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LéON BLOY
BISTÓRIAS
DESAGRADÁVEIS
EDITORIAL ESTAMPA
LÉON BLOV, INDIGENTE E ENRAIVECIDO
1846 -Nasce em Périgaux (o segundo entre sete fi
lhos de um engenheiro) . Mãe de origem es
panhola.
(Será um aluno medíocre; tão pouco submisso
que deixará cedo o colégio para fabricar, à
solta, uma cultura heterodoxa que mistura o
latim litCirgico com muito amor a Bizâncio e
a Cristóvão Colombo.
Admitem alguns que Baudelaire tenha sido o
poeta da sua adolescência. Acreditando no
seu diário, ainda criança escreveu tragédias
em verso. ..
Mais do que tudo: pintava.)
1862 - Ano do seu famoso auto-retrato: é a óleo e
mostra um jovem de olhar alucinado (já alu
cinado era o o lhar dos seus pais, em retratos
que ele também pintou.) , com uma legenda:
Promessas da um belo rosto•!
1863 -'Paris surge-lhe como possibilidade de não
ceder a servidões profissionais. ·Para lá arrasta
o seu sonho de glória.
('Qual? Se vai ter de aceitar ocupaÇões medío
cres enquanto encena, talvez por vingança,
uma revolta ácida. contra Jesus e a Igreja?)
Léon Bloy continua, sobretudo, a pintar: quer
ser pintor.
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1869 - Aos .23 anos de idade, numa livraria, encontra
Barbey d'Au·revilly, admiração antiga a que não
vai saber resistir.
(Vai escutá-lo e segui-lo até sua casa; ser con
vertido ao catolicismo; ser convencido de que
é escritor, mais do que pintor.)
1870- Alista-se como franco-atirador durante a guerra
contra a Prússia. Cheio de fé, parece um cru
zado.
1873- Novamente em ·Paris (depois de um emprego
na sua terra natal que o matou, quase, de
tédio). Será contabilista numa ·companhia de
caminhos de ferro, caixeiro de uma livraria,
ilustrador de manuscritos.
(Ao sabor de ·enormes dificuldades materiais,
Bloy vai mudando de empregos e de quartos.
Frequenta jornalistas do Chat Noir. Dá-se com
Paul Bourget, que mais tarde virá a detestar;
dá-se com Huysmans e Vllliers de l'lsle-Adam.)
1876- Estreia brilhante no jorna lismo, para .se fazer
rapidamente um cronista «insuportável». (Arre
dado pelos catóUcos, que me nio perdoam o
fôlego e a cor, vomitado pelos não-católicos,
que nio podem tragar o meu catolicismo, de
anternio exterminado, sempre, pcwque não
posso aclimatar-me a este mundo, sem ter
fortuna nem recursos, estou ·l·igado a ang6stiaa
cuja real enormidade só pode pesá-la Aquele
que sabe exactamente da nossa caPacidade de
sofrer.)
1877 - Encontro com o padre Tardif de Moidrey, que
virá a ser o grande mestre da sua vida con
templativa; encontro com Anne•Marie Roulé,
prostituta a quem amará de paixão louca e
cuja alma 1 ele p·r·etenderá «salvar».
(Rapidamente Anne-Marie ultrapassará o seu
mentor. ·Parti lhará com ele uma vida que ficará
célebre, .nos meios literários de Paris, pela
sua inacreditável miséria material.
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Anne-Marie chegará a convencer ·Bioy de que
está próximo co fim dos tempos», fazendo-o
conhecedor do dia em .que esse fim terá lugar.
Ultrapassada a data sem ter havido qualquer
sinal de Apocalipse, a cólera de ·Bioy sobe até
à blasfémia.)
Tenta duas vezes, sem êxito, que o admitam
na Trapa da Grande Cartuxa.
1882 - Anne"Marie Roulé é internada num manicómio
(onde viverá durante 25 anos) e léon ·Bioy
escreve para diversos jornais, «por razões ali
mentares». (Nestas inomináveis coisas - dirá
ele - há sangue de tigre e lágrimas de cãO
sem dono. Há um coração doente, coraçio mo•
ribundo, coraçio que vai ser enterrad·o a bater
contra as paredes do caixão. Harmonia de to
dos os demónios numa essencial ausêneia de
harmonia ... )
1884 -·consegue, enfim, publicar le Révélateur du
G lobe, seu primeiro livro, ensaio sobre Cris
tóvão Colombo (na gaveta desde há 5 anos)
que revela ao público um Bloy habitado por
dolorosas iniciações.
1886 -Ano de Le Désespéré, um dos seus livros mais
importantes (1), evocação dos anos com Anne
-Marie ·Roulé (Vér�nique no romance) inteira
mente conforme com a verdade dos factos.
1889- (Sou naturalmente triste, como se é baixinho
ou loilro. Lembro-me de ser criança, crianÇa
muito pequena, e frequentes vezes recusar com
indignação e revolta brincadeiras, prazeres que
s6 dia pensar nefes eu me enchia de alegria.
Julgava mais nobre sofrer, causar em mim
próprio sofrimento pelo acto da ran6ncia • • •
Por instinto eu gostava da infelicid8cfe, queria
ser infeliz.) As circunstâncias materiais, em
que léon Bloy vive, obrigam-no a «fabricar
(1) Tradução portuguesa na Editora Ullsseia, 1974.
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contos1 para jornais. (A necessidade da en
contrar temas para artigos .que tenham., ao
mesmo tempo, alguma coisa que ver comigo
e com o Gil Blas, exaspera-me.) (Ahl Como
esta gente do Gil ·Bias ma obriga a ganhar
dUramente a vidal)
1890- Casa com Jeanne Molbeck, dinamarquesa que
partilhará da sua miúria até ao fim. (.Do casa
mente> vão nascer quatro filhos, dois mortos
nos primeiros tempos de vida - de priva.jõas,
segundo vários biógrafos de Léon Bloy.)
Publica Christophe Colomb Devant les Tau
reaux.
1892 - Publica Salut Pour las Juifs, onde Israel surge
destinada a grande papel «nos últimos dias».
(Avanço à frente doa meus . pensamentos em
exf.lio, numa grande coluna de silêncio.)
1893- Sueur de Sang, reunião dos contos militares
pub.licados no Gil Blas, recordações da guerra
dj! 1870 transfiguradas, na sua maior parte,
em ficções «negras».
1894- Histoires Désobligeantas (Histórias Desagra
dáveis}.
1895 - A sua repercussão, como escritor, continua a
não ultrapassar um pequeno circulo de admi
radores que lhe admiram a violência e a cólera,
os esplendores da linguagem.
(É certo que ando cheio de ódio, desde a in
fância, e ninguém amou· as pessoas com .inge
nuidade maior do que a minha. Do mundo
abominei coisas, instituiçõas e leis. Tenho an
dado a votar ao mundo um ódio sem fim, e
as experiências que vivi só serviram para
exasperar asta pafxio.)
1897 -Ano de La Femme Pauvre, sua obra-prima (2}.
1898- Primeiro volume do seu diário: Le Mendiant
lngrat.
(2) Tradução portuguesa na Editora Ulisseia. sfd.
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1899 -Tio grandes as suas dificuldades materia is,
que resolve emigrar com a famflia para a Di
namarca, o pars onde vive a famflia de Jeanne,
sua mulher.
·Publica Le Fils de Louis XVI, onde profetiza
as desgraças do séc. XX, assim: 'Como o uni
verso inteiro andará de automóvel ou velocr
pade, a ocasião de pular de alegria aproveitará
a muito poucos. Os rlli'08 pe6es indigentes
que tiverem escapado a extermJnios anteriores
serão QUldadosamente esmagados e tudo se
guirá, em f.:iria, para o duplo abismo que a
odiosa mecanizaçlo Invoca: o da imbecitidada
doa homens e o da esterllid8de das mulheres.
As pessoas vio «diVertir-SID · em podridio e
demência.
Também deste ano Je m'Accuse, violento pan
fleto contra Zola, o «cretino dos ·PirenéuS».
1900 - Regresso ·cdesiludidoJ da •Dinamarca.
1905 - Léon Bloy vive o ano mais ameno da sua vida.
Amigo pouco cómodo, e à margem dos outros
homens, parece agora ter arranjado quem lhe
aceite o carácter cdiffciiJ: o pintor Georges
Rouault, o compositor Georges Aurlc, gente das
letras como Jacques e Raissa Maritain. :Aifred
Valette e a sua mulher ftachilde conservam-no
na editora Mercure de ·Franca, apesar do me
díocre sucesso das suas obras.
1908 - L'lnvend8bre, terceiro volume do seu diário.
1914- A Grande Guerra acorda nele as antigás pai
xões de 1870 e a sua impaciência ·capocali
ptica». Convencido de que vio realizar-se as
ameaças da caparlçioJ de La Salette, e a hu
manidade será atrozmente castigada, vive na
expectativa de uma catástrofe mundial.
1915 - (Eu podia ter-me feito •nto ou taumaturgo,
e fiz de mim um homem de letras! Nio exe
cutei,. estou certo, o que Deus pre1endia ci'e
mim. Pelo contrário: de Deua sonhei o queeu pretendia e aos 68 anos aqufi me têm com
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as mãos cheias, apenas, de papet. [ . . . ] Estou
à espera dos Cossacos e do Espfrito Santo.)
1917- Morre a 3 de Novembro.
Albert ·Béguin: A veemência de Bloy, as
sUas cóleras famosas, o ruxo da sua n ...
guagem, · da sua imaginação, a singutari
dade das suas invectivas, �a têm de so
bre-excitação romântica, de esplendor es
tilfstico gratuito, nem de explosão desor
denada de um génio infeliz. A v� que se
exprime com um vigor tio contundente é
uma alma profunda, ferida pela d'istincia
que lhe separa o desejo, enorme, do am
biente que. uma época sem desejo lhe ofe
rece.
A� Histórias Desagradáveis não têm «chave» - afir
mou Léon Bloy numa carta que o seu diário reproduz.
Por sina l , a lgumas das suas narrativas são exacta6.
E meis adiante: Quase sempre se trata de . pequenos
-burgueses de quem fiz tudo quanto me apeteceu. Em
gera l o que preten.do é d izer, de forma mais ou menos
encoberta , a verdade do meu tempo .
. Noutros lados se encarregou Bloy de trazer à luz a
génese de algumas dessas ficções. Chegar;i a dizer-nos,
POr �emplo, que o casal· Henry .de Groux (ele, como·
é sabido, pintor e aman·tfssimo da mulher com quem.
casou) se transfigura no caso-limite de Os Cativos de
longjumeau; que o escritor Catulle Mendes (admita
mos que un:� casanova, e serôdio) p6de enfiar-se na
pele d'o supermonstriloso marquês da Torra d'e Pisa,
personagem cfe O F im do D. Juan. Multo mais tarde,
em Uon •Bioy e as suas «Histórias Oesagradáveis», tese
universitária de 1961, Ruth Hager contribuiu com a
I
1 2
descoberta de quase. tOdoa os suportes «reais» deste
guinho! sàngrento.
A qu� um século de distância, interessa muito
menoa quem estéve por detrás do banho fu.Jiginoso
onde Léon Bloy mergulhou oa homens e casoa do seu
tempo. Sobra-nos, sim, um «espectáculo»; uma Btitude
titerária de humor ren�id'o aos trac;oa mais ind'esejáveis
da hipocrisia, da avareza, da pobreza; interesSada em
desfear,· até ap insllportável, ine8$108, cegueiras· ou
caridades. E uma outra leitura - mais superficial, sem
dCavida, mas divertida- que vai de par com a clien
tella das ficções negras e saboreia cn�eldades, nio fica
indiferente a esta encenação, pesadlssima e perversa,
de um reconhecirvel quotidiano.
A. F.
O VELHO DA CASA
Ah ! Mme. Alexandre bem podi a d izer que
t inha v i rtude ! Há três anos suportava o lam
bare i ro daquele vel ho, i magine-se, um vel ho
i ntrujão das dúz ias que era a desonra da casa.
Não fora seu pai e creio que há muito estar ia
de rota batida para a Ass istênc ia , essa espe
lunca dos i nválidos !
O d iabo é a gente ter de o l har às conve
n iências . Se não é fi l ha de cão dar amparo aos
nossos autores , sobretudo quando se está . no
ramo do comérc io ! ·
- A famí l i a ! Desgraça das desgraças . E há
quem fa l e na m isericórd ia de Deus ! Diabo de
ca lacei ro , que nunca mais estica o pern i l !
Este monólogo fi l ia l , tão frequente, por des�
graça já perdera a frescura . Mme. Alexandre
gastava-o todos os d ias a lamentar o l ado
coriáceo da sorte que l he cabia e embora se
comovesse, às vezes, era só por l he parecer
necessário divulgar a sua a l ma aos c l i entes
jovens que entend i ,am pouco a nobreza daquela
choradei ra .
- Que bom é o meu paizi nho querido !
- arrulhava . - Se o papá soubesse como gos-
tamos de s i ! � como se tivéssemos todas um
coração ún ico. Como o papá sabe, a profissão
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não conta nada nestas coisas . Podemos ser
postas à margem, ser umas desgraçadas se
o papá quiser, mas l á o coração, esse fal a
sempre. É s ó a gente lembrar-se d a i nfância ,
das alegrias da família , tão puras . . . Pal'avra
que até me s i nto em êxtase quando vejo c i ran
dar na casa este velhote respeitável com a
sua coroa de cabelos brancos que até nos faz
pensar na pátria celesti al , etc . , etc .
A i nconsciência profissional desta doid iva
nas permitia- lhe , nem se duvide, funcionar
com à-vontade idêntico em qualquer s ituação.
E o septuagenário do grande 12, aquele hós
pede a lternadamente vestido de glória e de
sonra , estagnava à beira da f i lha - com a
tranqui lidade ina lterável do seu crepúsculo de
vida - armado em maltrapilho de albergue
das margens do grande colector.
Para ser franco, a h istória destes dois indi
víduos não possui nenhuma qual idade essen
c ia l do poema épico.
Ferd inand Bouton era u m fu lan inho a quem
chamavam . papá Ferd i nand , ou então o Velho,
traste antigo da Rua de Flandres onde exer
cera profissões trinta , a mais confessável cu l
pada, a i nda ass im , de ter posto a sua l iberdade
d iversas vezes em perigo.
MIJe . Léontine Bouton, mais tarde Mme. Ale
xandre, f icara órfã de mãe pouco depois de
nascer e fora educada por aquele homem d igno
nos princípios da mais r igorosa improbidade.
De tenros anos afeita às práticas m i l i tan
tes , aos treze já desencantara uma s ituação
rad iosa de v irgem oblata na casa de um mi lio
nário genovês muito famoso em vi rtudes , para
quem ela fo i o • anjo de luz • , m il ionário que a
deixou apodrecer completamente� Aquela es-
t6
treante dois anos bastaram para dar cabo do
calvinistal
Depois dele, quantos ! Recomendada sobre
tudo a senhores d iscretos, fez-se a modos que
um arranj i nho de pais de famí l ia e assim pros
segu i u , em plena auréola de indecências , até
aos dezoito anos.
Mu lher séria e la própria , de tanto roçar
pessoàs sérias, largou o crápu la e bebedolas
do pa i cuja frivo l i dade, ociosa agora , lhe re
voltava o coração.
Durante qu i nze anos o abandonado empan
turrou-se de i nfortúnios.
Já sem mão para negócios, sem conseguir
recuperar a astúcia de outros tempos , parecia
destas moscas ve l has que as aranhas despre
zam e até já são incapazes de voar por c ima
dos exc rementos .
· Léontine foi mais fel iz e prosperou. Sem
subir aos ·pr imeiros cargos da Galantaria Pú
b l ica - que maneiras incorrigíveis de casca
-grossa lhe não permitiam ambicionar a d ita
dura - por entre subalternos empregos mano
brou com tamanha arte e tão ambidextras
complacências que se meteu, insta lou, açapou
com fi rmeza, na boa-va i-e la . Sem esquecer
nunca que devia encher o copo antes do garra
fão dar á volta , tão bera foi para Deus e os
homens que chegou a desafiar a desgraça.
Desgraça que enfim surgiu na chistosa e
fantasmagórica f igura do pai quase a afundar
-se de vez num abismo dos mais insondáveis .
O ve l ho pãnqego soubera que a fi l ha , a sua
Tit ine (agora quase célebre sob o nome de
Mme . Alexandre) com pulso magistra l gover
nava uma hospedaria onde os príncipes do
Extremo Oriente vinham descarregar o ouro e ,
bichoso, coberto de andrajos i mpuros, «Sem
cheta por dentro e por fora • , u m be l o. d ia foi
ca i r- lhe em casa . Tão favoráveis os fados, po-
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rém , que o a ltanei ro estafermo não teve outro
reméd io e acol heu-o entre as mais ostensivas
demonstrações de amor, apesar de enraivado
com a aparição.
No i nstante em que o pai se lhe jogou nos
braços forçando todas as senhas, a má sorte
de Léontine qu is rea lmente que e la estivesse
em conferência com senadores rígidos e sem
grande capacidade para zombar do quarto man
damento da d ivina le i . Comovido até às entra
nhas pelo i nc idente patético, um de les nem
consegu i u deixar de oferecer-l he a sua bên
ção, predizendo- lhe uma vida intermináve l .
Depois de um golpe ass i m , o papá Ferd i
nand tornou-se i ndesalojáve l , iharrancável para
sempre . E Mme. Alexandre viu-se obrigada a
desencrostá- lo , vesti- lo , i nsta lá- lo , a empan
turrá-lo todos os d i as sob pena de incorrer nai nd ignação de gente muito honesta , perder a
frutuosa estima dos mandarins .
Até a l i de u m doçura de me l , a existência
de Mme. Alexandre envenenou-se. Aquele pai
fo i- l he o senão do le ito , o ato le i ro da a l ma, o
berb icacho das d igestões . Ao contrário de
Cal ipso, não consegu iu consolar-se com a
volta de U l i sses.
Não que tropeçassem nele. Desde o pri
meiro d ia fora arrumado na mansarda mais
afastada, ma is incómoda e provavel mente mais
i nsalubre. Mal o viam. Pelo seu l ado, e le obser
vava com rigor a regra de não passarinhar na
casa à hora dos c l ientes, sobretudo nunca pôr
os pés no Salão.
Para derrogar le i tão severa só faltava a fan
tas ia de um amador estrange i ro de vez em
quando ped i r para ver o velho que todas as
damas referiam num sussurro de veneração
receosa , como se fa lassem do Máscara de
Ferro. .
Nessas ocas iões usava malha escarlate à
brandeburguês, uma espécie de capacete ma
cedónio que l he dava ar de po·laco ou húngaro
caído em desgraça , era enfeitado com o títu lo
de conde - Conde Boutonski I - passando por
destroço coberto de glór ia da mais recente
insurre ição.
Cumulativamente l impava as latr inas , varria
as escadas , enxugava a bacia das lavagens e
da louça - às vezes com o mesmo esfregão ,
d iz ia com .ra iva Mme. Alexandre - fazia com
pras às pens ion istas que tinham confiança
nele e lhe davam chorudas gorjetas .
Nas horas de ócio, o fe l iz velhote metia-se
no quarto e rel ia com afinco as obras de Pau l
d e Kock ou a s e locubrações humanitárias d e
Eugénio Transpira , q u e ass i m chamava e le a o
autor dos Mistérios de Paris e do Judeu Erran·
te, os dois melhores l ivros do mundo (1).
Como é natura l , a casa pericl itou durante
a guerra . Os c l ientes andavam todos na pro
víncia ou nas trincheiras, e o estado-de-sítio
tornava i mpraticáveis os passeios.
A exasperação de Mme. Alexandre chegou
ao máximo. De manhã à noite exalava sem
parar a sua i ra contra aquele vel ho que se
empedern ia , cada vez mais, e e la vomitava.
constantemente pelos ol hos .
No seu del írio chegava a cu lpá-lo de ter
acendido com as suas manigâncias o confl ito
Internacional e, quando ficou decidido o res·
gate dos c inco b i l iões, resolveu frustrar-se ,
(1) E m francês Eugene Su•, autor das obras citadas,
6 homófono de Eugénio Sua ou, de outro modo, Trans
pira. (N. doT.)
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vociferar que tudo aqu i l o era u m verdade i ro
rombo no seu comérci o e os safardanas dos
ve l hos azarentos deviam ser todos fuz i lados . . .
Quase_ chegava a ser h idrofobia, o seu es
tado, e a vida faz ia-se- lhe i mpossível .
De passagem se d i ga que a Comuna bem
mostrou como era i napta a revigorar o vaci
lante negócio. Não que . estivesse desempre
gada, a c l iente la . O estabelecimento nem se
quer t inha u m m i nuto de vago, parecia uma
igreja .
A c l iente la , valha-me Deus ! , é que . . . era um
bando de bêbados sanguíneos, assassinos , de
i nfames vad io las com galões dos pés à cabeça
a quem elas serviam de revólver apontado, e
partia tudo, tudo teria queimado se a lguém
mostrasse audácia bastante para l he res isti r.
Agora nem a patroa berrava, imagine-se, a
patroa morria s i l enciosamente de medo à es
pera que o Altíss imo ajudasse.
Ajuda que não se fez tardar. Os versalheses
t inham entrado em Paris , ficou de repente a
saber-se ! L ibertação ! O d i abo de uma sorte
negra , negra de todo, é qUe não largou Mme .
Alexandre.
Levantaram uma barricada -no f im da rua .
S ó lhes restava fechar a porta a sete chaves
e procederem todas como se estivessem mor
tas . O papá Ferd i nand, esse foi completamente
esquecido. ·
Tomada a barr icada às duas da. tarde, os
federados abandonaram o bai rro a fug i r. Pouco
depois só uma pessoa andava por a l i , um
ve lhote franzino cujos passos ressoavam no
g rande s i l êncio . ·
Impossível não ser reconhecido. O catonto
do ve l ho saíra de manhã, cheio de cur ios idade ,
e agora fug ia dos ca lças vermel has como um
cr imi noso . Desconfiados , e les hesitavam em
persegu i- lo , em ati rar sobre· um homem tão
20•
idoso, e só quando o v iram parado à porta do
grande 12 se aproximaram.
- ó tu , vem cá e mostra essas unhas !
Desva i rado pelo terror, o velhote deitava a
mão à s ineta e tocava. _
- Titine, sou eu ! M i nha Titi ne, sou eu ! Abre
a porta ao teu ve l ho pai !
Muito espontânea, abriu-se então a janela
da casa de má-nota e Mme. Alexandre , doida
de a legria , apontou o pa i aos soldados:
- Fuzilem-no, com m i l d iabos fuz i lem-no,
que a i nda agora andava por aí com os outros .
Não passa de u m reles comunardo , de um pe
tro l i sta que até qu is deitar fogo ao bai rro .
Viviam-se d ias encantadores em que só isto
bastava . O papá Ferd i nand ca i u na so le i ra da
porta crivado de balas . . .
Mme. Alexandre está hoje aposentada dos
negócios e já não vive no bai rro da Bolsa onde
fo i , durante tanto tempo, glória . Os seus ren
d i mentos sobem a trinta m i l francos , pesa qua
trocentos qu i los e lê , emocionadíss ima, os ro
mances de Pau l Bourget! (2)
(2) Nesta série de contos, as a l usões irónicas a Paul
Bourget devem-se mu ito mais às péssimas relações
entre os dois autores (ver Belluaires et Porchers de
L. B l oy) do que à posição conservadora deste roman
cista que encantou a burguesia europeia do final do
séc. XIX; (N. do T.)
21
OS CATIVOS DE LONGJUMEAU
Ontem, o Correio de Longjumeau notic iava
o f im deplorável dos dois Fourm i . Recomen
dada a "justo títu lo pela abundância e pela qua
lidade das suas informações , perd ia-se esta
fol ha em conjecturas sobre as causas miste
r iosas do desespero que acaba de precipitar
este casa l que julgaríamos fel iz no su icíd io .
Casados muito jovens, e como se há vi nte
anos.-vivessem o pri meiro d ia de núpcias, nem
uma só vez t inham abandonado a cidade.
A previdência dos seus autores a l iviara-os
de toda a preocupação de d inhe i ro que pudesse
envenenar�l hes a vida conjuga l . Providos à
farta de tudo o que suaviza uma união legítima
deste género , mas tão pouco adaptada à ne
cess idade do revés amoroso que em gera l ró i
os versáteis humanos, aos o lhos do mundo
rea l izavam o m i l agre da ternura perpétua .
Na be la noite de Maio a segu i r ao d ia da
queda do Sr. Thiers (1), o comboio da grande
c intura trouxera-os para a l i em companhia dos
pa is que vinham insta lá-los na del ic iosa pro
priedade , doravante abrigo da sua a legria .
(1) ·Politico q u e encarnava co espirito burguês» e
foi demitido durante a Comuna (1873) . (N. doT.)
23
E mu ito emocionados, os longjumel ianos de
coração puro v iram passar aquele casa l i n ho
que o veterinário da terra logo comparou ao
Pau l o e à Virgín ia .
Estavam rea lmente belos, nesse d ia , até pa
rec iam desses meninos pál i dos , fi l hos de
grande senhor.
Mestre Piécu , o notário do cantão , t inha-l hes
comprado à entrada da c idade um n inho de
verdura que até aos mortos causaria i nveja
pois o seu jard i m , temos de concordar, l em
brava mu ito um cemitério abandonado. Aspecto
que l hes não desagradou , com certeza , uma
vez que o não modificaram nada, de ixando os
vegetais crescer a l i na· maior l i berdade .
Para me servi r da expressão profundamente
or ig i nal de mestre P iécu, d ire i .que o casal
vivia nas nuvens. Não via quase n i nguém , não
por ma l íc ia ou desespero , mas por ser uma
coisa que lhe não tinha nunca chegado à ide ia .
Considerada a brevidade • da v ida , i nterrom
per horas ou m inutos um abraço, os êxtases . . .palavra de honra que não era coragem possí
ve l de exigi r a este extraordi nário casa l .
Mestre Jean Tauler , um dos maiores homens
da Idade Média (2), conta a h istór ia do sol itá
rio a quem certo visitante importuno veio pe
d i r um objecto da sua cela . O sol itário fez o
esforço de entrar em casa. e pr,ocu rá-lo , mas
lá dentro esqueceu-se de tudo porque não con
segu ia reter no espírito a i magem das coisas
exteriores . Voltou a sai r, ped i ndo ao vis i tante
que repetisse o que queria . Ped ido renovado,
entrou o sol itário de novo na cela mas perdeu
a memória antes de. de itar a mão ao objecto
em causa . Depois de várias tentativas foi obri
gado a dizer ao i mportuno : - Entre o senhor
(2) Mlsticp alemão a quem .çhamaram o «doutor ilu
minado». (N. do T.)
24
e procure aqui lo que quer, pois não consigo
conservar em l].'lim a imagem do que me pede
o tempo sufic iente para dar satisfação ao seu
pedido.
M uitas vezes os esposos Fourmi me l embra
ram aquel e sol itário . Dar o que l hes ped issem
não custar ia , se acaso o retivessem um i ns
tante na memória .
As suas d istracções fizeram-se famosas , e
fa lou-se delas até Corbe i l , mas como e les não
tinham ar de .quem sofria ·com isso parece
i nexp l icáve l a resolução · funesta» que pôs f im
àquelas vidas que tanta gente i nvejava.
Uma velha carta deste infe l i z Fourmi que
eu já conhecia de solte i ro permite-me, no en
tanto , reconstitu i r pela via da intu iÇão toda a
lamentável h i stór ia . •
A carta é a que segue e há-de com certeza
ver-se como não era doido nem i mbeci l o meu
amigo.
"' . . . Meu caro, .pela décima ou v igés ima vez
fa ltamos à nossa promessa. M uito paciente tu
sejas, deves estar farto de nos convidar. Ver
dade é que m inha mul her e eu nunca tivemos
descu lpa , quer na ú lt ima, quer nas preceden
tes vezes . Escrevemos a dizer-te que contas
ses connosco , porque estávamos l ivres , e
como sempre perdemos o comboio .
«Desde ·há qui nze anos, por mais que a gente
faça perde todos os comboios e todos os
transportes púb l i cos . Coisa id iota ao máximo,
de um r idícu lo atroz, mas começo a acred itar
que mal sem remédio , uma espéc ie de fata l i
dade r is íve l de que somos víti mas. Não há que
fazer-l he . Por exemplo , já nos aconteceu estar
a pé desde as três da manhã, ou passar mesmo
a noite E;lm c l aro para não perdermos o com
bo io das oito . Po is bem, querido amigo, no
25
ú lt imo i nstante pega-se fogo à chami né, a meio
do caminho eu faço uma entorse, o vestido da
Ju l iette rasga-se num matagal qualquer, .ador
mecemos no canapé da sa la de espera da
estação sem o ruído do comboio ou o c lamor
do empregado nos acordar a tempo , etc . , etc .
Da ú lt ima vez esqueci-me da carte i ra .
"Há qu inze anos que esta situação se man
tém , d igo-te mais uma vez, e s i nto agora que
o pr incíp io da nossa morte está contido nela .
Como sabes , por sua causa fa l hei em tudo,
pus-me de mal com todos , passo por um mons
tro de egoísmo e a pobre da minha J ul i ette
está natura l mente envo lvida na mesma repro
vação . Desde que chegámos a este l ugar mal
d i to fa lte i a setenta e quatro enterros , doze
casamentos , tri nta baptizados , um m i l har de
vis itas ou vo ltas que me eram i nd ispensáve is .
De ixei a m inha sogra morrer sem voltar a vê- la
uma só vez , apesar de ter estado doente um
ano i nte i ro, · e por isso f i cámos sem três quar
tos da hE!rança que e la nos ti rou ra ivosamente
acrescentando ao testamento um cod ic i lo , na
véspera da morte .
·Desatasse eu a enumerar to l ices e desai
res ocas ionados por esta c i rcunstância i ncrí
vel de não termos conseguido sa ir de Longju
meau , que nunca mais acabar ia . Para resumi r
estamos cativos, de ora em d iante privados de
esperança , e vemos próximo o momento em
que esta s ituação de galer ianos se va i tornar
i nsuportável . . . »
Supr imo o resto , que o meu amigo confia
-me coisas demas iado ínti mas para eu poder
pub l icá-las , mas dou a m i nha palavra de honra
que não foi um homem · bana l , foi digno da
adoração da sua mu l her. Estes dois seres me
reciam bem mais do que termi nar estúpida e
desgraçadamente como term inaram.
Certos pormenores, que peço desculpa de
guardar só para mim, fazem pensar que o i n
fe l iz casal foi vít ima de uma maquinação tene
brosa do In imigo dos Homens , nesse recanto
maléfico de Longjumeau , e é evidente que
pela mão de, uin notário i nferna l . Nada teria
poder bastante para os arrancar de lá .
Ju lgo que não podiam fug i r. A volta da casa
existia um cordão de tropas i nvisíve is e bem
seleccionadas para investi r contra eles, tro
pas que nenhuma energ ia poder ia vencer.
Para m i m , só os Fourmi andarem devorados
pe la paixão das viagens era s ina l de i nfluência
d iabólica . E les, de sua natureza uns cativos
essencia l mente m igradores !
Antes de se un i rem um ao outro já os viam
por Enghien, Choisy-l e-Roi , Meudon , C lamart,
Montretout. Uma vez chegaram a ating i r Saint
-Germai n .
Naquele Longj umeau , q u e l hes pareceu u m a
i l ha d a Ocean ia , esta raiva de exploraÇões au
daciosas , aventuras por terra e mar, não fez
mais do que exasperar-se .
Atravancou-se-l hes a casa de g lobos e p la
nisfér ios , atlas i ng leses e germân icos. Chegou
a ter um mapa da Lua pub l icado em Gotha
sob a d i recção do pedante Justus Perthes . (3)
Quando não faziam amor l iam j untos h istó
rias de navegadores famosos , que ench i am
tota l mente a sua b ib l ioteca , e não havia Volta
ao Mundo ou boleti m da Sociedade de Geogra
fia que não assinassem. Gu ias dos caminhos
de ferro , prospectos de agências maríti mas ,
choviam-lhes em casa sem intermitências.
Ta lvez não· se acredite, mas tinham as malas
(3) Livrei·ro a lemão do séc. XVIII, ra d icado em
Gotha, paf do editor do célebre Almanaque. (N. elo T.)
27
sempre fe itas . Viveram sempre de abalada, na
iminência de uma viagem i nterminável a paí
ses longínquos os ma is perigosos e inexplo
rados .
Cerca de quarenta telegramas eu recebi
que anunciavam a sua part ida imediata para
Bornéu , Terra do Fogo, Nova Zelândia ou
Gronelândia .
A partida várias vezes esteve por um triz ,
mas depois não part iam , nunca partiam porque
não podiam e não deviam parti r . Col igavam-se
átomos e molécu l as para os travar.
U m d ia, há cerca de qu i nze anos , chegaram
porém a ju lgar que a fuga estava próxima.
Contra todas as expectativas , tinham conse
gu ido entrar numa carruagem de pri me i ra
c l asse que os l evaria a Versal hes . Libertação !
O c írcu lo mág ico ia afina l romper-se .
Quando o comboio arrancou , ficaram. Ti
nham-se metido num e lemento des l igado do
conjunto que devia permanecer na estação .
Era preciso voltar ao pri ncípio .
Infel i zmente , a ún ica viagem que não per
deram-foi esta , que decid i ram fazer agora . De
espécie tão con hecida que deviam tremer
muito quando se abalançaram a e la !
28
UMA IDEIA MEDlOCRE
Eram quatro e conheci-os de g inje ira . Se não
vos fizer d iferença, vamos chamar- l hes Théo
dore, Théodu le, Théoph i le e Théophraste. ( 1)
Não eram i rmãos mas viviam juntos , sem
se isolarem um momento que fosse. Nenhum
deles era visto sem aparecerem logo os três
restantes . .
Natura lmente, o chefe de esquadra era o
Théophraste que citámos no fim , o homem dos
Caracteres e ju lgo muito digno de comandar
os companhei ros pois que a s i próprio sabi a
também comandar-se.
T inha modos de um puritano seco, arreado
de certezas, meticu loso e· auscu ltador. Exterior
mente exi b ia , ao mesmotempo, a lgo de texugo
e do ava l i ador de sucursal de casa de penho
res em bai rro pobre .
Quando lhe dávamos os bons-d ias pareci a
q u e estava a receber u m a fiança, e a s u a res
posta lembrava sempre uma ava l iaçí!lo de pe
rito .
P o r dentro , a s u a a l m a era u m a estrebaria .
(�.) D iz u m biógrafo de Bloy (J . ·Bo l lery) que os he
róis deste conto foram inspirados em três irmãos d o
própiro •Bioy , e num cunhado. (N. d o T.)
29
Estrebaria de uma inexorável mula , dessas que
na Inglaterra ou na c idade de Calvino se edu
cam , com tantos cuidados , para transportar
caixões pintados de branco.
Não desejava , porém, Théophraste que o
i magi nassem protestante. D iz ia-se católico até
à ponta dos cabelos e punha ostensivamente
o coração a secar nos tanchões da V inha dos
E le itos .
De seu fundo era casto, e queria sobretudo
parecê- lo . Casto como um prego, como uma
tesoura de podar, como um arenque fumado !
Os seus acól itos proc lamavam-no i ncorruptí
ve l , i ndesfo lháve l , não menos alvo e lactes
cente do que a obsess iva capa dos anjos .
Olhava para as mul heres - terei a coragem
de d izê-lo ? - como se fossem caca. Incitá-lo
a estro i n ices teria s ido o cúmulo da demência.
De um modo gera l , desaprovava a aproxima
ção dos sexos e qualquer palavra evocadora
do amor parecia-l he uma agressão pessoal .
Tão casto era , que até a saia dos zuavos e le
ter ia condenado.
Aqu i está a f is ionomia deste chefe , a traços
largos.
Consintam-me, agora , que vá esboçando os
outros . . .
Théodore era o leão d o grupo. D e l e t inha o
orgu lho e o porte ; era quem ia à frente quando
se tratava de d i plomacia ou persuasão, poi s
a Théophraste fa ltava eloquência .
A verdade se d iga, Théodore embriagava-se
para rug i r mel hor em tais ocas iões, mas saía
-se a contento gera l .
Era u m leãozi nho d a Gasconha, por i nfel ic i
dade privado de juba, que se gabava de per
tencer à célebre e hoje quase exti nta famíl i a
dos Théodore de Saint-Anton in , e também ao
30
Lexos que possu i margens cobertas de g lór ia ,
em Aveyron.
Levar-nos-ia a mal se ignorássemos que as
armas , as nobres e orgu l hosas armas dos seus
antepassados, estavam esculp idas no pórtico
ou noutro s ítio da catedral de Albi ou de Car
cassone. A viagem era demasiado cara para
uma verificação: inúti l , de resto, pois bastava
a sua pal avra de f idalgo.
Decal cadas atentamente na B ib l ioteca Na
ciona l , sobre papel de seda, tai s armas nunca
me foram mostradas mas a divisa Par la sam
bleu! sempre me pareceu tão s imples como
magnífica.
Em poucas pal avras, Théodore fasci nava e
seduzia os am igos cuja ascendência mais não
t inha, a i de m i m ! , do que borra-botas. Apesar
d isso não pod ia ser o cabo daquela esquadra,
pois todo o bri l ho deve ceder ao bom-senso.
O baço mas i mpecável Théophraste é que os
reun i ra num feixe, para não serem quebrados
pelas tempestades da vida. Ele é quem os man
tinha ass im , dia a d ia , ensinando-lhes a v i rtude,
a viver, a pensar, e o fervente Aqu i l es acei
tara com nobreza esta obed iência ao oracular
Nestor.
Théodu le e Théoph i le podem ser despacha
dos em poucas palavras . De notável o primeiro
só t inha a aparente robustez do boi dóci I, e
cheio de i nconsciência, que poderia ser posto
a lavrar um cemitério . Sentia-se fel i císs imo
por haver quem o conduzisse, e quase não pre
cisava de l uz.
Pelo contrário, se o segundo andava é por
que t inha medo. Não achava aquel e feixe nem
muito espi ritual nem muito d ivertido mas,
como se deixara amarrar por Théophraste , nem
sequer ousava o pensamento de uma deserção
e tremia à ideia de desagradar a um homem
de tal forma receável .
31
Ainda era um rapazinho, quase uma criança,
e ao que ju lgo a sua i nte l i gência, a su�;� sensi
b i l idade, mereciam melhor sorte.
Vejamos agora a ideia miserável , o d iacho
de ideia i mbec i l a que foram atre lados estes
quatro sujeitos. Se a lguém achar outra mais
medíocre, estou rea l mente i nteressado em ter
conhecimento dela.
Tinham i magi nado real izar a quatro aquela
misteriosa associ ação dos Treze sonhada por
Balzac (2). Sonho pagão, se algum existe.
Eadem velle, eadem nol le, diz ia Salústio , que
fo i um dos mais atrozes canal has da Antigui
dade.
Ter uma a lma e um cérebro repartidos por
baixo de quatro epidermes, no fi m de contas
renunciar à personalidade , fazer-se número,
quantidade , molho, fracção de um ser col ec-
tivo. Que genia l concepção ! .
Excess ivamente capitoso para aquelas po
bres cabeças, o vinho de Balzaé i ntoxicou-os
e o estado em que ficaram pareceu-l hes divino.
Juntaram-se umas às outras por juramento .
Lestes bem? Por juramento . Sobre que evan
gelho, que a ltar , que re l íqu ias ? Não mo d isse
ram e é pena, pois muita curiosidade s into
em sabê-lo. Tudo quanto pude descobri r , ou
conjecturar, é que uti l izando fórmulas execra
tórias e o testemunho de todos os abismos ,
votaram-se àquel a vida absurda que era não
terem um pensamento que não fosse P.ensa
mento do grupo, não amarem nem detestarem
Pl Como .é sabido, trata-se dos treze homens que
d ominam três nove las de :Ba lzac conhecidas pelo titu l o
gera l d e História d os Treze: Ferragus, o Chefe dos De
vorantes; A Duquesa de Langeais; A Menina dO. Olhos
de Ouro. ·(N. do T.)
32
nada que · não amassem ou detestassem em
conjunto , · deixarem · de guardar segredos , le
rem as cartas uns dos outros e viverem para
sempre juntos sem um só dia de separação.
É natura l que Théophraste tenha sido o i ns
tigador deste acto tão solene. Os outros não
ter iam chegado tão l onge.
Empregados todos quatro na mesma repar
tição de um ministér io , foi possível rea l izar
a parte essencia l do programa. Tiveram a
mesma toca, a mesma mesa, a mesma roupa,
os mesmos credores , os mesmos passeios , as
mesmas . l e ituras, a mesma desconfiança ou
o mesmo horror a tudo o que não fosse aquela
quadri lha . De igual modo se enganaram sobre
homens e coisas .
E, para ficar tudo dentro do grupo , largaram
i ndecentemente amigos de longa data e ben
fe itores , �ntre · os quais um enormíss i mo ar
tista que uma vez t inham tido a sorte i nacre
d itável de fazerem i nteressar-se por e les e
tentara preven i- los contra a tendência de anda
rem a quatro patas, como os suínos . . . (3)
Passaram alguns anos ass im , os mel hores
da vida uma vez que Théophraste, o mais ve
l ho , t inha apenas tri nta anos quando a asso
c iação começou . F icaram quase célebres . De
tal forma o r idícu lo andava colado a e les, que
em vár ias ocas iões foram obrigados a mudar
de bairro .
Como · é natura l , havia tudo de acabar e m
drama. Um d i a , o combustível Théodore apai
xonou-se.
Quase não t inham relações , mas a lgumas
sempre t inham, e uma rapariga a quem Deus
Pl Não é arriscado ver aqui uma referência ao pró
prio autor. (N. do T.)
33
não queria ju lgou proceder bem casando com
o f idalgo cujo brasão até embelezava a cate
dral de Alb i ou a de Carcassone.
Não estou, f ique bem claro , a contar � h is
tória i nfi n itamente comp l icada deste ·casa
mento que mod ificava , da forma mais rad ical
e profunda, a existência mecânica dos nossos
heróis .
D i rei apenas que às pr imeiras investidas do
mal , Théodore , fi e l ao prog rama, abriu o cora
ção aos três amigos cuja estupefacção subi u
ao mais a lto n íve l . Primeiro , Théophraste exa-'
lou uma ind ignação sem l imites e espa l hou do
veneno mais negro , e em termos atrozes , por
todas as mu l heres sem excepção.
Poucofa ltou para brigarem. Aquela Sainte
-Vehme esteve a um passo da d issolução.
Théodule l i quefazia-se em dorc enquanto
Théoph i l e mantinha um s i l êncio fúnebre, se
cretamente esfomeado de independência e fa
zendo votos para que a revolução rebentasse,
não ousando embora declará-lo .
Depois aca lmaram-se e o equ i l íbr io artif ic ia l
fo i restabelecido; por u m instante erguida ,
cada uma daquelas massas voltava a cai r em
peso no a lvéo lo e o terrível pastor Théo
phraste , verificando que o rebanho ia afinal
crescer de uma un idade, cedeu à esperança
de uma dominação mais ampla .
Em b loco os inseparáveis foram ped i r , para
Théodore, a mão da i nfortunada ; e e la não v iu
o abismo aonde caía por desejo cego de casar
com um homem que era descendente dos bra
vos .
Logo no · pr imei ro dia o i nferno começou.
Ficara combinado que a vida em comum pros
seguir ia e, se é verdade os recém-casados
terem conseguido que os deixassem sós du
rante a noite, ta l como dantes todos estavam
34
a pé a horas certas e não bel iscavam em nada
aquela regra verdadei ramente monástica .
Todas as manhãs Théodore era obrigado a
relatar, com precisão, quanto fora consumado
nas trevas do quarto conjuga l ; e . a pobre mu
lher não tardou a descobri r , horrorizada , que
afi nal casara com quatro homens.
No dia segui nte ao daquele triste casamento
desenrolou-se perante os seus o l hos o mais
terrível futuro . V iu de frente a ignób i l estupi
dez do . meia-tigela que era o marido, a avi l
tante s ituação de escravatura que resultava
daquela associação de imbecis .
O od ioso Théophraste abr iu e leu em voz
alta as suas cartas, na sua presença e na dos
outros e lementos do grupo. O b isão passeou
a bosta e a baba impura por confidências de
mu lheres; mães e raparigas .
Aprovada pelo marido , a tiran ia deste abo
mi nável pedante exerceu- lhe uma d itadura na
roupa, no porte , no apetite, nas palavras, nos
o lhares , nos menores gestos .
Sufocada , espez inhada , vergada , desespe
rada , ca iu no mais profundo s i lêncio e, com
todo o coração, começou a desejar os bem
-aventurados que viajavam de carreta fúnebre
e já não acompanhavam mais nenhum cortejo.
Nos primeiros tempos a quadri lha fechou-a
a sete chaves , quando saía para a repartição ,
pois o Estado não consentia que ela os acom
panhasse.
G raves i nconvenientes, porém, forçaram a
que este r igor fosse relaxado, e e la ficou ou
ju lgou-se l ivre de i r e vir à sua vontade, cerca
de oito horas por dia .
Na verdade, ignorava que a portei ra (choru
damente paga) l he fazia o reg isto de entradas
e saídas , e espiões de piquete nas ruas vizi-
35
nhas observavam, zelosos , todas as suas an
danças .
A prisione i ra aproveitou este s i mulacro de
la rgueza para se embriagar de ares d iferentes
daqueloutro que havia no c laustro i nfame onde
nem ousava respi rar .
Fez vis itas aos pais e a ve l has amigas,
passeou no bulevar e ao longo do r io , mas foi
pun ida com cenas de uma violência d iaból ica
que a tornaram a i nda mais i nfe l iz : porque às
suas qua l i dades, já de s i encantadoras , Théo
dore acrescentava o c iúme digno de um Barba
Azu l da Kabí l i a .
Era demais . E por isso aconteceu o que de
via acontecer natura l mente, infal ivelmente,
sob um ta l reg ime .
Sem desagrado, Mme. Théodore ouviu a
conversa de um estranho que . surgia como
homem de génio , se comparado àque les id io
tas . Encontrou-l he a beleza de um Deus, por
que não se parecia -nada com e l es , j u lgou-o
de uma generosidade i nfin ita , porque l he fa lava
com ternu ra , e fez-se logo sua amante num
transporte de ind izível a legria .
O que depois sucedeu, veio há d i as noti
ciado num jornal .
Disseram-me, no entanto , que estavam os
quatro homens reun idos , na noite da queda ,
quando o D iabo l hes apareceu!
CASTIGO TERRIVEL DE UM DENTISTA
� Ora tenha a bondade de d izer o que de
seja .
A personagem a quem o tipógrafo se d i rig ia
era um homem bana líssi mo, igua l a tantos ou
tros, destes ins ign ificantes que existem por
todo o lado e parecem estar sempre no plural,
expri m i ndo à maravi l ha o ambiente , a col ecti
vidade, a ind ivisão. Um dos que podem d izer
Nós, como o papa . Até ar de encíc l ica ti nha !
A sua cara , dessas que existem à s carradas,
era ··da espéci e inumerável dos falsos bruta
montes do Mid i que nenhum cruzamento afina
e são todos aparência , grosserias i nc luídas . . .
Não pôde responder logo, o homem, porque
estava meio azoado e precisamente naque le
minuto fazia uma tentativa desesperada para
se mostrar a lguém. Os o l hos grandes e cheios
de i ncerteza revi ravam-se, quase saltavam das
órbitas ·como bolas de jogo de azar que pare
cem hesitantes a esco l her o a lvéolo numerado
onde va i - consumar-se o destino de um imbeci l
qualquer .
- Com mi l d iabos ! - acabou por d izer, car
regando no sotaque de Toulouse. - Ju lga que
venho à sua casa procurar o quê? Raios o
37
partam! C laro · que 'venho para o senhor me
fazer cem partic ipações de casamento !
- Ah s i m ! Po is aqui tem os nossos mode
los, pode escolher. Deseja uma ti ragem de
l uxo em bon ito papel vergé, ou em japão i m
peria l ?
- De l uxo , com m i l diabos ! A gente não se
casa todos os dias ! Não me d iga que i a fazer
essa coisa em papel de l impar o rabo ! Como
é evidente , vai ser no que tiver aí de mais
imperia l . E veja l á bem , não me pespegue uma
tarja negra, Deus santíss imo !
Simplór ia cr iatura esta, do Vaug i rard ! O ti
pógrafo até receou que fosse um destes l ou
cos que convém não excitar, l i m itando-se a
um protesto fraco pe l a suspeita de descuido
que e le lhe denunciava .
Quando chegou o momento de red ig i r o
texto, tremia tanto a mão do c l i ente que viu-se
o operár io obrigado a escrever o que e le
d itava:
- «O Senhor Doutor Alc ibiade Gerbi l lon
tem a honra de partic ipar a V . Ex. • o seu
consórc io com a men ina Antoinette Planchard .
A ceri mónia rea l i za-se na igreja paroquia l de
Aubervi l l iers . »
- Vaugi rard e Aubervi l l iers ? São coisas que
não l igam nada bem! - pensou o tipógrafo ,
ao l iquidar o mais suavemente possíve l a fac
tura .
De facto , não l i gavam. Há bem qu inze horas
que o doutor Alc ib iade Gerb i l lon , c i rurgião
-dentista , errava pelas ruas de Paris .
Com a maior tranqu i l idade , como um sonâm
bulo , cumprira todas as formal idades do casa
mento que i r ia rea l izar-se da l i a dois . d ias.
Só esta ú lti ma consegu i ra perturbá-lo e veja
mos porquê: ·
38
Gerb i l lon era um assassino privado de
repouso. Va i expl i cá-lo quem pode. O seu
cri me fora consumado da forma mais cobarde
e mai s ignób i l mas , bruto que era, sem ter
experimentado nenhuma emoçã(), o remorso
só chegou a atacá- lo quando recebeu a miss iva
impressa - missiva largamente tarjada de ne
gro - onde toda uma famí l i a chorosa lhe
supli cava que ass istisse às exéqu ias da sua
própria vítima.
Esta obra-prima de tipografia en louqueceu-o ,
persegu i u-o , perdeu-o . Gerb i l lon começou a
arrancar dentes em be l íssimo estado, a auri
f icar desaje itadamente arnelas desprezíve is , a
ati rar-se com afinco a gengivas prec iosas , a
aba lar maxi lares que o tempo respe itara , a
i nfl ig i .r � sua c l iente la suplícios de uma total
novidade .
Pesade los sombrios apareceram de visita
ao seu covi l odontécn ico e sol itário, fazendo
ranger tudo, mesmo as dentaduras de borracha
vu lcanizada que e le próprio construía nas bo
carras de cidadãos desvai rados que ohonra
vam com a sua confiança.
E a causa de ta l perturbação era , em excl u
s ivo , a ménsagem tão banal que todos os
contri bui ntes importantes da viz inhança ti
nham aco lh ido de alma tranqu i la . Adorador do
Moloch dos Imbecis , só Alc ib iade não fora
afina l perdoado por aquele I mpresso !
Poderemos rea lmente acred itar que e le te
nha assass i nado, assass inado por amor?
Façamos a j ustiça de imputar o seu acto
às le ituras de dentista , as ún icas que a l imen
tavam o cérebro deste criminoso.
À força de encontrar nos romances-fol hetins
situações amorosas que se des l i ndavam de
forma trág ica, a pouco e pouco Alc ib iade ce
dera à tentação de suprimi r de vez um ven-
3 9
dedor de guarda-chuvas obstácu lo da sua fJi -
c idade. 1
Soberbamente dentado , este jovem comer
c iante :não dava azo a devastações na queixada
e estava prestes a casar com Anto i nette, fi l ha
do gordo q u i nqu i lhe i ro Planchard , criança ado
rável por quem Gerbi l lon se consumia , cal ado,
desde a hora em que lograra parti r-l he um
molar tubercu l oso e a tivera em fan ico nos
braços.
Estavam quase a ser pub l i cados os banhos
quando Alc ib iade, usando o rápido poder de
decisão que faz tão receáveis os dentistas ,
mag i cou o extermínio do riva l .
Numa manhã d e bátegas torrencia i.s , o ven
dedor de guarda-chuvas foi encontrado morto
na cama e o relatór io méd i co demonstrou que
um ce lerado da mais perigosa espécie estran
gu lara durante o sono aque le i nfel i z .
Diaból ico, sabendo melhor do que n i nguém
como as coisas se t inham passado , ass i m
mesmo Gerb i l lon apo iou com audác i a este
juízo , e até bri l hou de lógica i mp lacável na
prova c ientífica do desacato . As suas precau
ções t inham s ido bem tomadas e a Justiça ,
depois de u m i nquérito tão meticu loso como
inúti l , viu-se obrigada a des isti r da descoberta
do cu lpado .
O dentista sangui nário salvou-se mas não
impune, como vamos ver .
Pensando nas vantagens que o cr ime lhe
trouxera , mal o vendedor de guarda-chuvas fo i
fazer tijo lo começou um cerco à sua Antoi
nette .
A superior atitude que exib i ra no i nquérito ,
a s l uzes q u e trouxera a o obscuro drama , o
desve lo respeitoso da sua compaixão por
-40
aquela jovem tão cruelmente · ating ida faci l i
taram-l he, enfim , o caminho do seu coração.
A l i ás coração que em nada se parecia com
um coração d ifíci l de tomar, uma babi lón ia de
coração . A fi lha do qu i nqu i l he i ro era uma vir
gem razoável e tão cheia de saúde, que muito
pouco mergu l hou na dor.
Nada quis com a g lória i núti l das lamenta
ções eternas, de forma nenhuma pretendeu
passar por inconso láve l . E o dentista segre
dava-lhe :
- N inguém vive para os mortos . Um marido
perd ido, dez encontrados , etc.
U m punhado destas sentenças , extraídas do
mesmo abismo, e logo a nobreza do arrancador
se desvendou transcendente .
- O s e u coração é q u e eu gostava d e
arrancar , men ina - palavras decis ivas q u e e le
um d ia l he d isse.
Al i ás , palavras encantadoras que a educação
daque la rapariga pod ia saborear e a fizeram
resolver-se. De resto , Gerb i l lon era um ma
r ido « passáve l • . O entend i mento foi fác i t e o
consórc io . rea l i zou-se .
Por que se envenenou com a . recordação do
morto uma fe l i c idade tão custosamente con,
qu istada? Não querem lá ver que a participa
ção l utuosa, cuja marca ficava agora menos
forte, reaparec ia na i magi nação do cr imi noso?
E e le se j u lgou denunciádo de uma forma
tão estúpida? Na antevéspera do casamento
a obsessão reg ressara com força e arrastara-o
à loucura - há pouco o vimos - fazendo-à
deambu lar todo o santo d ia como um fug itivo,
nesta Paris que não era o local onde e le
morava, até à hora terrível em que recuperou
energ ias para encomendar as partic i pações
àquele tipógrafo de Vaugi rard que descobri ra ,
j u lgava e le , o seu crime.
4 1
Va lera bem a pena ter sido tão f inório , tão
desenrascado ! Ter sabido despistar a Justiça
e conqu istar, contra todas as expectativas , a
mão de uma mu l her idolatrada ! Tudo isto para
chegar à m iséria de ser atormentado por
a lucinações !
A embriaguês dos pri mei ros d i as de casa
mento não passou de uma trégua. Ainda os
cornos águdos daquela l ua-de-mel em quarto
crescente não t inham parado de espicaçar
o céu, e já se fabr icava o germe da tr ibu lação .
Certa manhã, A lc ib iade descobri u um retrato
do vendedor de guarda-chuvas . Oh ! Nada mais
do que uma fotografia que Anto inette ace itara
com i nocência, quando se ju lgava em vésperas
de casar com e le .
Exced ido, porém, de furor, o dentista ras
gou-a ria cara da mu l her . Uma vio lência destas
revo ltou-a , apesar de não ter a re l íqu ia por
mu ito prec iosa , e ao mesmo tempo - já que
nada existe indestrutível - a i magem que an
tes era só pape l ve io fixar-se (como reflexo
de um fragmento da chapa fotográfi ca que
n inguém vê mas envolve o universo) na sua
memória sub itamente impressionada.
Dal i em d iante , Mme. Gerbi llon esteve en
tregue à sombra do f inado cuja lembrança
quase chegara a ser- lhe i ndiferente ; começou
a vê-lo a todo o i nstante, e só a ele, respi rou-o ,
exalou-o por todos os poros , com os seus
eflúvios saturou o esposo mu ito triste que
passou a surpreender-se e a desesperar-se com
o encontro assíduo de um cadáver, entre e le
e a m u l her .
Ao fi m de u m ano nasceu-lhes u m fi l ho
epi l éctico do sexo mascu l i no . Era monstruoso,
4 2
com o rosto de um homem de tri nta anos , tão
prodig iosamente parecido com o assassinado
que Gerb i l lon fug iu aos berros . Vad iou três
dias como um i nsensato. E já de volta na noite
seguinte , foi-se ao berço e estrangulou a
criança . Numa crise de soluços.
O LOCUTóRIO DAS TARANTULAS
Em 1 869 , nos tempos da m i nha juventude
rad iosa, conheci aque le poeta na casa de
Barbey d 'Au revi l ly ( 1 ) . I nteressei-me logo pelos
cabe los e pe lo vozei rão que t inha .
Os cabelos eram de um branco h i rsuto e
pareciam desafiar constantemente qualquer
podador. Andasse embora pelos quarenta anos ,
o g rande tosão cor de neve que sacud ia aos
ventos dava-l he à d istância um ar de Saturno
petu lante, ou de Júpiter de panclastite enve
l hecido por um i ncríve l abuso dos coxins da
vo l úp ia .
Por baixo daqueles f locos , a má cara mi
núscu l a de t i jolo moído parecia a inda em
ebu l ição maior , e mais cozida, de cada vez que
a víamos .
E l e próprio se espantava com a sua agitação
crón ica:
- Sou o Locutório das Tarântulasl - gritava
naque la voz de prometido ao colete de forças
que até fazia , na rua , as operárias humi l des
apressarem o passo.
( ' ) Como é sabido, um dos notáveis escritores fra·n
ceses do final do séc. XIX, autor, por exemplo, de
A Embruxada, obra inclu lda nesta colecção. (N. do T.)
45
Tinha sempre um ar de Sansão a rebentar
cordas ou quaisquer outras peias que os
fi l i steus i ngénuos tivessem pretend ido esten
der para enfaixá- lo durante o sono .
E o i nfe l i z d 'Aurev i l ly, que por s ina l acabaria
em sucumb i r às tramas de uma aranha negra
do ocu lt ismo languedociano [2) , de forma a l
guma odiou espicaçar a raiva deste metrómano
vu lcânico incapaz de aceitar deferências, muito
d isti ntas f-ossem, se acaso não constituíssem
a mais a l ta ou mesmo exclus iva deferênci a .
O poeta chamava-se Damascàne Chabrol e
fora méd ico (3) . Mel hor, a inda era méd ico, que
a medic ina imprime cunho tão forte como o
sacerdócio, d i ríamos . Sem necess idadene
nhuma de ganhar a vida, depressa se fartou de
purgar ou anal isar secreções de comerc iantes .
E le próprio vomitara a c l iente la - para não
usar uma pa lavra mais dura que tantas vezes
andava na · sua boca - e com generosidade se
ati rou a uma cu ltura de · versos a mais i n
tens iva (4) .
Nessa ocas ião acred itei que Damascàne
não era i nd igno de todo a feri r a l i ra e , se
tenho f ie l memória , foram do mesmo juízo
a lgumas autoridades na matér ia .
-
Sabe Deus qual seria hoje a minha opi n ião!
Infe l izmente , a vida é múito curta e de i ncerta
duração para eu me atrever a gastar o pre
c ioso tec ido da existência a procurar, debaixo
de uma poei ra de vi nte e c i nco anos, as duas
ou três recolhas que deixou publi cadas .
( 2 ) Transparente a lusão a Sllr Pela dan, que infl uen
ciou d'Aurev i l ly no final da sua vida . (N . do T. )
( ' ) No seu Diário, B l oy afirma que o modelo de ·Da
mascene Chabro l foi o poeta Eugàne Vi l lemin. ( N. do T. )
( 4 ) De notar que a pa lavra vers (versos) é, em fran
cês, exemplarmente homónima da que significa vermes.
(N. do T. )
.
4 6
Vou porém acrescentar que nenhum poema
dos que a sua mão escreveu (admitindo génio
neste fa lec ido) poderia igualar o i negualável
poema da no ite que passei com ele em sua
casa, na Rua de F leurus , quatro d ias antes da
horríve l morte que teve, noite que não foi ,
não senhor - e n este ponto peço m e acred i
tem sem quaisquer reservas - noite de amor.
Três paixões bravias habitavam Damascàne
- as pequenas mu l heres, os grandes versos
e o desejo de g lória - todas com inegáveis
caracteres de paroxismo para eu entender
como subs ist iam em conjunto , sobretudo a
prime i ra com as ú ltimas .
Este homem, que fazia lembrar um patriarca
possesso , ' era de um arrebatamento bem fú
nebre pe las rod i l has e badal hocas que o
fa lec ido Sainte-Beuve adorava sem todavia
ter , a verdade se d iga , aque le ar patriarcal .
Um benefíc io que l he trouxe o Segundo I m
pério foi ter pod ido amortecer, sem escândalos
aborrec idos , a violência das suas fantas i as
súbitas nos ba ld ios c i rcunvizi nhos ou entre
as sebes do Jard im do Luxemburgo.
No i nterva lo das crises, à espera que o bode
vo ltasse a crescer dentro dele, ati rava-se à
cóp ia e prec ip itava-se no remoinho dos so
pros inspi radores como u m petre l em p leno
furacão .
Era uma ba lbúrd i a de visões, semivisões ,
re lâmpagos secos . ecl i pses tota is , b lasfémias
gest icu ladas contra a i rresponsável abóbada
do f i rmamento , i nvocações fami l iarmente co
ch ichadas ao ouvido de todos os demón ios ,
até .chegar o momento de rebolar no tapete
a ranger os dentes , torcido de convu lsões
epi lépticas.
4 7
Era d ifíc i l entrar- lhe em casa . Parecia recear
que a lguma coisa subti l , i nfi nitamente rara
e preciosa, fug isse pela porta aberta , des
cesse a escada, passasse à frente do portei ro
taciturno e fosse profanar-se no meio da ver
gonha enorme dos cães rafe i ros . . .
A quem batesse não abria , ou abria a medo,
mantendo a porta afastada só um mi l ímetro
da ombre i ra , com a mão l ivre a desenhar ges
tos largos e s i lenciários como se na casa
houvesse um qualquer agon izante sub l ime
cujo derradei ro susp i ro não pudesse o equ i l í
brio dos u n iversos d ispensar.
Se a vis ita tentava prossegu i r , apesar do
b izarro aco lh i mento , não ficasse assustada
com os o l hos em chama dequele sol itár io ,
a inda ass i m não conseguia entrar por falta de
rapidez e a porta bater numa rajada, como a
ratoei ra em c ima do musaranho. M u ito rara
era uma temeridade destas , porém. Posso
afiançar-vos que bem poucos se atreveram a
tanto.
Nestas ocasiões raras, o temível Damas
càne esfregava as mãos meio curvado, com
os dedos para baixo e as palmas junto do
queixo, exprimindo à pressa uma a legria de
can ibal autêntico.
Durante uma hora as recriminações · reben
tavam em fanfarra . Damascàne transformava
-se numa torrente de lamúrias que ao princípio
não passava de r ibombo surdo mas ia subindo
com o rumor que chegava das montanhas
azu is , no horizonte, e depois se transformava
em rug ido rouco mais e mais c laro , expandido
como se fora uma toa lha imensa, por f im em
estrondo forte que ele para a l i traz ia , de arras
tamentos , a lu imentos , confusão de todos os
c lamores .
Tinha o coração a abarrotar daqu i l o ! Ao que
suponho, só a morte i mped i ria que e le voei-
48
ferasse de manhã à noite e até durante o sono
contra ed itores , jorna is , a · Academia , sócios
da Comédia Francesa, de um modo geral con
tra a corja humana que te i mava em não saber
recompensá-lo .
E ta lvez t ivesse razão . Repito que nada se i
nem quero saber a tal respeito . Embriagado
já ando com as m inhas próprias ind ignações ,
para ter de embebedar-me com as dos outros .
Vou . chegar, portanto , ao poema daquela
noite, famosa entre todas e que não foi de
amor.
Excepciona lmente , Damascàne Chabrol con
vidou-me por carta a ir a sua casa. Não para
jantar, o que até seria saudável e por isso
arqu ibana l , mas ouvi r ler um dos seus dramas,
o que parecia perigoso e me assustou muito .
Bem mais com inatória do que fraternal , a
carta não pôde i l ud i r-me quanto à gravidade
do caso. Exig ia pontual idade absoluta , que
ass i m devia ser em nome da justiça .
Não me i rritou , porém, a modal i dade do con
vite . Vivamente espicaçado, estabel eci um
acordo ráp ido entre aque la justiça e o que eu
queria . Fu i pontua l . Vede agora o que sucedeu.
Ao pri meiro toque a porta abriu-se e fu i
introduzido pelo ritual que aci ma refi ro , em
bora eu encontrasse Damascàne mais ca lmo
do que ter ia ousado esperar. D i re i mesmo que
estava tão prod ig iosamente calmo como o
operador ou o carrasco pronto a funcionar,
analogia cujo r igor nem de longe eu suspei-
tava. . .
Já t inha dois grogues preparados e, escan
carado à frente de uma das duas cade i ras da
mesa, o temível manuscrito .
Por sorte estava bom tempo. Com muito frio
ou calor, com certeza eu teria morrido naqu�Ja
4 9
noite. Damascêne tomara precauções tão evi
dentes que perceb i logo como seria i núti l qual
quer tentativa de interrupção da minha parte ,
curta e legít ima fosse.
- A Filha de Jefte! Drama b íb l i co em c inco
actos - começou e le , fitando-me com o l ha r
imp lacáve l .
A o pr incíp io o exercício não me desagradou.
O l e itor t inha uma voz Q izarra de gastrá lg ico
que sub ia sem esforço, dos baixos profundos
às notas i nfantis mais agudas . Falava o seu
drama, na verdade representava-o , multi p l i
cando gestos até se ajoe l har numa prece quan
do a s ituação o exig ia , curioso espectácu lo
que fo i capaz de diverti r-me uma hora , isto é ,
enquanto durou o pr imei ro acto ; porque o
monstro l evava a sua consciência ao ponto
de repeti r várias vezes as cenas cuja beleza
receasse não ter transm itido i ntei ra , jamais
tranqu i l izado pelos meus protestos admi ra
tivos .
No segundo acto , porém, já a mímica per"
dera o encanto do i mprevisto e comecei rea l
mente a ouvi-lo.
Era l amentáve l . I magi ne-se uma bana l i dade
das mais poei rentas , estafadas, porcal honas
e fétidas . Um amálgama assustador de Ra
c ine , da boa cr iatura que é esse Gagne [5), de
Désaugiers . Estou a lembrar-me de um d is
curso sem f im que o seu i mpossível Ju iz fazi a
sobre agr icu ltura e econom ia socia l . . .
No f im do tercei ro acto f ing i-me a braços
com uma necess idade súb ita da espécie mais
vu lgar , m inha esperança de poder chegar à
porta da escada , maso homem nocivo foi
atrás de m i m . . .
( 5 ) Poeta e a dvogado meio louco, contemporâneo
de B l oy. (N. doT.)
50
Tive de engo l i r tudo até à meia-noite , sacri
fício quase tão grande como o da fi lha do
Libertador de Israe l .
Por fim , l ançado j á para o meu chapéu , que
surpresa não tive ouvi ndo a· Damascàne pa l a
vras que pareciam ti radas do Apoca l ipse:
- Oh ! Não tenha pressa, que ainda não le
mos nada. Não vou largá-lo antes de me ter
ouvido os sonetos.
Pe la entoação, um ignorante da l íngua fran
cesa teria ju lgado que me . oferec iam uma
chávena de chocolate, embora e le me anun
c iasse mil e quinhentos sonetos, mais de
vinte mi l versos ! E longe de estar enfraquecida
pelo esforço precedente, a sua voz era agora
ma is c lara , fresca , melhor dominada, ao que
parec ia capaz de trombonar até à queda , in
fe l izmente tão adiada, do céu .
Que fazer? Ficara bem demonstrado que eu
só poder ia sai r por c ima do cadáver daque le
enra ivecido, e nessa a ltura eu a inda não t inha
adqu i rido o ven ia l costume de mergu lhar as
mãos no sangue !
Voltei a sentar-me e abafei um estertor de
desespero .
Como eu dormisse profundamente c i nco mi
nutos mais tarde, agitou aos meus ouvidos o
mu ito vivo carri l hão de um badalo a lpestre .
-· Ah ! Ah ! Com que então a dormir? - diz ia
o meu carrasco .
- Santo Deus ! - exclamei . - Durmo, mas
não durmo . . . co·nfesso que s into a lgum can
saço .
- Ah sente? Estou farto de saber o que
isso é .
Abri ndo uma gaveta ti rou u m revólver, de
anormais d imensões · ao que me pareceu , car
regou-o com todo o cuidado e pousou-o na
5 1
mesa . Sem largar a coronha, com a mão es
querda a segurar o manuscrito , acrescentou :
- Vou conti nuar ! . . .
O sup l íc io durou até ao sol nascer, a ltura em
que o poeta se pôs de pé num movi mento
brusco, fechou a sanfona e declarou que i a
apanhar o comboio .
- Vou ver o papá - expl icou .
Horas mais tarde, em Orleães, Damascêne
esbofeteava o pai de setenta e cinco anos · e
deitava-se a um poço. Reti raram-no da água,
do ido fur ioso, para ser fechado na enxovia
onde morreu no d ia segu i nte, presa de grande
frenes i .
A m inha surpresa foi extrema quando m e
soube herdei ro de u m a parte considerável d a
s u a fortuna. Graças a o d inhe i ro d e l e é que
a l i ás me d iverti tanto dos vinte e c inco aos
tri nta , como todos sabem.
5 2
A FAVA
Entusiasmados, um bonito rapaz e uma
bonita rapariga casaram-se. Depois da ce
rimónia, enfim sósl, sentados em confor
táveis cadeiras li frente um dO outro,
ficaram a olhar-se, calados, e morreram
de pavor.
(Compêndio de História Contemporânea)
O senhor Tertu l l ien acabava de apanhar os
c inquenta , essa doença , com os cabelos a inda
pintados de um belo . negro, os negócios a
correrem às m i l maravi l has , d ia a d i a mais
cons iderado, ·quando teve a pouca sorte de
perder a mu lher .
Foi u m golpe terrível . Só uma grande perver
s idade saberia imaginar companhe i ra mais
perfe ita .
T i n h a menos vi nte anos d o q u e e le , o rosto
mais apetitoso que i magil1ar se pode e um
feit io tão de l ic ioso que rião perd ia nenhuma
ocas i ão de seduzi r .
O magnân i mo Tertu l l ien casara sem namoro
como a maior parte dos .comerciantes a quem
o cel ibato i ncomoda e · não têm vagar para
seduzi r v i rgens d ifíceis . . · Casara • entre dois . que ijos » , d •z ia e le com
jovia l i dade, pois era comerciante · de queijos
por grosso e cometera o acto sério no i nter
va lo de uma entrega memorável de chester
e de uma remessa excepcional de parmesão .
O consórc io não foi fecundo, tenho o des
gosto de d izê-lo , c i rcunstância que ve io l ançar
uma sombra no gracioso quadro. ·
5 3
De quem a cu lpa? Questão grave e pendente
no meio dos frutei ras e dos merceei ros do
G ros-Cai l lou . U ma carn ice ira h íspida, que o
belo Tertu l l i en desdenhara , acusava-o aberta
mente de i mpotência sem dar ouvidos às
objecções de urria colchoe i ra verrugosa que a
ta l respeito se d iz ia bem documentada.
O farmacêutico, esse dec larava que era
preciso dar tempo ao tempo antes de emit ir
uma opin ião ; e , desinteressada do l itíg io , a
benevolente massa dos portei ros aprovava a
ci rcunspecção deste pensador.
D iz iam os porte i ros com i mensa autoridade
que Roma e Pavia se não tinham feito num
d ia , bem estava o que bem acabava , o burro
devia a l bardar-se à vontade do dono, etc . , etc . ,
e por consequência haveria a pressupor que
mais d ia menos d i a o acontecimento favorável
fosse capaz de dar o retoque f ina l na pros
peridade ofuscante do queije i ro .
Quem ta l ouvisse até ju lgar ia que fa lavam
do delfi m de França.
A notíc ia da morte súbita que ceifava espe
ranças tão legítimas desencadeou grande
emoção.
A menos que Tertu l l i en, rapaz tão r ico que
saíra do nada, vo ltasse a casar de i medi ato
(h ipótese que a sua dor não nos permitia acei
tar um só minuto) o futuro da casa não seria
mais do que a passagem da c l ientela i nte i ra
para um sucessor estranho!
Perspectiva negra que devia amargurar s in
gu larmente as penas daque le marido en l utado .
O queije i ro parec ia mesmo a um passo de
saltar em p leno ab ismo de desespero.
Embora eu não saiba a que ponto e le se
atormentava no sonho de uma descendência
queije i ra , fu i testemunha aud itiva dos seus
5 4
mugidos dolorosos, das notificações extraju
d ic ia is que a si mesmo fez para acompanhar
na morte a sua C lémenti ne, com moratórias
muito próximas que, de resto, não fixava .
Do tempo em que estudei a · fundo este ho
mem s impático com quem estive , dez anos ,
de relações comercia is atadas , pude confi rmar
um traço do seu carácter, admi rável mas pouco
d ivulgado.
Tertu l l i en sentia u m medo atroz de ser
cornuda . Chifres todos os seus antepassados
t inham tido, desde há duzentos ou trezentos
anos , e a ternura que sentia pela mu lher era
pr incipal mente a l i mentada na certeza i nque
brantável da i ntegridade da testa .
O seu reconhecimento por este facto che
gava a ter a lgo de r idícu lo e tocante . E depois
de reflect ir mu ito acabet por achá-lo quase
trág ico e perguntar a m i m mesmo, espantado,
se a esteri l i dade escandalosa de C lémenti ne
não se expl icaria com certas e bem estranhas
dúvidas que Tertu l l ien pudesse ter a respeito
da sua própria identidade, pelo sub l i me receio
de pôr cornos a s i próprio - fecundando-a .
Era tudo isto mu ito belo e acima dos que ijos
maroiJes , bondons ou l ivarots , mas a banal
coisa que i nfa l ivel mente tinha de acontecer,
aconteceu .
Quando C lémenti ne devolveu a a lma ao
Criador, o i nfe l i z viúvo começou por gemidos
i mpetuosos , soluços que a natureza aconse l ha
mas , l iqu idado este pr imeiro tributo - para
usar a expressão de que e le tanto gostava
e já antes dos garantidos empurrões das exé
qu ias que o cr ispavam com anteced�ncia, pre
tendeu de ixar em ordem as rel íqu ias da ado·
rada .
5 5
Ora a í mesmo é que a sorte madrasta o es
perava e e le ficou perante o lábaro i rr isório
dos Tertu l l iens.
Na gaveta de um móvel ínti mo, e misteriosa
ao ponto do mais sombrio marido ser i ncapaz
de loca l izá-l a , Tertu l l i en descobriu um maço
de cartas tão volumoso como variado, capaz
de imped i r , um segundo, que e le mantivesse
o pé .
Amigos e conhecidos todos t inham a l i pas
sado . Eu era a ún ica excepção, o que não en
trara no grupo que a sua mu l her amara .
Até o s empregados da casa - chegou a en
contrar a lgumas cartasescritas por e les em
pape l cor�de-rosa - tinham . sido s imu lt�;�nea
mente gratificados .
Tertu l l it:m ficou com a certeza defin itiva de
ter s ido noite e dia enganado pel a defunta ,
fizesse que tempo fizesse , em todos os lados.
Na cama, na cave, no sótão, na loja e até nas
barbas do queijo gruyàre, ao re lento dos ro
quefort e dos camembert.
Será i núti l acrescentar que esta correspon
dência suja poupava-o muito pouco. Da pri
meira à ú lt ima l i nha estava-se i ncansavelmente
nas tintas para e le .
Determ i nado funcionário dos te légrafos,
cuja finura de espírito era famosa , chegava
numa carta a troÇar dele da mais desagradável
mane i ra , com a lusões ou conselhos impossí
ve is de publ icar aqu i .
E , para cu l m i nar, uma coisa inaudita, exor
b itante , fabu l osa , de fazer. perder � tino à
constel ação do Capricórn io :
Àquel e mortificante processo anexava-se
uma interm i nável série de pauzinhos que o
espantaram e cuja presença parecia ao pr incí
pio i nexp.l icável . Recorrendo, porém, a uma
sagacidade d igna do subti l apache debruçado
sobre um rasto de guerra , logrou Tertu l l ien
5 6
i nundar-se de uma claridade viva ao perceber
que o número daqueles objectos era precisa
mente igual ao dos adoradores que a sua
infie l encorajara, e todos t inham enta l hes de
can ivete, uma multidão de borbul has idênticas
às que o padeiro faz na banca para marcar a
conta dos c l ientes.
Pe los vistos Clémentine era pessoa da maior
ordem , preocupada com as suas contas !
Embor� esmagado de humi l hação, o marido
expri m i u o bem natural desejo de ficar a sós
com a morta e esteve fechado com ela duas
ou três horas a f io , como um homem que pre
tende chorar à vontade a sua afl ição.
Semanas mais tarde , no dia dos Re is , Ter
tu l l i en oferecia um jantar sumptuoso.
Esco lh idos a dedo, vi nte convivas do sexo
mascu l ino privavam ao redor da mesa posta
numa atmosfera de magn ificência sem par.
Requintada, cara, abundante, inesperada . . Tal
qual o festim de um príncipe opu lento nas
vésperas de abd i car .
Convidados h(>Uve, porém, que reagi ram mal
ao cenário fúnebre . Agora tão soturna, a i ma
g inação do queije i ro por certo fora desen
terrá- lo nas recordações de um melodrama.
As paredes , o próprio tecto , t inham s ido
forrados de negro . A toa lha era , negra , da
i l uminação encarregavam-se candelabros ne
gros com velas também negras . Era tudo ne
gro .
O funcionário dos tel égrafos q u i s reti rar-se ,
perturbado ao máximo, mas um jovial criador
de porcos reteve-o declarando que era preciso
« estar à a ltura • e pela parte que lhe tocava
achava aqu i l o mu ito • piadético • .
Indecisos por um momento o s restantes ,
acabaram em fazer troça d a morte . Com as
57
garrafas sempre a c i rcular , pouco depois já
a refeição se transformara- numa autêntica
gargal hada e na a ltura do champanhe era mais
do que certo o tri unfo dos trocad i l hos . Os pa
lavrões começavam a rebentar quando um
g igantesco bolo foi trazido à cena.
- Meus senhores - disse Tertu l l ien , de
pé - vamos esvaziar os copos à memória da
nossa querida morta . Vós todos pudestes co
nhecê-la , aprec iar- lhe os sentimentos . Decerto
não podere is esquecer o seu coração amável
e terno. Por isso eu peço que vos deixeis pe
ne.trar - de um modo bem especial - pela
sua recordação, antes de encetado este bolo
-rei que e la teria gostado tanto de parti l har
convosco.
Como não fu i amante da queije ira (porque
a não conhec i viva , ta lvez) estive ausente do
jantar e nunca soube a quem cal hou na sorte
a rea l fava .
Sei , s i m , que a Justiça incomodou o d iabó
l ico Tertu l l ien por e le ter i nserido um coração
no� enormes flancos daquela gu loseima re
cheada , o coraçãoz inho já apodrec ido da de
l ic iosa C lémentine.
5 8
ISTO AINDA PEGA FOGO
Naquela noite estávamos em casa de Henry
de Groux, o pi ntor dos homicidas ( 1 ) , cerca
de uma dezena de ; candidatos à · etern idade.
Tínhamo-nos esco lh ido cuidadosamente para
entre nós não ficar nenhum destes indivíduos
votados às academ ias, que podem satisfazer-se
com a r isível imorta l idade.
Fora estabelecido nos nossos concel hos ,
e de forma sól ida, que nunca chegaríamos a
admiti r começo ou f im ao que quer que fosse ,
nem a descer à i maginação de nos pensarmos
atulhados de uma qualquer fel icidade.
Éramos os cónegos do I nf in ito , os protonotá
rlos do Absoluto, os executores medas de
toda a opin ião provável e de todo o respeitado
lugar-comum. Ouso afi rmar que o raio caía
entre nós , de tempos a tempos .
Ass i m , naque la noite, depois de amplas e
fotogén icas declarações sobre um sem número
( ' ) Trata-se de um pintor que provocava escânda lo
com as suas obras, nos fins · do séc. XIX. Sobre ele,
poderá o l eitor informar-se no capftu lo cO P intor louco»,
Inserido por Giovanni ·Papin i em Passado Remoto, cuja
tradução portuguesa ar corre chancelada pela Associa
çlio Verbo/RT.P . ( N . do T.)
59
de objectos , sucedeu que u m caçador de l i
cornes tão opin ioso como subti l , célebre pelas
suas doutrinas h i rcanianas e pelo seu facies
g labro (2) , ju lgou-se obrigado a falar :
- Queridos companhei ros , já reparastes na
superior facécia do . que está convencionado
chamar-se Repressão? Estatísticas perseve
rantes e jubi latórias informam-nos periodica
mente sobre o fluxo e o jusante das transgres
sões às nossas le is penais . Dispomos de catá
logos s i nópticos que consignam, natural mente
em números árabes , os assassinatos ou as vio
lações que nos ajudaram a suportar a mono,
ton ia das horas e foram punidos sem i nso
lência pela mag istratura , de uma determinada
época a outra .
« Suponho que é i nút i l contestar o i nteresse
patriótico destes documentos que em geral
fazem tremer, das patoi las à p inha , os f i lan
tropos conscienciosos .
" Também concordare is , sem por isso ficar
des pál idos de raiva , que não menos inúti l
seria a lguém empenhar-se a divulgar o cra
pul ismo un iversal das pessoas honestas . Até
os ladrões de estrada e os mais notórios ma
l andrins haveriam de insurg i r-se contra seme
l hante relato acerca dos ponderadores do equi
l íbrio soci a l .
«Ju lgo , no entanto , q u e vai . agradar.vos a
oferta do poema de uma experiência muito
banal em que tive ass inalável êxito .
· Passava eu na Rua Saint-Honoré , ontem de
manhã , quando vi um homem respeitável des
cer a · escada de Saint-Roch . Era um destes
ve l hotes amenos que parecem distribu i r calor
FI Provavel mente Vi l l iers de l ' ls le-Adam . ( N . do T. )
60
à sua volta . Só de vê-lo tínhamos a sensação
de estar a comer tutano de vite la , e as suas
mãos modestas despejavam todas as c lemên
cias d isponíveis . O passo miúdo dava- lhe um
aspecto de homenzinho de açúcar a desl izar
sobre entranhas de coe lho. I nterrogava com
olhar afável o céu que era seu amigo, nem se
duvide, camarada da maior i ntim idade. Por
certo, acabava de cumpri r com i ndiscutível
fervor os seus deveres de piedade e d i rig ia-se
àquelas práticas fraternais que só os m i mos
do céu podem - um pouco tarde, d iga-se de
passagem - recompensar.
· Do exame conclu í logo que tinha à minha
frente uma ave rara , e aproximei-me.
" Meu caro senhor - disse · eu numa voz
rápida e surda - tome cuidado , que isto ainda
pega fogo!
« Como sabem, não é fáci l eu ficar espan
tado . Pois bem , meus amigos , devo d izer-vos
que o efeito das minhas palavras desconcer
tou-me durante várias horas , até à imbec i l i
dade.
« A personagem fez-se verde, l ançou-meo lhares doidos e desesperados de negro trin
cado por u m . crocodi lo , pôs-se a tremer como
uma avenida de choupos e ati rou-se para den
tro de um carro que desapareceu instantanea
mente.
• Aqui está o que tinha para vos dizer. Se
esta experiência for bem feita , estou conven
cido de que dará, dezanove vezes em vinte,
um resultado igual . J: só experimentar. As
consciências modernas estão de tal forma
endividadas, que o pr imeiro audacioso f ica
senhor delas desde que surja transformado em
trovão e c i rcu le , como se fosse uma Górgona ,
entre as mu ltidões respeitáveis .•
- Com mi l d iabos ! - exclamou o ton itroan
te Rodolosse. - J: curioso ouvi- lo falar dessa
61
manei ra . Vou ler-vos uma carta confidencial
que há vários dias trago comigo. Não sou
nenhum padre, para guardar segredo das con
fissões , e · a l iás não vou d izer-vos quem foi
que a ass inou. As confidências ao autor con
fi rmam e ajuramentam de ta l modo o �ngra
çado paradoxo que acabámos de ouvir l Não
tenho forças para furtar-vos a um testemunho
tão concl udente .
« A carta que aqu i vêem - conti nuou e le ,
exi b indo uma folha de papel - é de um artista
mu ito conhecido e perfeitamente respeitável .
Perfeita e absol utamente res-pei-tá-ve l , estão
a perceber?
" Meu caro senhor: há d ias tive a honra de
ver que notou em mim uma certa tristeza
impossível de d iss ipar e cuja causa lhe es
capava . Como i nsisti u em conhecê- la , decido
-me hoje a satisfazê- lo .
« Trata-se de um terríve l e razoave lmente pe
rigoso segredo que arrasto com igo há qu inze
anos . Ao que parece, o senhor viu mais fundo,
em m i m , do que os outros homens. Por isso,
ta lvez não fique espantado. Ta lvez s i nta , mes
mo, uma réstia de piedade por um ind ivíduo
lamentável que o mundo ju lga fe l iz mas vive
sempre atormentado por remorsos atrozes .
« Não importa . Agora vou entregar-me a s i ,
na esperança de s e r a l iviado de u m a parte do
fardo que d i a a dia me fica mais pesado.
Acabamos por ser obrigados a confessar-nos
a a lgu�m . e esco lho-o para não ficar exposto
à tentação de me abri r ao pr imeiro po l ícia
que me aparecer à frente , já que não tenho a
coragem de procurar u m padre.
• Não serei longo, descanse . . .
• Em 187 . . . t inha eu vinte e sete anos e
morria de misér ia . Nessa época n inguém pod ia
fazer-me pressenti r o meu sucesso futuro e a
consecutiva prosperidade que é hoje i nvejada,
6 2
sem dúvida , por a lguns pobres-d iabos herdei
ros da minha angústia . Eu andava devorado
pe la mais baixa e odiosa inveja. Cheio como
estava da beleza da minha a lma, e não duvi
dando do meu génio, acaso poderia to lerar que
banal íssima gente - creti nos defin it ivos e
desprezíveis cancros - tivesse impunemente
casas , mu lheres , porcos, batatas, enquanto o
maior artista do mundo dormia num pavi l hão
coberto por estrelas castas ?
« Porque eu andava sem domicí l io , sem d i
nhei ro , às vezes até sem bolsos , e o meu
estômago de adolescente recri m i nava a lei
dura do apetite mais i nsaciável .
« Estimu lado por um traficante de carne hu
mana, comecei a fazer a corretagem dos s�
guros da vida a lheia e, sem consegu i r desen
cantar a mais pequena apól ice, ia morrendo
l itera l mente de fome, no campo, e esforçava
-me por a l cançar Paris com os meus pés l igei
ros . . . ..
- Meus amigos - disse o leitor - neste
ponto, os pormenores e as ci rcunstâncias do
lugar fazem-se tão precisas, que sou forçado
a saltar mu itas l i nhas . De qualquer modo, já
devem estar todos elucidados sobre a postura
de a lma do meu correspondente . Chego, por
tanto, ao desenlace .
« . . . Estava-s·e em Agosto e, durante todo o
d ia , o calor t inha s ido insuportável . Extenuado,
incapaz de andar debaixo daquele sol feroz,
dormi ou tentei dorm i r na berma da estrada ,
abrigado por uma imensa meda de pa lha , a
ú lt ima de uma longa f i la que começava no
cele i ro de uma qu inta onde me acabavam , bru
tal mente, de recusar hospita l idade.
« Quando acordei já era noite fechada. Uma
del iciosa noite sem lua. Pareceu-me fác i l ven-
6 3
cer as quatro ou c inco léguas que a i nda me
separavam de Paris , mas sentia tanta fome
que não perd i a ocas ião e chore i .
" Como procurasse maquina l mente nos far
rapos um resto de pão, ou de qualquer outra
coisa, dei com um objecto que me parecia uma
ve l ha côdea . Corado de fel ic idade, l evei-a à
boca .
« Era , poré m , uma caixa de fósforos . . .
« C laro que não engo l i essa mald ita caixa ,
essa caixa infame cuja presença não pude
expl icar mas era enviada , sem dúvida, pelos
demón ios .
· « Entretanto , qualquer coisa desceu por m i m
abaixo , qualquer coisa melhor do que saciar
os i ntestinos. Saturei-me , embriaguei-me, . re·
fresquei-me com o de le itável vinho do ódio
e da vi ngança . Reparei que uma brisa l eve
soprava , fug ida dos lados da qu inta .
« Meia hora mais tarde, já · estava tudo a
arder. A casa inóspita transformara-se num
monte de c inzas e , ao que me d isseram, dentro
dela ficou calcinada uma ve lha para l ítica . . .
A Justiça, essa nunca çhegou a · encontrar
o cu lpado . . . »
·
la neste ponto o nosso amigo Rodolosse
quando um escu ltor, cuj.a barba sedosa eu
contemplava , fechou rap idamente o i nterruptor
do candeei ro que nos dava l uz . . .
Pudemos então ouvir vários homens que
soluçavam, nas trevas.
6 4
A BELIDA DO DINHEIRO
- Compaixão para este pobre c larividente !
H i stória das mais vu lgares . Por desgraça a
clarividência atingi ra�o como resultado de
uma' catástrofe onde mu ita gente honesta
sucumbi ra .
Ao que ju lgo, um descarri lamento de ca
minho de ferro , a menos que tenha s ido um
naufrág io , um incêndio ou um tremor de terra .
Nunca ficou bem esclarecido. E le não tinha o
háb ito de fa lar d isto e por norma, quaisquer
que fossem as precauções ou del icadezas que
tivéssemos , furtava-se à i nsu ltante curiosidade
das pessoas caridosas.
He i-de lembrar-me sempre do ar decorativo
de pedi nte que exib ia deba ixo do pórtico basi
l icar de Santo Is idoro o Traba l hador, onde
pedia esmola . Porque o homem estava tota l
mente arru i nado.
Era impossível res isti rmos à · corrioção res
peitosa que uma desgraça tão rara , tão nobre
mente suportada, provocava . Sentíamos que
esta personagem conhecera outrora, e melhor.
do que m uitas outras, as a legrias preciosas
da cegueira ; tinha uma educação bri l hante ,
educação que afinara, com certeza , a facu ldade
6 5
inestimável de nada ver, privi légio de todos
os homens, quase sem excepção, e critério
decisivo da sua superioridade em relação aos
brutos .
Com emoção adivinhávamos que antes do
acidente seria um destes cegos notáveis cha
mados a ornamento da pátr ia , e dessa época
restava- lhe a melanco l ia de um príncipe das
trevas exi l ado na l uz .
Porém, as oferendas não choviam no chapéu
ve lho estendido a quem passava. Atingido por
uma doença tão extraord i nária , aquele mend igo
desconcertava a munificência dos devotos e
das devotas, fazia-os apressar o passo mal
o viam no porta l do santuário.
Por i nsti nto desconfiavam de u m necessitado
que via o sol ao meio-d ia , co isa que só um
crime excepcional pod ia expl icar, um qualquer
sacri légio sem nome que ele ass im expiava.
Os transeuntes apontavam-no de longe à pro
gen itura , como testemunho vivo das temíveis
sentenças de Deus .
Chegavam a recear o contág io e , por causa
d isso, o cura da paróquia estivera a ponto de
expu lsá-lo . Por sorte , um grupo de honrosos
sábios cuja competência não podia ser postaem causa declarara, o mais peremptoriamente
poss íve l mas não sem acri món ia , que « aqui lo
não se pegava " .
Subsistia parcamente d e esmolas e do fruto
magro de trabal hos frívolos em que era exímio.
Por exemplo, n inguém pod ia batê-lo a en
fiar agul has . Até contas enfiava , a uma velo
cidade espantosa.
Eu próprio várias vezes recorri aos seus
présti mos para ele me decifrar obras de um
66
psicólogo famoso a quem deu para escrever
com· p incéis de um só cabelo ( 1 ) .
Assi m nos conhecemos e se estreitou a
i nt imidade deplorável que um d ia v ir ia a
sai r-me tão cara.
Deus me l ivre de ser duro para com um
pobre monstro enterrado há tanto tempo, in
fel izmente, mas aval i e-se como a i nf luência
de uma pessoa que me ensi nou o segredo
- há tantos séculos esquecido - de d istingu i r
o l eão do porco, o H i mala ia de um monte de
esterco, fo i nefasta à minha i maginação jove m !
C iência perigosa, q u e é , quase logrou per
der-me e por pouco me não levou a parti lhar
do desti no do meu preceptor. Eu quase deixara
de tactear, uma palavra que diz tudo.
G raças ao céu , porém, a boa estrela salvou
-me do abismo! Aos poucos consegu i afastar-
-me deste ascendente funesto, romper em
defi n itivo o encanto e fazer boa f igura entre
as toupei ras e os ceguetas que jogam a cabra
-cega da vida.
Fu i a tempo, fu i mesmo a tempo. Para me
operar def in itivamente da luz vi-me forçado
a pagar à dextricidade famosa de um ocu l i sta
de Chicago com uma parte considerável das
m inhas rendas.
Entretanto , deu-me para saber que desti no
tivera esse terrível mendigo. Aqu i o têm :
Durante a lguns anos manteve-se n a ped incha
como c larividente, à porta da catedra l . Dizem-.
-me que a doença foi p iorando com a idade.
Quanto mais envelhecia mais c laro via , e as
esmolas di minuíam em proporção .
As vezes, os vigários davam-lhe uns tos
tões para calar a consciência. E estrangei ros ,
( 1 ) Segundo Jacques Petit · (um cespecia l"ista» em
L B loy) trata-se, uma vez mais, de ·Paul ·Bourget. (N .
do T. )
6 7
que i gnoravam aqu i lo , ou então seres do mais
baixo povo que mu ito provavel mente possuíam
o mesmo princípio da clarividência , quando
cal hava lá o socorriam.
O cego da outra porta , homem justo e des
graçado que faz ia belas receitas , nos d ias de
grande carri l hão g ratificava-o com uma ofe
renda modesta .
Somava tudo muito pouco e a repu lsa que
e le i nspi rava , maior dia a dia , levava a crer
que em breve morresse.
Parecia mesmo que ti nha fe ito uma jura . Exi
bia a sua enfermidade com c in ismo, tal qual
os estropiados , os pape i rosos , os u lcerosos,
os manetas ou os raquíticos nas festas devo
tas da provínc ia . Punha-a debaixo do nosso
nariz e forçava-nos , por ass i m dizer, a res�
p i rá-la .
O nojo e a ind ignação públ icos ati ngiam o
máximo e estava por um fio a s ituação do
maland ri m quando sucedeu uma coisa tão
prod ig iosa como inesperada.
O c larividente teve uma herança de um
sobri nho-neto da América que se fizera i nso
lentemente rico a fa ls if icar guanos e fora de
vorado pelos can iba is da Araucân ia . . .
O ex-mend igo não l he reclamou os restos
mas aproveitou o facto para se meter na
pândega. Aquela inverosími l e quase mons
truosa · l uc idez, que o fizera célebre e ao que
parec ia estivera a u m passo de se transformar
em galopante, como a tís ica que a pouca-ver
gonha prec ip ita , começou a evo lu i r ao con
trár io .
Meses depois a cura fora rad ical - sem ope
ração . O ex-mend i go perdera toda a c larivi
dência e chegou a ficar surdo de todo. Vive
agora para encher a pança . Com a bel ida do
d inhe i ro consegu iu l i bertar-se , enfi m , do mun
do exterior.
é B
A TISANA
Jacques v iu que estava a ser s i mpfesmente
re l es . Que od ioso ficar ass i m no escuro, como
u m espião sacrílego , enquanto aquela mulher
desconhecida acabava a confissão .
Ma l o padre com sobrepe l iz e a devota ti
n ham aparecido, ele devia ter saído logo, ou
pe lo menos ter feito baru l ho para f icarem
avisados de que estava perto um estranho .
Agora já era tarde e a sua ind iscrição, · tre
menda, não fazi a mais do que agravar-se .
Ocioso, à procura de fresco como uma la
garta , naque le f im de d ia can icu lar , Jacques
tivera a fantas ia pouco habitua l entre as suas
fantas ias de entrar numa ve lha igreja e sen
tar-se num recanto sombrio atrás do confes
s ionário para dar · largas a devaneios, enquanto
v ia apagar-se a grande rosácea.
Sem saber como nem porquê, m i nutos pas
sados era testemunha muito i nvo luntár ia de
u m a confi.ssão .
A verdade se d iga , chegavam-lhe pouco n í
t idas as pa lavras . Bem vistas as coisas só um
sussu rro ouvia mas , para o f im , o colóquio
pareceu ganhar mais an imação.
Uma aqu i , outra a l i , as sílabas destacavam
-se , emergiam do rio opaco daquela tagare l ice
6 9
pen itencial e o rapaz, por m i l agre o contrár,io
de um pulha , receou imenso surpreender con
f idências que l he não eram evidentemente
desti nadas .
Previsão que se rea l izou , de repente. Pare
ceu-l he que um violento remoi nho se formava ,
ondas i móve is ribombavam e se d iv id iam a
revelar um monstro . Esmagado de susto , o
aud itor ouvi u pa l avras d itas num tom de i m
paciência :
- Estou a dizer-lhe, meu padre, que deitei
veneno na tisana dele!
·
Depois· mais nada. A m u l her de rosto i nvi·
s ível levantou-se do genuflexório e desapare
ceu em s i l êncio no matagal de trevas.
Quanto ao padre , não se mexia mais do que
um morto e os minutos escoaram-se, l entos ,
antes de e le abr ir a porta e sa i r com o passo
pesado do homem submerso em perplexida
des .
Para dec i d i r Jacques a levantar-se foram
precisas a pers istente s ineta das chaves do
sacristão e a ordem de saída extensamente
bramada ao longo da nave . Estava atordoado
com pa lavras que a i nda reti n iam dentro dele ,
num grande c lamor. ·
Reconhecera a voz . Era a da sua · mãe !
Não pod ia haver engano a ta l respeito. Che
gara a reconhecer-l he o andar quando o seu
vulto de mul her, mu ito d i reito , passou a dois
passos dele .
Mas não, que d isparate , que maluquei ra , só
se fosse uma p iada monstruosa !
Jacques vivia soz i nho com a mãe que não
t inha re l ações , quase, e apenas saía de casa
para ir à i greja . Habituara-se a venerá- la com
toda a sua a lma, como exemplo ún ico de rec
tidão e bondade.
7 0
Tão l onge quanto pod ia ver no passado dela ,
nem u m só acto ob l íquo ou turvo, nenhuma
ruga, nenhum esconderijo . U ma bela estrada
branca a perder de vista , debaixo de um céu
claro. Porque a existência da pobre mul her
fora exemplar e melancó l i ca .
Depois do marido, pessoa de quem o rapaz
mal se l embrava, ter morrido em Champigny,
nunca deixara o l uto e ocupara-se exclus iva
mente da educação do fi lho , que nem um só
dia abandonava . Com receio de contactos ,
nunca se d ispusera a mandá-lo à escola e en
carregara-se de i nstru í- lo , constru i ndo- lhe a
a lma com pedaços da sua . De um reg ime des
tes t inha Jacques herdado uma sensi b i l i dade
Inquieta e nervos de uma vibração rara que o
expunham a dores ridícu las - ou mesmo a
verdadei ros perigos .
Entrado na adol escência , as previsíve is ram
bó ias que e la não pôde evitar fizeram-na u m
pouco m a i s triste mas não lhe modificaram a
ternura. Não houve recri m inações nem cenas
feitas em s i l êncio . Como tantas outras , aque la
mãe aceitava o inevitável .
Toda a gente , enfim , se lhe referia com res
peito. Só aquelefi l ho tão querido se esforçava
agora por desprezá-la - desprezá-la ajoel hado
e de o l hos mol hados como anjos que despre
zassem Deus por e le não cumpr i r as promes-
sas ! . . .
·
Na verdade era de pôr qualquer pessoa
doida , fazê-la dar berros pela rua . A sua mãe
envenenadora ! Que insensata coisa, um m i l hão
de vezes absurda , i mpossível de todo e ass i m
mesmo certa ! Pois se e la própria o d issera !
Até arrancava a cabeça se não t inha s ido e la . . .
Mas envenenar . . . quem ? Santo Deus ! Não
sabia de homem, al i perto , que tivesse morrido
envenenado . E o seu pai não, que esse apa
nhara uma dose de metra l ha na barriga. E le . . .
7 1
Nunca a sua mãe tentar ia matá- lo . Além )o
mais , nunca estivera de cama nem precisava
de tisanas . Como se não soubesse a adoração
que a mãe lhe ti nha . Vi ra-a doente de preo
cupação logo da prime i ra vez que lhe chegara
tarde a casa, por qualquer coisa que ta lvez
não tenha s ido muito l i mpa.
E se fosse um caso anterior ao seu nasci
mento ? Não. O pai apaixonara-se pela bel eza
dela , e casara quando a sua mãe t inha apenas
vi nte anos . Haver ia uma aventura dEi antes do
casamento que pudesse justificar · o cr ime?
Não. Conhecia a l i mpidez daque l e passado cem
vezes referido. E a testemunhá-lo · havia ·gente
da maior confiança. Que motivo ; afina l , para
uma tão horríve l confissão? E por que havia
logo de calhar . . . s im , por que havia l ogo de
ca lhar . . . ser ele a ouvi- l a ?
Quando regressou a casa , Jacques parec ia
embriagado de pavor e desespero .
A mãe veio dar- lhe u m beijo .
- Tão tarde , meu fi l ho ! E como estás pá-
l ido? Sentes-te mal ?
·
- Não - respondeu e le - não estou doen�
te , apenas cansado do ca lor . Nem me àpetece
comer. E a mamã? Não estará por acaso i n
d isposta ? Não sa iu para apanhar um pouco de
fresco? Parece-me que a vi ao longe, no ca is .
- De facto saí , mas não pod ias ver-me no
cais . Fui confessar-me, a l iás uma coisa que
não fazes há mu ito tempo , criatura má!
Jacques espantou-se por não sufocar, não
ter caído redondo, de costas, como suced ia
nos bons romances que já lera .
Afi na l sempre t inha havido uma confissão !
Era uma abominável catástrofe , de facto , e
não apenas o pesadelo que e le chegara a su-
por responsável por tudo aqu i lo , num mo
mento louco .
Não cai u mas empa l ideceu mais , ao ponto
de assustar a mãe.
- Meu querido, o que é que tens ? - per
nuntou e la . - Vejo que a lguma coisa te faz
sofrer, uma . coisa que escondes à tua mãe.
Devias confiar numa pessoa qiJe à sua frente
não vê mais n inguém . . . M as que o lhar o teu ,
tesouro querido ! . . . O que tens , que até metes
medo? . . .
E tomava-o nos braços, apaixonadamente .
- Meu fi l ho , dá-me atenção . . . Não sou ne
nhuma cur iosa, como sabes , e não quero ar
mar em teu ju iz . Se achas que me não deves
dizer nada , não d igas, mas ao menos de ixa
que eu trate de tL Deita-te enquanto preparo
uma refe ição l i ge i ra para comeres na cama.
Se durante a noite senti res febre , o mel hor
é tomares uma tisana . . .
Desta vez Jacques caiu , rea l mente .
- Até que enfi m ! - suspi rou e la , estenden
do a mão mole para a campainha .
É que o fi lho t inha um aneurisma em ú l ti mo
wau e a mãe um amante sem nenhuma von
tade de ser padrasto . Bana l íss imo drama con
sumado há três anos nas viz inhanças de Sai nt
·Germai n-des-Prês e cujo palco foi uma casa
onde vive , por s i na l , um empreite i ro de demo
l i ções . . . (2)
( 2 ) A géne'se deste conto poderá ser bastante curiosa
se atentarmos em que o «empreiteiro de demol içõeS»
é , nos textos de B loy, uma referência a si próprio (a l iás
uma das suas obras chama-se Propos d'un Entrepreneur
de Démofitions) e que o seu amigo e pintor Henry de
Groux afirmou, mais tarde, ter tido a convicção de que
Léon •B i oy pretendeu , em dada a ltura, envenenar· a sua
f i lha E litabeth . (N. do T. )
7 3
DOIS FANTASMAS
Poucas coisas têm s ido tão afl itivas como
a ruptura daquela amizade.
Há trinta i nvernos que M l l e . Cléopâtre du
Tesson des M i rabel les de Sai nt-Poth i n-sur- le
-G iand e miss Pénélope E lfrida Magpie se ado
ravam mu ito, ao ponto de chegarem a parecer
-se uma com a outra . n
A pri meira pertencia à raça cavalar destes
i nvendáveis camafeus das letras , sem perdão,
que nenhum holocausto consegue aplacar. Es
crevera uma vi ntena de vo lumes de socio log ia
ou h istória e , deba ixo de la , igual número de
ed itores t inham pateado. Nos ca is do Sena não
havia caixas de alfarrabista bastantes para
reco l her os seus tomos que jornais moribun
dos davam aos assinantes , de bónus, e cujas
capas , encadernadas sem gosto , se faziam
aptas à recompensa de jovens a lunos apl ica
dos, nas d istr ibuições de prémios.
F i l ha de um coriáceo tradutor de Homero,
cuja morte só ela deplorava, e de uma pavo
rosa senhora defumada pelos solstícios, com
( 1) M I J e Cléopâtre foi inspirada ao autor pela roman
cista Gyp e M iss oMagpie por Louise Read, secretária
de Barbey d 'Au revi l ly. (N. do T. )
7 5
fama de ter s ido esp ia , esta Corinne dos sar
cófagos nunca chegou a consolar-se de não
ter casado outrora com u m homem célebre
que , j u lgava e la , a ido latrara .
Em tempos i dos bonita , ao que d iz iam vá
r ios pa leógrafos, res ignara-se a p lantar nas
suas próprias ruínas , tremulamente , a árvore
da ' l i berdade fi l osófica.
Sempre vestida de negro até à ponta das
unhas, de cabelos armados à n inho de cego
nha , as raras fat ias de s i própria que uma de
cência toda britân ica l he permit ia ex ib i r eram
pegajosas pe l o sarro espesso que as revestia
e cujos prime i ros a l uv iões remontavam , por
certo , à Revolução de J u l ho .
De rosto lembrava u m a batata fr ita passada
por queijo ra lado e as suas mãos , para usar
as pa l avras de um provérbio escandinavo , t i
nham « desenterrado a b isavó » .
Toda a s u a pessoa, enfi m , chei rava a pata
mar de sexto piso de um hote l de v igés i ma
c lasse, o que não i mped ia de ser mu ito admi
rada por u m grupo de i ng lesas jovens e de
i ndependência assegurada por criações de
gado ou pe l o tráfi co i nternacional dos precio
sos negros que só na ve l h ice branqueiam.
Chegadas dos loca is ma is d iversos do Re ino
U n ido , estas jovens apareciam em casa de
M l l e . Tesson para aprender l iteratura e os
modos d isti ntíssi mos do grande sécu lo , dos
quais seria a ú lt ima e mais i l ustre professora ,
Contasse embora M l l e . Tesson que as suas
d iscípu las graciosas fossem mais amigas do
que a l unas. Ta lvez por experiência própria ,
j u l gàva o coração das raparigas um abismo d e
i nfâm ias e d e cr imes, encorajava-as a ter con
fi ança ne la , atenazava-as com questões bizar
ras , ped idos sugestivos e corruptores , fazen
do-se construtora das suas a l mas.
7 6
Em troca destas confissões que a desseden
tavam oferecia- l hes protecção . E, como tinha
fama de mu lher mu ito superior , a maior ia dos
frangos daquele ga l i nheiro de ixava devassar
por completo a sua própria h istór ia e as h is
tórias, mais 'ou · menos puxavantes , dos pais
e das pessoas da sua roda .
D izendo-se embora cató l ica , quanto a rel i
g ião M l le . Tesson não aprovava a missa e fa
l ava com entusiasmo vivo das belezas protes-
tantes.
·
M iss Pénélope, essa vivia em exclus ivo para
garanti r a fel .i c idade a l heia, Escocesa bem in
formada da existência de Deu s , adorava com
fervor igúal todos os habitantes do p laneta .
A cada passo poderíamosencontrá-l a na
rua, l evando consolo a este e àque le . Não po
d ia ouvi r fa lar de catástrofe , doença ou afl ição
sem sai r porta fora a espa lhar por afl i tos ou
arru inados o d itàme dos seus conselhos, o
e le ituário da sua compaixão .
Ter ia gostado de estar ao mesmo tempo em
todo o l ado e , à força de ser d i l igente, che
gava muitas vezes a dar-nos uma i l usão de
ub iquidade .
A mesma hora a encontrávamos na cabe
ceira de um agon izante , na recepção de um
imorta l , mima escada de editor ou jorna l i sta ,
no salão de um judeu qualquer , na abertura de
um testamento , ou atrás de um · morto .
Esguei rava-se , penetrava na vida de uma
mu ltidão que acaba por fazê-l a i nd ispensável
a todo um m i.sterioso equ i l íbr io . . \
Chegou a haver quem a ju lgasse anjo , a ver-
dade se d iga que anjo de classe não cata lo
gada por S . D in is , o Aeropag ita , aquarte lado
a d i stânc ia i nf in ita do céu onde eram desco-
7 7
n hecidos os r ibe i ros , as nascentes · e o sabão
·de-marse lha .
S im , porque era um anjo pouco l i mpo, que
pena, e chego mesmo a pensar que está aqui
a origem pouco d ivu lgada da atracção que or
bitou este planeta doido à C léopâtre fixa e
cons iderada astro sábio .
Seria d ifíc i l d izer quem levava a pa lma na
i mundíc ie . Tratava-se de uma emulação de suj i
dade, verdade i ro assalto de côdea , antago
n ismo de nódoas e sedi mentos i mpuros , com
petição de pu lveru lências , confl ito de rasgões
e farrapadas , torneio de exa lações raposeiras,
bafios , re lentos e empireumas.
Não obstante , as duas criaturas amavam-se,
isentas de toda a cegueira , e constantemente
se ju lgavam com i ndependência extrema.
- Real mente, que grande porcal hona me
sa iu aquela Pénépole - clarinava a du Tes
son. - Só u ma draga poderia l impá-la .
- Não posso conceber que a nossa querida
C léopâtre se desmazel e a tal ponto - .f lautava
por sua vez m iss Magpie . - Até parece que
jurou meter nojo . Era bem fe ito que o Sanea
mento lhe mandasse um g rupo de l i mpeza .
Apesar d isto , as duas passavam infin ita
mente bem e a amizade corria- l hes às m i l ma
ravi l has .
U ma coisa g rave a s divid ia , porém. C léopâ
tre achava que elas deviam casar-se , não i nte
ressava em que a ltar.
- Se não vivermos uma « dupla vida • - di
z ia - não vivemos de facto . F is icamente, a
mu lher sem marido só respira pela parte de
cima . . .
Com paciência e a ltivez de vistas d ifíceis
de igualar , C l éopâtre desenvolvia às suas i n
su lares este axioma notável .
7 8
Pelo contrár io, Pénélope afi rmava que o ca
same1P era um estado de ignomínia e a pre
tensa necessidade de dormir com um homem
uma abomi nação impossfve l de suportar.
As .duas vi rgens desencrostáveis d iscutiam
muitas vezes este assunto e a vitór ia pertencia
sempre à devorante Cléopâtre, que se d ivert ia
ao esfare lar as objecções da sua adversária .
S ó n u m ponto l h e ced ia , o d a evidente i nfe
r ioridade dos homens, e tanto prazer isto dava
a miss Magpie que a d iscussão chegava ao
termo .
Ass i m como ass i m , estava assente que a
un ião dos sexos não passava de uma le i fis io
lóg ica e o horror muito l egítimo das mu lheres
d isti ntas por este acasalamento feio , só na
aparência poderia ser u ltrapassado .
- Mas há fa lta de mul heres na l i teratura
- conclu ía a doutora , com energi a - e o casa-
mento é a ún ica forma de lá chegarmos . Acon
teça o que tiver de acontecer! Se aparecerem
homens ao nosso lado, paci ênc i a !
Certo d ia , n a s costas da amiga, C léopâtre
fundou uma agênc ia matri monia l . Era uma
agênc ia pequen ina , mu ito d iscreta , que só
agitava o archote das ofertas e procuras em
jorna is de uma correcção a toda a prova .
U m prospecto anón imo em papel rosado i n
formava ()S amadores que o Anjo da Guarda
do Lar só faz i a « Casamentos de amor• e re
cusava meter-se em mani gâncias de d inhe i ro ,
não ofereci a vi rg i ndades duvidosas, não pu
nha esparre l as e g i rândolas de m i l hões a c in
t i lar aos o l hos dos aventurei ros .
Não. O aposto lado exc lusivo d 'O Anjo da
Guarda era aproxi mar • corações de pr imei ra
qual idade • qu� não chegariam de outro modo
a conhecer-se, faci l itar encontros e colóquios
de i nocênci a garantida . Tocava à chamada das
canduras ignoradas , dos l írios na sombra , das
7 9
al mas puras e machucadas que o mundo não
sabe compreender. Em defin i tivo , só se pres
tava a a l ianças de completa e absoluta i rra
preensão .
Esta nobre empresa teve a lgum sucesso,
Trémulas de esperanças , ve l has purezas jorra
ram dos seus antros e correram a esvaziar
econom ias nas mãos de Cléopâtre .
U ma professora genovesa , mu ito austera , e
u m velhote condecorado , afável ao máximo,
recebiam as vis itas e red ig iam a correspon
dênc ia .
· A fundadora só i nterv inha nos casos d ifíceis
em que era p recisa eloquência e dava , nessas
ocasiões, pe lo nome de Mme. Aristide .
Um belo d ia , corria a estação • em que todas
as coisas se amam e reproduzem » , Pénélope
s i m , Pénélope - apresentou-se na agência a
rec lamar o esposo idea l ! . . .
Tenho pena de lá não ter estado , mas parece
que as suas exigências eram excess ivas e
Mme. Aristide fo i chamada a i ntervir .
Que encontro e que cena ! Cl éopâtre , enrai
vada por ver o seu anonimato a descoberto,
e Pené lope furiosa por ser apanhada em fla
grante del ito de concupiscência , puseram as
a l mas ao léu . E eram verdadei ras a lmas de
megeta, mi l vezes mais fedorentas e od iosas
do que as carcaças onde viviam, e cada qual
despejou ·a sua na cabeça da outra , como se
fossem bac ios !
80
A RELIGI.AO DO SR. PLEUR
E m geral, oa lndivfduoa que nesta
mundo ma fizeram nojo aram pessoas
florescentes a famosas. .Quanto aos
patifes que au conheci, a niO foram
poucos, panSOi nelas todos com prazer
a benevolência, sem excepção.
THO MAS OE •QU I N·CEY
O aspecto do vel hote seria capaz de fecun
dar toda a b icharada . De ta l forma se l he es
tampava nas mãos e na face a estrumeira da
a lma, que não era possíve l imaginar contacto
mais repugnante . Quando passava nas ruas ,
as mais lodosas va l etas tremiam à ideia de
reflecti r a sua i magem e pareciam decid idas
a regressar à fonte .
A sua fortuna, colossal ao ponto de afi rmar
-se que os mel hores juízes aval i avam-na a cho
rar de êxtase, devia estar escondida em fu rio
sos loca is , pois n inguém ousava uma conjec
tura séria sobre os i nvestimentos f inance i ros
de um tal pesadelo.
A sua mão de cadáver , d iz ia-se , várias vezes
fora entrevista em certas man i gâncias de d i
nhei ro que t inham redundado em derrocadas
sub l i mes , e a lguns criadores de rãs supunham
encontrar nelas a sua ass inatura .
Apesar d isto não era judeu . E quando lhe
chamavam «Velho crápu l a • dava uma resposta
suave , Deus te retribua! , que na espinha dos
ma is vel hacos punha a correr um arrepio l eve.
A ú n i ca coisa que parecia . certa era este
maltrapi l ho ter uma casa de renda a lta , num
ou noutro dos melhores bai rros perifér icos .
8 1
Mas não eram conhecidos pormenores. Quem
sabe até se t inha várias .
Pretendeu a l enda que e le dormia num antro
obscuro , debaixo de uma escada de serviço,
entre a cana l ização das l atri nas e o a loja
mento do porte i ro id iotizado por uma tal vizi
nhança .
D isseram-me que passava os reci bos de a l u
guer em pedaços de cartaz rasgado, por eco
nomia , e os inqu i l i nos mais esperta lhaços iam
vendê-los a coleccionadores astuciosos .
Tambémse contava a h i stór ia , que ficou
famosa , de uma sopa fantástica s istematica
mente feita domi ngo à noite , e obrigada a a l i
mentá- lo pela semana i nte i ra ; e que seis d ias
a fio era uti l izada , fria , para e le não gastar
carvão.
Como é natura l , à terça-fe i ra esta substân
c ia a l i mentar tornava-se fétida. E então , com
modos reverentes de cura que abre o taber
nácu lo , de um pequeno armário chumbado . à
parede, que devia conter papé i s estranhos,
ti rava uma garrafa de vel h íssi mo rum por certo
reco l h ido em q11alquer naufrág i o .
Num copo m inúsculo deitava a lgumas gotas
raras e fortificava-se, na esperança de as sa
borear depois de engo l ida a cataplasma. Ter
m inada, porém, a operação :
- Agora que já comeste a sopa - diz ia
não vais ter o teu copinho de rum !
E vertia n a garrafa o precioso l íqu ido, o mais
des leal mente possível . Al iás , f ineza recomen
dável que em trinta ou quarenta anos sempre
foi coroada de êxito .
Nenhum espectro a lgum d ia me pareceu tão
destituído de esti lo e carácter. Nos andrajos ,
e com certeza na lgumas práticas, bem l he va l i a
lembrar um j udas dos mais desprezíve is , de
8 2
Budapeste ou Amesterdão ! A mente i mag i na
t iva de um Prometeu não chegaria para desen
cantar, nele , o menor l i neamento arcai co .
Decretada por i mprecadores suba lternos , a
a lcunha de Shylock ( 1 ) revoltava como qual
quer b lasfémia porque este avarento só ex
pr imia chateza ! Só nas crostas e no fedor de
an imal morto era terrível . Mas, até n isso, de
um desencorajante modern ismo. Não, a i mun
dície não lhe garantia as boas-vindas em ne
nhum abismo.
De aspecto , pelo menos , só consegu ia pare
cer o BURGUÊS, o M edíocre, o · Matador de
Cisnes • no dize·r de V i l l i ers [2) , consumado e
defi n it ivamente termi nado , como deve surg i r
n o f inal dos f ina is , quando o s Tremores saírem
do cov i l e as a l mas sujas se manifestarem à
luz do d ia !
Se o S r . P leur pod ia estar i nocente da pros
titu ição das palavras , teríamos ao menos de
compará- lo a qualquer profeta horrível · que
anunciasse os vómitos de Deus .
Às pessoas confortáveis , enojadas com a sua
presença, parecia d izer:
- Não compreendeis que vos traduzo para
etern idade, i rmãos , e a m inha carcaça i mpura
vos reflecte prod ig iosamente? Quando a ver
dade for conhecida, descobri reis · de uma v:ez
por todas que afinal eu era a vossa verdadei ra
pátria , e quando eu desaparecer vereis até
que ponto a pers istência dos vossos espíritos
va i lamentar-me. Senti reis nosta lg ia da minha
v iz inhança imunda� que vos dava a sensação
· ( 1 ) Como é sabido, o judeu do Mercador de Veneza,
de Shakespeare. ( N . do T. )
( ' ) Trata-se da, ·personagem Tribu lar ·Bohnomet, que
V i l l iers de l ' ls le-Adam espa lhou por várias ficções suas
e é uma acentuadfssima caricatura do espfrito bur
guês. ( N . do T.)
83
de estar vivos quando afinal estáveis abaixo
dos mortos. ó safardanas h i pócritas , que em
mim detestais o denunciante s i lencioso das
vossas infâmias ! O horror mater ia l que vos
i nspiro dá a medida exacta às abomi nações do
vosso pensamento . Porque afi nal , se estou bi
choso, a que hei-de atr ibuí- lo senão a vós mes
mos, que me fervi l ha is no fundo do coração?
O o l har deste sujeito era particu larmente
i nsuportável às mu l heres elegantes que e le
pareci a execrar fixando-as , por vezes , com um
c larão mais branco do que o fósforo dos ossuá
r ios , o l hade la fúnebre e viscosa que ficava
colada à carne delas como a sal iva dos bru
cólacos , e e las levavam cons igo , a brami r de
horror.
- ó m inha querida, vamos ter um encon
tro , não vamos ? - j u lgavam ouvi r . - Vou
levar-te de vis ita à m i nha l i nda fossa e então
verás que bon ito manto de lesmas e escarave
l hos te darei para rea lçar a brancura da tua
d iv ina pe le . A paixão que por ti s i nto tem tena
zes de caranguejo, e podes estar certa de que
os meus be ijos valem mais do que todos os
d ivórcios. S i m , porque u m dia também tu hás
-de chei rar mal , ó ratinha cor-de-rosa, hás-de
che i rar vo luptuosamente mal ao meu l ado,
quando não passarmos os dois de um grande
p ivete à luz das estrelas . . .
Uma vez mais , e apesar do seu ol har atroz,
ter ia sido d ifíc i l referenciar no Sr. P leur um
traço que possamos d izer característico.
Só a voz , ta lvez - voz de suavidade mal
dosa que dava a ideia de um sacristão i mpu
d ico a coch ichar ignomínias.
Por exemplo, a forma como pronunciava a
palavra « prata • abo l i a a noção deste metal , e
mesmo a do seu vá lor representativo .
B4
Ouvíamos qualquer co.isa como pata ou
pate, conforme os casos. Chegávamos a não
ouvi r nada de nada . A pa lavra evaporava-se .
Era a modos que um pudor súbito, u m a cor
t ina a ca i r de repente por c ima de um santuá
r io , um i nopinado temor de parecer obsceno
por deixar o ído lo de peito ao léu .
Se a coisa vos d iverte, i maginai u m escu l
tor fanático, um Pigrnaleão sangui nário e ado
c icado a procurar convosco um ponto de vista
para a sua Galateia e a fazer-nos recuar ma
nhosamente até um a lçapão, aberto para vos
engol i r .
Tão forte era a sua pa ixão pe lo D inhe i ro ,
que mu ita gente se enganava . A este impeni
tente devoto do mealhe iro, e do cofre-forte ,
atr ibu íram-se visões horríveis - desconfian
ças inu ito i njustas mas acred itadas por vários
sábios exegetas da vida privada a lheia que o
t inham surpreendido com mulheres e crianças
em misteriosos co lóqu ios de passeio.
Às vezes , o cu l to expr imia-se- lhe por c i r
cun locuções arrebatadas de uma tal ordem
que a babosa erecção do seu fervor atenuava
de estranha forma aquela f isionomia de covei ro
ca lc inado, e o seu seio exalava suspi ros deso
nestos , ao ponto d e · podermos descu lpar os
vasos de menor e le ição onde deixava cai r a
sua pa lavra rara , se acaso eles não sentissem
passar, entre ambos , a h ipocondríaca majes
tade da Idolatria.
Ao que espero , vão d ispensar-me de revelar
que razões de ordem excepcional determi nam
um comérc io de amizade entre mim e esta
personagem s impática .
. Nessa altura eu era jovem, mesmo muito
jovem, e de acesso fáci l ao entusiasmo. E des-
85
nudando-se à m inha frente, o Sr. P leur d iver
t iu-se a de ixar-me bem entus i asmado.
Ju lgo-me o ún ico a ter- lhe ouvido confidên
c ias . Acrescento que esta recordação me aju
dou i menso a suportar um destino mais do
que sovina e , apesar da personagem ter mor
rido há mu ito tempo, a m inha consc iência hoje
press iona-me a testemunhar a favor de uma
pessoa tão mal conhec ida .
Vários homens da m i nha geração podem
l embrar-se do fi m trág i co que ele teve e muito
ru ído fez nos ú lti mos anos do Império.
O assass inato , cujos pormenores souberam
as gazetas levar-me até às reg iões do Cabo
Norte , por certo foi da espécie mais bana l ; e
os bi ltres que o perpetraram , confessemo- lo ,
muito pouco d ignos da cel ebridade que os ba
fejou .
O ve lhote foi s impl esmente estrangu l ado no
seu covi l n idoroso, por band idos até então pri
vados de celebridade que afi rmaram não ter
outro móbi l a lém do roubo. Algumas c i rcuns
tâncias que apenas d iz iam respeito ao passado
da víti ma, e continuavam inexpl icáveis , em
vão excitaram, e por vários meses , a sagaci
dade dos seus contemporâneos .
Por f i m , j u lgou-se adivinhar ou compreender
que o Sr. P leur não fora o que parecia ter sido.
Numa pa l avra , os assassi nos de má sorte,
que a l i ás se deixaram apanhar com fac i l idade
extrema na tocado avarento , não tinham con
seguido descobr i r nenhum tesouro ; e o Estado,
apesar de e le ter morrido sem testamento e
sem herdei ros natura is , não pôde deitar a fa
te ixa a nenhuma propriedade mobi l i ár ia ou
i mobi l i ár ia .
Ficou então estabe l ec ido que o defunto não
possuía absolutamente nada . . . a lém do subsí
d io vita l íc io e de uma g igantesca fortuna i na-
86
tacavelmente a l i enada nas mãos de certo
Bispo.
Impossíve l saber no que se t inham trans
formado as cons ideráveis somas que deviam
ter- lhe passado nas mãos durante tantos anos
em que ele próprio passou recibos a verdadei
ros esquadrões de inqu i l i nos .
Nenhum títu lo , nenhum va lor, nada de nada
excepto a famosa garrafa de rum esvaziada
pelos estranguladores .
Como isto mal chega a ser um conto , assis
te-me o d i reito de não prometer nenhum final
mais d ramático do que rea l mente tem . Apenas
quis prestar o testemunho muito provavel
mente ú n ico, vo lto a repeti- lo , que a enfure
cida sombra do morto pode esperar .
Seja-me , pois , consentido resumi r e m pou
cas Unhas as muito curiosas palavras que di
versas vezes me d isse · este so l itário, de seu
hábito tão s i lencioso.
Não creio que alguma vez eu volte a senti r
tão negro arrepio como o daquele d ia longín
quo, sentado ao seu lado num banco do Jard im
das Plantas, quando me obrigou a ouvir i sto :
- A m inha avarez� mete medo? Pois bem,
meu rapaz ! Conheci um pródigo, de espécie
menos rara do que podemos pensar, cuja h is
tória ta lvez l he dê vontade de dar um beijo
respeitoso nos meus farrapos , se acaso for
bastante dotado para compreendê-la ;
• Esse pród igo era - natu ralmente - um
maníaco. � fác i l d izê-lo e o facto d ispensa
qualquer anál ise mais profunda. Se quiser, po
derei mesmo afirrnar que era um monoma
níaco . . .
· E a sua ideia fixa atirar PAO às latrinas!
« Arru inava-se nas padarias, com isto . N unca
o encontrávamos sem um pão deba ixo do
8 7
braço, to<;lo saltitante, na i m i nência de preci
p itá-lo nos cagatórios da popu laça.
« Só vivia para dar cumprimento a este acto ,
e forçoso é acred itar que extraía dele prazeres
furiosos ; a sua a legr ia chegava a ser del írio
quando tinha ocas ião de oferecer o espectá�
cu lo a pobres-d iabos que morriam de fome.
« D ispunha de tri nta mi l francos de ·renda,
o tipo , e queixava-se de que o pão estava
caro !
" Medite nesta h istór ia verdadeira , que até.
parece um apólogo ! ,. .
Rea l mente , não tive oportun idade de beijar
os andrajos do Sr. P leur , mas a sua narrativa
foi de molde a eu ju lgar que por baixo de m i m
galopava toda a Cavalar ia dos abismos.
E da ú lt ima vez que encpntrei este Platão
da sovin ice :
- Sabe que o D inhe i ro é Deus - d isse
e le - e por isso procuram-no os homens com
tanto a rdor? Não , com certeza não sabe, por
que é demasiado novo para ter pensado n isso.
Tomar-me-ia por uma espécie de doido sacrí
l ego se eu lhe d issesse que E le é i nf in i ta�
mente bom, i nf in itamente perfe ito , e Senhor
soberano de todas as coisas ? Que neste mundo
nada se faz sem a Sua ordem ou a Sua per
missão ? Que, em consequência, fomos criados
com o objectivo ún ico de conhecê- 1 '0 e ser
vi- 1 '0 , ganhando ·ass i m a Vida Eterna?
• Vomitar-me- ia em c ima , com certeza , se
eu l he fa lasse do mistér io da Sua Encarnação.
Mas não faz mal! Fique a saber que não passo
um dia sem ped i r a vinda do Seu Re ino e que
o Seu nome seja santificado .
• Ao D i nhe i ro , meu redentor, peço também
que me l ivre de todo o rnal , de todo o pecado,
das armad i l has do d iabo, do espírito da forn i-
88
cação , e imploro-o pelos Seus l angores como
pelas Suas Alegrias e Sua G lória:
« Meu rapaz ! U m d ia há-de compreender
como este Deus se avi l ta por nossa causa.
Lembre-se do outro maníaco ! Veja a que em
prego a mal íc ia dos homens O condenai
" . . . Pe lo que me d iz respeito, há tri nta anos
não me atrevo a tocar-Lhe ! . . . S im , rapaz , há
trinta anos não me atrevo a pôr as patas sujas
numa moeda de c inquenta cêntimos ! Quando
os meus i nqu i l i nos me pagam, recebo-lhes o
D inhe iro numa caixa prec iosa , fe ita de · ma
de i ra de o l ivei ra que tocou o Túmu lo de Cristo .
Nem u m só d ia f ico com Ele .
«Se quer sabê-lo , sou um penitente do Di·
nheiro.
« Com inexprim íveis consol ações , por E le
suporto o facto de os homens me despreza
rem , de até os an i mais se assustarem comigo
e todos os d ias da minha vida eu ser crucifi·
cado pe la mais pavorosa das misérias . . . ,.
Aprofundei a existência misteriosa deste
homem para vis l umbrar que o seu d iscurso
era todo s i mbó l ico. Confesso, porém, que as
Pa lavras Santas tão rudemente adaptadas me
assustaram um pouco.
Vi-o l evantar-se de repente , com os braços
esticados para o céu, a inda estou a recordá- lo
parecido com uma forca geminada de onde
pendessem os andrajos podres de um antigo
supl ic iado.
- As pessoas fartam-se de d izer que sou
um ayarento terrível - gritou e le . - Pois bem !
Um d ia conte-l hes que descob'ri o seguríss i mo
esconderijo de que nenhum avarento se t inha
lembrado antes de m im:
«Enfio o meu Dinheiro no Seio dos Pobres! . . .
« Pub l ique isto, meu rapaz, no d i a em q'ue o
Desprezo e a Dor tiverem fe ito de s i um ho·
8 9
mem suficientemente grande para ambicionar
a honra suprema de ser incompreendido.
� que o Sr . P leur a l i mentava cerca de duzen
tas famíl ias , entre as quais não pude encon
trar um pessoa que o não considerasse cana
l ha - tão re l es ele era !
Mas hoje, ó justos céus ! , que será feito da
mu ltidão pá l ida destes indigentes agora assis
t idos pelo ta l b ispo, del egado episcopal do
nosso Penitente?
90
A OLTIMA COZEDURA
O senhor Fiacre Prétextat Laba l bar ie aban
donara os negócios aos sessenta anos amea
l hando r iquezas cons ideráveis na indústria de
aplainador de caixões .
Nunca decepc ionara a c l iente la . Num grito
unân ime , a ar istocracia genebresa que o so
brecarregara tanto tempo com encomendas
chegou a ce lebrar- lhe a exactidão e a lea ldade.
Com a chance la da desconfiada Ing laterra ,
a sua mão-de-obra obtivera sufrág ios da Bél
g ica , do I l l ino is e do M ich igan.
Mal as gemebundas fol has i nternacionais
anunciaram que este famoso artista deixava
as pompas do balcão para reservar a sua res
peitáve l cabe le i ra branca a estudos preciosos,
fo i u m momento de g rande amargura nos dois
mundos .
Fiacre era rea l mente um ve lhote fel iz , e a
sua vocação fi losófica e human itár ia só viera
a dec larar-se quando a fortuna, sem dúvida
mu ito ma is cega e cín ica do que pode i magi
ná- lo a presunçosa multidão, o cumu lou de
favores .
Ao contrári o de tantos outros , não desprezou
o negócio i nfi n itamente honroso e l ucrativo
9 1
que soubera eJevá�lo do quase nada ao p i ná�
cu lo de uma dezena de m i lhões .
Num entusiasmo i ngénuo de ve l ho soldado,
contava as guerras i ntermi náveis que fizera à
concorrência e d ivertia-se a re lembrar o ti ro
teio heróico, por vezes, dos i nventários .
A exemplo de Carlos V, abdicara do i mpé
rio da factura para abraçar mu ito s imples
mente uma vida superior.
Em suma, com meios de vida e demasiado
velho para ter a vele idade de conservar muito
tempo o go lpe de vista do homem de negócios,
esse qualquer co isa de espontâneo que des
concerta a praça e arruína as manigâncias dos
competidores , tivera o senso de aprese·ntar
uma vantajosa demissão do poderio comercia l
antes que a estre la da sua patente começassea fraquejar . ·
De então para d iante dedicou-se exc lus iva
mente às de l íc ias do género humano.
Com uma luc idez comovedora ava l iou o nada
das decisões que até à hora tinham sido toma
das por cabeças ocas, i nd iferentes ao abran
damento da m isér ia . Por outro lado, com a ·cer
teza i naba lável de que os pobres eram úte is ,
achou que havia melhor sítio para empregar
os recu rsos f inance i ros ou i nte lectua is de que
d ispunha .
Por isso d i r ig i u os c larões derradei ros do
seu génio à consolação dos m i l ionários.
- Quem pensa na dor dos r icos ? - diz ia .
- Ju lgo que só eu e o d iv ino Bourget por
qUem a m i nha c l iente la anda louca . Os ricos
vão cumpri ndo a missão que l hes cabe , que é
d iverti rem-se e fazerem andar o comérc io .
I magi namo-los fe l izes com excessiva faci l i
dade, esquecendo que todos são dotados de
um coração, e há quem tenha o desplante de
92
confrontá-los com as grossei ras tri bu lações
dos ind igentes cujo dever, acima de tudo, é
sofrer. Como se os andrajos e a falta de co
mida pudessem comparar-se com a angústia
da morte ! Porque a le i é esta : ás pessoas
morrem a sério se possuírem. Para dar a a lma
ao criador há que ter capita is , e as pessoas
não querem compreendê-lo. A morte não passa
de uma separação do Dinhe iro . Quem não tem
Dinheiro não tem vida e não sabe, portanto ,
morrer. ,
Cheio de pensamentos destes - mais pro
fundos do que e le ju lgava - o aplai nador de
ca ixões trabal hava de a lma i ntei ra na abo l i ção
da angústia morta l .
Teve a honra d e s e r um dos primeiros a
fomentar a . concepção generosa do Cremató
r io. Segundo este pensador, o trad icional
horror à morte é sobretudo ocas ionado pela
pavorosa i magem da decompos ição. Nos comí
cios dos i nc ineradores , que o t inham e leito
pres idente , pormenorizava as fases dessa de
composição desenrolando com a eloquência
do medo toda a química subterrânea . Por exem
plo , a i.de ia de transformar-se em flor revol
tava ao máximo a sua i maginação de guarda
- l ivros .
- Não quero ser carcaça ! - mugia . - Vou
exig i r que me queimem logo a segu ir à morte ,
me ca lc inem, reduzam a c inzas . porque o fogo
purif ica tudo , etc .
Fo i p lenamente atendido, como a segu i r ve
remos .
O excelente homem tinha um fi l ho, como é
dever nosso desejar a quantos sabem o preço
do d inhe iro .
Peço l i cença para perder o pé durante a lguns
instantes e voar em pleno dit irambo.
9 3
Atrevo-me a d izer que D ieudonné Labal barie
a i nda era mais admi ráve l do que o pai . Con
cebido numa hora de insigne triunfo sobre
concorrentes temerários , em pl eno i deal rea l i
zava vi rtudes só l i das que as casas de créd ito
mais sérias podem descontar .
Aos qu i nze anos já ap l icara todas as suas
economias e exib ia uma f igura tão delgada
como um l ivro . Consultado, porém, esse l i vro
de contas, e le nada nos reve lava de frívolo .
O cúmu l o da i njustiça ter ia s ido censu rar
- lhe um minuto de entus iasmo ou um ataque
de ternura i nsensata , reprimido fosse, a pro
pós ito de qualquer coisa, sobre qualquer
assunto .
Quando fa lava , o fe l iz p a i era obrigado a
apo iar-se na caixa ou no balcão , mu ito ébrio
d e ter procriado u m fi l ho ass i m .
Uma ta l bênção de fi l ho a inda vive e pros
pera . Em três anos de órfão chegou mesmo
a dup l i car o seu patr imón io e soube fazer-se
adorar por uma r iquíss i ma pastora de tarta
rugas que a inda há pouco casou com e le .
M u ita gente i ri a reconhecê- lo, tenho a certeza,
se acaso eu não temesse ofender- lhe os l ír ios
da modéstia tentando esboçar, aqu i , a - sua
i magem amável .
Ad iv inhe quem puder. Será excessivo eu
dec larar que a sua f is ionomi a é de belo répti l
e por háb ito faz-se acompanhar de um molosso
monstruosíss imo em corpu lência?
M as aqu i têm a h istór ia i nf in itamente pouco
d ivu lgada da morte e dos funera is do pa i . E
ao amador de emoções suaves convido-o já
a i nterromper a le itura .
Uma bela manhã, o médico dos mortos ve
rificou que o grande Fiacre deixara de existi r.
Labal bar ie Fi l ho começou logo a funcionar.
94
Sem ceder a choros inúteis que são puro des
perdício, sem gastar o • estofo • precioso da
sua própria vida, quero dizer •O tempo • se
gundo a expressão nobre de Benjamin Franc
k l in que e le citava a cada passo , pôs tudo em
ordem, sem perder um i nstante preparou tudo .
A s dez e trinta e c inco já o s jornais esta
vam avisados do seu luto , a dor que sentia
desfo lhava-se em m i l exemplares por toda a
rosa dos ventos - participações encomenda
das e jud ic iosamente executadas com grande
antecedência .
Observação idêntica quanto à placa de már
more negro destinada ao Columbarium, na
qual pod ia ver-se uma fén ix de asas abertas ,
entre labaredas, com a terrífica i nscrição
RENASCEREI
que o defundo exig i ra .
Para retemperar a s fibras com u m a enér
g ica tomada de ar, D ieudonné deu um g i ro
de b ic ic leta , comeu um a l moço copioso , re
cebeu várias e lacrimosas visitas , foi fazer
as suas devoções à Bolsa, à noiti nha executou
várias cobranças proveitosas e passou o serão
fora de casa para marcar mel hor a extrema
violência do desgosto .
Juncada de f lores , acompanhada de uma
mu ltidão pouco reco lh ida, uma sumptuosa
carreta fúnebre legou no d ia seguinte ao
Crematório os despojos do finado.
- Ah l Ah l Com que então va is renascer !
- dizia cons igo próprio o afável Dieudonné,
que ficara na terrível câmara-ardente apenas
com dois homens encarregados de enfornar
o pa i . - A gente verá se voltas a nascer . . .
9 5
Admin istrativa e regu lamentarmente execu
tada com tábuas leves , para desaparecer num
ápice àquela atmosfera de setecentos graus,
o esquife repousava na carreta mecânica cujas
antenas de meta l , ati radas com toda a força,
mergu lham na forna lha os mortos e recuam
soltando um grito , movi mento de sístole e
d íasto le executado em c inco segundos .
D ieudonné para a l i estava , no seu reco l h i
mento de fi l ho , quando saiu um ruído da car
reta . . .
O h ! Nada mais do que u m ruído surdo e
mu ito vago, posso garanti r-vos, a inda que
ruído fosse, como se um fa lso morto tentasse
mexer-se na morta lha . A carreta ta lvez ten ha
chegàdo a osc i lar . . .
. Manobrada com precisão, porém, a porta do
forno escancarou-se no mesmo instante .
Encarn içadas por aquela chama atroz , as
três faces o lharam umas para as outras .
- � o corpo a esvaziar-se - afi rmou Dieu
donné, mu ito ca lmo.
Os do is empregados hes itavam.
- Despachem lá isso ! Que d iabo ! - berrou
de repente o parric ida . - Estou a d izer-vos
que é o corpo a esvaziar-se .
E enfiou um maço de notas na mão do mais
próxi mo.
As antenas deram um salto para d iante , ou
tro para trás • . .
E a porta fechou-se, mas não rápida bas
tante para poupar a D ieudonné - que estava
bem de frente - a sensação de ver dois bra
ços estendidos no brasei ro i nstantâneo do
esquife e o desesperado rosto do pai .
96
.Y AMOS L.( SER RAZO.(VEIS!
--'- Meu pai , por que rião come? - perguntou
Suzanne com os o lhos cheios de lágrimas .
- Há dois d ias que não toca em nada e não
quer ver n i nguém. O pai não está doente ! Se
estivesse, mandava chamar o médico. Tem
qualquer desgosto . que me não queira d izer?
Como sabe, já não sou nenhuma criança. Gos
tava tanto de poder consolá- lo !
A personagem a quem ela d i rig ia este d is·
curso era o famoso Ambroise Chaumonte l ,
nem mais n e m menos , o que tinha negócios
espal hados por meio mundo, incomparável
advogado cuja eloquência saber ia confund i r
os f i lamentos d o caos , petrificar as trevas .
Chaumontel andava pelos sessenta anos e
não se coib ia de afi rmá-lo a todos porque a
sua man ia , i nofensiva , era ascender à d ign i
dade dos patriarcas .
Venenosos riva is t inham-no acusado de
pintar os cabelos de branco para .f icar mais
augusto quando fazia a defesa de um órfão,
mas e le punha a a lma i nfin itamente ac ima
da inveja e as flechas só podiam expi rar na
sua base.
A desencorajante reputação que fizera num
quarto de sécu lo de barra de tribuna l , a g rande
9 7
fortuna que amealhara , o alto bri l ho do nome
que várias e gritantes gerações i l ustraram,
t inham escavado lonjuras intransponíveis en
tre e le e a mu ltidão v i loa .
Gozava , enfim , de u m a consideração ing lesa
ao máximo, que nada parecia bel iscar, pas
sando, decerto com razão, por exemplo exci
tante (tão precioso, embora ! ) de i ntegridade
profissional .
Vamos ser obrigados a acred itar que uma
preocupação estranha o obcecava , pois não
respondia à f i l ha e , mais lento a inda do que
era hábito, com grandes olhos afe itos às
expressões d ignas fixava um objecto qualquer
que se impr imia , i núti l de todo, na sua retina.
A sua mane i ra , Chaumontel adorava aquela
fi lha tão amável que por m i l agre se fizera
uma l i nda rapariga e cuja mãe fora há dez
anos enterrada , vít ima de um fu l m inante ataque
de pavor. .�
Contava-se que ele t inha s ido um verdadei ro
S inai para a mu lher , e a pobre acabará por
morrer.
Ma is fel iz , Suzanne quase logrou ser amada.
Movi mentos interiores d ifíceis de entender
ti nham levado o fero e p inacu lar Chaumontel
a inc l i nar-se para a fi l ha . Na verdade , só ela
lhe amaciava o duro pau do coração e Chau
monte l l evava a condescendênc ia ao ponto de
suportar as suas carícias, permiti r- lhe a lgumas
locuções afectuosas , a lgumas expressões fa
m i l iares . . .
Mas naquele d ia , rep ito eu , nada conseguia
demovê- lo. Chaumontel voltara a subi r para
o a lto da sua co luna.
Desistindo do jantar, Suzanne veio rodear- lhe
com um braço o pescoço e supl icar-l he que
falasse, numa voz que ter ia amansado ba
buínos �
98
- Não podes compreend�r isto, m i nha fi
lha - acabou por declarar o vel ho com a maior
austeridade.
E, como u m homem cansado de carregar o
mundo, levantou-se da mesa e saiu a passo
lento sem acrescentar uma palavra que o
traísse .
Ora vejamos o q u e t inha acontecido dois
d ias antes .
Chaumonte l encontrara Bardache.
Não havia ve lho estroina que não conhe
cesse Bardache, o esbelto Agénor . Bardache
tão bon ito nos últimos anos do Segundo I m
pério, quando fez a sua estre ia .
Nessa época que va i longe, na Rua Marbeuf
chamavam-lhe a Tranqui l idade dos Pais; , Gran
des sucessos al i teve o nosso pândego, a inda
hoje lembrados por a lguns sen is . Fo i sus
tentado por gente i lustre , a ltivos genera is ,
crestados pelo sol de Africa, t inham-l he ofe
recido raríss imas flores .
Depois da Comuna, que e le ornamentou com
alguns galões, segundo creio , desapareceu
vários anos nas profundezas do nadi r.
Os passeios e os sagrados bosques reen
contraram-no agora. Mas tão mudado ! Barbudo,
amare lo , sujo , parecia uma árvore nua com
a ramagem exageradamente cresc ida. A face
angulosa, manchada com uma pa l idez estra
nha apesar das p inturas e dos cremes , fazia
lembrar aquelas efíg ies do Mal Sem Perdão
que a Idade Média tantas vezes escu lp iu aos
pés dos santos nos esconderijos mais som
breados das basí l icas.
Para eis imag inativos · era um fantasma de
lama que devia ter as mãos húm idas com o
suor do agonizante e , no s ingular mundo pseu-
99
donímico que e le frequentava , puseram- lhe o
defin itivo nome de Cadáver.
Particu lar idade bem s i n istra : ao andar, as
suas articu lações esta lavam como as de Pedro
o Crue l , segundo se d iz . . .
Ostens ivo como . um celerado abominável·
pode sê-lo , fazia-se passar por jorna l i sta de .
assuntos económicos à procura de casamento
r ico .
Mu ito satisfeito cons igo propr10 e com o
facto de ter acabado de apertar honrosas mãos
no l i m iar do tribuna l , Chaumontel preparava-se
para entrar no carro quando aquele come-ca"
dáveres o interrompeu tocando fam i l iarmente
o seu ombro.
- Ol ha quem e le é! O Verbo Deponente ( 1 )!
Já não se conhecem os amigos ?
Sufocado, o homem de le is recuou .
- Mas . . . quem é o senhor? Não o conheço.
- Meu querido, não me conheces ? Devo ter
mudado muito ! O melhor é entrarmos para
a tua carreta funerária, que eu quero refres
car-te a memória.
- Baptiste ! - gritou Chaumonte l . - Traga-
-me aqu i um pol íc ia , depressa !
·
- Toma cuidado , Deponente do meu coração,
porque vomito tudo se fazes estardal haçp.
Conto ao com issário da pol íc ia as farsas que
fizemos durante a nossa juventude, falo da
casa de Marly e do quarto dos suspi ros. fundos
onde nos d ivertimos tanto. Até posso mos
trar uma fotografia que trago sempre comigo . . .
sabes qual é , aquela em que apareces como
(1) De notar que os verbos latinos deponentes têm
a forma da voz passiva e o significado da voz activa,
ambiva lincla que é aproveitada aqui com intenções
muito evidentes. (N. do T. )
1 00
· flor campestre a ser co l h ida» e tiveste a
genti leza de me oferecer averbando-l he uma
dedicatória sugestiva - realmente tinhas man-
dado ti rá-la por minha causa.
·
.
A estas palavras o pai de Suzanne empa l i�
deceu muito , chamou precipitadamente o co
che i ro e, vendo-se observado, e le próprio
empurrou para o carro a companhia pavorosa
que o çlesti no lhe enviava . Deu uma ordem
breve e a viatura partiu a trote.
- Pelos vistos , o senhor quer d i nhe iro !
- Dinhe i ro ! - exclamou o outro . - Por
quem me toma, senhor Chaumonte l ? Tenho a
honra de ped i r- lhe ·a mão da men ina sua fi l ha !
- A mão da m inha fi l ha ! - berrou o trâns
fuga de Sodoma a sent ir-se mu ito pa i . - A mão
da m inha fi l ha ! Quer misturar o nome da m i nha
f i lha às suas porcarias ?
- Vamos , vamos, caro amigo, tenha Um
pouco de ca lma . Por · favor, vamos lá ser ra·
zoáveis ! Já não somos nenhumas crianças !
O tempo das bon itas loucuras acabou . Perd i
todas as vantagens que t inha. Conforme os
dias passam vou ficando depenado, aborreço
·me de morte e quase nem vivo. Quero tor
nar"me importante como o meu caro amigo,
e para isso prec iso de d inhe iro , sem dúvida,
mas também de mu lher . M u ito natural será que
ponha os o l hos em si , pessoa capaz de me
oferecer um e outra . . . Suzanne é s implesmente
de l ic iosa .
« . . . Escusa de berrar , que não l he va le de
nada . Aqu i tem a i mpress ionante fotografia .
Também estou de posse d e a lgumas cartas
não menos preciosas que tive noutros tempos
a honra de receber de s i . É toma lá, dá cá .
Não se i se entende . . . Para fecharmos o negó
cio concedo- lhe um mês , seis semanas no
máxi mo. Decorrido esse prazo , faço explod i r
tudo. Não tenho nada a perder. Agora mande
1 0 1
o cochei ro parar, que eu pretendo descer
aqui . •
- Mais uma palavra - balbuciou o i nfe l iz
Chaumontel que acabava de trambu l har dez
m i l degraus . - Posso matar-me, já reparou?
O outro desatou a ri r e respondeu-l he do
estr ibo com pa lavras não isentas de profun
d idade :
- Que medo posso eu ter? Os porcos nunca
se matam.
Dois meses depois desta conversa , Agénor
Bardache casava com Suzanne na aldeia da
Normandia onde o advogado t inha uma velha
mansão.
Não houve convidados e atéas participa
ções , deixadas ao cu idado de Chaumonte l , fo
ram ati radas à latri na.
A h istória que vos conto é substancia lmente
exacta e um d ia hei-de fa lar da morte deste
casal. Quanto ao pa i , está vivo graças a Deus.
Ah ! . . . que me esquecia . . . No d ia do casa
mento, depois da ceri món ia , o rad iante Bar
dache inc l i nou-se para o sogro e murmurou
- lhe ao ouvido umas quantas palavras amo
rosas :
- ó meu amigo! Como ela se parece com
o pai !
1 02
UMA MÁRTIR
- Está mais do que visto , senhor meu
genro, que nenhum argumento rel ig ioso sa
b.eria actuar na sua a l ma . Vejo muitíss i mo
bem que o senhor nem espera pelo d ia de
amanhã para fazer as suas pulhices. Não vai
ter nenhuma piedade desta pobre criança que
até agora eduquei na pureza dos anjos e · o
senhor va i emporcal har com o seu bafo de
répti l . Meu Deus, faça-se a vossa vontade,
que o vosso santo nome seja abençoado por
todos os séculos dos sécu los !
- Amen - respondeu Georges , enquanto
acendia um charuto. - Pode ficar certa do
meu reconheci mento eterno, querida sogra.
E conto mu ito com as suas preces . Pode acre
d itar que não vou esquecer as suas exorta
ções . Boa noite.
O comboio arrancou. Mme. Durable ficou
no ca is a o l har .para o rápido que fug ia e
levava os recém-casados na di recção su l .
Encapelada ainda com as emoções d o d ia ,
mas de o l hos tão secos como o esmalte que
acaba de sair do forno , Mme. Durable batia
o chão nervosamente com a- ponta do guarda
-chuva .
1 03
Cheia de raiva , ava l iando i molações e sacri
fícios, esta querida a lma d iz ia consigo própria
que era duríss i mo viver há vi nte anos para
uma fi l ha tão i ngrata que abandonava a mãe
daquela forma, mal casava, para segui r um
estranho com manifesta fa lta de pudor e que
não tardaria a profaná- la , sem dúvida, com
carícias lascivas .
- Ah ! Que grande satisfação os nossos fi
l hos sabem dar-nos ! I mag ine - de forma quase
i nconsci ente ela fa lava com o subche-Fe da
estação que se aproxi mara e a exortava, cheio
de civ i l idade, a desaparecer da l i - i magine que
os trazemos ao mundo com dores tão abomi ná
veis que o senhor nem pode ava l i á- las, edu
camo-los no temor de Deus, procuramos que
se pareçam com os anjos para serem d igno�
de cantar eternamente aos pés do Corde i ro !
noite e d ia ped imos por e les sem descanso j
durante um terço da vida , para bem das suas
a l mas ternas cumpri mos penitências que só
de pensar nelas estremeço, e a recompensa é
esta ! Somos abandonadas , f ique o senhor a
saber, largadas como u m farrapo, como l ixo ,
mal aparece um finório qualquer que temos a
estupidez de receber, porque tem ar de bom
cristão , e logo ali abusa e macu la um coração
i nocente , se me permite sugere- lhe visões
impu ras , faz' uma jovem educada na mais
santa ignorância acreditar que as festinhas
de um marido de carne vão dar- l he a legr ias
mais vivas do que as efusões de uma ternura
de mãe .. . .
• Fique o senhor a saber o que acontece .
Pode mesmo testemunhá-lo no d ia do ju ízo
f ina l ! Estou abandonada, desprezada, tra ída,
sozinha no mundo, sem consolação nem espe
rança. Ponha-se no meu l ugar . . . ..
--: A senhora pode acreditar que comparti l ho
do seu desgosto - respondeu e le - mas é
1 0 4
meu dever d izer- lhe que as ex1gencias do
serviço não permitem que a de ixe ficar aqui
mais tempo. Embora contrariado, tenho a obri
gação de pedi r- lhe que se reti re .
E; com uma desped ida destas , a mãe do
lorosa sumiu-se i mplorando ao céu, uma vez
mais , um testemunho para a i mensidade do
seu l uto .
Mme. Virg in ie Durab le , em solte i ra Mucus ,
era o tipo i nsufic ientemente adm i rado da
mártir, por s ina l márti r de Lião, o que fazia
dela a rabugenta mais atroz que i magi nar se
pode. ·
Desde criança entregue a crué is carrascos ,
sem nunca ter tido o bálsamo das consolações
humanas , i nformava regu larmente o ún iverso
do estado dos seus tormentos .
Há trinta anos , quando M r. Durable , nego
c iante de ostras agora aposentado, casara
com aquele holocausto , nem sequer descon
fiava , pobre homem , que assumia uma assus
tadora responsabi l idade de torcionário , mas
não tardou a ficar i ntei rado do facto e, com
o andar dos tempos , caquético.
Por mais que fizesse ou d issesse, nem uma
só vez conseguiu deixar de ser cri m inoso, es
pezinhar o coração da mulher, cravar ne le
g lád ios ou espinhos.
V i rg i n i e era Lima destas criaturas amáveis
« que t inham sofrido imenso • , das quais ne
nhum homem é d igno, que n inguém percebe
nem consola e a quem os braços nunca pare
cem compridos o bastante para erguer ao céu.
De passagem se d iga que arvorava uma
p iedade subl i me e r idícu la , se a pretendêsse
mos admi rar muito , com a qual não deixava
ela própria de confund i r�se .
1 05
Resumi ndo, fo i uma i rrepreensíve l esposa
- Deus meu ! - i ncansável a atra i r bênçãos
das mais raras à ·casa comercia l de um imbeci1
malfazejo que não houve meio de entender
a fel ic idade em que vivia.
Anos passados sobre o casamento , esta
márt i r a inda jovem e ao que parece muito
apétitcisa , fo i um belo d ia apanhada pela odiosa
personagem em convívio com um cavalhe iro
por s i na l pouco vestido.
Eram de ta l ordem as c i rcunstâncias que só
um cego, também surdo como a morte , po
deria a l i mentar dúvidas .
A austera devota ench ifrava-o com um · en
tus iasmo tão evidentemente parti l hado que,
não tivesse embora bastantes letras para o
nome de N inon lhe assentar bem , t inha outro,
seu, quase tão belo como aque le .
De peitaça ao vento V i rg in ie avançou e,
numa voz mu ito suave, numa voz de gravidade
e doçura profundas , d isse ao homem estu
pefacto :
- Meu amigo, estou a tratar de negócios
com o senhor conde. Vá .atender os seus c l ien
tes , vá l
E fechou a porta .
Fo i o fim . Duas horas mais tarde Virg in ie
comunicava ao marido que só voltaria a d i rig i r
- lhe a palavra em caso de urgênc ia , estava
farta de condescender até ao n ível da sua
alma de caixe i ro , na verdade era bem lamen
tável ter sacrificado as suas esperanças de
v irgem muito jovem a um casca-grossa sem
ideal e tão i ndel icado , a i nda por c ima, que
a espiava.
Fi l ha de um bede l , que era, na ocorrência
não esqueceu deixar vincada a superioridade
da sua esti rpe .
De então para d iante, a cristã dos pr imeiros
séculos empunhou a pa lma, e a existênc ia do
1 06
pobre e domado carnudo transformou-se num
Inferno, num lago de amargor muito profundo
que o arrastou à bebida e fê- lo id iota ao ponto
de terem consegu ido abafá- lo , plausível e
caritativamente , num asi lo.
Por sorte i naud ita , a educação de M I Je . Du
rab le fora melhor do que poderia a conjuntura
fazer crer.
É que a vi rtuosa mãe, a todo o momento
empenhada no embruteci mento de M r. Du
rab le , e também entregue a obscuras farsas,
dela se ocupou muito pouco e em boa hora
a de ixou abandonada à vigi lância mercenária
das re l i g iosas da Escada de P i latos que, por
mi lagre, se houveram com a missão o mais
consc ienciosamente possíve l .
Bastante dotada e muitíss i mo • passáve l • ,
a rapariga foi sôfrega a agarrar a pri meira
oportun idade de casamento, mal se compe
netrou do r idícu lo e da execrável mal íc ia da
vel ha sovina que passou a sogra por m iste
rioso decreto da temível Providência.
A va l entia do noivo causou admiração em
todos .
Mal termi nou a cerimónia , numa atitude de
mu ita i ndependência declarou que tinha a
vontade fi rme de se afastar dal i com a mu
lher, numcomboio rápido, e toda a gente pôde
ver que esta decisão, sem dúvida concertada ,
não afl ig ia nada a jovem esposa indiferente
aos gemidos e às censuras maternas .
Arrastada por uma ind ignação das mais ge
nerosas , Mme. Durable regressou à casa sol i
tária med itando tramadíss i mas vi nganças .
Mas não. Ao caso não convinha a palavra
vingança. Tratava-se , apenas , de pun i r .
Esta mãe u ltra jada tinha o d i reito de punir.
Me lhor, tinha o dever , ou de outro modo o
1 07
quarto mandamento de Deus não conservaria
a sua força .
Dal i em d iante todos os meios lhe parece
ram bons , já que uma i ntenção p iedosa l he
não deixaria de perfumar as manigâncias, ve
nenosas fossem .
Para dar cumpri mento a um desígn io tão
louváve l , a márti r passou a fomentar a desonra
do genro e da fi lha com enredos e truques de
toda a espéc ie .
·
O pri me i ro v i u-se i ncri m inado de víc ios
monstruosos , de hábitos infames confi rmados
por abomi náveis testemunhas. A segunda re
cebeu cartas que bem poderiam ser datadas
de Sodoma.
G rande Pande i ro escrevia a lamentá- la , Dedo
na Regue ifa fazia- lhe saber que cc aqu i lo não
ficaria por a l i » . O l e ito nupcial dos recém
-casados fo i submerso por i ntei ro numa tor
rente de l ixo .
O marido ia sucumbindo aos poucos , debaixo
de um número · i nf in ito de mensagens anóni
mas e pseudóni mas das mais variadas formas,
mas sempre untuosas e saturadas de tristeza
mu ito afáve l que o i nformavam, cheias de
precaução , sobre o passado pouco l i mpo da
sua companheira que soubera apodrecer, com
o hál ito , meia centena de raparigas nos dor
mitórios do pensionato , e não l he teria dado,
senhora de um dote daqueles , mais do que a
ba ixa e rud imentar v i rg i ndade do corpo.
Nada poderá expri m i r a maldade d iabó l ica,
a competência i nfernal que mexia os cordéis
deste ·enredo, sabia dosear d iariamente os
venenos horrorosos do i nfanticíd io .
A s ituação durou mais de seis meses . Os
desgraçados , que ao pri ncípio só sentiam por
aqu i lo um profundo desprezo , foram depois
dominados pelo pavor de uma persegu ição
tenaz.
1 08
Vieram a saber que as cartas daquela fonte
Ignorada se espa lhavam, dos patrões à cria
dagem , por todas as vivendas à volta , e ati n
g iam pessoas i mportantes de c idades e al
deias que e l es passaram a atravessar mu ito
de fug ida .
Foram atenazados por u ma angústia pân ica ,
Imparável ; foram arranhados por desconfian
ças i rreparáveis , de nada l hes valendo saber
que eram absurdas . Por fi m , rebolaram numa
cloaca de melanco l ia .
De ixaram de poder dormi r e comer, as suas
al mas extravasaram-se nos abismos pál idos
onde as esperanças se d i l uem, e chegou o d ia
em que morreram juntos à mesma hora e no
mesmo l ugar, sem ser possível defin i r com
muito rigor o modo por que tinham deixado
de sofrer.
A mãe , que os seguia como um tubarão,
soube exib i r fartamente aquele suicíd io para
l hes ti rar o d i reito à sepultura cristã . E agora
é márti r , cada vez mais a Márti r , e d ia a d ia
ascende com a maior desenvoltura ao terce i ro
céu , d izendo a crónica da Rua de Constanti
nopla que a desoras , todas as noites, ela cos
tuma rep icar um criado de quarto , robustís
s imo.
1 09
O .fiM DO D. JUAN
� agrad6vtd conversar com u m homem
da uma s6 cabeça.
JULES VALLf:S
- E o m iseráve l morreu como viveu , cheio
de bens . Nem sequer teve a desculpa de ser
um diss ipador, u m pród igo; Diz-se que foi o
maior do mundo a empatar capitais ·com van
tagem . Morreu , enfi m , sem nenhuma doença
e no p leno uso de s i mesmo; apesar de ve
l h íss imo, como um patria rca de antes do
d i l úvio . · Ora isto parece um pouco forte . Sem
exig i rmos que «O dedo de Deus • seja tão
assíduo como o Je it inho que os papás dão
aos fi l hos m i mados , ass im mesmo · e para
honra da Just iça desejaríamos rea l mente saber
menos doce a agonia deste malfeitor.
Isto eram pa lavras de um homem que ofus
cava sem mal íc ia a g lória i nsolente do Mar
quês da Torre de Pisa [ 1 ) , personagem mu ito
conhecida que acabava de expirar. Durante
muito tempo fora ju l gada eterna. Nascida na
Ing laterra fo lgazona, da altura em que a emi
gração começara e Luís XVI a i nda tinha a
cabeça nos ombros , segundo rumores públ icos
mantivera-se verde-galante nas vésperas dos
( 1 ) Os «especia l istaS» em B loy querem ver, nesta
personagem, uma caricatura do escrit�r Catti l l e M en
des. ( N. do T. )
1 1 1
noventa anos . Mal verificado prodíg io , todavia,
mas aceito pelo entusiasmo de alguns d iscí·
pulos que já t inham, também e les, u ltrapassado
os sessenta .
A verdade se d iga : o Marquês Hector da
Torre de Pisa i rrad iava como uma custódia .
E passava por indiscutível que a lgumas rai nhas
ti n ham morrido de amor • ao entrar- lhe no
quarto • , por sua causa so luçara todo um povo
de arianas .
M uito tempo antes do célebre Beauvivier
que nos consola , o marquês soubera adjud icar
a sua pessoa e transformá-la e m acções. Daí
a opu lência que exib ia . Mesmo no f im dos
d ias , famíl ias das mais a ltivas pagaram carís
s i mo os b i l hetes da sua alcova . . .
Pelo menos rezava ass im a lenda, aceita
pelo mundo i ntei ro , sobre este devorador de
corações que t inha a lguns botões das cuecas
encastoados em brincos ainda agora o lhados
como inestimáveis jóias.
- Nada d isso, meu caro senhor - i nterrom·
peu uma parte i ra . - É verdade que não assisti
à morte desse crápu la , mas nenhum rxion,
posso garanti r- lho, foi tão cruel mente casti·
gado como ele . Pode o senhor i maginar o que
quiser , e a inda ass im l h e garanto que nunca
saberá chegar a u m horror daqueles . · Ora
sente-se aí nesse aborto , que lhe estende os
braços , e preste-me atenção, que esta manhã
venho com veia narrativa .
- O marquês Hector foi u m bonito homem,
de facto, com todo o ar de grande senhoria , e
os que sentiam i nveja de le nunca acharam
meio de negá-lo . Tão diferente e le era da
mu ltidão, que onde estava punha todas as
pessoas a parecerem-se umas com as outras.
•Teria pod ido mostrar-se em públ ico por
1 1 2
dinheiro , como um verdade i ro mestre , mas
l imitou-se a exibições privadas . por somas
a ltas que a l iás apl icava com cuidado extremo
nos empreend i mentos mais sérios . O faro de
especu lador que sempre demonstrou no meio
das piores comp l icações ficou bem conhecido.
« O i nteresse d isto é medíocre , porém. Numa
época em que os homens andam todos ao
engate, quase sem excepção, o putanato deste
cava lhe i ro e as suas concomitantes aptidões
fi nance i ras nada têm de inaudito . São coisas
que l igam bem .
· O q u e tenho para l he oferecer é mu ito
mel hor. Prometi um horror dific i lmente i magi
nável , não fo i ? Se a sua sede de expiação não
se aplacar depois da m i nha h istória , nada será
capaz de saciá-la .
•E antes de mai s : sabe o que t inha e le a
expiar? Não? O senhor, como os outros , pensa
que ele teve uma existência mais ou menos
od iosa de vampiro exc lusivamente ocupado
nas suas infâmias , durante o período de quase
um sécu lo em que foi correndo · como um
regato de podridões, sem nunca o lhar no rosto
os que pensam e sofrem . � um ponto de vista
tão banal como uma pregação , meu caro
senhor! A .coisa é mu ito e d iferentemente su
perfina . . .
• Faz-me com certeza a justiça de acred itar
que não quero saber para nada do segredo
profiss ional , como a l iá� é próprio de toda a
partei ra - de pr imeira classe, entenda-se . Dei
xamos isso aos médicos que não têm outra
forma de evitara prisa, na maior parte dos
casos .
• Po is bem ! Esse belo Hectar, que casou duas
vezes e pe lo menos uma das mul heres matou
sem precisar da minha ajuda � porque funcio
nava sozinho às m i l marav i l has, sem ped i r o
auxí l io de n i nguém - foi meu cl iente .
1 1 3
· Oue parvoíce a minha partejar a primeira,
e dez anos mais tarde a segunda, lá para o fi m
do reinado de Luís Fi l i pe, como se fossem
porte i ras ou mul heres da vida! Num e noutro
casos o marquês i ns isti ra para não haver n i n
guém ao pé de nós .
« Da pri meira vez trouxemos a o mundo uma
espécie de caprípede sem ol hos nem boca,
com uma espécie de membrana mole pendu
rada à gu isa de nariz, que eu nem quero des
crever, ó i mpress ionável criatura . . . Dotado
de um sangue-frio de morto , o Torre de Pisa
de itou as mãos ao aborto , antes de eu poder
opor-me, e ofereceu-o aos beijos da mãe que
duas horas mais tarde morreu de o ter visto .
• E o segundo fi l ho do marquês , que saiu
com duas cabeças num corpo em fuso, sem
braços nem pernas , foi uma segunda edição
da mesma imagem. '
" Desta vez a parturiente nem pôde vê- lo .
Enro le i a cois i nha abominável no meu aventa l
e corri para fora do quarto . Perdi a c l i ente la
do nobre senhor mas adivinhei mu itas coisas
e mais tarde vi m a saber de outras . . . ,.
- O senhor ta lvez tenha ficado com a im
pressão de ter ouvido contar o Crime e Cas·
tigo - prossegu iu a terrível matrona, ba ixando
a voz de um modo estranho. - Já estou a ver
a f ibra de bronze da sua justiça implacável
esticar-se como as cordas de uma guitarra
m ijada por trinta cães . Ora acontece que o
senhor continua mais a l este do que nunca ,
está a ouvir?
«Na nossa profissão, a gente está mesmo
à boca do esgoto e vê tais coisas sair de le
que, passado a lgum tempo, é d ifíc i l espantar
-se. Po is o lhe , de uma e outra vezes o homem
de quem fa lamos espantou-me até ao pavor.
1 1 4
" Não fosse aqu i lo que a inda agora ouviu ,
n i nguém contestaria que este homem era ape
nas um canalha horríve l e mal chegaria a
merecer que o mencionássemos . Mas a coisa
é outra , volto a repetir , e o castigo que teve
va i fazê- lo tremer, se acaso puder compreen
dê- lo .
•Já reparou como é estranho que a mesma
Identidade do monstruoso fenómeno se tenha
repetido, a dez anos de intervalo , em duas
mulheres legíti mas com quem ele casou , aqui
para nós, por d i nheiro? Estou convencida
de que a experiência daria sempre o mesmo
resu ltado.
« Para fa lar c laro, o marquês era um idólatra,
um fervoroso e · rigoroso idólatra de interior
configurado à i magem do seu Deus, cujas ten
tativas de progenitura só eram capazes de
reproduzir exteriormente esse Deus.
« Em casa, num oratório i l uminado com l uz
mister iosa , e le adorava a parte do seu corpo
que os sacerdotes de C ibe le t inham outrora
em grande honra . Mandara um hábi l artesão
moldar sobre si próprio o objecto , exposto
numa espécie de tabernácu lo e que recebia
as preces desse coribante que os mundanos
ju lgaram estroina - tal como os ca lo i ros de
medic ina engo l i ram que o budista Charcot era
méd ico . Nunca havemos de saber quantas
pessoas são coisa diferente do que parecem ,
aos o l hos dos seus contemporâneos .
.. o seu verdadeiro cri me era éste , meu caro
senhor, e um supremo atentado a quem mais
fundo sabe e vê. O resto vinha todo daí .
• Agora veja que dez anos de expiação e le
teve , até à véspera da morte :
· Todas as noites , um vel hote corpulento e
bel íss imo, que as mais altaneiras t inham ama
do e agora se fizera conhecido das que andam
1 1 5
na vida , era i nvar iave lmente apanhado na
sombra , à hora dos ú ltimos engates .
• El as conheciam-lhe o gosto e o d iálogo
estabelecia-se, do l ado da mu l her crapu loso
ao máxi mo, do lado dele mu ito humi lde porque
estava empenhado no papel de porcal hão con
sumido por inconfessáveis desejos .
.. como é natural , ao f im de alguns minutos
medidos num i nfal ível cronómetro , acabavam
por entender-se .
« E, encostada à parede, a mul her estendia
- lhe então os pés, a lternadamente , e o octo
genário a · grunh i r de êxtase e de rojo pelo
chão - fizesse o tempo que fizesse - lambia·
-lhe a sola das botinas . ..
Esta fo i a últ ima exigência feita p e l o Deus
daquele campeão que três gerações de imbecis
igua laram ao O. Juan.
1 1 6
SACRILIÉGIO FALHADO
Na tarde daquele día santo as camponesas
agachavam-se aqu i e a lém, à volta do con
fess ionár io . De repente afastaram-se com o
afã mais respe itoso para abri r uma passagem
à viscondessa Brunissende des Egards que
chegava , mu ito enfol harada , ao Tribunal da
Pen itência.
O confessor era um homem s imples, m is
s ionário da · Congregação dos Lazaristas en
viado àquela parvónia , a inda re l i g iosa, para
fazer a pregação na época da Quaresma e
ajudar o velho cura nas l ixívias pasca is .
A bri lhante viscondessa, · que rei nava em
toda a reg ião e era o arquéti po das magn ifi
cências para a pobre gente do feudo , mu ito
rápida e lampe i ra fora ajoel har-se no compar
t i mento devo luto das confissões reconci l ia
tór ias .
A o vê� la , o miss ionário apressou-se a absol
ver uma qualquer tamanqOe i ra que o ret inha
no outro a lvéolo e , quase de i mediato , abriu
a porti nhola das · exortações à respeitáve l peni
tente que o céu l he enviava .
E la , porém, nem lhe · deixou abr ir a boca .
- Senhor pregador - di sse de chofre -.
j u lgo que o seu tempo é precioso e desde já
1 1 7
declaro que eu própria d isponho de pouquís
s i mos i nstantes. Tenho à espera o meu décimo
séti mo amante, um i mbec i l adorável a quem
resolvi entregar corpo e a lma dentro de uma
hora ou duas .
· Como sou descrente , o mais possível , faço
tudo o que me agrada . Tenho horror aos po
bres , abomi no a dor e, como tão bem d isse um
poeta judeu que o senhor não · conhece, prefi ro
as más consciências aos maus dentes .
· Estou-me completamente nas ti ntas para o
vosso Deus sangrento e nada tenho com as
absolvições que o senhor d istribui por esta
gente da a lde ia . No entanto , o meu"'marido é um deputado vi rtuoso e sucede que precisa
da admi ração dos e leitores . Aqu i na terra o
que não i r iam d izer se a viscondessa des
Egards fa ltasse às páscoas ?
• É nosso dever dar o exemplo e aqu i estou
a anunciar- l he que vou ter a a legria de receber
das suas mãos o pão dos anjos, na m issa
solene do próximo domingo.
·E agora , como o tempo normal de uma con
fissão já termi nou e as a l mas piedosas que
nos rodeiam já devem estar suficientemente
edif icadas corri os meus senti mentos cr istãos ,
eu não teria qualquer descu l pa se continuasse
a açambarcar o seu min istério. Por isso reti
ro-me, com a modéstia adequada às pecadoras
que acabam de reconc i l iar-se com o Sa lvador,
e peço- lhe que nos dê a honra de ir ao caste lo
o mais depressa possível para eu poder retri
bu i r a atenção da sua santa mesa . •
Prosternada um mi nuto aos pés do a ltar , com
certeza para uma oração fervorosa , a castelã
saiu da igreja como a fragata do porto , lar
gando uma estei ra de perfumes estranhos que
as a ldeãs respi raram como se fossem a lecrins
do paraíso.
1 1 8
No d ia seguinte, mal acabava a missa, o pre
gador subiu aos Egards e ped i u para ser
anunciado à Brun issende.
Os criados bem-pensantes admi raram nele
o ecl esiástico de comprimento inus itado, uma
espécie de fen icóptero sacerdotal que po
deríamos ju lgar especialmente moldado para
encontrar ovel has perd idas ou dracmas de
ve l ha prata , d ifíce is de achar debaixo de móveis sumptuosos , em moradias r icas onde se
ac l i matou a desordem .
A sua face marcava sessenta anos , como
a esca la de estiagem marca as grandes cheias
de um r io , e naquele momento oferecia , derro
tado e preocupado por inexpr imíveis cu idados ,
o espectácu l o de uma bondade de rumi nante .
O pregador fo i irltroduzido, mas teve de
esperar mais de uma hora . Hoje todos sabemos
como é dever de u m padre aguardar que as
belas damas saiam da cama, se têm vagar e
condescendência de recebê-lo .
.....,.... Ah ! Que surpresa agradável , meu querido
padre ! - d isse a viscondessa quando se d ig
nou , enfi m , a aparecer. - Apesar de ter sal
tado da cama para recebê-lo , estou com medo
de tê-lo feito esperar mu ito ! Juro que não fo i
de propós ito e conto com a sua caridade para
saber descu l par uma mundana incapaz de pre
ver a g raça deste seu bom-dia tão matinal .
- Há c inco horas que o sol já nasceu , mi
nha senhora . Depois d isso vários m i lhões de
cristãos já sofreram e mu itos deles agonizam,
por s ina l , desesperados no . m inuto que passa . . .
- respondeu o m issionário cheio de aspe
reza . - Pode · acreditar que eu não teria vindo
Incomodá-la tão cedo, nem sequer mais tarde,
se a honra de Deus não estivesse em causa . . .
· Devo- lhe uma noite crue l , m i nha · senhora,
e esta manhã até parecia que um anjo terrível
1 1 9
me arrastava pelos cabelos em d i recção à sua
porta . Aqui estou a perguntar- lhe se está pre-
parada para morrer . •
·
A formosa mu lher desatou a r i r .
- Para morrer? Mas que coisa adm i rável !
Estou com ar de moribunda , ou toma-me o
senhor por cr im inosa que vai ser gu i l hoti nada
ao romper do d ia? Para d izer isto é que me
obriga a sai r da .cama às nove da manhã,
como se eu fosse uma varredora das ruas?
Fo i para usar uma palavra dessas que o senhor
se i ncomodou tanto ? Ah ! Estará o meu padre
em pleno ju ízo ?
·
- Eu pod ia fazer- lhe a mesma pergunta , se
nhora, mas com certeza não va ler ia de nada . . .
Sei bem o que estou a · d izer - acrescentou
e l e , numa voz tão baixa que parecia causar
a lguma i mpressão - sei-o mu itíss i mo · bem.
Já se esqueceu daqu i l o que se passou na
igreja , entre nós dois?
- Lembro-me de que o meu padre aceitou
a mi nha confissão para o sacramento da peni
tência . Por outro lado também sei que o se
gredo da confissão é i nvio láve l . Só isto .
Houve um s i l êncio.
- Resta-me ensinar- lhe o que a senhora não
sabe, ou não quer saber. Poi s seja. O que lá
foi fazer é um abomi nável desafio a Deus .
Não satisfeita em profanar tão fe iamente , e
por maldade pura, o sacramento que a inda
agora se atreveu a nomear, fo i dar-me conhe
c imento da d ispos ição em que está de come
ter o mais horrível sacri lég io . . . Como é na
tura l , a senhora contou com o s i l êncio de um
i nfe l iz padre que está obrigado pelo sagrado
carácter do sacramento . . . Talvez eu pudesse
responder- lhe que não sou obrigado a guardar
segredo de uma confissão que não existiu ,
mas dá-se o caso destas fórmu las serem tão
1 2 0
ntmtas que valem tanto fing idas como o ver
dadei ro acto . Vou calar-me, mas é meu dever
nvlsá-la do perigo que corre. Ainda está a
tempo . . . Pelo sangue de Cristo que . a i nda
ngora beb i , sup l ico- lhe que me não reduza ao
Jlapel de seu jlilz.
- Oh I Senhor bebedor de sangue, não se
preocupei Seja meu ju iz quantas vezes qu iser.
E uma vez que lhe dou ta l l icença, como i sto
aqu i não é bem um Tribunal Revo lucionário,
pela m inha parte supl ico-lhe que dê fi m a esta
bri ncade i ra desagradável . Se quer sabê-lo, es
tou a ficar farta . . .
- Reti ro-me já - disse o m issionário . - E a
m i nha ú lt ima pa lavra é : desafio por desafio .
I gnoro o que fará Peus da sua a lma, mas ass im
mesmo temo só de pensá- lo. S into que a se
nhora não vai poder consumar no próximo
domi ngo o horroroso acto que me anunciou
do fundo das trevas. O Cristo G lorioso é o
pão dos pobres . Só na luz podemos comê-lo .
Concl usão :
No domingo de Páscoa a igreja estava cheia
e Brun issende, mais ofuscante do que nunca,
sentada no seu banco de senhora feudal do
cantão.
O pregador ins isti ra em d izer a missa solene.
Lera o Evangelho das Essências e da Ressurrei
ção , despojara-se dos ornamentos e aparecera
no pú lp ito.
A sua pal idez era grande e , de sobrepel iz ,
parecia aquele anjo vestido de branco que as
santas mulheres ti nham visto no túmulo .
Inso l i tamente, porém, fa lou sobre o texto
Eden pauperes et saturabuntur, os pobres co
merão e serão saciados .
Fa lou mais de uma hora, ta lvez à espera
de que o fô lego lhé fa ltasse, de tanto fa lar
a morte lhe chegasse . A palavra exa ltou-se- lhe
1 2 1
até e le ficar qualquer coisa de assustador,
l uminoso, sobrenatura l .
Este homem sem eloquência fói subl i me.
De ta l forma exprim i u a pobreza , que o seu
auditório andrajoso pareceu um congresso de
potentados , a a ltanei ra viscondessa acabou
por exi b i r um ar de desgraçada i mpel i da a
mendigar o seu pão.
No momento da comunhão pascal aconteceu
s imp lesmente isto :
Brun issende fo i a pri mei ra a ajoelhar-se.
E quando o rebanho dos humi ldes se aproxi mou
do a ltar recuou de repente, como se tivesse
visto um muro de chamas . O padre , que já
desc ia o ú lt imo degrau do a ltar para se d i ri·
g i r à santa mesa, de c ibório em punho, voltou
a subi- lo precipitadamente . . .
Foi preciso, depois , purificar o santuário.
E todos os anos, naque l e dia, é levada a cabo
uma cerimón ia lavatória onde todos põem o
maior escrúpulo.
Quanto à viscondessa des Egards, parece
que continua viva embora não passe, depois
daqu i lo , de uma reles habitante dos túmu
los . . .
Esta foi a exp l icação que me deram para a
derrocada pol ítica de um dos fantoches mais
emi nentes da nossa Ordem Mora l !
1 2 2
O GABINETE DE LEITURA
Nio • pode passar sem a literatura.
- Com um raio ! Se eu já d isse que está
ocupado !
Orthodoxie Panard , que desde ha i nstantes
tentava forçar a fechadura , desatou a fug i r .
Era a voz temível do seu t io paterno.
O gabinete de le itura fora tão r id icu lamente
concebido que só podia uti l i zar-se à vez , e na
casa viviam . dez pessoas .
Havia o pai Panard e a mãe Panard ; os qua
tro herdei ros Panard : Athanase, Hé l iodore,
Démétrius e Orthodoxie ; e ai nda o tio Justi
n ien , a tia P lectrude e a tia Roxelane. Por
fi m , a boa ve l ha Palmyre . Faziam dez bem
contados . Era absurdo.
Refi ra-se a inda que esta gente , Palmyre
Inc lu ída, t inha ou pod ia ter necessidades i n
te lectuais de natureza a mais imperiosa.
Era mais do que certo encontrarmos lá al
guém, a qualquer hora do dia ou da noite . Por
vezes , as pessoas esbarravam umas com as
outras n a porta .
Havia razões para aquela famí l ia andar abor
recida, mas parecia impossível chamar à razão
o sovi na do Panard , antigo professor de g rego
e membro do Instituto, se fazem favor, que
nunca lavava as mãos por economia e, quando
1 2 3
l h e fa lavam . em constru i r um segundo loca l ,
declamava a s i mprecações de Hecuba no pró
pr io texto de Eurípedes.
Não que fa ltasse d inhe i ro a este tradutor de
F i lóstrato , desde a famosa herança que fizera
de le um propri etário i mportante .
A l iteratura contemporânea, porém - a que
era a l i mento dos Panard, sobretudo os saídos
do seu f lanco - não t inha nenhum i nteresse
para ele e queria que todos se contentassem
com o gab i nete existente , fazendo ore lhas
moucas às i ns inuações optativas dos seus
herde i ros.O mais i nto lerável competidor de Panard
era o tio J usti n i e n , coronel da gendarmeria
aposentado que nunca de lá arrancava .
Consegu isse entrar , o an ima l , e todas as
súpl i cas eram i núte is , todas as lágrimas . An
tes de acabar com as suas pape lagens fazia-os
esperar uma hora .
S e a o menos este botifarras, este gagá mal
-che i roso que não chegava a fazer nada , des
dentado fornecedor da gu i l hotina , tivesse mo
t ivos serios para prolongar tanto as s uas esta
d ias , para s e atrasar ass i m no gabinete pre
c ioso, três ou quatro vezes por d i a !
Mas não . Aque la desgraça de veterano,
que o céu se obsti nava a não rachar, nunca
fora capaz de le r outra coisa a lém da descrição
dos s ina is dos malfe i tores , ou ordens de cap
tura .
- O que faz vossemecê aí dentro , Deus
santíss imo ! - gritava a t ia P lectrude erguen
do os braços áridos às estre las , já que era
vu lgar e le l evantar-se a meio da noite.
- Estou a pôr a m i nha correspondênci a em
d ia - era a resposta , concentrando nela a
f ineza de um gendarme a quem não é possíve-l
fazer-se o n i nho atrás da ore lha .
1 2 4
Mais do que nenhum outro , Orthodoxie vivia
desventurada com a situação-. Era uma rapariga
de graça pouco vu lgar, com relações l iterárias
e l i ções de b ic ic leta .
Nessa a ltura já lançado em pleno s i mbo l i s
mo, o seu i rmão Athanase apresentara- lhe
Aomano-Spada , chefe-de-escol a cujas raízes
gregas causaram excepcional agrado ao ve l ho
Panard . E o avisado Romano aproveitou este
aco lh imento para meter no ,caso o grande Papa
d iamantopou los , seu i nseparável amigo.
As desconfianças bem l egítimas do profes
sor chegaram a ser vencidas o bastante para ,
um be lo d ia , não ser possível evitar que o in i
gualáve l , sobre-emi nente Périto ine, se d ig
nasse a comparecer sem cerimón ia , com o
maior à-vontade, acompanhado da sua auréola
de traba l ho.
Alargada a mesa, foi a vez de aparecerem
vários Klephtes que, por amor a Pindo, tiveram
ocas ião de gozar a hospita l idade de Panard .
A verdade se d iga : um aumento tão grande
de convivas a inda tornava mais i nacessível o
cubícu lo que Justinien passou a ocupar como
nunca, por maldade, abandonando-o apenas
para fazer à mesa i rremissíveis i nconven iên
cias.
Volto a repeti r que uma ta l ci rcunstância
carregava o tom do quadro, e Orthodoxie so
fria . Sofrimento que se espa lhava aos seus
recantos mais íntimos.
VIrgem amável esta, que só pretendia abri r
-se ! Flor de encanto que apenas um sopro
fazia desabrochar! Sem a grande forretice do
pai , como lhe teria sido fáci l abri r caminho na
alta , onde tão dignos mestres não deixanam
de patrociná-la com eficác ia !
1 2 5
Má sorte a sua, porém, que a obrigava a
romper audaciosamente com u m velhote cheio
de preconceitos e a quem esta afluênc ia de
apósto los inqu ietava ; que já falava em despe
d i r a Atica e o Peloponeso !
Angustiada, Orthodoxi e via aproximar-se o
momento em que teria de ficar l i mitada a tra·
tar , e la própr ia , da sua cu ltura . . .
Ah ! Se ao menos Panard deixasse que e les
l essem as br i l hantes produções dos ps icólogos
e dos magos !
Mas nem pensar n isso era bom . Todas as
obras novas, que autores ou ed itores envia
vam ded icadas ao severo membro do Instituto,
eram exped idas i l l ico para o gab inete i rrisório
onde n i nguém era senhor de ficar reco lh ido
um quarto de hora .
E será desnecessário d izer q u e não havia
outro recurso. Só a l i as pessoas podiam ins
tru i r-se , mas t i rar de lá uma brochura era coisa
a pôr completamente de parte . Não deixaria
de explod ir , terrível , a raiva do ve l ho prefeito
que tudo esquadrinhava, se a lguém tivesse
a ideia de t irar um l ivro , que fosse, daquela
b ibl ioteca privativa e cata logada pela sua
memória implacável . Poss ib i l idade de l ê- los,
só lá.
A verdade , porém, é que Justin i en abusava.
As fo l has ficavam num ta l estado depois de
ele compulsar estudos sobre costumes, ou
reco l has poéticas , que às outras pessoas só
restava renunciar a percorrê- las, entre gemi
dos. Nem as dedicatór ias eram poupadas.
A senti menta l Orthodoxie, .essa perd ia a
cabeça . Privada repenti namente de um capí
tulo decis ivo que por certo a ter ia esclarecido,
não encontrava o fio às h istórias ; apesar da
sua inexperiência era forçada a construi r epi
sódios improváveis , a conjecturar desen laces
impossíve is .
1'26
A necessidade é mãe de · todo o engenho,
ao que se diz, e esta h istór ia veríd ica vai
fornecer-nos a prova.
Um d ia , apareceú lá em casa um robusto
moço de fretes carregando com as obras com
pletas do célebre romancista Borborigmo, que
em boa hora fora traduzido ( 1 ) .
Desde há muito aquela rapariga sonhava
ler as pág inas emol ientes e fi l armónicas do
relaxado moscovita , mas era de prever que a
sua mole preciosa não escapasse ao vulgar
destino dos papéis l ír icos ou documentários
que enchiam continuamente o gabinete - de
l e itura .
Não havia um minuto a perder. Para conjurar
a catástrofe , Orthodoxie foi ter com a t ia
Roxelane, que também era louca por l iteratura
e logo a segu i r a ela a mais eufón ica da fa
mí l ia .
E a l iás não menos semítica do que Panard ,
que a t inha em consideração atenta pelos
amáveis capit;;� is que ela possuía e man ipulava
com prudência apreciáve l . Da inquis ição do
maníaco só e la escapava ; o seu l imiar era
respeitado.
·
Em breves instantes as duas urd i ram uma
conspi ração que faz ia o grande homem escapar
às mãos profanadoras do coronel da gendar
meria . Corrompida por i l usórias promessas ,
Pa lmyre fo i quem arrastou o . fardo para o
quarto de Roxelane.
Belos d ias se viveram. Tia e sobri nha leram
e choraram juntas . . .
Por desgraça, a vibrante Orthodoxie não
pôde contar o seu . entusiasmo na medida acon
selháve l . Por sua cu lpa deixou escapar a lgumas
( 1 ) Provavelmente Tolstoi , cuja obra ·Léon B l oy de
testava . ·( N . do T. )
1 2 7
ideias e metáforas eslavas que, certa manhã,
despertaram a desconfiança de Panard .
Ju lgando que fa lava de ouro , a imprudente
articu lara a palavra rublo e e le levantara-se da.
mesa , como ati ngido por u m c larão súbito , pre- ·
c !p itando-se para o gabinete no momento
exacto em que Justin ien de lá saía.
Durante mu ito tempo ouvi ram-no saquear
os arquivos , mas n inguém teve coragem de
mexer-se, po is parec ia próxima a tempestade.
Panard acabou por vo ltar s i multaneamente
pá l ido e vermelho, parec ido com um cavaco
mal apagado quando l he dá a br isa.
- Onde estão os meus Borborigmos ? - dis
se num berro .
I nformada da tragéd i a , a t ia P lectrude ten
tou desviar para Justi n ien o c ic lone, mas o
gendarme ju rou pela cruz e . pelas suas botas
que desconfiavam de le i njustamente, não sen
do possível a lguém duvidar da sua veracidade.
Por sua vez Orthodoxie, no cúmulo do susto ,
cu lpou obstinadamente os seus i rmãos Atha
nase, Hé l iodore e Démétrius , que do assunto
não sabiam patavina, tendo sido muito fác i l
o l úcido patriarca ti rar a l i mpo a sua inocên
c ia .
Como o caso era grave, o castigo surgia
proporcional ao del ito . Fo i preciso restitui r
os preciosos a l farráb ios , fazê-los segui r a
estrada dos antecessores , e o três vezes
odioso tio é que se aproveitou deles quase
em exclus ivo, embrenhando-se com tal força
naquela l iteratura que só na hora das refeições
saía do antro .
·
Orthodoxie teve uma dor lancinante mas
consegu i u conformar-se. Chegou mesmo a
compreender que era aquele o juízoú lt imo de
todos os papéis humanos, era vu lgar ler-se
daquele modo · nas famíl ias em que a razão
predomina e as tangíveis fel ic idades são mais
1 2 8
estimávei s do que as e lucubrações decepcio
nantes de a lguns sonhadores . . .
Mas , o que estou e u a d izer? Não será ver
dade que Orthodoxie descobriu a verdade pro
funda do axioma que uma das nossas poetisas
formu lou e passou a ser, para e la , um princíp io
de luz?
Que antes de falarmos devemos dar à língua
1ete voltas na boca . . . do vizinho?
1 29
JOCASTA NA MÃ. VIDA
Sanctwn nihil est etab inguine tuiU'In •
. JUVENAL, Sálll'lls I I I
Senhor,
Quando receber esta carta já eu devo ir a
caminho de Africa, onde vou tentar que me
matem de maneira honrosa. E se isto tiver
o nome de . suicídio, julgo assim mesmo que
será aceitáve l , até para um catól ico como · · o
senhor.
� bem verdade que estou farto de viver;
absol uta e i rremediavelmente cansado daqui lo
a que sabujos e imbecis chamam a vida.
Dê-me a honra de acreditar, senhor, que
tenho os negócios em ordem. Não devo di
nheiro a n inguém, não haverá credor que me
chore. E os poucos rendimentos que uti l izei
de modo pouco nobre, depois de mim i rão
parar a mãos puras .
Não tenho famí l ia ; por outro lado, o grupo
dos meus amigos ou conhecidos mal chega a
valer um pensamento. Se exceptuarmos ' um
cão bem humi lde; n inguém dará pela minha
fa lta quando eu desaparecer . .
Mas antes de desaparecer resolvi confiar
- lhe um ·segredo de ignomínia e tristeza pavo
rosas cuja · d ivu lgação acredito que · possa,
ta lvez , aproveitar a alguns.
1 '31
Desde já esclareço que tem toda a l i berdade
de pub l icar esta confidência anónima a menos
que, em consciência, ju lgue . mais prático des
truí- la .
Uma vez escrita e posta no correio , ser-me-á
tão a l heia como qualquer drama desconhec ido
que durma nos l imbos da i maginação de u m
romancista . Além d isso já tomei med idas su
f ic ientemente meditadas para que a lguém
possa i dentificar-me.
Proceda, pois , como entender. E quanto ao
poema, é ass i m :
Quando perd i a mi nha mãe, eu andava pelos
seis anos de idade e recordo-me de ter sofrido
u m desgosto extremo, bem maior do que é
razoável numa criança, e que até foi motivo
para eu apanhar uma i nvulgaríssima saraivada
de tabefes.
Não posso esquecer como fiquei de coração
ferido, como fiquei d i lacerado quando vieram
d izer-me, de forma tão brutal , que eu não vol
taria a vê-la . que essa coisa de mãezi nha ti nha
act;:�bado, pois agora e la estava enfiada na terra,
entre os mortos . . Não havia meio de eu enten
der o que era isso de estar morto , mas fui
martelado · pelo . terror, triturado . em susto ,
e até hoje não fu i capaz de refazer-me .
· Não me mostraram o cadáver, pormenor cujo
sentido só muito mais tarde v im a compreen-
der. . . . ·
. Tanto gritei que o meu pai , homem duríssimo
que me detestava , . nesse mesmo. d ia me man
dou para o campo, para a orla de um bosque de
pinhe i ros m1,1ito sombrio , vizinho de um pân
tano malcheiroso e não · longe do estabeleci
mento: de um abatedor de gado _,... lugar s in istro
que a inda hoje me parece . estar a ver.
1 .3 :.1
Dois anos a l i fiquei privado de cultura, �o
cuidado ind iferente de uma camponesa resse
quida que me a l i mentava o mais sovinamente
possíve l e deixava andar, todo o d ia , na va
diagem .
E a m inha querida mamã, que estava entre
os mortos ! . . .
Atraído, arrastado como por urri anzo l , �t�Ui
tas vezes passeei à volta da pa l i çada do mata
douro.
Eu pouco via entre as tábuas , mas podia
respi rar o cheiro abom inável do antro e dava
com ratos enormes a correr à minha frente,
uns bicharocos horríve is que deviam sai r do
pântano.
Chegue.i a pensar que tivessem escondido
a l i a desaparecida - porque eu já pressenti ra
o mundo à imagem i nfame daquele esta le i ro
de magarefes para animais que sofrem;
Quando eu me ati rava de encontro à veda
ção - fi- lo tantas vezes - a soluçar, a chamar
pe la m inha mãe, até Deus não deixaria de
senti r pena de m i m .
Mu ito abandonado me achava, pode o se
nhor acreditar. Só via o meu pai uma tarde de
três em três meses , nas a lturas �m que e le
me rega lava com cascudos, exclus ivamente ,
e chamava rapaz id iota , • g randessíssimo cre
tino • , ladrãozinho ( ! ) , não se atrapalhando nada
a exalar o desejo que sentia , e expr imia em
.termos adequados, de me ver bater rap ida-
mente " a bota ,. .
·
U m d ia levou-me de passeio às margens do
pântano. Lembro-me de que era um l ugar cheio
de lodo e caniços onde eu t inha o hábito de
parar horas i ntei ras a · ver g i ri nos e salaman
dras que a l i fervi l havam. De repente , ordenou
-me que fosse · apanhar um nenúfa'r que flu
tuava a a lguns passos . Tentando obedecer
àquele homem sem piedade senti , aterrorizado ,
que estava a enfiar-me no lodo. Quando o meu
pai me ti rou de lá, a b lasfemar, já eu estava
mergulhado até aos ombros e, não fosse a
presença de uma testemunha atraída pelos
meus gritos , certamente eu teria a l i ficado,
de ta l modo a sua face era d iaból ica !
Foi este o vestíbu lo da minha existência ,
mas imagino que o senhor já esteja farto dos
meus começos e vou passar em branco os
m iseráve is anos que vivi depo is , anos de
internato no co légio onde o meu pai me deixou
encafuado por dois lustres .
Acredite se puder : até aos dezoito anos,
nem um só dia saí daquela prisão.
Os que a i nfância bafejou com a lgumas a le
gr ias não podem de todo entender o que nos
fica de uma prisão longa e feroz. Parece-me
que a lei c ivi l consente proced i mentos ass im ,
se não me engano próprios da paternidade
antiga.
Por mu ita ou pouca sorte , eu era demas i ado
robusto para morrer daqu i lo , embora não possa
ava l iar quanto mal aquel a estrumei ra fez à
m inha a lma: Como o senhor sabe, dez anos
de contacto com professores e a lunos são
capazes de apodrecer um cavalo de bronze.
Escritores há que já o demonstraram à sacie
dade ; e parece-me i núti l i ns isti r nesse ponto.
De tudo aqu i l o me restou uma coisa ún ica
e · preciosa, · uma espécie de f lor muito pura
num recanto v i rgem do meu jard i m devastado,
que é a lembrança i nfin itamente suave da m i-
nha mãe.
·
. Al iás, lembrança cheia de de l ícias, l um inosa
e tranqu ilizante ! . Tendo-a perdido tão cedo , ei.J
não conseguia reconstitu i r- lhe os traços mas
imaginava-a encantadora ao máximo, imortal
na , doçura dos afagos .
. 1 34
Da ú lt ima vez que a vi , ficou-me o ar muito
triste e meigo dessa mãe querida, tão meigo,
tão profundamente triste que só de pensar
nele me s into esvaído de compaixão . . .
Vou precip itar o desfecho desta h istór ia que
me mata e devora, suja para a lém do que
possa i mag inar-se .
Quando s a í do colég io , o homem q u e se
diz ia meu pa i enve lhecera ao ponto de eu quase
o não reconhecer. Segundo me parecia , a i nda
mais atroz se fizera.
O ódio que eu l he despertava , a l i ás i nexp l i
cáve l , d i r-se- ia exasperado até uma espécie
de ra iva crón ica e difíci l de pintar, que lem
brava a possessão demoníaca .
Nas primeiras noites tranquei-me no quarto ,
receando que e le aproveitasse o meu sono
para me esganar. Sem dúvida um medo juven i l ,
mas tão justificáve l pelos ol hares dissi mu
lados que me lançava !
Quanto a palavras, raras ou nenhumas em
bora as nossas almas se vissem uma à outra.
Eu t inha a sensação de estarmos frente a
frente e à bei ra de um abismo.
Algumas ordens secas, alguns monossíla
bos duros e cortantes , mais nada. Não erapreciso ser génio para entender que eu estava
a l i para sofrer um novo sup l íc io , apesar de me
ter feito homem e com experiência adqui r ida
nas tribu lações do i nternato un iversitário ,
apesar de ser capaz de enfrentar um leão
que me d issessem mais armado do que eu.
No entanto, como prever a coisa sem nome,
o horror in igualável. que aquele monstro me
reservava?
Como o meu pai era arquitecto , e tinha a
seu cargo traba l hos i mportantes , pôs-me à
1 3 5
ordem de um amanuense-chefe que devia in i-
c iar-me na arte da construção .
·
Este ind ivíduo, que estudei
.
com mu ito cui
dado e aos poucos fui exper imentando, já na
semana anterior à m inha partida de Paris para
o campo era o homem de confiança do meu
pa i , a sua alma danada . Recordava-me de
tê- lo visto desde sempre lá por casa . Este
homem fez-me traba l har de manhã à noite,
embora tenha assumido repentinamente um ar
de men ino bom , passado que foi o primeiro
mês, e ter-me declarado que o seu patrão,
menos coriáceo do que eu ju lgava; resolvera
gratificar-me com um belo salár io apesar de
eu viver debaixo do seu tecto e não precisar
de d inhe i ro .
- Toda a gente sabe como o s rapazes são
- acrescentou . - Depois de um longo d ia de
traba lho têm necess idade de prazeres , coisa
que o teu pai compreende muito bem. Por i sso
me encarregou de te entregar uma chave da
porta da rua, para poderes entrar à hora que
quiseres quando saíres de noite . Estamos i n
teressados em fazer-te senti r que não és ne
nhum pris ioneiro .
Como é natura l , o d i nhei ro q u e este i nter
mediário me entregou - o meu pri meiro di
nheiro ! - consegu iu enternecer-me e decid i r
-me a. não desconfiar . mais de le .
Facto , a l i ás , que e le logo aproveitou para
· me i nspirar a maior confiança possível , o que
não era trabalho de Hércu l es andando eu nos
meus dezoito anos e não tendo amigos no
mundo.
·
Mostrando-se bom rapaz , cada vez mais , . a
pouco e pouco se transformou no meu in ic ia
dor de l i berti nagens , d ignou-se apanhar bebe
dei ras .comigo e deu-me a conhecer locais
:bel íssimos .
' 1 36
Atamanquemos , porém , o episódio fi na l .
U m a noite , sabendo muito bem o que fazia,
o reles daquele homem deu-me o endereço
- não duvido que o tivesse guardado para
o momento oportuno - de uma mulher encan
tadora , apesar de madura, muito capaz de me
I nundar com todas as del ícias.
E duas horas passadas já eu estava na
cama com a minha mãe, que al iás só me
reconheceu no dia seguinte.
Aceite , etc .
1 3 7
LIVRO 8
I 'U BLICADOS:
O ARRANCA CORAÇOES/BORIS VIAN
O ELEFANTE/MROZECK
,_ DO ASSASSINIO COMO U MA DAS BELAS-ARTES/THOMAS DI!
QUI NCEY
·1 . A CASA DOS MIL ANDARES/dAN WEISS
FABULAS FANTASTI CAS/AMBROSE B I ERCE
1 1 . MANUSCRITO ENCONTRADO EM SARAGOÇA/VAN POTOCKI
I. ALICE DO OUTRO LADO DO ESPELHO/LEWIS CARROLL
1 1 . OS CONTOS CRUISIS/YILLI ERS DE L'ISLE·ADAII
1 1 . A EMBRUXADA/BARBEY D'AUREVILLY
I I I . PARAISOS ARTIFICIAIS/CHARLES BAUDELAIRE
1 1 . AS AVENTURAS DE GORDON PYM/EDGAR ALLAN POE
I ' ' FRANKENSTEI N/MARY SHELLEY
1 : 1 . SMARRA, OU OS DEMóNIOS DA NOITE/CHARLES NODII!R
1 •1 . O JARDI M DOS SUPLfCI OS/OCTAVE M I RBEAU
l l o . AS FI LHAS DO FOGO/G ISRARD DE NERVAL
I II . O FANTASMA DOS CANTERVILLE/OSCAR WILDE
I I . OS DEMóNI OS D E RANDOLPH CARTER/H. P. LOVI!CRAPT
I II . O CAPITAO CAP/ALPHONSE ALLAIS
I I I . O ELIXI R DA LONGA VI DA/H. DE BALZAC
;•o . AVATAR/GAUTHI ER
;o t . H I STóRIAS DE VAMPIROS
n. AFORISMOS/LICHTENBERQ
n CONTOS FANTASTICOS/ERNST HOFFMANN
�4. D I C I O NARIO DAS IDEIAS FEITAS/O. FLAUBERT
�t;. O OUTRO MUNDO OU OS ESTADOS E I MPéRIOS DA LUAr
/CYRANO DE BERGERAC
�6. O COCHE I RO DA MORTE/SELMA LAQERL6F
U. O REI DA MASCARA DE OU RO/MARCEL SCHWOB
�8. O CAVALEI RO DAS TREVAS/PAUL FéVAL
?9. SHE/H. RIDER HAGGARD
ao. O HO RLA E OUTROS CONTOS PANTASTICOS/GUY DE MAU.
PASSANT
:11 . O LOBISOMEM/ALEXANDRE DUMAS
:12. O ALTAR DOS MORTOS/HENRY JAMES
:13. O CASTELO DE OTRANTO/HORACE WALPOLE
34. VATEK/WI LLIAM BECKFORD
35. O ITALIANO/ANN RADCLIFPE
:16 . CONTOS DA CHUVA E DA LUA/UEDA AKINARI
87. PLANO DE EVASAO/ADOLFO BIOY CASARES
38. CRóNI CAS ITALIANAS/STENDHAL
39. O LIVRO DE AREIA/JORGE LUIS BORGES
40. A LENTE DE DIAMANTE/FITZ JAMES O'BRIEN
41 . VIS.AO DE CARLOS XI . E OUTROS CONTOS/PROSPI!R 118·
R I M I!i E
. . .
42. HISTóRIAS MAG I CAS/REMY DE GOURMONT
43. H I STóRIAS DESAG RADAVEIS/LI!iON BLOY
Título: Histórias Desagradáveil
Autor: Léon Bloy
Editor: EcUtorial :Bstimipa, Lda.
Tiragem: · 2700 ex.
Acabou · de iiii.prlmir ein: 26 de Novembro de 1!182
Oficinas: Guide - Artes Gráficas, Leia.
LISBOA -. PORTUGAL
HISTORIAS DESAGRADAVEIS :
I 1\\11\ 1\1111\\\ll\11\ 1\1111\\1\11\\\ III\\ 11111\\11\11\\\1111\\11\\11111\\1 !11978972330236311
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