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A Previdência Social como Direito Fundamental Fábio Zambitte Ibrahim 1. INTRODUÇÃO O debate sobre a previdência social tem encontrado cada vez mais abertura no meio acadêmico. Antes restrito a tecnocratas, esse sistema de proteção social finalmente tem guarida na seara jurídica, decorrência natural de sua expressa previsão como direito social no art. 6º da Constituição de 1988, aliada ao reconhecimento de sua jusfundamentalidade. Tal avanço é perceptível pelo aumento da produção jurídica sobre a matéria nos últimos anos, pois o estudo do direito previdenciário era algo limitado a poucos especialistas e de escasso desenvolvimento. Um evidente reflexo desse passado inglório é o fato de essa disciplina, até os dias de hoje, ainda não se encontrar entre as matérias obrigatórias na maioria das faculdades de direito. O debate previdenciário, quando limitado a questões puramente econômicas, acaba deixando de lado um aspecto relevantíssimo da previdência social, que é sua função protetora, capaz de garantir a vida digna dos trabalhadores e seus dependentes. Ademais, a fixação de prestações previdenciárias, em razão das necessidades sociais, permite aos seus beneficiários uma efetiva atuação no regime democrático, sendo ainda mecanismo concreto para a garantia da liberdade real1. 1 Como aponta Peces-Barba Martinez, el primer argumento pues para defender su inclusión en la categoría genérica de los derechos fundamentales, pasa por este reconocimiento de la conexión de los derechos económicos, sociales y culturales, con la generalización de los derechos políticos. Su objetivo era la igualdad a través de la satisfacción de necesidades básicas, sin las cuales muchas personas no podían alcanzar los niveles de humanidad necesarios para disfrutar de los derechos individuales, civiles y políticos, para participar en plenitud en la vida política y para disfrutar de sus beneficios. (Los derechos econômicos, sociales y culturales: su génesis y su concepto. Revista Derechos e Libertades, del Instituto Bartolomé de las Casas, p. 25). Também afirma o mesmo autor, em outra obra, que los derechos sociales no séran sólo un remedio para la satisfacción de necesidades básicas, serán también un instrumento imprescindible para convertir en real ese tenor generalizador, y para que todos puedan gozar de hecho de los derechos individuales y civiles y participar, en igualdad de condiciones, en los derechos políticos. (Derechos sociales y positivismo jurídico, p. 17). Tais questões, por mais óbvias que possam nos parecer hoje, eram frequentemente deixadas de lado, dadas as análises puramente econômicas do gasto previdenciário. É certo, como se verá, que as questões financeiras e atuariais são relevantes e devem ser consideradas, até por expressa previsão constitucional (art. 201, caput), mas o efetivo reconhecimento da eficácia normativa da Constituição impõe uma visão mais abrangente. De início, é mister uma digressão sobre a previdência social, expondo suas origens e principais características, permitindo, assim, a exclusão de pré-compreensões equivocadas sobre o tema. 2. PREVIDÊNCIA SOCIAL: SURGIMENTO E EVOLUÇÃO Como usualmente reconhecido, o surgimento da proteção social foi propiciado pela sociedade industrial, na qual a classe trabalhadora era dizimada pelos acidentes do trabalho, a vulnerabilidade da mão de obra infantil, o alcoolismo, etc. Há uma insegurança econômica excepcional pelo fato de a renda desses trabalhadores ser exclusivamente obtida pelos seus salários. Ademais, a lei da oferta e da procura mostra-se, neste estágio, perversa, haja vista a enorme afluência de pessoas da área rural para as cidades2. A previdência social origina-se, então, das lutas por melhores condições de trabalho, as quais resultaram em diferentes sistemas protetivos, de acordo com as situações de cada país envolvido. Alguns limitaram a proteção ao necessário à sobrevivência, enquanto outros foram além, buscando implementar até a substituição plena da remuneração. Tais variações colocam em destaque as diferentes estruturas dos sistemas de proteção. Basicamente, todos buscavam uma previdência social como garantia, ao menos, do mínimo vital, de modo viável financeiramente3. Tal sistema de proteção social germina na concepção de socialismo de Estado4, de modo a provocar uma linha de resistência às concepções socialistas que cresciam no século 2 Cf. DUPEYROUX, Jean-Jacques. Droit de la sécurité sociale, p. 16-17. Cf., também, BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social, p. 186. 3 Cf. KORPI, Walter. Contentious institutions: an augmented rational-action analysis of the origins and path dependency of welfare state institutions in the western countries. Rationality and Society, p. 3. Disponível em http://www.sofi.su.se/4-2000.pdf. Acesso em: 11 maio 2005. 4 Cf. DURANT, Paul. La política contemporánea de seguridad social, p. 105. XIX, mediante a cooperação entre empregados e empregadores. Nesse contexto surgiu, inicialmente, o modelo bismarkiano de previdência social, o qual adotara técnicas semelhantes aos seguros comerciais e atividades mutualistas, mas com melhoramentos5. A reforma de Bismark, na Alemanha, iniciou-se com o famoso projeto enviado ao Reichtag em 17 de novembro de 1881, criando uma nova concepção de Estado, o qual também passaria a deter a missão de promover positivamente o bem-estar, ainda que de modo limitado – inicialmente, os benefícios eram restritos aos trabalhadores da indústria que recebiam valores inferiores a determinado piso6. Longe de refletir uma preocupação governamental com os mais desprovidos, veio como freio ao crescimento das doutrinas socialistas. Sem embargo, aqui, efetivamente, o Estado passou a ter também obrigações positivas, exigindo cotizações forçadas dos trabalhadores da indústria e fixando o benefício previdenciário como direito subjetivo. No período entre guerras, em razão da diversidade de problemas sociais, novas ações foram criadas, como a ampliação das pessoas protegidas, maior financiamento e até mesmo maior participação do Estado. Posteriormente, surgiu o Social Security Act, em 1935 nos Estados Unidos, com abrangência mais ampla que os antigos sistemas de seguro social7, maior cobertura de pessoas e necessidades sociais. Logo após há o conhecido Plano Beveridge, na Inglaterra de 5 Cf. NEVES, Ilídio das. Direito da segurança social, p. 150. Como também explica Paul Durant, em maiores detalhes, os sistemas de seguro social tiveram como precedente o alemão, criado a partir de 1883. A Alemanha iniciou a evolução por diversos motivos, tais como: a ampliação da população com grande concentração nos centros urbanos, derivativo da incipiente industrialização. Ademais, há precedentes históricos que facilitavam a criação do seguro social, pois a Prússia, desde 1810, já previa o ônus protetivo dos empregadores. Por fim, o rápido crescimento do proletariado, com cada vez mais representantes comunistas eleitos no Parlamento, produziu razoável inquietação em Bismark, que iniciou o processo de criação e expansão dos direitos sociais (La política contemporánea de seguridad social, p. 104). Conforme lembra Dupeyroux, o ambiente era favorável na Alemanha ao surgimento do seguro social, em razão de motivos econômicos (migração elevada para a área urbana), jurídicos (precedentes prussianos do seguro contra acidentes), ideológicos e políticos (Droit de la sécurité sociale, p. 23). 6 Cf. DUPEYROUX, Jean-Jacques. Droit de la sécurité sociale, p. 23. 7 No Brasil, as expressões “seguro social” e “previdênciasocial” são usadas comumente como sinônimas, muito embora a previdência social seja uma forma de seguro social mais evoluída, em razão da maior abrangência de proteção, com maior clientela e mais ampla gama de riscos sociais cobertos, que permitem a inclusão de eventos venturosos, como encargos familiares. Todavia, aqui não se fará tal distinção, pois o seguro social moderno já demanda essa compreensão alargada. Convém ressaltar, também, que mecanismos protetivos mais restritos já existiam desde épocas remotas, como as leis dos pobres (poor laws) no Reino Unido e seguros compulsórios na Prússia (cf. HENNOCK, E. P. The origin of the welfare state in England and Germany, 1850-1914. New York: Cambridge, 2007, p. 3). Também são frequentemente citadas as sociedades mutualistas existentes desde a Antiguidade, como as associações na Grécia e Roma, denominadas de collegia ou sadalitia, formadas por pequenos produtores e artesãos livres, com no mínimo três indivíduos, os quais contribuíam para um fundo comum, cuja destinação principal estava voltada para os custos dos funerais de seus associados (cf. ALMANSA PASTOR, Jose Manuel . Derecho de la seguridad social, p. 111-112). 1942, com a proposta de universalização, integração das prestações de previdência e assistência, uniformização das prestações, organização autônoma da saúde, maior financiamento, incluindo do Estado, além da criação de regimes complementares8. No regime inglês, até pela menor influência da Igreja Católica, houve a preponderância da liberdade de mercado e a ênfase na autoproteção, com uma cobertura mínima para todos os cidadãos9. No Pós-Guerra, surgiu uma tendência universalizadora do seguro social, com base nas premissas teóricas do Plano Beveridge10. As maiores taxas de natalidade e crescimento econômico geraram a euforia protetora, com a consequente universalização da clientela, 8 Cf. NEVES, Ilídio das. Direito da segurança social, p. 150. Paul Durant, também com relação ao Plano Beveridge, parte da premissa de dois defeitos da legislação: insuficiência e complexidade. A realidade inglesa, por ocasião do relatório, era que significativa parte da população encontrava-se em dificuldade, em especial devido ao desemprego ou incapacidade para o trabalho, e aliado ao fato de ausência de um seguro desemprego eficaz e benefícios acidentários adequados. O plano pretendia a extensão da proteção para todos, incluindo trabalhadores por conta própria, que eram excluídos do sistema vigente. Visava assim a generalização do sistema. Da mesma forma, colimava atender a todos os riscos sociais e a exclusão de toda e qualquer carência para benefícios por incapacidade e desemprego. Todavia, como reconhece este Autor, a iniciativa estatal não deve suprimir a responsabilidade individual sobre a proteção social (La política contemporánea de seguridad social, p. 159). 9 Cf. KORPI, Walter. Contentious institutions: an augmented rational-action analysis of the origins and path dependency of welfare state institutions in the western countries. Rationality and Society, cit., p. 3. 10 O Plano Beveridge foi elaborado por comissão interministerial de seguro social e serviços afins, nomeada em julho de 1941, com o objetivo de trazer alternativas para os problemas da reconstrução no período pós- guerra. O término do trabalho deu-se em novembro de 1942. O plano teve grande mérito por tratar-se do primeiro estudo amplo e minucioso de todo o universo do seguro social e serviços conexos. É nesse relatório que se questiona a proteção do seguro social restrita aos empregados, pois todo e qualquer trabalhador deve ser objeto de proteção. O trabalho desenvolvido por Beveridge continha alguns princípios, sendo os principais: 1. Inovação total do trabalho, com o rompimento de conceitos passados, a partir da experiência – o plano deveria deixar de lado os paradigmas existentes e buscar novos horizontes para a proteção social. 2. Amplificar a relevância do seguro social como fator de evolução social – para o relatório, os avanços tão desejados pela sociedade somente seriam possíveis com a melhoria do sistema previdenciário, por ser este verdadeiro arcabouço de todo o sistema protetivo de um Estado. 3. Cooperação entre indivíduo e Estado – as pessoas que se utilizam do sistema são as principais interessadas em seu perfeito funcionamento e, por isso, devem sempre participar da administração deste e da formulação de novas estratégias sociais. 4. Novas idades para a aposentadoria – em virtude do aumento generalizado da expectativa de vida, o Estado deveria conceder aposentadorias com idades mais avançadas, de modo a manter a estabilidade do sistema. 5. Plano de alcance universal – a rede protetiva formulada pelo Estado deveria ser dotada de alcance amplíssimo, isto é, atender toda a sociedade e protegê-la contra todo tipo de infortúnio. Daí vem a ideia de proteção from the cradle to the grave, ou seja, do nascimento à morte. 6. Assistência social completando as lacunas do seguro social – este princípio vem evidenciar a evolução então adotada. A previdência social, por si só mais evoluída que o seguro social, teria ainda mais componentes assistenciais, de modo a atender parcelas excluídas da sociedade, como as pessoas carentes e desempregadas. Após a exposição de seus princípios, Beveridge explicita as conclusões. Entre as mais importantes, pode-se citar a necessidade do seguro social compulsório e a adoção da tríplice fonte de custeio, com contribuições de empresas, trabalhadores e governo. (Cf. BEVERIDGE, Lord William. O Plano Beveridge: relatório sobre o seguro social e serviços afins. Tradução de Almir de Andrade. Rio de Janeiro: José Olympio, 1943) sem maiores distinções em razão das atividades econômicas, privilegiando a solidariedade. O financiamento distanciou-se da técnica de capitalização, com a repartição simples, trazendo evidente enfraquecimento do aspecto atuarial do sistema protetivo11. No sistema beveridgiano, as prestações pagas pelo sistema são desvinculadas da real remuneração do trabalhador, ao contrário do sistema bismarkiano, no qual a prestação é relacionada à cotização. Esses são, em apertada síntese, os pressupostos históricos que permitiram a formação teórica plena do Welfare State, que se iniciara com Bismarck, e tem íntima ligação com a previdência social. Todavia, em razão do excessivo crescimento do sistema, é com alguma perplexidade que o mundo assiste um retorno aos modelos bismarckianos de seguro social, haja vista seu maior comprometimento com o equilíbrio financeiro e atuarial. Ou seja, com a crise do Welfare State12, o que se constata, em âmbito mundial, é uma mescla dos sistemas bismarkiano e beveridgiano, com a adoção recíproca de características até então estranhas, como a securitização do esquema beveridgiano13, ou seja, a fixação de benefícios calculados também em relação às contribuições individuais. Tem-se o exemplo da Suécia, que migrou de um sistema original beveridgiano para um modelo híbrido, adotando um segundo pilar estatal compulsório, de repartição e relacionado às remunerações, reduzindo a importância do primeiro pilar, que se limita, desde então, à garantia do mínimo existencial14. Isso é de especial importância para que se possa entender o motivo de alguns países adotarem um sistema complementar de previdência compulsório – são, em verdade, Estados que adotavam o esquema beveridgiano de proteção social, mas acabaram por migrar, em parte, para o sistema bismarkiano (que seria o 2º pilar), mantendo o primeiro 11 Cf. NEVES, Ilídio das. Direito da segurança social, p. 150. Ressalte-se que a questão do regime de financiamento da previdência pública é problemática, pois há quem entenda,com alguma razão, que o Estado, por ser, em regra, um mau alocador de recursos, dificilmente administraria de modo competente um sistema capitalizado, justificando a primazia da sistemática de repartição simples, em que há o pacto intergeracional – a geração presente contribui e sustenta a geração passada, já aposentada. Nesse sentido, cf. http://www.bresserpereira.org.br/papers/1995/98. ReformaAparelhoEstado&Constituicao.pdf. Acesso em: em 30 out. 2007. Da mesma forma, os benefícios financiados por repartição simples são de extrema relevância para a concessão de benefícios de risco, como incapacidades derivadas de doenças ou acidentes. 12 Por todos, cf. a clássica obra de Pierre Rosanvallon, A crise do Estado-Providência (Goiânia: UnB, 1997). 13 HINRICHS, Karl. Ageing and public pension reforms in western Europe and North America: patterns and politics. In: CLASEN, Jochens (Org.). What future for social security? Debates and reforms in national and cross-national perspective, p. 158. 14 Sobre o tema cf. SWEDISH SOCIAL INSURANCE AGENCY. Social insurance. Disponível em <http://www.forsakringskassan.se/sprak/eng/engelska.pdf> Acesso em: 5 out. 2007.. pilar como valor mínimo assegurado a todos. Até mesmo o Reino Unido, berço da concepção beveridgiana de proteção social, fez tal mutação, sendo, todavia, dada maior ênfase ao sistema privado de previdência complementar15. Por isso a análise de um sistema protetivo qualquer deve ser feita de acordo com o aspecto histórico que propiciou sua criação e, também, tendo em conta que as alterações sempre são feitas de modo extremamente lento, em razão da grande estima desses sistemas perante os cidadãos. Daí serem inadequadas e simplórias as meras análises de gastos do sistema diante do PIB, já que isso não leva em consideração as origens históricas dos diferentes regimes16. Não obstante, são frequentes as análises da questão previdenciária sobre quesitos eminentemente financeiros, em especial a proporção do gasto previdenciário diante do produto interno bruto do país, como se a questão econômica fosse a única envolvida17. Países com antiga tradição de seguro social, como o Brasil, encontram, como era de se esperar, grande dificuldade em migrar para um sistema capitalizado e individual de previdência, especialmente em razão do encargo das gerações passadas, sendo por isso impossível aplicar as teorias tão conhecidas do Banco Mundial18. Ademais, tal migração não condiz com benefícios cujo evento determinante seja imprevisível, como doenças e acidentes, os quais demandam um grau de solidariedade maior do sistema. Pela experiência internacional, percebe-se que reformas bem-sucedidas em contenção de gastos não se originam de cópias de modelos adotados alhures, mas, sim, de acordo com as possibilidades políticas existentes, de acordo com o consenso formado. Esse consenso pode ser alcançado por meio de uma comissão de reforma, como feito nos 15 Sobre o tema, cf. THE PENSION SERVICE: a guide to your pension options. Disponível em: <www.thepensionservice.gov.uk>. Acesso em: 13 ago. 2005. 16 Cf. HINRICHS, Karl. Ageing and public pension reforms in western Europe and North America: patterns and politics. In: CLASEN, Jochens (Org.). What future for social security? Debates and reforms in national and cross-national perspective, p. 161. No mesmo sentido, apontando o necessário cuidado diante dos diferentes regimes protetivos, cf. MERRIEN, François-Xavier; PARCHET Raphael; KERNEN, Antoine. L’état social: une perspective internacionale. Paris: Dalloz, 2005. p. 254. 17 Ironicamente, mesmo nessa abordagem restrita e incompleta, os autores não parecem chegar a um acordo, ora apontando uma desproporção na relação gasto versus receita, ora visualizando uma situação de equilíbrio. Sobre a primeira concepção cf. GIAMBIAGI, Fábio. Reforma da previdência. Rio de Janeiro: Campus, 2007. Em sentido diverso, GENTIL, Denise Lobato. A falsa crise do sistema de seguridade social no Brasil. 2007. Tese (Doutorado em Economia) – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, 2007. 18 As teorias e os diversos textos no BIRD não cabem nesse curto texto. São diversas obras de variados autores, em geral defendendo uma participação mínima do Estado. Para uma ideia geral, cf. HOLZMANN, Robert; PALMER, Edward (Org.). Pension reform. Washington: The World Bank, 2006. Estados Unidos (1983), Alemanha (1992) e Suécia (1990), dentre outros – permitindo o debate técnico, e não meramente político da reforma19. Essa é uma das questões usualmente mal abordadas nos debates pátrios sobre previdência social, pois qualquer formação previdenciária duradoura carece de um consenso formado democraticamente, de modo a legitimá-lo. Em resumo, na concepção atualmente dominante, pode-se vislumbrar a previdência social como um seguro sui generis, pois impõe, em regra, a filiação compulsória, além de possuir natureza coletiva e contributiva, equilibrada do ponto de vista financeiro e atuarial, amparando seus beneficiários contra as necessidades sociais mediante a repartição dos riscos no grupo de segurados, em uma sistemática de solidariedade forçada. A previdência social, na acepção bismarkiana, tem uma evidente correlação com a técnica do seguro, pois cabe ao interessado, em regra, efetuar o pagamento do prêmio à seguradora visando a eventual indenização. Evidentemente, o seguro social apresenta algumas especificidades, como a cotização forçada e a existência de riscos previsíveis (e.g., idade avançada) entre as necessidades sociais cobertas. As necessidades sociais refletem os riscos cobertos pelos regimes protetivos, como as incapacidades para o trabalho relacionadas a eventos imprevisíveis (doenças e acidentes); ou previsíveis, como a idade avançada. Ademais, ainda abrange outras situações estranhas à ideia de infortúnio, como a maternidade, por isso criticável a tradicional concepção de riscos sociais, sendo mais abrangente o termo necessidade social20. Outros, como Paul Durant, atendo-se à terminologia tradicional, afirmam que o qualificativo de risco pode ser utilizado também para acontecimentos venturosos21. 19 A importância do consenso democrático tem sido bem-desenvolvida na doutrina pátria, como se percebe em SOUZA NETO, Cláudio Pereira: A teoria constitucional e democracia deliberativa: um estudo sobre o papel do direito na garantia das condições para a cooperação na deliberação democrática. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. No mesmo sentido, HINRICHS, Karl. Ageing and public pension reforms in western Europe and North America: patterns and politics. In: CLASEN, Jochens (Org.). What future for social security? Debates and reforms in national and cross-national perspective, p. 173-175. 20 Cf. ASSIS, Armando de Oliveira. Em busca de uma concepção moderna de risco social. Revista de Direito Social, São Paulo, n. 14, 2005. 21 Cf. DURANT, Paul. La política contemporánea de seguridad social, p. 55. 3. A JUSFUNDAMENTALIDADE DA PREVIDÊNCIA SOCIAL E A RESERVA DO POSSÍVEL ATUARIAL Como se sabe, a questão do alcance dos direitos fundamentais sempre trouxe e ainda traz alguma celeuma, seja quanto à inclusão de direitos prestacionais, seja quanto à amplitude desses direitos, não somente em razão da possível sinonímia com os direitos sociais, mas também, especialmente, das limitações orçamentárias do Estado. Nesse debate se situa a previdência social, tradicional mecanismo de proteção diante das adversidades da vida. A previdência social, no direito positivo brasileiro, é fixada como componente da seguridade social, haja vista a previsão do art. 194 da Constituição. Damesma forma, é tradicionalmente apontada como direito humano de 2ª geração22, configurando garantia positiva típica do Estado Social. Ainda, é direito social fixado no art. 6º da Constituição brasileira, geograficamente localizado no Título Dos Direitos e Garantias Fundamentais. A fixação constitucional do tema é relevante, pois, não obstante os ideais propalados de liberdade, igualdade e fraternidade, a preponderância do primeiro no constitucionalismo moderno foi quase que absoluta, até pelo fato de a Revolução Francesa ter sido marcadamente burguesa. Por óbvio, pressões sociais determinaram uma mudança na concepção vigente, trazendo a necessidade da participação mais ativa do Estado, especialmente com o advento da sociedade industrial, na qual o salário passa a ser a principal (quando não exclusiva) fonte de subsistência do trabalhador e sua família. A previsão normativa é reflexo dessa evolução histórica. A devida tutela aos trabalhadores em face dos riscos sociais, como velhice, doenças e acidentes, em conjunto com os encargos familiares, ganha corpo. Nesse novo contexto, ganham evidência os direitos prestacionais, que se mostram necessários para a efetiva 22 Sabe-se da conhecida a inadequação dessa subdivisão dos direitos fundamentais ou humanos em gerações ou dimensões não somente pela necessidade de convivência conjunta destes, mas, especialmente, pelo fato de os direitos de solidariedade partirem da premissa de um novo contrato social entre desiguais, visando à garantia de igual oportunidades para todos, enquanto os direitos clássicos relativos à liberdade formal são oriundos de um contrato social entre iguais. Ademais, no plano internacional, os mal chamados direitos de 2ª geração foram fixados em primeiro lugar, bastando lembrar a ação da OIT no sentido da implementação de direitos sociais desde 1919. (Nesse sentido, cf. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A proteção internacional dos direitos humanos, p. 41; e QUINTANA, Fernando. La ONU y la exégesis de los derechos humanos: una discusión teórica de la noción, p. 263). implementação da liberdade real. Essa evolução foi indicada supra, na esteira do progresso da previdência social. Os direitos sociais devem ser necessariamente coligados aos direitos clássicos de 1ª geração, visando à isonomia e à própria liberdade. Ninguém teria efetiva liberdade de expressão e pensamento se o Estado não patrocinasse a educação básica para todos. Igualmente, o direito à vida seria uma fantasia sem um atendimento médico universal mínimo. Da mesma forma, a imposição constitucional de amparo aos idosos (art. 230) seria uma falácia sem um sistema viável de previdência social. No entanto, em posição contrária à jusfundamentalidade dos direitos sociais, há quem entenda que esses direitos, não tendo status negativus e dependendo de concretização legislativa, se afastariam da noção de direitos fundamentais, não gerando, por si sós, direitos a prestações positivas do Estado. Seriam princípios de justiça, normas programáticas, dependendo da disponibilidade orçamentária do Estado e encontrando-se sob a reserva do possível23. Todavia, apesar de a questão do financiamento ser um elemento a ser sopesado na aplicabilidade desses direitos, não há como vincular sua jusfundamentalidade à boa vontade do Legislador Ordinário, que poderia fixar recursos a seu bel-prazer, com base em uma argumentação pseudodemocrática. Como bem aponta J. J. Canotilho, “a reserva dos cofres do Estado coloca problemas de financiamento, mas não implica o grau zero de vinculatividade jurídica dos preceitos consagradores de direitos fundamentais sociais”.24 23 Nesse sentido, cf. TORRES, Ricardo Lobo (Org.). Legitimação dos direitos humanos, p. 269. O mesmo O autor analisa três posicionamentos relativos à fundamentalidade dos direitos sociais: a) a tese do primado dos direitos sociais; b) a tese da indivisibilidade dos direitos humanos; c) as teses da redução dos Direitos Fundamentais Sociais ao Mínimo Existencial. Para o autor, “a jusfundamentalidade dos direitos sociais se reduz ao mínimo existencial, em seu duplo aspecto de proteção negativa contra incidência de tributos sobre os direitos sociais mínimos de todas as pessoas e de proteção positiva consubstanciada na entrega de prestações estatais materiais em favor dos pobres. Os direitos sociais máximos devem ser obtidos na via do exercício da cidadania reivindicatória e da prática orçamentária, a partir do processo democrático.” (A jusfundamentalidade dos direitos sociais. Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, p. 349-374). 24 CANOTILHO, J. J. Metodologia “Fuzzy” e “Camaleões Normativos” na problemática actual dos direitos econômicos, sociais e culturais. In: _____. Estudos de direitos constitucionais , p. 109. Aponta também esse autor a questão sempre omitida dos custos gerados pelos direitos clássicos de liberdade, pretensamente negativos. Comentando o assunto, Ingo Sarlet lembra que “a Corte Constitucional alemã firmou jurisprudência no sentido de que a prestação reclamada deve responder ao que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade, de tal sorte que, mesmo em dispondo o Estado dos recursos e tendo o poder de disposição não se pode falar em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável. Assim, poder-se-ia sustentar que não haveria como impor ao Estado a prestação de assistência social a alguém que efetivamente não faça jus ao benefício, por dispor, ele próprio, de recursos suficientes Ademais, todos os direitos trazem encargos ao Estado e por isso já seria discutível tal constatação. Ou seja, apesar da limitação orçamentária ser um evidente vetor de aplicabilidade dos direitos sociais, o são como em qualquer outro direito, mesmo nos direitos pretensamente negativos, que não demandariam financiamento25. Igualmente válida é a constatação que os direitos sociais também possuem dimensão de defesa, impedindo, por exemplo, a exclusão de direitos já assegurados, dentro da concepção plenamente aceita da vedação do retrocesso. Por isso Robert Alexy aponta para a diferença estrutural entre os direitos a prestações, que consistiriam em mandados, enquanto os direitos de defesa seriam proibições. Estes, como direitos negativos, teriam fácil configuração, já que vedam qualquer conduta violadora do direito, mas aqueles já seriam mais complexos, haja vista ser impossível admitir-se a exigibilidade de toda e qualquer conduta que se atinge o fim proposto26. Ou seja, ainda que haja maior margem de manobra política para ação necessária à implementação do direito à prestação, isso não significa, por certo, excluir sua jusfundamentalidade. Aliás, isso explica o fato de diversos direitos sociais serem explicitados por meio de princípios. Negar a jusfundamentalidade dos direitos sociais seria o mesmo que recusar a eficácia normativa dos princípios jurídicos. Como aponta Felipe Derbli, a necessidade de reconhecimento pelo Legislador dos direitos sociais, incluindo a previdência social, não afasta a jusfundamentalidade dos mesmos, sob pena de concluir-se pela prerrogativa do Legislador em determinar e delimitar as intenções do Constituinte Originário27. A necessidade genérica de regulamentação infraconstitucional deve ser reconhecida como dever do Legislador para com o Poder Constituinte, e não como delimitador da jusfundamentalidade dos direitos sociais. para seu sustento. O que, contudo, corresponde ao razoável, também depende– de acordo com a decisão referida e boa parte da doutrina alemã - da ponderação por parte do legislador”. (A eficácia dos direitos fundamentais, p. 261). 25 Sobre o tema, cabe menção ao clássico The cost of rights: why liberty depends on taxes de Stephen Holmes e Cass R. Sunstein (WW Norton, 1999). Da mesma forma, cf., também, MURPHY Liam; Nagel, Thomas. O mito da propriedade. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2005, e GALDINO, Flávio. O custo dos direitos. In: TORRES, Ricardo Lobo (Coord.). Legitimação dos direitos humanos, p. 201 et seq. 26 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos, p. 429, 447. 27 DERBLI, Felipe. O princípio da proibição de retrocesso social na Constituição de 1988, p. 105. Apesar da vedação de retrocesso social também aplicar-se a matéria previdenciária, como reconhece o autor, lembra este que esse princípio pode ser ponderado com outros, como o da universalidade de cobertura e atendimento, haja vista não existir pretensão de definitividade nesse tipo de norma (p. 280). Por qualquer setor dogmático, desde o liberalismo libertário até as versões comunitaristas da sociedade, passando mesmo pelo procedimentalismo habermasiano, os direitos sociais e a previdência social, em particular, ocupam lugar de relevo como instrumentos de garantia da liberdade real, da vida ordenada e da democracia. O seguro social é meio capaz de materializar a necessária e possível integração entre liberdade e igualdade. Ademais, cumpre observar a previdência social desempenha sua função protetora em superioridade diante dos demais mecanismos protetivos, pois a cotização forçada aqui tem sistemática própria e estritamente vinculada ao equilíbrio financeiro e atuarial, atendendo ao desiderato da vida digna em respeito às limitações econômicas inerentes ao Estado Pós- Social. Admitir a previdência social como direito fundamental é uma necessidade. Muitos criticam o enquadramento, mas poucos conseguiriam viver em uma sociedade sem essa. O seguro social é meio necessário e eficaz de garantia da vida digna, firmando sua posição em todas as sociedades desenvolvidas. Indo além, pode-se dizer que a previdência social, na sua dimensão objetiva, seria uma garantia institucional, pois supera a solidão individualista da concepção clássica dos direitos fundamentais, nas palavras de Paulo Bonavides28, já que as diretrizes do aparelho previdenciário e sua própria existência são também resguardadas de alterações pelo Legislador Ordinário, em uma realidade mais abrangente e eficaz na valoração da pessoa humana. Assim, não seria correto divisar a existência de um direito fundamental à aposentadoria por invalidez, ou um direito fundamental ao salário-maternidade. A jusfundamentalidade é da previdência social como garantia institucional. Isso é de extrema importância, pois a alteração do rol de prestações é possível, com redução ou mesmo exclusão de algumas, desde que o conjunto ainda atenda às necessidades sociais existentes, capaz de assegurar a vida digna. Somente com tais garantias é que a sociedade brasileira poderá estabelecer uma ativa isonomia e a liberdade real, na qual as pessoas possam, efetivamente, implementar seus projetos de vida29. 28 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 565-566. 29 Cf. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 185. No mesmo sentido, BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p. 21. Igualmente, a jusfundamentalidade dos direitos sociais é consequência inequívoca da elevação da dignidade da pessoa humana à centralidade do ordenamento. Não haveria como o Estado excluir-se da garantia do mínimo existencial sem atuação concreta na seara protetiva. É até difícil aceitar que ainda haja tamanha vacilação quanto à aceitação dos direitos sociais como direitos fundamentais. Não há motivo para empreendermos vasta couraça do cidadão diante do poder político e nada fazer diante do poder econômico30. Mais do que um bônus, a garantia necessária da vida digna é um ônus social, já que a dignidade da pessoa humana é também um dever de todos para com todos. A dignidade da pessoa humana não é somente uma prerrogativa dos particulares perante o Estado, mas também um dever daqueles para com o próximo31. As indiscutíveis vantagens trazidas pelo reconhecimento da primazia e inviolabilidade da pessoa humana, conquistadas a muito custo, trazem também pesados encargos, dentre os quais a cotização forçada para a manutenção da malha protetiva. Daí justifica-se a exação coercitivamente aplicada pelo Estado para fins de garantia da vida digna, impondo não somente contribuições compulsórias da sociedade, mas também o ingresso forçado no sistema protetivo. Uma efetiva guarida à dignidade da pessoa humana impõe a aceitação dos encargos daí derivados, como a necessidade de amparo aos necessitados e a todos aqueles que estão a sucumbir aos revezes da vida. Exige do corpo social os meios necessários à manutenção de um padrão mínimo de vida, mesmo para aqueles que não demonstrem a menor simpatia ao próximo – esse é o desafio da sociedade atual. A dignidade existe não somente para os que atendem aos requisitos de sociabilidade impostos pela maioria, mas é direito de todo aquele que possa ser qualificado como ser humano. Uma vez que a dogmática dos direitos fundamentais já avança até sobre as relações privadas, dada sua natureza também objetiva, discutir a jusfundamentalidade dos direitos 30 Cf. PASSOS, J. J. Calmon de. A constitucionalização dos direitos sociais. Revista Diálogo Jurídico, p. 5. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 1° out. 2007. Aduz esse autor que, “assim como se limitara o poder político, exigindo-se o seu exercício em termos de competência predeterminada e como serviço à coletividade (povo titular da soberania), impunha-se limitar o poder econômico – o reino do direito de propriedade, um privilégio também desigualador –, a reclamar disciplina de seu exercício, com retorno em termos de serviços, o que se logrou com atribuição de um fim social ao direito de propriedade” (p. 5). 31 Sobre a questão dos deveres fundamentais, inclusive quanto ao custo social para a manutenção dos mesmos e o enfoque excessivo somente nos direitos, cf. NABAIS, José Casalta. A face oculta dos direitos fundamentais: os deveres e os custos dos direitos. Disponível em < https://www.agu.gov.br/publicacoes/Artigos/05042002JoseCasaltaAfaceocultadireitos_01.pdf>. Acesso em: 11 out. 2007. sociais é insustentável32. Isso é especialmente verdadeiro no que diz respeito à previdência social, pois é sistema protetivo que possui grandes vantagens diante dos programas assistenciais, já que detém plano de custeio próprio, o qual, devidamente gerido, permite a manutenção de uma rede ampla de proteção autossustentável, sem depender tanto de incertezas arrecadatórias e da boa vontade do Legislador Ordinário. Da mesma forma, tal característica também reduz muito a problemática da atuação do Judiciário na concessão de prestações, auxiliando a superação da conhecida dificuldade contramajoritária. 4. A PREVIDÊNCIA SOCIAL NO ESTADO PÓS-SOCIAL A Crise do Estado Providência, no plano demográfico-financeiro, evoca a derrocada do Estado Social em razão da evolução demográfica; no domínio jurídico-administrativo, o problema é o excessivo garantismo do sistema. Enfim, os elevados gastos sociais demonstram que o modelo atingiu seus limites33. A necessidade de melhor competitividade no mercado global impõe não somente estruturas mais enxutas e funcionais, mas também mão de obra cada vez mais qualificada, o que gera aumentode desemprego, o qual, por sua vez, demanda maiores gastos no sistema de proteção social, criando uma verdadeira armadilha de pobreza34. 32 Isso é de especial evidência quando se trata dos direitos sociais negativos, que não exigem a efetiva prestação do Estado, no conceito tradicional, como a liberdade sindical e o direito de greve. Sobre o tema, cf. ANDRADE, Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, p. 58. No mesmo sentido, cf. Jorge Miranda. Manual de direito constitucional, p. 112. Mesmo J. J. Canotilho, no seu multicitado prefácio à 2ª edição da Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas (p. 20-21), afirma que a positivação dos direitos sociais é uma necessidade ética e jurídica, de modo a assegurar a dignidade da pessoa humana, sem naturalmente, gerar a ingovernabilidade. Sobre o tema também cf., do mesmo autor, Metodologia “Fuzzy” e “Camaleões Normativos”, p. 97 et seq. Sobre a eficácia objetiva dos direitos sociais, como direitos de dupla-face, cf. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, p. 540, 585. 33 Cf. PIERSON. Paul. The new politics of the welfare state. Oxford: Oxford University Press, 2001. O autor aponta os “suspeitos de sempre”, em suas palavras: globalização, política interna e mudanças estruturais, como o envelhecimento da população. Alia a esses a questão das pressões pós-industriais, com o crescimento do setor de serviços, aumento de demanda por mão de obra qualificada e a derrocada do modelo fordista de produção. Isso também traz como consequência o comprometimento do modelo bismarkiano de custeio previdenciário. Sobre o tema, cf., também, MERRIEN, François-Xavier; PARCHET Raphael; KERNEN, Antoine. L’état social: une perspective internacionale, p. 272. 34 A expressão é de Bill Jordan e Simon James et al. (Cf. Trapped in poverty? Labour market decisions in low income households. London: Routledge, 1992) Daí observou-se que, de acordo com as medidas adotadas mundialmente, surgiu a ideia, supracitada, de desaceleração da influência dos modelos beveridgianos, tendentes à universalização da proteção. Por outro lado, torna-se perceptível certo incremento, quase em tom de retorno, da influência dos modelos bismarckianos, que adaptam a proteção social aos estatutos sócio-profissionais dos interessados e as particularidades das atividades econômicas, em articulação com os modelos assistenciais ou solidaristas35. É pouco provável que a sociedade venha a abrir mão dos direitos sociais tão arduamente erguidos, pois, como se sabe, os direitos humanos são derivados de uma construção histórica36, e a volta a uma acepção liberal, com a garantia da mera liberdade formal, seria não somente inviável, mas um verdadeiro erro dialético. O cenário que se avizinha, do Estado Pós-Social, busca uma situação de equilíbrio, não mantendo ampla gama de ações, mas somente aquelas necessárias à manutenção do mínimo existencial, aqui entendido, evidentemente, não como o mínimo necessário à sobrevivência (mínimo vital), mas, sim, aquele que traga todas as condições necessárias à vida digna (mínimo existencial). Nesse contexto, a previdência social tem amplas chances de sucesso, pois é o único sistema de proteção social que, por definição, deve buscar o equilíbrio financeiro e atuarial, tendo, portanto, fonte de custeio inerente ao próprio sistema, usualmente derivada das cotizações de empresas e trabalhadores, como verdadeiro salário socialmente diferido. O mundo ocidental tem adotado, de modo contundente, a predileção pelo modelo de seguro social, estabelecendo um custeio específico, com base nas remunerações e benefícios fixados com base naquelas, limitando-se a ação governamental à manutenção da vida digna. À medida que aumentam as causas de exclusão social, mais eficaz deve ser a ação protetiva, de modo a atingir suas finalidades, especialmente em um Estado que tem como diretriz, na área protetiva, a busca pela universalidade de cobertura e atendimento (art. 194, parágrafo único, I, CRFB/88), que é, aliás, perfeitamente compatível e adequada ao mundo 35 Cf. NEVES, Ilídio das. Direito da segurança social, p. 166. 36 Cf. Norberto Bobbio. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. Sem embargo, criticável a posição desse autor ao desprezar a necessidade de legitimação desses direitos (p. 24-25), especialmente dados os efeitos hermenêuticos desta, que permitem a busca do alcance dos direitos humanos, assim como sua validade e eficácia. Sobre o tema, cf. Legitimação dos direitos humanos. TORRES, Ricardo Lobo (Org.). Rio de Janeiro: Renovar, 2002. atual37. Não há sentido na formação de um Estado subsidiário em um contexto de risco crescente. Um sistema previdenciário eficaz, em conjunto com outras ações sociais, não deve limitar-se à garantia do mínimo vital, mas atender aos riscos sociais crescentes em uma sociedade pós-moderna, com a garantia de uma remuneração compatível e inclusão social efetiva. O sistema previdenciário, repita-se, não busca tão somente a manutenção de um mínimo de sobrevivência, mas algum valor que permita ao segurado uma vida digna. O Welfare State tem, de fato, limitações próprias de sua estrutura grande e onerosa. O Estado, em muitos casos, assumiu uma posição demasiadamente paternalista, excluindo as necessárias possibilidades de opção entre consumo presente ou futuro, entre poupança e dispêndio38. Esta é a crítica correta ao Estado Social, mas frequentemente mal formulada. Todo ser humano, como pessoa dotada de dignidade e liberdade, deve ter a seu alcance a prerrogativa de optar por despender maiores recursos, hoje, na busca de seus projetos de vida ou poupar visando ao consumo futuro. A miopia individual39 somente justifica a imposição de cotização necessária para que se garanta o mínimo existencial em virtude de incapacidades futuras. Esses equívocos são visíveis no sistema brasileiro, que não somente trouxe um sistema perdulário, mas também impõe cotização visando a aposentadorias antecipadas, por tempo de contribuição, quando a opção pelo retiro precoce deveria ficar ao alvedrio de cada um. A previdência social deve restringir-se às necessidades sociais, que, em matéria de aposentadorias, limitam-se à idade avançada e à invalidez. Se determinado trabalhador deseja aposentar-se antecipadamente, é encargo único e exclusivo deste a cotização extra, necessária para atingir seu desiderato, seja perante a entidade privada de previdência, seja 37 Cf. GARCÍA, Bonilla; GRUAT, J. V. Social protection: a life cycle continuum investment for social justice, poverty reduction and development, p 22. 38 Até mesmo Lord Beveridge já afirmara que seu famoso relatório não se destinava a criar um Estado paternalista, no qual o cidadão obteria do Estado todo o bem-estar social que desejasse, sem nada contribuir ou prever por conta própria. Afirmou, ainda, que o Estado deixa ao cidadão a responsabilidade e a liberdade de cuidar de si mesmo e dos seus, alicerçado na segurança mínima dada pelo Estado. (Prefácio. In: SCHOTTLAND, Charles I. Previdência social e democracia, p. 10). 39 A miopia individual é apontada como a dificuldade que a pessoa média tem em perceber a importância e a necessidade da cotização previdenciária visando à sua proteção futura. Sobre o tema, cf. THOMPSON, Lawrence. Mais velha e mais sábia: a economia das aposentadorias públicas. Washington, DC: Ed. do Instituto Urbano, 1998 por opções de investimento individual, como poupança, ações, imóveis, etc. A cotização compulsória em um estadodemocrático de direito somente se justifica em razão do mínimo existencial. Tal paternalismo previdenciário ainda traz sequelas nefastas, pois as pessoas não admitem que a previdência social venha a extinguir benefícios precoces, como a conhecida aposentadoria por tempo de contribuição. Alega-se, em geral, que se houve contribuição durante tantos anos, é correta a percepção do benefício, como se não existissem outros riscos a cobrir, como doença e acidentes, que, para alguns, seriam um extra na proteção social40, demonstrando evidente desconhecimento e amadorismo no trato do assunto. Em verdade, quando esses sistemas perdulários e superdimensionados entram em desequilíbrio, dificilmente há uma ação imediata para a sua correção, em decorrência, especialmente, do descompromisso com a realidade financeira, já que sempre haverá a possibilidade de reduzir ou extinguir justamente os benefícios secundários, gerando o descontentamento que não existiria se o plano de benefícios fosse restrito à cobertura das necessidades reais, pois qualquer desequilíbrio demandaria ação sem demora. O modelo bismarkiano, direcionado à proteção das necessidades sociais reais, tem adequação perfeita às novas imposições do Estado Pós-Social, pois somente admite a existência do benefício com o custeio respectivo, o qual é vertido, em regra, por trabalhadores e empresas, que são, respectivamente, beneficiários diretos e indiretos do sistema protetivo. A previdência social, de acordo com o modelo pós-social, poderá gerenciar ampla cobertura aos trabalhadores e atender, mediante rigoroso controle atuarial, às demandas sociais necessárias à vida digna, em compasso com a atuação do Estado no sentido de incrementar a atividade econômica, premissa necessária para maior inclusão previdenciária, pois um sistema contributivo demanda que seus participantes tenham meios de arcar com seus custos. Um sistema explicitamente contributivo traz, também, a vantagem de estimular maior controle e participação na gestão do sistema, externando melhor acompanhamento do 40 Nesse sentido, apontando os riscos de doença e acidentes como anomalias do sistema (sic), cf. GIAMBIAGI, Fábio. Reforma da previdência, p. 120. Ignoram esses autores que o seguro social surgiu justamente para atender tais riscos, como o seguro-doença bismarkiano de 1883, que são imprevisíveis e, portanto, de difícil administração pelos indivíduos isoladamente. gasto previdenciário (accountability), pois o fato de o Estado administrar tais valores não significa que sejam recursos públicos, no sentido exato do termo, mas, sim, reservas para pagamentos de benefícios em situações cobertas. 5. PREVIDÊNCIA SOCIAL NO BRASIL – SITUAÇÃO ATUAL E ALGUMAS PROPOSTAS DE MUDANÇA 5.1 Panorama do sistema vigente O sistema previdenciário brasileiro é dotado de dois Regimes Básicos, de ingresso compulsório [Regime Geral de Previdência Social (RGPS) e Regimes Próprios de Previdência de Servidores Públicos e Militares (RPPS)] e dois Regimes Complementares de Previdência (privado, aberto ou fechado, no RGPS; e público fechado, nos RPPS). O RGPS é o mais amplo, responsável pela proteção da grande massa de trabalhadores brasileiros. É organizado pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), autarquia vinculada ao Ministério da Previdência Social. Os Regimes Próprios de Previdência são os mantidos pela União, pelos Estados e por alguns Municípios em favor de seus servidores públicos e militares. Nesses entes federativos, os servidores ocupantes de cargos públicos efetivos não são vinculados ao RGPS, mas, sim, a regime próprio de previdência, desde que existentes. A organização dos regimes próprios de previdência deve seguir as regras gerais da Lei n° 9.717/1998, com as alterações da MP n° 2.187-13/2001 e Lei n° 10.887/2004, enquanto o funcionamento do regime previdenciário dos militares segue as diretrizes da Lei n° 6.880/1980, com as alterações da Lei n° 10.416/2002, e da MP n° 2.215-10/2001. O fundamento constitucional dos regimes próprios de servidores está no art. 40 da Constituição, enquanto o dos militares é previsto no art. 142, X, da Constituição. O RGPS consta do art. 201. Acredito que nem seria correto falar em regime previdenciário dos militares, pois estes simplesmente seguem a inatividade remunerada, custeada integralmente pelo Tesouro, sem perder a condição de militar, salvo quando da reforma. A atividade militar impõe requisitos mais gravosos de aptidão física e intelectual que dificilmente seriam adequados a um sistema estritamente contributivo. Basta imaginarmos um piloto de caça que venha a ficar míope na meia-idade, sem condições de readaptação para outra atividade. Também não se mostra adequado, com a nova redação constitucional, concluir-se pela necessária criação de RPPS em todos os Entes Federativos, inclusive Municípios. Essa constatação seria, a priori, consectário da atual redação do art. 40 da Constituição, que assegura ao servidor regime previdenciário contributivo e solidário. Não obstante, a mesma Constituição prevê a necessidade de equilíbrio financeiro e atuarial desses regimes, que não seria viável sem a massa crítica necessária, isto é, sem um número mínimo de pessoas. A mesma necessidade é prevista no art. 1º, IV, da Lei nº 9.717/199841. A criação de consórcios previdenciários entre Municípios, com o fim de atender a essa meta, é igualmente vedada pela Lei nº 9.717/1998 (art. 1º, V), pois a gestão, certamente, seria problemática, haja vista a autonomia constitucional desses entes, que dificilmente teriam a capacidade gerencial para compatibilizar e administrar um sistema complexo, no qual seria necessária a fixação de critérios legais semelhantes, o que se mostraria, muitas vezes, inviável42. Na verdade, a própria manutenção de regimes previdenciários diferenciados para servidores se mostra hoje anacrônica43. 41 “Art. 1º Os regimes próprios de previdência social dos servidores públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos militares dos Estados e do Distrito Federal deverão ser organizados, baseados em normas gerais de contabilidade e atuária, de modo a garantir o seu equilíbrio financeiro e atuarial, observados os seguintes critérios: [...] IV – cobertura de um número mínimo de segurados, de modo que os regimes possam garantir diretamente a totalidade dos riscos cobertos no plano de benefícios, preservando o equilíbrio atuarial sem necessidade de resseguro, conforme parâmetros gerais; [...].” 42 Exemplo gritante da inépcia administrativo-previdenciária dos municípios é a enésima prorrogação do prazo para que seus regimes apresentem dados relativos aos benefícios em manutenção para fins de compensação previdenciária (Lei nº 11.531/2007, art. 1º). 43 A unificação dos regimes básicos de previdência no Brasil (RGPS e RPPS) é algo necessário. Ainda que, no passado, tenha existido alguma justificativa para esse tratamento diferenciado, especialmente dada a natureza não contributiva dos benefícios devidos aos servidores, essa realidade deixa de existir por completo com a Emenda Constitucional nº 41/2003. A previdência social dos servidores submete-se igualmente a uma sistemática contributiva e deve, do mesmo modo, perquirir o equilíbrio financeiro e atuarial. A proliferação de RPPS, especialmente nos municípios, somente serviu, na maioria das vezes, para que estes pudessem excluir-se de suas obrigações previdenciárias presentes, empurrando para as O Regime Complementar possui caráter facultativo, já que o ingresso é voluntário; e autônomo, pois a obtenção dobenefício complementar independe da concessão da prestação pelos regimes básicos (daí sua verdadeira natureza implementar). O regime complementar ao RGPS tem natureza privada, regulado em lei complementar (LC n° 108 e 109, ambas de 2001). Já o regime complementar dos servidores públicos, nos termos do art. 40, § 15, da Constituição, teria natureza pública. O regime complementar ao RGPS possui o segmento aberto e fechado. O segmento aberto de previdência complementar é mantido pelas entidades abertas (EAPC), que são constituídas sob a forma de sociedades anônimas e têm por objetivo instituir e operar planos de benefícios de caráter previdenciário, acessíveis a quaisquer pessoas físicas. Esta é a principal característica deste segmento – ser aberto a qualquer pessoa física, independentemente de profissão, residência ou idade. Tais entidades abertas de previdência complementar também podem ser sociedades seguradoras do ramo vida, desde que autorizadas, outrossim, a operar os planos de benefícios complementar. Já as entidades fechadas de previdência complementar (EFPC), ao contrário das abertas, são somente acessíveis aos empregados de uma empresa ou grupo de empresas, ou, ainda, aos associados ou membros de pessoas jurídicas de caráter profissional, classista ou setorial. No primeiro caso, relativo aos empregados e servidores, as empresas que instituem plano de benefício de caráter previdenciário recebem o nome de patrocinadoras, enquanto no segundo caso, referente aos associados de pessoas jurídicas de caráter profissional, a denominação é instituidora. A instituidora poderá ser, inclusive, uma entidade de classe, como um sindicato. Já para os Regimes Próprios de Previdência de Servidores, a previdência complementar, quando criada, de acordo com a literalidade da Constituição, teria, como visto, natureza pública (em divergência ao RGPS) e seria exclusivamente fechada, já que o ingresso, naturalmente, seria restrito a servidores vinculados a determinado RPPS. Aqui, há exclusivamente a EFPC de natureza pública. Tal previsão relativa aos servidores é problemática, pois traz uma diferenciação de tratamento diante do RGPS que não se justifica. Já que tais fundos de pensão serão, em administrações futuras o custo da manutenção do sistema. O resultado é o que se vê hoje: a maior parte dos RPPS em situação deplorável, tendo de manter-se com aportes vultosos que comprometem o investimento em outros setores. tese, públicos, poderão beneficiar-se da imunidade recíproca, em detrimento das entidades privadas? Terão de seguir os ditames da lei de licitação ao terceirizar as atividades de investimento? É certo que tal inclusão teve o intuito de tranquilizar os servidores, pois, tendo tal entidade natureza pública, não estaria submetida às mesmas intempéries do mercado que as privadas, mas flagrantemente viola a isonomia e pretende criar uma absurda entidade pública administrando recursos privados, já que a cotização do servidor não é receita pública, e a contribuição do ente também se vincula ao patrimônio futuro do servidor44. De qualquer forma, pela literalidade do texto constitucional vigente, seria inadequado falar em previdência pública e privada como sinônimo de regimes básicos e complementares de previdência, respectivamente. Ademais, qualificar um regime previdenciário pela natureza pública ou privada é impreciso, pois existem regimes básicos compulsórios de natureza privada, como no Chile, e regimes complementares públicos facultativos, como no Reino Unido45. 5.2 Equilíbrio financeiro e atuarial Dispõe a Constituição (e não poderia ser diferente), que o sistema previdenciário brasileiro deve buscar o equilíbrio financeiro e atuarial (art. 201, caput). Infelizmente, a realidade das últimas décadas tem sido algo bastante diverso. Como se vê nos noticiários, a Administração limita-se a buscar o equilíbrio financeiro, na constante tentativa de compatibilizar as receitas com as despesas na manutenção do sistema protetivo, em especial o Regime Geral de Previdência Social (RGPS). Quase nada se fala do equilíbrio atuarial, até mesmo em razão da ausência de um plano de custeio efetivo no sistema brasileiro. Foi-se o tempo em que a previdência brasileira possuía efetiva distribuição de custeio específico para a manutenção de prestações determinadas. Com isso, simplifica-se a legislação à custa da consciência 44 O Projeto de Lei nº 1.992/2007, do Poder Executivo, que institui o regime de previdência complementar para os servidores públicos federais, prevê a criação da Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público (Funpresp), que teria natureza privada, em contrariedade à literalidade do texto constitucional. 45 Para uma visão mais abrangente, cf. IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de direito previdenciário, 10. ed. Niterói: Impetus, 2007. atuarial, o que acaba por gerar frequentes alterações no custeio e/ou benefício sem o menor pudor de, ao menos, justificá-lo atuarialmente. Quero dizer o seguinte: no equilíbrio atuarial, há um delicado balanceamento em longo prazo entre o financiamento dimensionado inicialmente e as prestações a serem concedidas, com base na sinistralidade esperada. Se o gestor do sistema altera alguma parte dessa equação, seja aumentando e/ou diminuindo contribuições e/ou benefícios, a outra parte deveria sofrer consequências. Por exemplo, se há aumento de alguma contribuição, deveria haver aumento do benefício correlato ou, ao menos, a justificativa atuarial para seu aumento sem elevação das prestações, em razão, por exemplo, do aumento da expectativa de vida. Nada disso existe na realidade brasileira. Por pura ficção, sempre que há aumento de contribuição sem alteração no plano de benefícios, somos obrigados a nos utilizar do artifício da presunção de legitimidade da lei, partindo da premissa de que se houve aumento contributivo é porque o sistema assim demandava, em razão de alguma alteração das premissas atuariais iniciais. Se assim não fosse, chegaríamos à impraticável conclusão de rotular como inconstitucionais todos os incrementos contributivos das últimas décadas. Lamentavelmente, mesmo o equilíbrio financeiro é extremamente mal dimensionado, pois a maioria dos benefícios da previdência social, que são fixados no valor de um salário mínimo, tem sofrido reajustes em índices superiores à inflação. Em uma abordagem leiga, afirma-se que tal correção é justíssima, especialmente em razão do valor precário do salário mínimo no Brasil, que não chega nem perto de atender a todas as necessidades constitucionais. Mas é aí que há a grande falha desse discurso panfletário e incongruente, típico de quem desconhece a lógica previdenciária. Na criação de qualquer regime previdenciário, o atuário responsável irá dimensionar um plano de custeio que deve ser compatível com o plano de benefícios previamente definido. Assim, algumas premissas serão estabelecidas e o custeio dimensionado. Nesse contexto, puramente matemático, se uma pessoa cotizou sobre um valor baixo, seu benefício fatalmente será baixo. Se o administrador do sistema concede benefícios superiores ou mesmo fornece correções muito acima das expectativas inflacionárias (como ocorre), é evidente que o equilíbrio atuarial torna-se insustentável. Nada impede que a Administração, com o aval do Legislador Ordinário, venha a conceder benefícios a priori previdenciários em valores superiores à base contributiva, mas, primeiro, isso demanda expressa fonte decusteio (art. 195, § 5°, CRFB/88), haja vista a evidente inexistência de recursos do plano previdenciário original. Segundo, há de se evidenciar que parcela desse benefício passa a ter, também, natureza assistencial, tornando- se um híbrido, que deve possuir contabilização específica. Para desespero dos especialistas, o que se vê é uma gestão que ignora o equilíbrio atuarial e, no que diz respeito ao equilíbrio financeiro, aponta um déficit enorme que é derivado, em verdade, de benefícios parcialmente previdenciários, que são majorados em percentuais superiores à inflação (com verdadeira natureza assistencial, e deveriam ter cotização específica), mas cotejados somente com as contribuições sociais sobre a folha (art. 195, I, ”a”, e II, CRFB/88), como se fossem benefícios previdenciários puros. Ademais, ainda com relação à fonte de custeio, a Administração Pública, quando da fixação de índices de correção, no máximo, ocupa-se da existência de recursos orçamentários naquele determinado exercício, sem a preocupação da criação da fonte de custeio e da necessária manutenção da prestação majorada em exercícios futuros, já que a previdência social é preponderantemente composta de benefícios de prestação continuada, como aposentadorias e pensões. Uma elevação das prestações previdenciárias passa, necessariamente, por uma elevação da base exacional, a qual, por sua vez, demanda maior potencial contributivo dos segurados e empresas, o qual somente poderia tomar lugar com um crescimento econômico compatível. A previdência social, não obstante as reformas desejáveis e necessárias, nunca alcançará o ponto ideal por si mesma. Sem um incremento da atividade produtiva que traga melhoria da renda nacional, os benefícios previdenciários do futuro serão sempre o mesmo reflexo da baixa remuneração do presente. Nesse aspecto, mais do que a velha discussão sobre regimes públicos e privados, o que é preciso é uma atividade econômica sólida46. 46 De acordo com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), em outubro de 2007, o salário mínimo necessário para atender o necessário à vida digna foi fixado em R$ 1.797,56, bem acima dos atuais R$ 380,00 (Salário mínimo nominal e necessário. Disponível em: http://www.dieese.org.br/rel/rac/salminnov07.xml). De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as políticas assistenciais governamentais retiraram da miséria 881 mil brasileiros, que representa, todavia, somente 15% daqueles que cruzaram a linha da pobreza (Disponível em: http://oglobo.globo.com/pais/mat/2007/10/(29/326943431.asp). Ou seja, o crescimento econômico, Alie-se a isso o fato de parcela considerável das demais contribuições sociais não ser direcionada à manutenção da seguridade social, em flagrante desrespeito à Constituição (art. 195, § 2º, in fine). Se houvesse uma vinculação efetiva das receitas das contribuições sociais com os gastos da seguridade (previdência social, assistência social e saúde), o sistema seria superavitário, o que, todavia, não exclui as necessárias mudanças. Aí está parte do confuso e impreciso debate sobre previdência social no Brasil. O contexto pós-social, que reconhece a jusfundamentalidade do seguro social, mas impõe o sopesamento das limitações financeiras47, expõe a necessidade de a previdência social ater-se ao que se pode chamar de reserva do possível atuarial, não somente por expresso mandamento constitucional, no caso brasileiro (art. 201, caput), mas como meio de superar as críticas supramencionadas. Por isso, no contexto do seguro social, a discussão sobre a reserva do possível assume aspecto próprio, tridimensional, pois, além das clássicas acepções fática ou financeira (recursos efetivamente existentes) e jurídica (previsão em orçamento), deve-se aliar a percepção atuarial. Em um sistema equilibrado, o plano de benefícios deve ater-se, rigorosamente, ao plano de custeio, o qual carece de revisões periodicamente, com base nas premissas atuariais vigentes. Na saúde, por exemplo, as questões relativas à reserva do possível são problemáticas, pois demandam a análise da razoabilidade do gasto, o que, não obstante o avanço da dogmática em estabelecer critérios sólidos e reduzir o voluntarismo judicial, ainda trazem razoável incerteza48. No aspecto previdenciário, a questão acaba por ter solução mais robusta, pois a visão tridimensional da reserva do possível, com o aspecto atuarial aliado ao financeiro e orçamentário, impõe uma estrita vinculação entre custeio e benefício. Paradoxalmente, a maior complexidade inicial da reserva do possível em matéria indubitavelmente, é requisito elementar para qualquer país que almeja a garantia da vida digna. O Estado, por meio de políticas previdenciárias e assistenciais, não tem como produzir esse resultado por si só. 47 Como também já afirmara Robert Alexy, direitos sociais não podem ser definidos no esquema tudo ou nada. Como aponta esse autor, o principal argumento dos direitos sociais é a liberdade. Ou seja, a liberdade jurídica para fazer algo deve ser acompanhada da liberdade fática para fazê-lo. A esse argumento, que considera correto (mas insuficiente), aduz como real objetivo dos direitos sociais, como direitos fundamentais, o desenvolvimento livre da personalidade humana. Acaba por concluir que os direitos sociais efetivamente devidos dependem de ponderação entre princípios. (Teoría de los derechos fundamentales, p. 486-489). 48 Como coloca Gustavo Amaral, a escassez é inerente às pretensões positivas e, de modo ainda mais acentuado, quanto à saúde. Ante a escassez, torna-se imperiosa a adoção de mecanismos alocativos. A alocação, notadamente no que tange à saúde, tem natureza ética dupla: é a escolha de quem salvar, mas também a escolha de quem danar. (Direito, escassez & escolha, p.180-181). previdenciária acaba por trazer elevada segurança no estabelecimento de seus parâmetros. O maior problema, novamente, é o adequado dimensionamento do sistema, e não de sua jusfundamentalidade. Ainda há grande divergência sobre a amplitude adequada do sistema previdenciário, e é nesse ponto que reside o atual debate internacional sobre a matéria. Como visto, há modelos que buscam a proteção ampla com substituição plena dos rendimentos, até aqueles que buscam garantir somente o mínimo vital. Naturalmente, a experiência internacional tem se situado em padrões intermediários, com base nos clássicos exemplos alemão e inglês. A opção adotada, seja lá qual for, em um regime democrático, deve ser feita mediante a deliberação coletiva da população, em um contexto adequado, mediante a prestação das informações necessárias para que se faça a escolha, sempre em uma conjunção que obedeça à reserva do possível tridimensional. A seguir, alguns itens são desenvolvidos como subsídios a essa escolha. 5.3. Desemprego e incapacidade laborativa – Riscos semelhantes? Ainda quanto à questão da malversação dos recursos securitários, há uma evidente inconstitucionalidade na legislação vigente que delega o patrocínio do seguro-desemprego ao Ministério do Trabalho (art. 9º, § 1º, Lei nº 8.213/1991), em flagrante desrespeito à Constituição, que o prevê como típico benefício previdenciário (art. 201, III), o que acaba por gerar o desvio dos recursos oriundos do PIS/PASEP (art. 239, CRFB/88), que não alcançam a previdência social. Isso pode parecer mera questão administrativa, pois o importante seria a concessão do benefício. Em verdade, além da natural deficiênciagerada pelo fato de um benefício previdenciário ficar alheio ao sistema, esconde-se uma passagem que já deveria ter sido abordada no Brasil – um sistema previdenciário ideal não deveria fazer distinções entre benefícios por incapacidade laborativa ou desemprego49. Em ambas as hipóteses, a 49 Cf. BOLDERSON, Helen; MABBET, Deborah. Non-discriminating social policy? Policy scenarios for meeting needs without categorization. In: CLASEN, Jochens (Org.) What future for social security? Debates and reforms in national and cross-national perspective, p. 55. prestação deveria ser concedida sem distinção. Se o trabalhador não ingressa no mercado de trabalho pela dificuldade em obter ocupação ou por incapacidade, pouco importa, para fins de beneficio. A avaliação de incapacidade deveria ser menos individual e mais social, não somente adiante da análise tradicional de perda de função da pessoa, mas levando também em consideração outros elementos de supressão do mercado de trabalho. Nesse contexto, mais abrangente, a incapacidade pode ser vista, também, como um problema de exclusão50. Evidentemente, a averiguação da situação concreta é relevante para fixar diretrizes de atuação ao gestor do sistema, mas não para a concessão do benefício. Isso elimina as célebres discussões judiciais e administrativas e a burocracia inerente às perícias médicas, que muitas vezes consideram apto um indivíduo que, não obstante a aparente aptidão laboral, é um inválido funcional, dada a idade já adiantada e a formação educacional deficiente. 5.4. Inclusão previdenciária Por fim, em qualquer debate que envolva a previdência social brasileira, não se pode deixar de lado a questão da inclusão previdenciária, tema tão relevante que mereceu atenção do Constituinte Derivado, ao inserir regramento sobre a matéria na Constituição (art. 201, §§ 12 e 13). A última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), edição 2006, traz dados relevantes51. Como se afirma no texto, entre os ocupados restritos do setor privado, 43% não contribuem para a previdência social, sendo que as maiores taxas de não contribuição são dos trabalhadores por conta própria (78,5%) e dos empregados sem carteira assinada (92%). Por isso, a agricultura e a construção civil são os setores de atividade que possuem justamente as maiores taxa de evasão da previdência (68% e 66%, 50 Cf. BOLDERSON, Helen; MABBET, Deborah. Non-discriminating social policy? Policy scenarios for meeting needs without categorization. In: CLASEN, Jochens (Org.) What future for social security? Debates and reforms in national and cross-national perspective, p. 55. 51 PESQUISA NACIONAL POR AMOSTRA DE DOMICÍLIOS (PNAD), 2006, p. 28-30. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2006/comentarios2006.pdf. Acesso em: 15 out. 2007. respectivamente), haja vista esses setores concentrarem grande parte dos empregados na informalidade. No outro extremo, com maior grau de vinculação efetiva à previdência social, encontram-se os trabalhadores com carteira assinada e os empregadores. O grupo intermediário é constituído pelos empregados agrícolas e pelos empregados domésticos, cujas taxas de não contribuição são, respectivamente, 55% e 61% (cerca de 30% acima da média). O estudo mostra a importância da educação previdenciária como sinônimo de inclusão, pois a pesquisa conclui que, quanto maior o nível educacional, menor é a taxa de não contribuição. Entre os trabalhadores com menos de quatro anos de estudo completos, a taxa de evasão é, em média, 60%, enquanto no nível educacional acima de 12 anos completos de estudo essa estatística corresponde a 23%. A matéria previdenciária deveria ser de ensino obrigatório nas escolas, formando a consciência necessária para o futuro. O estudo mostra ainda que, na indústria – o setor que concentra empregados formais em maior parte –, a não contribuição é baixa (29% e 25%, respectivamente). O setor serviços está em uma posição intermediária, cuja taxa de evasão é 42%. Geograficamente, a não contribuição é maior na Região Norte, onde 64% da população ocupada não contribui para a previdência. Em seguida, em ordem de não contribuição, vêm as Regiões Nordeste e Centro-Oeste, 58% e 56%, respectivamente. As Regiões Sul e Sudeste possuem as menores taxas de evasão para a previdência (38% e 37%, respectivamente). Entre as possíveis causas para tamanha evasão, apontadas pelo IBGE, encontram-se as alíquotas de contribuição elevadas; o fato de o empregado não perceber o liame entre a contribuição presente e benefícios a serem auferidos no futuro (o que pode ser resolvido com a educação previdenciária); e o fato de os direitos trabalhistas serem, na prática, independentes da formalização da relação de trabalho, pois o empregado poderia socorrer- se da Justiça do Trabalho, o que nem sempre gera efeitos automáticos para fins previdenciários, especialmente pela necessidade de prova material para essa finalidade (art. 55, § 3º da Lei nº 8.213/1991). Conclui o IBGE que a informalidade e a evasão previdenciária vão permanecer altas no Brasil enquanto as leis trabalhistas continuarem ambíguas e inexistirem programas de seguridade social equilibrados com relações estreitas entre a magnitude dos benefícios e de contribuições percebidas, questão essa já abordada supra. A inclusão previdenciária depende, também, de fatores muitas vezes externos ao sistema protetivo. Em um distante primeiro lugar, o trabalhador somente poderá abrir mão de parcela de sua remuneração em prol da previdência quando atingir determinado patamar mínimo de rendimento. Isto é, a melhor maneira de incluir o trabalhador de baixa renda na previdência social é retirá-lo da situação de baixa renda. Qualquer outra opção distinta da melhoria do status econômico dos trabalhadores é fictícia, podendo, no máximo, acaçapar um beneficio assistencial como previdenciário, à semelhança do que foi feito com a maioria dos benefícios da área rural concedidos antes da Constituição de 1988. Tais expedientes somente têm o efeito de macular a credibilidade da previdência, forçando um déficit que não existe, em razão da enorme massa de benefícios claramente assistenciais pagos pelo caixa previdenciário. Também não deve ser esquecida a completa reformulação da estrutura administrativa do INSS, com a necessária melhoria do atendimento, de modo que os beneficiários sejam efetivamente tratados como merecem. Assim, basicamente, a inclusão previdenciária depende intimamente da melhoria econômica dos trabalhadores, urgente aprimoramento da estrutura de atendimento à população e, por fim, o ensino obrigatório, se possível já durante o período fundamental, da importância da previdência social e seu papel na sociedade brasileira. 6. A NECESSÁRIA BUSCA DA EFICIÊNCIA E DA EQUIDADE NOS SISTEMAS PREVIDENCIÁRIOS – ADEQUAÇÃO AO ESTADO PÓS-SOCIAL Muito já foi dito sobre a importância do equilíbrio financeiro e atuarial do sistema previdenciário, especialmente no Estado Pós-Social. Todavia, algumas palavras são igualmente necessárias no que diz respeito à redução das desigualdades. De nada adianta possuirmos um sistema equilibrado que proporcione a ampliação das disparidades econômicas em nosso país. Algumas reformas na previdência social da América Latina têm apresentado claro ganho no que diz respeito ao crescimento econômico, proporcionando ao Estado maior possibilidade de atuação em infraestrutura. Todavia, as reformas pouco têm contribuído para reduzir as desigualdades. Isso é especialmente observado
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