer-se 
supõe uma apropriação do espaço pelo sentido” (CLAVAL, 2007, p.194) e “esta 
depende, além do círculo familiar percorrido a pé em todos os sentidos, do meio de 
locomoção utilizado” (CLAVAL, 2007, p.192). Assim, um dos pontos de atenção na 
reflexão sobre a Topofilia existente no sujeito sob análise em relação aos não-lugares, 
os quais costumamos atravessar em veículos (automóveis, ônibus e trens), resulta de 
sua maior vivência espaço-temporal em relação ao (não?-)lugar, pois a pé e ao 
atravessá-lo todos os dias e ao longo das noites, quando geralmente os centros de 
algumas urbes são desabitados, libertos do ‘ruído’ de comunicação - enquanto espaço 
comunicante - que é a presença do outro, lhe permite perceber características, 
nuances e pontos de referência e familiarização topofilicamente elegíveis, que o 
transeunte comum não capta em sua rápida e tantas vezes desinteressada e/ou 
assustada passagem. 
 Mas o próprio não-lugar, em sua frieza algumas vezes bela mas prenhe de 
higienizada insalubridade, nua de tato(s), pode gerar topofilia de per se? É uma 
interessante questão. 
 
2.4.1 Tipologia dos moradores em situação de rua 
 
 Embora sejam um grupo que prime pela heterogeneidade, foi necessário 
dividirmos os moradores em situação de rua em diversos tipos para facilitar a pesquisa 
e o entendimento de sua relação com o espaço. 
 As definições acerca de tipologias e seu uso em consideração aos moradores 
em situação de rua carecem de consenso estabelecido; mas algumas abordagens são 
22 
 
oportunas para situar certos indivíduos em segmentos que facilitem a análise de seus 
procedimentos e objetivos. 
 A proposição de Vieira, Bezerra e Rosa (1992), delimitando o ser, o estar e o 
ficar na rua, é um primeiro passo na composição de um panorama da situação 
heterogênea dos que na rua se encontram. Ser da rua denota permanência ou 
ausência de desejo de abandonar a rua; aceitação de tal situação; o estar na rua 
remete a brevidade temporal, indefinição de rumos, situação transitória em busca de 
definições; e o ficar na rua denota ação esporádica ou circunstancial, como o indivíduo 
que, não tendo recursos para a passagem de volta para o lar após cada período de 
trabalho, permanece na rua, próximo ao mesmo, retornando para casa nos fins de 
semana ou esporadicamente. Em geral o tempo de permanência na rua é que trará a 
definição do status do indivíduo; a ausência de oportunidades, a entrega ou 
conformação à situação podem definir a transição do ficar e estar para o ser da rua. 
 Avançando na depuração tipológica dos moradores em situação de rua, temos a 
segmentação, ainda que embasada em outros autores, proposta por Mattos (2006). 
 
2.4.1.1 Os trecheiros 
 
 Avançam de cidade a cidade a períodos indeterminados, em geral em busca de 
trabalho ou melhores condições de sobrevivência. Nunca permanecem por muito 
tempo em um mesmo lugar, variando de um dia a semanas, ainda possam voltar ao 
mesmo durante espaços de tempo (no dia seguinte, na mesma semana, mês ou ano). 
Caracterizam-se por buscar trabalho por onde chegam, embora alguns indivíduos 
possam viver apenas de esmolas e acharques (estes são ditos por vezes “pardais”). 
O grupo dos trecheiros, segundo Mattos (2006, p.61), “é constituído por pessoas em 
situação de rua que vivem do nomadismo exercido a pé entre as cidades, 
sobrevivendo de trabalhos temporários, mendicância ou achaque, além de contar com 
auxílio de instituições assistenciais.” 
 
2.4.1.2 Os andarilhos 
 
 Semelhantes em alguns pontos aos trecheiros, mas desvinculados da 
necessidade ou da motivação de buscar trabalho, e mesmo um “destino”: apenas 
avançam, em busca e novas terras, novos contatos. A marca distintiva dos andarilhos 
23 
 
é a errância, “movimentação radical sem qualquer destino, ponto de partida ou 
chegada, rumo ou roteiro.” (MATTOS, 2006, p.61). Poderíamos designá-los de 
nômades perfeitos: Indivíduos cuja sina é mudar de lugar, não afeitos à permanência. 
Sua característica definidora é a pulsão ou atitude de não fixar-se, e mesmo de não 
repetir trajetos, ou seja, não retornar ao lugar uma vez abandonado ou ‘superado’ em 
seu intermitente avançar. É chamado também de “andante” (FERRAZ, 2000, P.113). 
Esta é uma categoria à parte e que mereceria, acerca de suas formas de 
espacialização, estudo particularizado, o que em grande parte foge aos objetivos e 
alcance do presente trabalho, embora indivíduos do grupo tenham sido aqui 
contemplados. Qual seria sua forma de espacializar? Este andarilho, avesso a 
qualquer enraizamento, seria senhor de uma espacialização e geograficidade novas, 
ou que, mais realisticamente especulando, poderia ao menos nos dar novas pistas 
sobre a própria natureza e fenomenologia destes fenômenos? 
 
2.4.1.3 O “Louco de rua” 
 
 Embora as diversas categorias possam interpenetrar-se com esta, não 
confundamos aqui as demais com aqueles indivíduos muitas vezes vítimas de 
patologias psicológicas, o “louco de rua”. Em nossa tentativa de contato com 
indivíduos tais, pouca ou nenhuma informação pudemos obter, baseados nas 
premissas auferidas pelo questionário padrão. Assim, tal segmento não é abordado 
neste trabalho. Estes são muito difíceis que abarcar numa pesquisa sobre 
subjetividades como a topofilia e topofobia, embora mereçam também trabalho 
particularizado, pois são misteriosas suas formas de especializar, de fundar “uma 
cidade própria” (CHNAIDERMAN apud MATTOS, 2006, p.62), e mesmo uma rede 
própria, cujos parâmetros, se existem, são invisíveis ou até aqui indecifráveis para a 
ciência. Sobre seu desprendimento (aqui refletido como espacial), Ferraz (2000, p.56) 
lembra que, segundo a teoria de Freud sobre a psicose, a mesma seria investida de 
um “desinvestimento libidinal dos objetos do mundo externo”. O que implicaria 
também uma atrofia das capacidades topofílicas. 
 
 2.4.1.4 Albergados 
 
24 
 
 São os indivíduos que fixam-se em ou nas proximidades de albergue ou abrigo, 
público ou particular. Pois há indivíduos que, não havendo vagas nos albergues, 
permanecem em suas proximidades, à espera de vaga, e usufruem de facilidades 
oferecidas por tais estabelecimentos, tais como banho e alimentação. Poderíamos 
considerá-los assim semi-albergados. Costumam fixar-se num lugar por mais tempo 
que andarilhos e trecheiros, e mesmo alguns moradores de rua não-albergados. Em 
geral apresenta-se em melhores condições que os demais tipos de morador de rua, e 
pode manifestar até mesmo preconceito em relação aos que vivem em outra relação 
com a rua. Dada sua condição de semi-residenciados, tal grupo não foi contemplado 
em nossa pesquisa. 
 
 2.4.1.5 Morador de rua citadino não-albergado 
 
 Por fim, o grupo que se poderia considerar mais clássico, se não em alguns 
casos na realidade urbana, ao menos no imaginário e na cultura populares, os que 
chamamos aqui de morador de rua não-albergado. Tais indivíduoscostumam fixar-se 
por períodos prolongados de tempo (por vezes mais de uma década) num mesmo 
local, seja um bairro ou uma cidade, neste caso em geral respeitando os limites 
municipais. Não frequentam em geral albergues, e buscam local de fixação baseados 
principalmente nas facilidades advindas a partir da ação de terceiros, ou seja, buscam 
locais onde percebem/encontram ajuda constante (moradores locais que lhes doam 
alimentos, água, lugar para banho etc., proximidade de instituições religiosas ou 
sociais de variada monta, onde podem obter com maior constância e amplitude 
esmolas e auxílios diversos). Aqui se diferenciam dos albergados e semi-albergados 
pela indisposição a sujeitar-se às regras tanto de albergues quanto de outras 
instituições de auxílio; usufruem em menor escala, ou numa menor relação de 
sujeição/dependência, de tais benesses. 
 Como se dá a espacialização do morador em situação de rua? Em muitos 
casos, a excetuar-se os andarilhos, estabelece-se o chamado circuito, a rede de 
lugares, nem sempre contíguos, em que ele diariamente utiliza para obtenção de 
serviços, alimentação e abrigo. 
 É possível que seus sentimentos topofílicos manifestem-se em relação ao 
conjunto deste circuito por ele eleito, ou mesmo que lhe tenha sido imposto como o 
único possível ou o único viável. Segundo Tuan (1983, p.200): 
25 
 
 
O mundo do nômade consiste em lugares conectados por um 
caminho. Os nômades, que estão frequentemente se deslocando, têm 
um sentido intenso de lugar? É bem possível. Os nômades se 
deslocam, mas se deslocam dentro de uma área circunscrita, e a 
distância entre dois pontos extremos de sua peregrinação raramente 
excede 320 km. 
 
 Outra constatação de Tuan estabelece uma cadeia valorativa na percepção 
ambiental: “O lar é o mundo estável a ser transcendido, a meta é o mundo estável a 
ser alcançado, e os acampamentos são paradas de descanso no caminho de um 
mundo para o outro” (1983, p.199). 
 
2.5 A rua e o sentimento topofílico: Definições e causas ou por uma morfologia do 
sentimento topofílico 
 
 Um dos nexos causais do sentimento topofílico é a sensação de segurança. 
Estar seguro pode sobrepor-se ao sentimento de desconforto (‘um local muito 
apertado’), causando prazer ainda assim. Claro, o conceito de segurança pode variar 
não apenas de cultura para cultura, mas de indivíduo para indivíduo. 
 Há casos de indivíduos que escolhem determinado ponto pela paz, a 
tranquilidade de ali permanecer sem ser importunado, aliados, claro, a outros fatores 
de atração. Alguns buscam manter-se afastados dos pontos de máxima multidão. O 
que se percebe é principalmente o casamento entre lugar propício à obtenção de 
alimentos e auxílios, fator atrativo principal, à tranquilidade de não serem oprimidos 
ou importunados. 
 Por outro lado, a própria espaciosidade da rua pode ser o maior atrativo 
topofílico para certos moradores. Não priorizando a obtenção de auxílios, ou sabendo 
onde consegui-los com certa facilidade, não fixam-se num local corriqueiro à espera, 
mas dedicam-se a andar pela urbe, e de tal nomadismo, ainda que restrito, retiram 
prazer ou sentido. “Espaciosidade está intimamente associada com a sensação de 
estar livre. Liberdade implica espaço; significa ter poder e espaço suficientes em que 
atuar.” (TUAN, 1983, p.59). O morador de rua pode ser dotado, conscientemente ou 
não, da faculdade de “lugarizar” não simplesmente o espaço, ação natural de todo ser 
humano, mas a própria espaciosidade. Assim, a rua em conluio com a liberdade 
(física, psicológica, econômica e mesmo sentimental) que traz, o desprendimento, a 
26 
 
extensão não estática mas variável de suas fronteiras, é lugarizada, assimilada. Se 
para uma maioria a rua é o último ou mais acessível recurso, a mesma é o lugar de 
eleição do sujeito que não foi para ela empurrado pela severidade das circunstâncias, 
mas escolheu a rua, para fundar seu mundo-vivido, o que percebemos como sendo o 
caso de alguns dos informantes da pesquisa. Sobre tais indivíduos, dá notícia o texto 
da Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua (CUNHA e 
RODRIGUES, 2009, p.87): 
 
Considerando-se as razões apontadas, há uma que não aparece 
expressivamente nos relatos, mas que merece ser destacada: a 
escolha pessoal pela rua como opção de moradia. Apesar de não 
aparecer como razão principal da saída de casa, esta questão deve 
ser considerada na medida em que, mesmo quando as razões 
explicitadas envolvem desentendimentos familiares ou as ameaças e 
violências sofridas dentro do ambiente familiar, há um grau de escolha 
própria para ir para a rua. Essa escolha muitas vezes está relacionada 
a uma noção (ainda que vaga) de liberdade proporcionada pela rua, e 
acaba sendo um fator fundamental para explicar não apenas a saída 
de casa, mas também as razões da permanência na rua. Após 
vivenciar a situação de "liberdade" que a rua proporciona, muitas 
pessoas se sentem compelidas a permanecer neste ambiente, em 
detrimento do ambiente doméstico, considerado, muitas vezes, 
perigoso e opressor. 
 
 O fator estético, propiciador de formas e experiências topofílicas que podem ser 
arrebatadoras porém efêmeras, parece ter pouca ou mesmo nenhuma influência na 
escolha do morador em situação de rua por um lugar de permanência. 
 A rua atrai e repulsa, alegra e constrange, incentiva num a extroversão, noutro 
introversão; leva a todos os lugares, são as reais “artérias” na antiquíssima e simplista 
percepção da cidade como organismo vivo (GOTTDIENER, 1997, p.35), mas o 
simples fato de um homem lugarizá-la a ponto de escolhê-la para lar (de maneira 
capital no caso daquele morador em situação de rua que prefere a rua, mesmo tendo 
casa ou possibilidade de uma obter), escolhê-la como lugar dos lugares, a transforma, 
transtorna de caminho a, mais que lugar, lugar central, micro-centro do ecúmeno, 
lugar/não-lugar de ação centrípeta e centrífuga. Que seja: entendemos as ruas do 
centro de uma urbe como centros centrífugos e centrípetos do ecúmeno. 
 Assim, se considerarmos a rua do centro da urbe como o centro do ecúmeno 
em sua unidade mínima, o pária, o portador da alteridade que se desfez ou fez-se 
imune às convenções a ponto de ser considerado caricatura do (que em tese deve ser 
27 
 
o) homem, faz-se, numa interessante inversão, homem central daquilo que é o urbano: 
de “miserável” a “príncipe” do ecúmeno. 
 Pois se para aquele que vive em sua moradia e tem a rua como trajeto, ela pode 
apresentar-se ameaçadora, para outros pode representar um tipo alteroso de 
segurança, maneiras inusuais de conforto. 
 Percebendo com alguma poesia as possibilidades da rua, o autor João do Rio, 
em seu A Alma Encantadora das Ruas (1995, p.22), poetisa: 
 
Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator da vida das cidades, a 
rua tem alma! Em Benares ou em Amsterdão, em Londres ou Buenos 
Aires, sob os céus mais diversos, nos mais variados climas, a rua é a 
agasalhadora da miséria. Os desgraçados não se sentem de todo sem 
o auxílio dos deuses enquanto diante dos seus olhos uma rua abre 
para outra rua. 
 
 
 Assim, a rua pode representar a permanência/imanência das possibilidades de 
realização sócio-espacial e sentimental para alguns indivíduos. 
 A proximidade às fontes providenciais, notadamente de auxílios na figura de 
alimentação, abrigo, água, vestimentas e outros, é também um fator de atração do 
indivíduo por determinado ponto na rua, acreditamos mesmo que o principal. Um 
sentimento especializado pode surgir pela simples atração pelas pessoas do lugar 
(tanto de moradores residenciaiscomo de outros moradores de rua), de seu convívio, 
independentemente de suas ações assistencialistas. A esta atração chamamos aqui 
de atração pelo horizonte relacional. 
 A posição central e visível do meio urbano é propícia à obtenção de auxílio de 
pessoas e entidades; há casos de locais na urbe onde o morador em situação de rua 
pode escolher o cardápio, tal a quantidade e variedade de alimentos (sopas, 
quentinhas, pães, frutas) ofertadas por agentes diversos, cujas ações, mormente nas 
noites e madrugadas, em geral são concomitantes. 
 A carência extrema do morador de rua não é apenas material, mas afetiva; para 
além disso, as condições adversas são facilitadoras de patologias psicológicas de 
variado espectro. Indivíduos sujeitos a patologias como disforia (perda de 
sentimentos, angústia indeterminada) e anedonia (perda da capacidade de sentir 
prazer), podem sentir topofilia alguma? Tais patologias, que podem ser manifestas a 
partir de simples depressão, colaboram para mitigar o sentimento topofílico e também 
topofóbico. 
28 
 
 Assim, identificar neste “desviante”, neste de alguma maneira destituído da 
segurança do lar e dos laços familiares – axis mundi, eixos sustentadores ontológicos 
- um sentimento de apreço pelo lugar, é como retomarmos o fio de sua humanidade, 
no que ela tem de mais profundo. 
 Mas que sentimentos topofílicos seriam possíveis? De alguma outra natureza? 
Segundo Magni (2006, p.37): 
 
Ao não se fixar às moradias que improvisa – o que pode ser voluntário 
ou não – a população que habita na rua não cria uma relação estável 
de propriedade com o que a história da vida privada convencionou 
chamar de ‘lar’. Evidencia-se, portanto, uma outra noção de moradia, 
mais flexível e transitória do que aquela acalentada pelo cidadão 
sedentário. 
 
2.6 Recorte espacial: Niterói 
 
 A pesquisa de campo foi circunscrita a trechos do centro da cidade de Niterói, 
mais especificamente as ruas Amaral Peixoto e São João, bem como à região do 
Ponto Cem Réis, que fica no bairro de Santana, e ao bairro do Fonseca. 
 
 
Figura 1: Croqui apresentando os bairros de Niterói e delimitando a área da pesquisa. 
29 
 
 O município Niterói possui área de 133,919 km² e encontra-se na Região 
Metropolitana do Rio de Janeiro. Foi fundado ainda no século XVI, pelo índio temiminó 
Araribóia. Foi a capital do estado, de 1834 a 1894 e novamente de 1903 a 1975. Sua 
população estimada é de 499.479 habitantes segundo os dados do Instituto Brasileiro 
de Geografia e Estatística (IBGE, 2015). 
 A cidade possui alta posição no IDH nacional, afigurando como a 7ª cidade com 
melhor qualidade de vida do Brasil (Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil 
2013), e a primeira colocada dentre os 92 municípios do Estado do Rio de Janeiro, 
segundo análise deste instrumental. 
 Ainda assim, a miséria e a desigualdade que dão o tom da sociedade brasileira 
não se furtam à manifestar-se na assim chamada “cidade sorriso”. 
 A Prefeitura Municipal, através de sua Secretaria Municipal de Assistência 
Social e Direitos Humanos, informou-nos não possuir censo ou contagem atualizada 
dos moradores em situação de rua da cidade, além dos números do Censo realizado 
pelo Governo Federal em 2007. 
 A Prefeitura mantém três abrigos dedicados aos indivíduos em situação de rua: 
Dois masculinos, um com capacidade para 50 e outro para 30 pessoas, e um feminino, 
com capacidade para 50 pessoas. Quando possível, a Secretaria, em conjunto com 
órgãos similares de outros municípios, efetua o encaminhamento daqueles que 
desejam retornar para sua região de origem. Apenas na atual gestão, já foram 
realizados em torno de 80 encaminhamentos. 
 Embora de maneira oficiosa, a Prefeitura estima que 1/3 dos rualizados de 
Niterói sejam oriundos de outros municípios, tanto do Estado do Rio de Janeiro quanto 
das demais unidades da Federação; tal número foi exatamente o que apuramos, 
dentre os 15 indivíduos que entrevistamos. 
 Os censos do IBGE, baseados em pesquisa domiciliar, jamais consideraram os 
moradores em situação de rua em suas pesquisas. Sua invisibilidade, a nível nacional, 
começou a ser desfeita a partir de 2007, com o I Censo e Pesquisa Nacional sobre a 
População em Situação de Rua no Brasil (CUNHA e RODRIGUES), promovido pelo 
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Uma dentre as 71 cidades 
brasileiras abordadas pela pesquisa, Niterói contava com 529 moradores em situação 
de rua (população do município de 474.002, conforme a Contagem da População 
IBGE 2007), o que a coloca entre as dez cidades que possuem a maior 
proporcionalidade de moradores em situação de rua em relação ao total da população. 
30 
 
O choque entre este indicador e aquele já referido (IDH), que coloca a cidade como a 
sétima em qualidade de vida, faz-se patente, e dá a nota das contradições passíveis 
de manifestar-se no município. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
31 
 
3. METODOLOGIA 
 
 O método de pesquisa baseou-se na consulta à bibliografia abarcando autores 
e obras que desenvolveram temas caros à Geografia Humanista e eleitos como eixos 
norteadores de nosso trabalho, a saber, lugar, lar, topofilia e topofobia. A pesquisa 
estendeu-se ainda sobre a literatura geográfica e etnográfica abrangendo os 
moradores em situação de rua. 
 A pesquisa de campo valeu-se da observação e de entrevistas, através de 
questionário dirigido, com o público alvo da pesquisa. Mais do que as questões 
propostas no referido questionário, procedemos a conversas francas e livres sobre 
temas outros que não especificamente do escopo desta pesquisa, no intuito de 
apreender mais e mais sobre a realidade e as percepções dos moradores em situação 
de rua. 
 Optamos por uma pesquisa qualitativa; o objeto de pesquisa ou grupo alvo é 
conhecido por sua insociabilidade e desconfiança, por sinal naturais dado o contexto 
em que (sobre)vivem. Diversas perguntas fixas foram estabelecidas, mas demos 
espaço para a livre explanação dos entrevistados sobre temas correlatos. Se 
estudamos temas de caráter subjetivo, é fundamental deixar o interlocutor proceder 
ao livre falar; intervenções mínimas são necessárias apenas para (re)canalizar o relato 
para o foco da pesquisa. Não apenas as histórias, mas a forma de narrar, com suas 
pausas, expressões e mímicas são igualmente comunicação, igualmente 
comunicantes. O morador de rua pode revelar singularidades de sua condição e da 
condição de seu grupo; assim incentivamos a que o informante relatasse sua história 
e falasse sobre o que desejasse. Queiroz apud Ferraz (2000, p.160) esclarece que: 
 
A história oral pode captar a experiência efetiva dos narradores, mas 
também recolhe destes tradições e mitos, narrativas de ficção, crenças 
existentes no grupo, assim como relatos que contadores de histórias, 
poetas, cantadores inventam num momento dado. Na verdade tudo 
quanto se narra oralmente é história, seja a história de alguém, seja a 
história de um grupo, seja a história real, seja ela mística." 
 
 As entrevistas e observações aconteceram entre 22/09/2017 e 14/10/2017, em 
quatro momentos e lugares: Sob um dos acessos (subida) à Ponte Rio-Niterói, no sub-
bairro Ponto Cem Réis (bairro Santana), em frente à Igreja de São Lourenço; na Rua 
São João, no centro da cidade; na avenida Amaral Peixoto, também no centro da 
32 
 
cidade, numa tarde de sábado, quando a mesma, em geral bastante movimentada,já 
se encontrava esvaziada; e na Alameda São Boaventura, em sua parte final (altura da 
Dicasa Motos). Foram ao total quinze os indivíduos entrevistados. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
33 
 
4. RESULTADOS 
 
 Optamos por realizar uma pesquisa qualitativa, dadas as limitações de nosso 
tempo, ao número de questões propostas pelo questionário e principalmente a 
dificuldade inerente ao trato com indivíduos do grupo alvo. A observação espontânea 
uniu-se à pesquisa qualitativa, dando o tônus de nossa práxis. 
 A pesquisa de campo contemplou um pequeno universo de quinze indivíduos, 
entrevistados em quatro pontos do município de Niterói. Nove deles na Avenida 
Amaral Peixoto, uma das principais do centro da cidade, e, dada sua posição central, 
profusão de marquises e grande movimento, antiga atratora de população de rua. Um 
na Rua São João, também no centro da cidade. Dois deles foram entrevistados no 
sub-bairro de Ponto Cem Réis, bairro de Santana, contíguo ao centro; dois deles no 
Fonseca, bairro que por sua vez liga-se ao bairro de Santana (ao fim deste capítulo, 
apresentamos fotografias dos locais de pesquisa. Todas as imagens são de nossa 
autoria). 
 Destes, o mais jovem possui dezoito anos; o mais idoso, setenta e quatro; a 
média etária dos entrevistados fica em 35,13 anos. 
Quanto à etnia, sete (ou 46,6%) eram negros; cinco (33,3%) pardos; e três (20%) 
brancos, sendo onze (73,3%) homens e quatro (26,6%) mulheres. Dos quinze, apenas 
cinco (33,3%) são nativos de Niterói; e dez (66,6%) são oriundos de outros municípios 
do estado do Rio ou de outros estados da federação: Duque de Caxias (RJ) e 
Teresópolis (RJ); e ainda Corumbá (MS), Brasília (DF), Salvador (BA), Santo André 
(SP), Juiz de Fora (MG), Governador Valadares (MG), Recife (PE) e Olinda (PE) (cada 
cidade sendo natal de um indivíduo). 
 Quanto ao tempo de permanência em situação de rua, o espectro varia desde 
três meses (o indivíduo com menos tempo) até 54 anos (o mais longevo). A média 
dos entrevistados fica em 15,7 anos. 
 Dentre os indivíduos que julgamos mais interessantes para a pesquisa, os que 
escolheram ficar na rua mesmo tendo alguma possibilidade de fixar residência, 
embora tal conceituação possa ser problemática ou fluídica, pois os indivíduos podem 
ter tido – e desperdiçado – oportunidades de deixar a rua, pudemos catalogar quatro 
indivíduos. 
 Perguntados sobre o lugar da cidade que lhes causasse medo ou receio, 
mesmo com nossa insistência em prol de uma definição geográfica/espacial, a ampla 
34 
 
maioria alegou não possuir medo de parte alguma da cidade, mas sim da “noite”. A 
situação de escuridão e solidão, quando as ruas estão desabitadas, é considerada o 
verdadeiro perigo. A mais jovem dentre os entrevistados, respondendo à entrevista 
sob o efeito narcótico do redutor (tinner), respondeu que o que lhe dava medo na 
cidade era “a polícia”. 
 Dos que apontaram pontos do espaço que lhe causavam algum temor, foram 
citados dois pontos onde outros moradores de rua, considerados violentos, 
costumavam permanecer, denotando clara territorialização: A Praça do Chafariz 
(próximo à Amaral Peixoto) e a Prainha (trecho entre a praça JK e o campus da UFF 
no bairro São Domingos). Uma favela também foi citada, pois segundo o morador de 
rua, outros lhe informaram que os “caras” de lá (traficantes) eram “covardes”. 
 Quando perguntados: “Existe algum lugar que você possa dizer que ame?” Dos 
treze indivíduos que responderam a esta indagação, apenas seis disseram amar 
algum lugar, e todos referiam-se ao seu bairro de criação ou cidade natal. Outros sete 
julgam não haver lugar que amem, sendo que destes, um disse “vou amar o local onde 
eu estiver”, e outro alegou “amar a rua”, embora nos parecessem, se nos é permitido 
este julgamento, em ambos os casos, respostas retóricas, denotando em verdade o 
pouco apreço topofílico de tais indivíduos, seja por que lugar for. 
 A pesquisa levantou alguns dados interessantes. Por exemplo, a maioria dos 
entrevistados (40%), quando perguntados se gostariam de possuir uma casa, e onde 
e como seria tal moradia, disse que gostaria de possuir casa em área rural. Ou seja, 
ele encontra-se na cidade não por prazer algum e indiretamente por algum laço 
topofílico mais significativo, mas por conveniência. Apenas um indivíduo gostaria de 
possuir uma casa “no centro da cidade”. 
Tanto a indivíduos que apresentavam uma tendência de fixação corriqueira a 
determinado lugar, quanto àqueles de características mais nômades, foi perguntado 
quais os motivos deles terem escolhido EXATAMENTE AQUELE LUGAR em que ora 
se encontravam (no momento da pesquisa). Alguns fatores foram propostos, e demos 
liberdade aos entrevistados para a eleição de outros fatores. Cada indivíduo poderia 
assinalar quantos dentre os fatores listados, ou outros, quisesse. Sendo assim, eis a 
lista de fatores, e a quantidade de respostas positivas que cada qual recebeu: 
Abrigo do clima (sol, chuva, frio etc.) – 2 
Beleza - 0 
Aconchego / conforto - 0 
35 
 
Proximidade de onde obter alimentação e outros auxílios - 11 
Proximidade do local de trabalho - 2 
Segurança - 3 
Horizonte relacional (amizade por pessoas das proximidades) - 4 
Relação histórica com o lugar (individual ou coletiva) - 1 
Paz/tranquilidade - 4 
Outros - 0 
O fator “Proximidade de obtenção de alimento e auxílios diversos” foi o preferido, 
seguido por “tranquilidade e paz”, e pelo que denominamos de horizonte relacional, 
que definimos como as relações de convivência e amizade possíveis e construídas 
em determinado lugar. 
 
 
Gráfico 1: Em que lugar gostariam de possuir uma casa. 
 
 Se perguntados “há algum lugar aqui na cidade, seja uma esquina, um prédio, 
um bairro, uma praça, que você ache bonito”, as respostas foram diversificadas, desde 
“a cidade inteira” até bairros e praias, como Icaraí e Boa Viagem, praças como a 
Araribóia e locais como o Horto Florestal do Fonseca ou o Campo de São Bento. 
 Perguntados se havia algum lugar que consideram especial (“legal, maneiro, 
responsa”) na cidade, seja uma rua, esquina, bairro, prédio, praça etc., as respostas 
abarcaram variados pontos de beleza e lazer da cidade, tais como o Horto Florestal 
Lugar rural
40%
"O lugar não importa"
26,6%
Comunidade 
("Favela")
13,3%
Centro da cidade
6,6%
Motorhome (trailer 
motorizado)
6,6%
Possui casa
6,6%
Em que lugar gostariam de possuir uma casa
Lugar rural "O lugar não importa Comunidade ("Favela")
Centro da cidade Motorhome (trailer motorizado) Possui casa
36 
 
(Fonseca), o Campo de São Bento, Biblioteca Parque de Niterói, Museu de Arte 
Contemporânea (Boa Viagem), dentre outros. 
 Interessante notar que as respostas sobre percepção estética (“um lugar 
bonito”) e percepção abarcando fatores diversificados e/ou com possibilidades 
sentimentais variadas (“um lugar legal, especial”) demonstraram uma significativa 
separação: Apenas cinco indivíduos elegeram como lugar bonito e lugar especial ou 
o mesmo lugar, ou item constante daquele lugar (p. ex., lugar bonito: Igreja de São 
Lourenço; lugar especial: área imediatamente em frente à referida igreja). 
 Perguntados sobre se já haviam sentido apego por algum lugar onde tenham 
morado antes de ir para a rua, e se sentiram o mesmo tipo de sentimento, de sensação 
de pertencimento, por algum lugar na rua, de quatorze que responderam à pergunta, 
doze disseram ter sentido apego à algum lugarantes da vida na rua, e dois 
responderam que não. Dos que alegaram ter sentido apego antes, ao responderem 
se já haviam vivenciado o mesmo sentimento de apego ou pertencimento em relação 
a algum lugar NA RUA, seis responderam que não; três responderam que sim, e 
outros três não responderam à questão. 
 Quando indagados se a rua poderia ser considerada seu ‘lar’, onze indivíduos 
responderam que não, e quatro disseram que sim. 
 
 
Figura 2: Bairro de Santana (Ponto Cem Réis). Na fotografia, em primeiro plano a ponte Rio-
Niterói, sob a qual habitam dois dos entrevistados; ao fundo a Igreja de São Lourenço. 
 
37 
 
 
Figura 3: Avenida Amaral Peixoto (vazia numa tarde de sábado). Sob suas marquises habitam 
diversos moradores em situação de rua. 
 
 
Figura 4: Moradores em situação de rua dormem durante o dia, na Avenida Amaral Peixoto. 
 
38 
 
 
Figura 5: Rua São João, trecho em frente à Igreja de São João (ao fundo), onde habitam diversos 
moradores em situação de rua. 
 
 
Figura 6: Alameda São Boaventura, trecho em que localiza-se atualmente a Dicasa Motos. Local 
de habitação de um casal de moradores em situação de rua. 
 
 
39 
 
5. DISCUSSÃO 
 
 A perda ou atrofia da capacidade de nutrir sentimento de maior profundidade 
pelo lugar, topofilia, desenvolve-se com a vivência nas ruas, em consequência das 
instabilidades decorrentes da situação de rualização; despoja-se dela como se 
descarta uma bagagem se não inútil, sempre inoportuna. Tal atrofia tem suas 
características amplificadas com o passar do tempo e a permanência na rua e seu 
nomadismo, chegando a atingir um estágio de perfeito desprendimento em relação 
aos lugares; quando muito, mesmo indivíduos trecheiros ou errantes, mantém um 
sentimento mais profundo apenas pelo lugar de origem (cidade natal). De 
desterritorialização em desterritorialização, a valorização do território perde 
importância; vive-se onde se está, e se já não podemos estar aqui, vamos adiante. 
 A novidade do lugar atrai, mas suas funcionalidades para o indivíduo é o que 
importam: se há abrigo, emprego, comida. Os lugares passam, as pessoas também: 
“a Terra é minha casa, meu quintal é gigante”, diz o trecheiro-andarilho-hippie Marcelo, 
o que nos remete a Tuan, quando refere a Terra como lar (1998, p.7): as perdas 
locacionais do nômade são compensadas com a amplidão, o espaço em sua 
totalidade: Nenhum lugar me pertence, logo posso (se não possuo) todos os lugares. 
Essa alteridade espacial, se renega o homem moderno, agrilhoado ao capitalismo e 
sedentarismo, restrito e conscrito aos mecanismos de lucro, acumulação e 
estabilidade(s), celebra o Homem primevo, o nômade possuidor ou melhor, 
experimentador da Terra. Embora Magni (2006) saliente a diferenciação entre o 
nômade clássico e o morador em situação de rua, entendemos que um mesmo ímpeto 
os domina, uma mesma percepção espacial aberta, um relativo desprezo pelo lugar 
em prol do espaço, do conjunto sempre ampliável ou ilimitado de lugares. Cartógrafos 
de um mapa mental-sentimental que perde em profundidade “locacional” do 
sentimento para ganhar em variedade e liberdade: menos certeza, mais 
possibilidades. Eleger um lugar é furtar algo ao todo, é diminuir o espaço e diminuir-
se: carga inútil, dasfaçamo-nos dela, para que possamos entrar na posse de tudo, 
cumprir nossa sina de seres-no-mundo, para o mundo, pelo mundo. 
 O próprio conceito de não-lugar parece sinistramente cair por terra diante dos 
moradores em situação de rua e nômades urbanos: “não-lugar” faz muito sentido para 
nós, os “lugarizados” sedentários (sedentaristas?) no sentido de domiciliados, 
segurados espacialmente: em situação de rua, alguns indivíduos tendem a lugarizar 
40 
 
o não-lugar com desenvoltura, dissolvendo-o; sua atrofia topofílica, adaptação 
ecológica, acaba constituindo-se uma vantagem (e afinal é essa mesma a sua razão 
de ser), ao fazer com que todo espaço possa ser, em seus termos, lugarizado. Não 
que tal indivíduo não aprecie o conforto, um dos fatores de fixação comuns ao homem; 
ele prescinde dele, ou minimiza seu nível de exigência até um padrão paupérrimo. Se 
para os que estão em situação de rua há “uma deserção aos padrões convencionais 
de família e trabalho” (MATTOS, 2006, p.44), fatores de imenso poder cultural e 
simbólico, o conceito de lugar, ainda que parca e inconscientemente elaborado, será 
com maior facilidade subvertido ou transfeito. 
 Se a segurança é um dos fatores geradores de laços topofílicos, percebeu-se 
que a maioria dos entrevistados prefere ficar, seja durante o dia ou a noite, em lugares 
abertos, pelo motivo principal de segurança. O conforto é claramente deixado em 
segundo plano. O medo do risco da tão por eles citada “covardia” (espancamentos, 
estupros, homicídios e roubos, de que são vítimas muitas vezes de outros moradores 
de rua). O espaço aberto, a praça franca ou grande avenida não atrai pela beleza ou 
mesmo o conforto, ou pela simples espaciosidade enquanto referência de liberdade: 
pois em todo lugar o indivíduo se arranja, pode deitar-se: a segurança e 
principalmente a facilidade de obter alimentos e auxílios diversos são o principal fator 
atrativo para tais lugares. 
 Como referido nos Resultados (Capítulo 4), foi perguntado a indivíduos que 
apresentavam uma tendência de fixação corriqueira a determinado lugar, bem como 
àqueles de características mais nômades, quais eram os motivos deles terem 
escolhido EXATAMENTE AQUELE LUGAR em que ora se encontravam (no momento 
da pesquisa). Dentre os fatores propostos, o fator “Proximidade de onde obter 
alimentação e outros auxílios” recebeu onze votos, seguido de “Paz/tranquilidade”, 
com quatro votos (a que podemos somar com algumas ressalvas o fator “Segurança”, 
com três votos), e “Horizonte relacional” (amizade pelas pessoas do lugar), com quatro 
votos. Digno de nota é que os fatores “Beleza”, e “Conforto/aconchego” não 
receberam nenhum voto. Assim, novamente percebemos que os sentimentos 
topofílicos de cunho estético, ao menos na escolha do local de fixação do rualizado 
urbano, têm pouca ou nenhuma importância. 
 Perguntados sobre se teriam medo ou receio de algum lugar, espaço ou ponto 
da rua e da cidade, mesmo quando insistíamos numa definição geográfica, parte dos 
entrevistados, mesmo os há pouco tempo em situação de rua, alegou não possuir 
41 
 
medo de lugar algum (quatro indivíduos); ou, fato interessante, outros quatro alegaram 
não possuir medo de local nenhum em específico, mas sim da “noite”, cuja escuridão 
somada ao esvaziamento das ruas facilitaria as violências e “covardias” de que muitos 
moradores em situação de rua já foram objeto. Sete indivíduos apontaram locais 
específicos que lhes despertavam sentimentos topofóbicos. Interessante notar que, 
para os dois entrevistados localizados à maior distância do centro da cidade (fixados 
no bairro Fonseca), é justamente o centro da cidade (no geral para um, e a Avenida 
Amaral Peixoto em especial para outro) o foco de topofobia. 
 Para dimensionarmos a multiplicidade das percepções espaciais em sua 
subjetividade, a Avenida Amaral Peixoto, por sua vez, foi eleita por outro indivíduo 
justamente como “lugar especial”, ou seja, um foco topofílico para ele. O mesmo 
fenômeno foi constatado em relação ao bairro de Icaraí: “lugar especial”, e “lugar 
bonito da cidade” para dois indivíduos, e foco topofóbico para outro. Os que apontaram 
lugares repelentes, além do centro da cidade e o bairro de Icaraí, citaram uma favela 
e dois locais (Praça do Chafariz e Prainha) onde habitam outros grupos de moradoresde rua aparentemente hostis aos entrevistados, demonstrando a territorialização 
efetivada nesses e a partir desses espaços. 
 Percebemos assim que os sentimentos topofóbicos são em geral raros: a rua é 
entendida como espaço franco. Diluem-se os sentimentos topofílicos, diluem-se 
também, pelo mesmo processo de despojamento, os topofóbicos. Os lugares mais 
isolados e tranquilos do centro urbano, que aparentemente seriam preferíveis ao 
menos para dormir, dado os maiores silêncio e privacidade, nas ruas de nossas 
cidades são preteridos em prol da sobrevivência, melhor assegurada nos espaços 
abertos e movimentados. Uma das entrevistadas apontou a preferência por ficar em 
lugar mais “vazio” ou reservado, mas para... namorar. 
 Assim, é o medo da “covardia”, é o medo das pessoas, e não tanto de lugares 
específicos, embora aparentemente repelentes ou assustadores, o que causa 
topofobia. Tuan (2005, p.06) corrobora, ao dizer que 
 
Paradoxalmente, é na grande cidade – o símbolo mais visível da 
racionalidade e triunfo humano sobre a natureza – que permanecem 
alguns dos velhos medos. O crescimento urbano desordenado, por 
exemplo, é visto como uma selva, um caos de edifícios, ruas e 
movimentos rápidos de veículos que desorientam e assustam os 
42 
 
recém-chegados. Mas a maior ameaça, aquela que se destaca em 
uma cidade, são as outras pessoas. A malignidade permanece como 
um atributo humano, não mais atribuído à natureza. 
 
 A nossa hipótese inicial de que a própria urbe, com sua floresta de concreto e 
vidro e suas multidões exercia certa atração topofílica de per se sobre os indivíduos, 
terminou de ruir quando perguntamos aos entrevistados se eles desejariam possuir 
uma residência (casa) e onde ela seria localizada (cidade, praia, favela, campo etc.). 
A maioria dos entrevistados (seis indivíduos) alegou desejar uma casa no “campo”, 
na “roça”, no “interior”, sendo a segunda opção lugar indiferente, com quatro 
(importando apenas possuir uma casa). Interessante que dentre os que desejavam 
casa em área rural há indivíduos oriundos de municípios com pouco ou já nada de 
zonas rurais, como é o caso de Niterói. Dois indivíduos desejavam uma casa em 
comunidade (“favela”). Um único indivíduo desejava uma casa “no centro da cidade”. 
 Dissemos já que o fator estético, propiciador de formas e experiências 
topofílicas sutis que podem ser arrebatadoras porém efêmeras, parece ter pouca ou 
mesmo nenhuma influência na escolha da maioria dos moradores em situação de rua 
por um lugar de permanência. Isso se comprova não apenas pela resposta aos 
motivos da escolha de determinado lugar para fixar-se (mesmo provisoriamente), mas 
pelo fato de que, quando solicitados a citar um lugar na cidade que considerassem 
bonito, num elenco de sugestões que ia de uma simples esquina a praças, edifícios e 
bairros inteiros, apenas três indivíduos elegeram como lugar bonito algo presente no 
ou o próprio local onde costumavam permanecer. A maioria citou outros lugares onde 
inclusive seria possível a sua permanência (p. ex., bairro de Icaraí, Praça Araribóia), 
caso o fator estético fosse seja o fator principal, seja fator de maior importância para 
a eleição de um lugar. 
 Quando perguntados sobre a existência de algum lugar do qual pudessem dizer 
“eu o amo”, de treze que responderam, sete alegaram não amar lugar algum; os outros 
seis amam seus bairros de criação ou cidades natais. Digno de nota é que mesmo os 
andarilhos/trecheiros entrevistados, alguns que alegaram ter conhecido e morado em 
dezenas de cidades do país e mesmo do exterior, se amam algum lugar é apenas sua 
cidade natal ou bairro onde foram criados; a situação de rua não propiciou laços 
topofílicos profundos, a que se pudesse nominar “amor”, a nenhum deles. 
43 
 
 Os indivíduos que consideramos mais interessantes para esta pesquisa, que 
sejam, aqueles que estão nas ruas aparentemente por gosto e livre vontade, 
apresentam uma grande facilidade de desapego somada a um desejo de conhecer 
novos lugares e também pessoas. Em prazos indeterminados, a partir de motivações 
sutis ou que os entrevistados não puderam especificar com maior clareza, “quando dá 
na telha” lançam-se nas “BRs” (estradas federais), ganham as estradas e vão ter em 
outras praças. O que percebemos em tais indivíduos trecheiros é seu poder de 
desapego, aliado a seu entendimento de que a rua é ou sua casa e lar, ou, mesmo 
que não possa ser eleita “lar”, ainda assim é o melhor espaço para vivenciar a plena 
expressão de seus gostos por liberdade (liberdades, pois são muitas), ausência de 
vínculos e despojamento, sua forma enfim de ser-no-mundo. Um dos indivíduos que 
se enquadram neste perfil, Marcelo, hippie de origem paulistana (Santo André), 
quando indagado sobre o que para ele era um lar, uma casa, afirmou: “A Terra é a 
minha casa; o meu quintal é gigante, sou cidadão do mundo, sem pátria, sem patrão, 
sem apego, sem vínculo”. Seu desapego manifesta-se ainda quando perguntado 
sobre a existência de um lugar, seja edifício, bairro, cidade, que ele ame. Enquanto a 
maioria dos entrevistados elege um local assim, Marcelo diz não ter tal nível de 
sentimento (amor) por lugar algum; no máximo, ama “a rua”, ou a situação de rua. 
Outro indivíduo, Pedro Paulo, há vinte anos na rua, aparentemente citadino (fixado à 
uma cidade, no caso a mesma de sua origem, Niterói), quando perguntado se há 
algum lugar que ame, responde: “Não [há lugar que] amo. Vou gostar de onde eu 
estiver”. 
 Por sinal, tal sentimento foi constatado em outra moradora (Sara) que, assim 
como Pedro e Marcelo, tem já mais de duas décadas de vida na rua, tendo (como no 
caso específico do indivíduo Marcelo), iniciado sua experiência nas ruas ainda na 
infância. Assim, a precocidade e o prolongamento da situação em situação de rua 
parecem colaborar para a diluição dos sentimentos de apego a lugares específicos. 
 Práticas tais como executar as necessidades fisiológicas em público, manter 
relações sexuais, além do simples dormir e alimentar-se, parecem, através da diluição 
de pudores, contribuir para uma gradativa assimilação ou reconhecimento, ainda que 
de formas semicientes, da rua enquanto “casa”. 
 Falando sobre objetos, diz Magni (2006, p.99): “O apego às coisas praticamente 
inexiste ou é destruído ao longo do tempo de vida na rua: sua bagagem deve ser 
limitada para enfrentar a mobilidade.” Também, assim acreditamos, sua bagagem 
44 
 
sentimental e, derivadamente, topofílica acaba sofrendo ‘descartes’ no objetivo de 
permitir a vida rualizada. A autora continua (MAGNI, 2006, p.99): 
 
Os bens materiais, assim como as pessoas, os companheiros e os 
amantes, se perdem de vista com a mesma facilidade com que outros 
podem ser reencontrados nos circuitos e trajetos da cidade, do estado, 
do país. 
 
 Pois a autora refere que, sem ter onde acumular bens de valor em quantidade, 
por que fixar-se num lugar? Afinal eles vivem e conseguem recursos, alimentos e 
mesmo roupas para o hoje, por gosto ou por força das circunstâncias desligados da 
pulsão capitalista do acúmulo, do amanhã e da poupança com vistas a um futuro. 
Adaptados ao nicho ecológico que encontraram, ali se fazem. “Sua fonte de vida está 
onde estão os excessos da civilização – nas ruas e centros urbanos (MAGNI, 2006, 
p.75). 
 Assim, num círculo de eventos que se retroalimentam, a própria impossibilidade 
de apegar-se a bens materiais (móveis, roupas em excesso, livros etc.), além do 
apego a pessoas, constrói um poder de desprendimento em relação aos mesmos, 
influindo num desapego em relação ao(s) lugar(es),

Mais conteúdos dessa disciplina