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16 • C I Ê N C I A H O J E • vo l . 34 • nº 199 F I S I O P A T O L O G I A O papel da mitocôndria no metabolismo e na produção de energia pelas células está bem definido, embora muitas reações envolvidas nos processos de conversão energética e de transporte de elétrons ainda não estejam esclare- cidas em nível molecular. Há cerca de três décadas, acreditava-se que as funções da mitocôndria (figura 1) se limitavam a algumas vias metabólicas, como a cadeia respiratória (a série de reações bioquímicas que libera a energia necessária para sintetizar ade- nosina-trifosfato, ou ATP, a molécula de energia da célula), a fosforilação oxidativa (a própria síntese de ATP) e a termogênese (a geração extra de calor) – es- ta última no chamado tecido adiposo marrom. A demonstração de que a respiração promove uma diferença na concentração de prótons (um gradiente F I S I O P A T O L O G I A As mitocôndrias são conhecidas como as ‘usinas de energia’ das células, e seu papel no metabolismo celular está bem definido. Estudos recentes vêm demonstrando a importância da impermeabilidade da membrana mitocondrial interna para suas funções (como produzir ATP, gerar calor em animais hibernantes e regular a morte celular). Falhas na permeabilidade seletiva dessa membrana podem originar diversas doenças e levar as células à morte, o que vem atraindo cada vez mais atenção para essas organelas. Anibal Eugênio Vercesi Departamento de Patologia Clínica, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas anibal@unicamp.br novembro de 2003 • C I Ê N C I A H O J E • 17 F I S I O P A T O L O G I A � de prótons) entre o interior da mitocôndria e o espa- ço que separa suas membranas interna e externa – gerando um potencial elétrico-químico que a célula usa como fonte de energia para fosforilar a adenosina- difosfato (ADP), sintetizando ATP – revelou a impor- tância da impermeabilidade da membrana interna. Mesmo prótons só atravessam essa membrana se transportados por moléculas específicas, e essa ca- racterística é essencial para a integridade da síntese de ATP e também para a saúde da célula. Constatou-se em seguida que a perda dessa impermeabilidade constitui, em muitas condições patológicas, um evento-chave no processo de mor- te celular programada ou acidental – o que fez da mitocôndria um centro de atenções em estudos de Figura 1. As mitocôndrias, organelas com DNA próprio, são as ‘usinas de energia’ das células fisioatologia. Além disso, as reações de oxidação- redução (reações redox) envolvidas no transporte de elétrons durante a respiração celular geram, como subproduto, espécies reativas de oxigênio, tóxicas a praticamente todos os componentes das células, em especial às próprias mitocôndrias, quando a ca- pacidade antioxidante da célula é deficiente. Tais espécies (também chamadas de radicais livres) parecem contribuir para o declínio na capacidade de produção de energia das mitocôndrias duran- te o processo de envelhecimento. No reino animal, a mitocôndria é a única organela que contém seu próprio DNA, com genes que codi- ficam para várias moléculas integrantes da cadeia respiratória e genes que codificam RNA ribossomal F I S I O P A T O L O G I A 18 • C I Ê N C I A H O J E • vo l . 34 • nº 199 F I S I O P A T O L O G I A e RNA transportador (tRNA). Mutações nesse DNA podem induzir doenças mitocondriais com herança materna que se expressam durante diferentes fases da vida e que envolvem predominantemente os músculos e o sistema nervoso, por serem os tecidos que mais precisam de energia. Respiração e fosforilação oxidativa A cadeia respiratória mitocondrial é composta de várias proteínas que catalisam (promovem) reações redox de transferência de elétrons a partir de duas coenzimas (nicotinamida-adenina-dinucleotídeo, ou NADH, e flavina-adenina-dinucleotídeo, ou FADH2) até o oxigênio molecular (figura 2). Grande parte da energia liberada nessas reações é utilizada para a fosforilação oxidativa – a síntese de ATP a partir de ADP e fosfato. Em 1949, logo após o desenvolvimento de técnicas que permitiram o fracionamento de cé- lulas, os bioquímicos norte-americanos Eugene Kennedy e Albert Lehninger (1917-1986) isolaram mitocôndrias hepáticas e demonstraram que essa organela é o sítio celular responsável pela síntese de ATP, associada à oxidação dessas coenzimas. Essa observação deu origem à fase moderna da investigação sobre os mecanismos de conversão de energia em sistemas que consomem oxigênio. Du- rante cerca de 20 anos houve uma busca infrutífera por um suposto intermediário químico que seria responsável pelo acoplamento entre os dois proces- sos: a respiração e a síntese de ATP. Apesar de evi- dências crescentes, o papel funcional da membrana mitocondrial foi ignorado por muitos pesquisado- res durante essa ‘procura pelo intermediário’. Em 1961, o bioquímico inglês Peter Mitchell (1920-1992), baseado na constatação de que a redu- ção de oxigênio (O2) a água (H2O) pela cadeia respi- ratória gera um gradiente de prótons (H+) entre o meio interno (matriz) da mitocôndria e o espaço entre suas membranas interna e externa, propôs a teoria quimiosmótica da fosforilação oxidativa. Se- gundo Mitchell, a passagem de elétrons pela série de moléculas envolvidas na cadeia respiratória induz um fluxo de H+ da matriz para o espaço intermem- branas, desequilibrando a concentração de prótons nos dois espaços. Esse gradiente (ou potencial) eletroquímico de H+ seria o ‘intermediário’ rico em energia que acoplaria a respiração à fosforilação. Assim, o fluxo de H+ de volta ao interior da mito- côndria, visando restabelecer o equilíbrio, fornece- ria a energia necessária para a fosforilação do ADP. Esse potencial eletroquímico de H+ (�µH+) tem um componente elétrico (��, mais negativo interna- mente) que atinge cerca de 180 milivolts (mV) no estado de repouso, e um componente químico (�pH, mais alcalino internamente) que oscila de zero a 0,5 unidade de potencial hidrogeniônico (pH). A enzima ATP-sintetase promove o retorno dos H+ à matriz e aproveita a energia liberada do potencial protônico para fosforilar o ADP. Essa proteína é formada por Figura 2. Esquema simplificado da cadeia respiratória, sistema de transporte de elétrons (e-) que ocorre nas mitocôndrias: os prótons (H+) levados da matriz para o espaço intermembranas pelas chamadas ‘bombas redox’ situadas na membrana interna, fornecem — quando retornam à matriz — energia para a produção de ATP, a molécula armazenadora de energia das células Espaço entre as membranas Membrana interna Matriz 2e- 2e- 2e- 2e- 2e- 2e- 2e- NADH- NAD+ 4H+ 4H+ 2H+ FAD 2 NADH FADH 2 2 H O deidrogenase Citocromo -c- Citocromo -c- Citocromo c redutase oxidase Ubiquinona (coenzima Q) +O + 2H1 2 novembro de 2003 • C I Ê N C I A H O J E • 1 9 F I S I O P A T O L O G I A duas regiões bem distintas: o fator F1 (solúvel, loca- lizado na matriz) e o fator F0 (hidrofóbico, que atra- vessa a membrana interna da mitocôndria, onde também se situam os componentes da cadeia respi- ratória). O fator F1 contém os sítios ativos (locais de ligação com as moléculas participantes de uma rea- ção – nesse caso, ADP e fosfato inorgânico) e é com- posto por trechos distintos: três subunidades �, três �, uma �, uma � e uma �. As três últimas estão en- volvidas na interação entre F1 e F0 e os três sítios ativos são formados por aminoácidos das subunidades � e �. O fator F0 constitui o canal para a passagem de H + e é composto por três tipos de subunidades(figura 3). Um gradiente eletroquímico entre os dois lados de uma membrana é um elemento central no aprovei- tamento de energia em sistemas biológicos. Esse mecanismo é fundamental na evolução dos seres vivos, já que ocorre tanto na fosforilação oxidativa em mitocôndrias (seres aeróbicos) quanto na síntese fotossintética de ATP em cloroplastos (vegetais e cianobactérias, por exemplo). Além disso, esse gra- diente pode ser usado diretamente para processos mitocondriais que requerem energia, como o trans- porte de vários cátions (íons positivos), por exemplo, que penetram na mitocôndria em resposta ao poten- cial negativo interno. O gradiente eletroquímico de H+ pode também ser consumido, sem síntese de ATP, dissipando sua energia na forma de calor. Isso caracteriza o que é chamado de ‘desacoplamento’ entre a respiração e a fosforilação oxidativa: os prótons ejetados do meio interno da mitocôndria pela respiração retornam a ele sem passar pelo canal F0 da ATP-sintetase, passo essencial para a fosforilação do ADP. Um ‘curto- circuito’ desse tipo foi evidenciado por estudos do biólogo inglês David Nicholls e seu grupo em mi- tocôndrias de tecido adiposo marrom, existente em animais hibernantes e mamíferos recém-nascidos, e responsável pela geração de calor (termogênese) por mecanismo independente de tremor. Em animais com termogênese estimulada por exposição ao frio, o tecido adiposo marrom respira a uma velocidade até 50 vezes maior que a de uma massa equivalente de tecido hepático. A elucidação das bases moleculares dessa alta velocidade respiratória começou com a identifica- ção de uma proteína de 32 kilodaltons (kDa), presen- te na membrana mitocondrial interna, que promove o retorno de H+ à matriz. A quantidade dessa proteína desacopladora (uncoupling protein, UCP) nas mito- côndrias do tecido adiposo marrom pode dobrar, dependendo do estresse térmico a que o animal é submetido cronicamente. O retorno de prótons à matriz mitocondrial, através da UCP, estimula a respiração e gera calor, dando a esse tecido a capaci- dade de termogênese. Proteínas desacopladoras (UCPs) A UCP é ativa em mitocôndrias recém-isoladas, mas sua atividade é inibida pela adição de nucleotídeos derivados de guanina ou adenina, como guanosina- difosfato ou trifosfato (GDP ou GTP) e adenosina- difosfato ou trifosfato (ADP ou ATP). Estes se ligam à UCP com alta afinidade, reacoplando a respiração à fosforilação. Assim, tais nucleotídeos atuam como reguladores fisiológicos do processo de termogênese. A regulação da atividade da UCP é complexa. Além de ser inibida por nucleotídeos de guanina e adenina, essa proteína é ativada por ácidos graxos livres, que também participam do processo de termo- gênese. Assim, o desacoplamento depende da pre- sença simultânea de níveis significativos de UCP e de ácidos graxos livres. Tais ácidos graxos exercem duplo papel na bioenergética: atuam como substra- tos para a respiração e ainda como reguladores do acoplamento entre respiração e a fosforilação. Esse duplo efeito de ácidos graxos sobre a ter- mogênese permite que animais como os ursos man- tenham sua temperatura em cerca de 35oC durante os vários meses de hibernação. No período anterior à hibernação, os ursos armazenam ácidos graxos, na forma de gordura. Sob estímulo do frio, eles são � Figura 3. Componentes estruturais da enzima ATP-sintetase, situada na membrana interna da mitocôndria e responsável pela síntese de adenosina-trifosfato (ATP), usando para isso a energia dos prótons (H+) que a atravessam F1 H+ H+ F0 Matriz Espaço entre as membranas Membrana interna da mitocôndria ATP ADP + P1 � � � � � � 20 • C I Ê N C I A H O J E • vo l . 34 • nº 199 F I S I O P A T O L O G I A empregados como combustíveis na respiração e co- mo ativadores da UCP na hibernação. Nesse perío- do, também ocorre aumento dos níveis de UCP por indução hormonal. Até meados dos anos 90, a UCP só havia sido identificada no tecido adiposo marrom. Por isso, foi proposto que ela seria uma aquisição evolutiva tar- dia e especializada dos mamíferos. Entretanto, aná- lises detalhadas do controle respiratório em mito- côndrias de plantas, bem como o efeito acoplador de albumina de soro bovino (BSA) e ATP, levaram o bioquímico inglês Andrew Beavis e o autor deste artigo a propor a existência de um fator semelhante à UCP em plantas. Em seguida, uma proteína de cerca de 32 kDa foi isolada de mitocôndrias de batata no laboratório do autor, com o mesmo procedimento usado para isolar a proteína desacopladora de tecido adiposo marrom. Outros estudos do autor, em colaboração com os bioquímicos Iolanda Cuccovia e Herman Chaimovich, da Universidade de São Paulo, demonstraram que essa proteína, batizada pelos autores como plant uncoupling mitochondrial protein (PUMP), aumenta a condutividade a prótons em vesículas artificiais (lipossomas) e em todas as mitocôndrias de plantas estudadas até o momento, tal qual a UCP das mitocôn- drias de mamíferos. No laboratório do biólogo Paulo Arruda, na Universidade Estadual de Campinas, essa proteína foi clonada e expressa em Escherichia coli. A proteína recombinante isolada de E. coli foi incor- porada em lipossomas, onde apresentou as mesmas propriedades da proteína natural de batata. A descoberta da PUMP derrubou a tese de que uma proteína desacopladora seria uma aquisição evolutiva de mamíferos, só expressa em tecido adiposo marrom, e estimulou a procura de outras. Hoje, são conhecidas cinco proteínas desse tipo em mamíferos (UCPs 1 a 5), seis em plantas e outras em fungos, tripanossomas, amebas, peixes e aves. Até o momento, a única com função termogênica es- tabelecida é a UCP1, nome atual da proteína desa- copladora do tecido adiposo marrom. A UCP2 é expressa em mitocôndrias de vários tecidos humanos, em especial os ricos em macrófa- gos (células do sistema imune), e estudos indicam que exerce um papel importante no diabetes melli- tus. O gene que a codifica situa-se no cromossomo 11 do homem e no cromossomo 7 de camundongos, em regiões associadas com a hiperinsulinemia (ex- cesso de insulina no sangue) e obesidade. A UCP3 é expressa em mitocôndrias de músculo esqueléti- co. Sua superexpressão induz emagrecimento e hiperfagia (estado de fome permanente) em ca- mundongos normais. As UCPs 4 e 5 são expressas no cérebro e suas funções ainda são pouco conhe- cidas. O estudo bioquímico e funcional dessas UCPs é dificultado pela pequena quantidade encontra- da nos tecidos onde são expressas. Ativação das UCPs por ácidos graxos A estrutura da UCP1 sugere que ela não poderia transportar prótons através da membrana da mito- côndria, por não conter grupos carboxila COO2- (on- de os prótons se ligam). Assim, esse transporte exi- ge a participação de outra molécula que contenha tais grupos. O modelo proposto pelo bioquímico alemão Martin Klingenberg diz que esses ‘auxiliares’ seriam ácidos graxos, que se ligariam às UCPs e disponibilizariam seus grupos carboxila ao longo Figura 4. Modelo do retorno de prótons (H+) para a matriz mitocondrial, com a ajuda de ácidos graxos (wwwwwCOO-) que se ligariam à proteína desacopladora (UCP), representada como um retângulo na membrana interna da mitocôndria Figura 5. Modelo do transporte de prótons em que o ácido graxo ligado ao próton (wwwwwCOOH) atravessa livremente a membrana da mitocôndria para a matriz, onde perde o próton e retorna ao espaço intermembranas na forma aniônica (wwwwwCOO-) através da UCP 2CO 2CO 2CO Membrana interna Espaço intermembranas+ UCP UCP Membrana interna +H +H His His MatrizCOOH COOH COOH Membrana interna Espaço intermembranas+ Matriz UCP UCP Membrana interna + + H H COO COO COOH COOH novembro de 2003 • C I Ê N C I A H O J E • 2 1 F I S I O P A T O L O G I A � do trajeto dos prótons (figura 4). Outro modelo, proposto pelo bio- químico Keith Garlid, sugere que as UCPs não transportam di- retamente os H+, mas sim ânions de ácidos graxos. Essa proposta te- ve como base estudos do bioquí- mico russo Vladimir Skulachev, em que foi demonstrado que os ácidos graxos protonados pe- netram rapidamente através da membrana mitocondrial, sem a ajuda de um transportador. Após dissociação do H+ na matriz alca- lina, os ânions (que, por ter car- ga, não passam diretamente pe- la membrana) retornam ao meio externo com a ajuda do carreador de nucleotídeos de adenina (ADP e ATP) presente na membrana mitocondrial interna. Esse carreador, na ausência de seus substratos específicos (ADP e ATP), transporta ácidos graxos UCPs pode estimular de forma significativa a res- piração e em conseqüência o catabolismo (degra- dação de nutrientes, como proteínas, ácidos gra- xos, glicose etc.). Essa talvez seja uma das funções das UCPs 2, 3 e 4, bem como das UCPs de plantas, muito menos abundantes que a termogênica UCP1. O desacoplamento (redução do gradiente de pró- tons sem síntese de ATP) pode também diminuir a produção mitocondrial de oxigênio reativo, como descrito a seguir. Produção de oxigênio reativo pela mitocôndria Na cadeia respiratória, o oxigênio é normalmente reduzido a água em quatro passos consecutivos de um elétron. A citocromo-c-oxidase, enzima altamente especializada nesse processo, liga-se fortemente ao oxigênio parcialmente reduzido e não o libera an- tes de sua redução total. Assim, a produção do tóxi- co radical superóxido (O2 .-) por essa redução do O2 é praticamente nula. No entanto, de 1% a 2% do oxigênio consumido pela mitocôndria é convertido ‘indevidamente’ a O2 .- em passos intermediários da cadeia respiratória (na altura da NADH-desidro- genase ou da coenzima-Q). Como esse processo gera O2 .- continuamente, a mitocôndria possui um eficiente sistema antioxi- dante, que envolve várias enzimas e outros com- Figura 6. No sistema antioxidante mitocondrial, os radicais tóxicos O 2 .- gerados na cadeia respiratória são neutralizados por uma série de reações de oxidação- redução, que têm como resultantes moléculas de água e o composto NAD+ negativamente carregados (ânions) para fora da matriz mitocondrial, onde o meio é mais ácido e eles se protonam novamente. A saída dos ânions ocor- re devido à atração exercida pelo potencial positivo de prótons no espaço intermembranas (transporte eletroforético). Os ácidos graxos, novamente pro- tonados, voltam ao interior da mitocôndria (atra- vessando diretamente a membrana) atraídos pelo pH alcalino da matriz. Cada um desses ciclos de entrada do ácido graxo protonado e saída do ânion, deixando o H+ na matriz, resulta no transporte de um próton (H+) para a matriz mitocondrial. Baseando-se nesses dados, Keith Garlid e colaboradores testaram e comprovaram a hipótese de que as UCPs, análogos estruturais do carreador de ATP e ADP, são verdadei- ros transportadores de ânions de ácidos graxos, e pro- movem o desacoplamento entre a respiração e a fos- forilação oxidativa ao fazer o transporte indireto de H+ para o interior da mitocôndria através do movi- mento de entrada/saída de ácidos graxos (figura 5). O aumento da passagem de H+ através da mem- brana mitocondrial interna, mediado pelas UCPs, reduz o potencial de membrana apenas o suficiente para que possa haver ao mesmo tempo produção de ATP e de calor. Na verdade, a eficiência da fosfori- lação oxidativa diminui (menor número de molé- culas de ADP fosforiladas, em relação ao de molé- culas de oxigênio consumidas). A quantidade de calor liberado depende da quantidade de UCPs e de mitocôndrias nos tecidos e pode não ser o bas- tante para caracterizar termogênese. No entanto, uma leve redução do potencial de membrana pelas Espaço intermembranas Matriz Membrana interna 1P 2+Ca +NADP NADH +NAD NADPH 2 2H O +H Cadeia respiratória TH Transidro- genase MnSO D 2H O 2H O 2O+ Catalase GPx / TPx GR / TR 2GSH/TSH GSSG/TSST 2O • 22 • C I Ê N C I A H O J E • vo l . 34 • nº 199 F I S I O P A T O L O G I A postos (vitaminas C e E, por exemplo). Nesse sistema, o O2 .- é ‘capturado’ pela superóxido-dismutase (MnSOD) e usado para formar peróxido de hidro- gênio (H2O2). Também tóxico, o H2O2 é detoxificado pela glutationa-peroxidase (GPx) e pela tioredoxi- na-peroxidase (TPx), ou pela catalase (esta só em mitocôndrias do coração). As formas da glutationa (GSH) e da tioredoxina (TSH) oxidadas nessa reação (GSSG e TSST, respectivamente), são novamente reduzidas por suas respectivas redutases (GR e TR), às custas da conversão de NADPH a NADP+ (forma fosforilada da coenzima NADH). O NADP+ resultan- te é regenerado pela NAD(P)-transidrogenase (si- tuada na membrana da mitocôndria), às custas da oxidação da NADH (figura 6), que também é substra- to inicial da cadeia respiratória, gerando NAD+. Este último é regenerado novamente a NADH por várias reações que ocorrem na matriz mitocondrial (prin- cipalmente reações do chamado ciclo de Krebs). Quando a geração mitocondrial de O2 .- está au- mentada, ou o sistema antioxidante está enfraque- cido, o H2O2 pode se acumular, levando a um estres- se oxidativo. Nessa situação, o H2O2 pode reagir com íons ferro (Fe2+) presentes na matriz, levando à formação do radical hidroxil (HO·). Todas as pro- teínas desacopladoras inibem essa geração de es- pécies reativas de oxigênio nas mitocôndrias, por- que, ao desacoplar a fosforilação da respiração, a velocidade desta última aumenta. Com isso, a uti- lização da coenzima-Q (ubiquinona) e do oxigênio molecular é mais rápida, reduzindo a chance de a primeira doar um elétron diretamente ao segundo, gerando O2 -. De fato, folhas de plantas transgênicas de tabaco que superexpressam a proteína PUMP mostraram-se mais resistentes que as de plantas-controle ao estres- se oxidativo induzido pela exposição a H2O2. Tais resultados estão de acordo com a constatação, em outros estudos, de que tanto a UCP3 quanto a PUMP são estimuladas em condições de estresse oxidati- vo. Esse possível papel das proteínas desacoplado- ras na regulação da produção de radicais de oxigê- nio em mitocôndrias levou, nos últimos anos, a uma intensa busca de evidências sobre sua participação nos mecanismos de proteção contra a morte celular associada ao estresse oxidativo. Estresse oxidativo mitocondrial O íon cálcio (Ca2+) parece ser o principal agente estimulador da geração de radicais livres de oxigê- nio em mitocôndrias, acumulando-se no interior destas por um processo eletroforético: o íon, positivo, é atraído pelo potencial interno negativo (devido à saída de prótons). Quando atinge alta concentração, o Ca2+ liga-se, na face da membrana interna voltada para a matriz, ao fosfolipídeo cardiolipina (respon- sável pela fixação de várias proteínas da cadeia respiratória nessa membrana). Essa ligação causa al- terações da cadeia respiratória que facilitam a pro- dução de O2 .-, e portanto de H2O2. Ao mesmo tempo, o Ca2+ disponibiliza outro íon (Fe2+) na matriz (ao tomar o lugar dele em certos compostos), e o Fe2+ estimula a produção do radical hidroxil (HO·), capaz de destruir proteínas, lipídeos e DNA mitocondriais. Os radicais de oxigênio peroxidam ácidosgraxos poliinsaturados, componentes da membrana mito- condrial. O fosfato inorgânico, quando em altas con- centrações, realimenta o processo, pois estimula a formação de espécies reativas a partir de aldeídos resultantes da peroxidação dos ácidos graxos poliin- saturados, e essas espécies multiplicam os danos à membrana. Assim, a mitocôndria constitui o princi- pal sítio de produção de oxigênio reativo e, em con- dições de estresse oxidativo, pode ser também o prin- Figura 7. O poro de transição de permeabilidade surge na membrana quando cresce a geração de superóxido (O 2 .-), induzida pelo íon cálcio (Ca2+) e por fosfato inorgânico (P i ), causando acúmulo (não controlado) de peróxido de hidrogênio (H 2 O 2 ) – este, na presença do íon ferro (Fe2+), gera o hidroxil (OH.), que oxida grupos protéicos tiólicos (-SH) e leva à abertura do poro (e que também pode permeabilizar a membrana pela peroxidação dos lipídeos que a compõem, sob estímulo do fosfato inorgânico) Espaço intermembranas Mecanismos antioxidantes enfraquecidos Poro de transição de permeabilidade (TPM) Oxidação de lipídios (permeabilização da membrana) Matriz Membrana interna Pi Pi 2+ 2+ Ca Fe HS SH HO • Cadeia respiratória 2O • MnSOD 2 2H O novembro de 2003 • C I Ê N C I A H O J E • 23 F I S I O P A T O L O G I A Sugestões para leitura DEMEIS, L. (Ed. científico) & Rangel, D. (Ed. artístico). A mitocôndria em 3 atos (CD-Rom), Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2000. KOWALTOWSKI, A.; CASTILHO, R.F. & VERCESI, A.E. ‘Mitochondrial permeability transition and oxidative stress’, in Federation of European Biochemical Societies Letters, v. 495 (1-2), p. 12, 2001. KROEMER, G. & REED, J. C. ‘Mitochondrial control of cell death’, in Nature Medicine, v. 6, p. 513, 2000. NELSON, D.L. & COX, M.M. Lehninger Principles of Biochemistry (3ª Edição), Nova York, Worth Publishers, 2000. cipal alvo dos danos causados por esses radicais. Como a membrana mitocondrial interna é rica em proteínas, estas se tornam um dos principais alvos das espécies reativas geradas. O radical hidroxil, principalmente, oxida resíduos SH de aminoácidos cisteína de proteínas vizinhas, formando ligações dissulfeto (S-S) entre essas proteínas. Isso leva à pro- dução de agregados protéicos de alto peso molecular que provocam uma permeabilização não específica dessa membrana (figura 7), conhecida como ‘transi- ção de permeabilidade mitocondrial’ (TPM). Nesse caso, a membrana interna torna-se aos poucos per- meável a prótons, íons e até a pequenas proteínas. Essa permeabilização depende da presença de Ca2+ no espaço intramitocondrial e é inibida pelo imunossupressor ciclosporina A, que se liga à pro- teína ciclofilina, componente essencial do agregado protéico que forma o poro da TPM, e previne a aber- tura deste. O termo ‘transição’ é usado porque a per- meabilização pode ser parcialmente revertida, logo após o início do processo, pela adição de quelantes de Ca2+ (compostos que se ligam fortemente a esse íon) ou de redutores que evitam a oxidação de gru- pos protéicos tiólicos (-SH). A formação do poro po- de ser estimulada por compostos capazes de aumen- tar o estresse oxidativo mitocondrial: fosfato inor- gânico, oxidantes de nucleotídeos de piridina e de grupamentos tiólicos, protonóforos (carreadores de prótons) e outros. Há evidências experimentais de que a TPM seria um evento essencial no processo de morte celular, por apoptose ou por necrose. O aumento prolonga- do da concentração de Ca2+ no citossol (meio líquido do espaço intermembranas e extramitocondrial) e na matriz mitocondrial pode induzir essa permeabi- lização. Na morte celular por necrose, o teor de Ca2+ aumenta no citossol por falência dos mecanismos que promovem a retirada desse íon e a TPM gene- ralizada leva à falta de ATP, seguida de morte celu- lar. Na morte por apoptose, a TPM seria um evento restrito a locais de aumento do Ca2+ liberado de for- ma regulada pelo retículo sarco-endoplásmico (or- ganela celular). Nesse caso, a produção do ATP ne- cessário para esse tipo de morte seria garantida por outras mitocôndrias não atingidas. Trabalho recente do biólogo italiano Luca Scor- rano e colaboradores sugere que a razão entre as quantidades das proteínas Bcl-2 (antiapoptótica) e Bax e Bak (pró-apoptóticas) expressas na mitocôn- dria e no retículo pode decidir a quantidade de Ca2+ transferida do retículo para a mitocôndria, explicando a tendência de certas células a sofrer apoptose. A abertura do poro de TPM facilitaria a liberação pela mitocôndria de fatores pró-apoptóticos. A presença desses fatores no citossol ativa protea- ses (enzimas que degradam proteínas) denomina- das caspases, que promovem a morte ‘limpa’. Nesse caso, as células encolhem e se fragmentam, for- mando os ‘corpos apoptóticos’. No núcleo, a cromati- na se condensa e o DNA se fragmenta, e esses restos são absorvidos por células vizinhas. A apoptose é necessária para a vida de seres multicelulares, pois elimina células desnecessárias ou disfuncionais, sem iniciar um processo inflamatório. Patologia mitocondrial Em termos genéticos ou fisiológicos, a mitocôndria é uma organela semi-autônoma. Ela tem seu pró- prio genoma, que no homem apresenta 37 genes: dois codificam RNAs ribossomais, 22 codificam RNAs transportadores e 13 codificam polipeptídeos que integram alguns componentes da cadeia respi- ratória e da ATP-sintetase. O DNA mitocondrial (DNAmt) está ligado à membrana interna e é muito sensível a lesões oxidativas devido à falta de histo- nas (proteínas associadas ao DNA ‘normal’ das cé- lulas) e a mecanismos de reparo incompletos. De fa- to, a fragmentação desse DNA parece estar associa- da ao dano mitocondrial que ocorre durante o en- velhecimento e às condições de estresse oxidativo descritas acima. Como o DNAmt codifica proteínas essenciais para a respiração e a fosforilação oxida- tiva, sua fragmentação leva também a disfunções e a diversas alterações nessa organela, que resultam em complexas patologias. A cadeia respiratória também contém subuni- dades codificadas pelo DNA do núcleo da célula. Por isso, patologias mitocondriais também resultam de erros ou mutações no genoma nuclear. A mito- côndria e seus genes são sempre herdados da mãe, através do óvulo (o espermatozóide contribui ape- nas com seu núcleo para formar o zigoto). Assim, a mãe pode transmitir mutações do DNAmt a todos os filhos, mas só as filhas podem repassá-las à sua prole. Por ter inúmeras mitocôndrias, uma célula pode conter simultaneamente DNAmt mutado e normal. Assim, o DNAmt mutado apresenta concentração e distribuição variável e se expressa diferentemente de tecido para tecido – as doenças mitocondriais são mais freqüentes nos músculos e o cérebro, tecidos com maior demanda bioenergética. As manifestações clínicas podem aparecer em diferentes idades, de acordo com a dinâmica das divisões celulares. Doenças degenerativas do sis- tema nervoso – como Huntington, Parkinson e Alzheimer – podem ter seu desenvolvimento deri- vado de associações entre mutações no DNAmt e maior produção de espécies reativas de oxigênio nessas organelas. ■
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