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Capítulo VI Da ação 1. A ação como meio de instauração do processo. A lide O Estado suprime do particular o poder de fazer justiça pelas próprias mãos e assume a obrigação de fazê-la por ele. É o exercício da jurisdição. Os litígios nascem em razão de conflitos de interesses, qualificados pela pretensão de um e resistência de outro. Determinada pessoa pretende ser proprietária de um imóvel e dele quer a posse que está com outra e dela não quer dispor. Eis aí o litígio, a lide, em linguagem processual mais técnica. Como fenômeno processual, a lide não se revela nos moldes com que se apresentou na vida social. Mister se faz que a pretensão seja deduzida sob forma de pedido específico de prestação jurisdicional. Não é possível ao juiz sair à busca de litígios para solucioná-los, sendo necessário que os interessados o façam, mas revelando-os no processo, através de pedido especificado. A jurisdição, em princípio, só atua provocada (art. 2º). Podendo ocorrer também que o direito já esteja reconhecido, acertado, através de sentença judicial, a ela se dá cumprimento, desde que, em prosseguimento, a obrigação reconhecida não seja satisfeita; também por vontade dos particulares quando a lei assim o reconhecer, é possível acertamento que torne a pretensão apenas insatisfeita. Neste caso, pode-se instaurar o processo de execução autônomo para dar cumprimento efetivo à obrigação. 2. Conceito de ação O direito do particular de solicitar prestação jurisdicional é o que se chama ação. Não há dúvida de que a ação seja um direito, mas seu próprio conceito e natureza muito variaram na doutrina, através dos tempos. Tal variação merece acurado estudo, já que de seu conceito e natureza muito vão depender institutos de direito processual, inclusive o da coisa julgada. 3. Natureza jurídica da ação – concepção privatística Dos romanos herdamos a concepção privatística da ação, também desenvolvida por Savigny, no século passado. A ação é o próprio direito se realizando, em posição defensiva. Não se consegue aqui separar a ação do direito. Ela é parte integrante dele. Esta era a concepção adotada pelo Código Civil de 1916, quando afirmava: “A todo o direito corresponde uma ação, que o assegura” (art. 75)2. 4. A polêmica entre Windscheid e Muther Doutrinadores germânicos chegaram a conclusões decisivas para a consagração da autonomia do Direito Processual Civil. Além do conceito romano tradicional da actio, no direito germânico medieval, criou-se também a figura da klage, que não é o direito visto de seu aspecto defensivo, mas sim um outro direito de pedir tutela jurisdicional. Parte importante do problema é estabelecer-se a noção exata da ação como direito. Se ela é um direito, há de haver uma obrigação que a corresponda, o que quer dizer, sempre haverá o sujeito ativo e o sujeito passivo da relação. Windscheid via na ação o direito de a parte reclamar contra o adversário, perante a Justiça. Muther, em troca, sustentava que a ação era direito público subjetivo, dirigido contra o Estado, para que este lhe reconhecesse o direito, obrigando o adversário a cumprir o que fosse devido. 5. Teoria da ação como direito concreto Adolph Wach, em 1888, escreveu seu famoso livro sobre a Ação declaratória e chegou a conclusões que o celebrizaram como idealizador da doutrina da ação, como direito concreto, sendo o jurista que, definitivamente, deu cunho de autonomia ao Direito Processual Civil, ao lado de Von Bülow. Não há nenhum ponto de identificação entre a existência do direito e a ação, pois, nas ações declaratórias negativas, o que se pretende é provar a inexistência do direito, como seria o caso do suposto devedor promovendo ação, para que o juiz declarasse que ele não devia. Para Wach, a ação seria direito público, dirigido contra o Estado, perante o réu, objetivando a prestação jurisdicional, mas autônomo por excelência. O credor, por exemplo, teria o direito de recebimento de seu crédito e, como portador do direito, teria também o de requerer ao Estado prestação jurisdicional para o dito recebimento. 6. A ação como direito abstrato Outros juristas de nomeada fizeram interessante observação. Como dizer que a ação é direito de quem tem razão se aquele que não a tem põe em atividade o órgão jurisdicional e dele extrai um julgamento que constitui exatamente o cumprimento da obrigação estatal, correspondente ao direito de ação? Alguns chegaram até a considerá-lo como simples direito de petição, exercido perante o Poder Judiciário, como é o caso de Couture, no Uruguai. O órgão jurisdicional está obrigado ao despacho. Despachada a petição, mesmo que seja para recusa de julgamento do pedido, fez-se o exercício do direito de ação. Essa é a teoria do direito abstrato. Para uma corrente, a ação é direito a uma sentença de mérito, sendo, portanto, condicionado. Para outros, absolutamente abstrato, o direito de ação é simples modalidade do direito de petição. 7. Ainda a ação como direito concreto. Chiovenda. Direito potestativo. Condições da ação Chiovenda fez críticas a Degenkolb, da teoria do direito abstrato. Não aceitou ele a argumentação do direito abstrato, já que uma coisa é a faculdade de acionar o órgão jurisdicional e outra é exercer o direito de ação. Contraditório seria reconhecer direito a quem não tem nenhum direito. O direito de ação seria público ou privado, patrimonial ou não, tal fosse o interesse de ordem material tutelado, e dirigido contra o réu. Verdade que ao réu não corresponde nenhuma obrigação efetiva, mas ele não pode subtrair-se aos efeitos do exercício do direito do autor. É caso típico de direito potestativo, como ocorre com o que tem o condômino de dividir, a qualquer tempo, o imóvel comum, sem que se reclame atividade efetiva do outro. Como todo direito, tem ele condições de exercício. Em primeiro lugar, autônomo, mas subordinado à existência do direito material demandado, teria como condição a própria existência do direito. O credor tem o direito de receber seu crédito e de acionar o devedor para consegui-lo. Em sentido mais amplo, direito de quem tem razão, pois, às vezes, o que se discute é uma declaração negativa. Não basta, outrossim, a simples existência do direito. Se ele existe, só pode ser pleiteado por seu titular, ou por quem pode fazê-lo por ele. O filho, por exemplo, pode ser credor, mas o pai, em nome próprio, não pode demandar o crédito. É a qualidade de quem pede, ou legitimidade para causa. Da mesma forma, para que se solicite tutela jurisdicional, mister se faz que a atuação do órgão estatal seja de necessidade, ou, pelo menos, de utilidade, para que possa seu titular gozar do direito. É o interesse. 8. Carnelutti. Conceito de lide A teoria originalíssima de Carnelutti é de muita importância no Direito brasileiro. Para ele, os “bens” da vida são limitados, mas ilimitadas são as “necessidades humanas”. Chama-se “interesse” a posição de determinada pessoa, para satisfazer uma necessidade, diante de determinado bem. Mas, exatamente pela limitação dos bens, pode haver choque de interesses entre duas ou mais pessoas. Dá-se, então, o conflito de interesses. O conflito de interesses pode ficar estático e, neste caso, permanece socialmente irrelevante, mas, se qualquer dos sujeitos do conflito pretender e o outro resistir,nasce o litígio ou a lide. Transferida para o processo, a lide dele vem a ser conteúdo exclusivo, podendo ser deduzida integral ou parcialmente. Se se pretende, por exemplo, a retomada do prédio, que se loca, por dois fundamentos – falta de pagamento e vencimento do contrato, sendo ambos deduzidos, tem-se lide integral e processo integral; apenas um, lide parcial e processo parcial. A ação seria o instrumento adequado para a instauração do processo, com objetivo de julgamento da lide. Seria direito do interessado, direito público subjetivo e abstrato por excelência, porque, para seu exercício, não se questiona sobre quem venha a ter razão, mas apenas sobre a existência de um litígio, com a respectiva solução. 9. Liebman. Reformulação da teoria de Carnelutti Liebman reformulou a teoria de Carnelutti. Ele aceita o conceito de lide: conflito de interesses, qualificado pela pretensão de um e resistência de outro. Mas não a tem como fenômeno exterior ao processo, como se fosse simples transferência de contenda da vida social para o processo. Não, a parte não apresenta apenas uma denúncia, mas formula pedido concreto e, neste pedido, é que se configura a lide. Não há lide nem processo parcial e integral. A lide será sempre a que se informa pelo pedido. A ação, para Liebman, é o direito, o poder jurídico que a parte tem para pedir tutela jurisdicional, isto é, o julgamento do pedido formulado. Direito abstrato, pois, ao decidir sobre o pedido, julgando o mérito, o juiz não se compromete a tê-lo por procedente. Cumpre o juiz sua função jurisdicional, simplesmente julgando o pedido, sem importar o resultado. A ação não é o direito à sentença favorável, mas à sentença de mérito. O pretenso credor, por exemplo, tem o direito de ação e o exerce integralmente, quando o juiz julga o pedido, procedente ou improcedente, não importa. Tão abstrato é o direito de ação que se constitui até em ofensa a preceito constitucional a proibição cautelar de distribuição de causas, ocorrida, às vezes, no fórum, a pedido de partes menos avisadas. Mas, mesmo sendo abstrato, a ação como direito tem condições para ser exercida. Para Liebman, a simples faculdade de a parte recorrer a juízo, em sentido geral, constituía antes um poder jurídico do que propriamente um direito. Modernamente, Fazzalari, que nega ser o processo relação jurídica, vê a ação de uma posição subjetiva, revelada por quem possa ser destinatário de determinado provimento. Para chegar a este provimento, todos os destinatários participam da formação do processo, e todas as faculdades, poderes e deveres que se cumprem e se exercitam constituem ação, que não seria, em consequência, apenas direito de quem promove o processo, mas de todos os que pelo provimento serão afetados e que daquele poderão participar. Os que participam do processo, sem interesse próprio, como o juiz e auxiliares, não exercem ação, mas função. O conceito de ação em tais termos, embora não adotado pela lei, poderá, sem feri-la, justificar determinadas consequências processuais, mormente quando se trata de estabelecer os limites subjetivos de um provimento judicial, com a consequência de resguardo ao direito à jurisdição e ao processo como técnica de realização e defesa do próprio direito material. Explica-se, assim, o direito do réu à sentença e à prática de atos na formação do processo, bem como a participação, voluntária ou provocada, dos chamados terceiros interessados, com poderes e faculdades que, na realidade prática, confundem-se com o que se chama direito de ação. 10. A ação como direito. Condições de exercício Sendo a ação o direito à sentença de mérito, isto é, formulando-se através dela um pedido, providência concreta, para que se cumpra a obrigação correspectiva, é mister que ocorram certas condições. O direito material de propriedade é previsto em lei, mas ele só pode ser invocado por quem é proprietário, condição essencial de seu exercício. Da mesma forma, para que o juiz responda ao pedido do autor, julgando o mérito, a lide, é preciso que o autor tenha as condições de agir. 11. Condições da ação e pressupostos processuais As condições da ação não se confundem com os pressupostos processuais. A jurisdição é imparcial. Para que se faça correto julgamento, mister se faz que o processo se tenha formado validamente. Existem, assim, três ordens de matéria que o juiz, necessariamente, enfrenta, quando julga no processo: matéria de processo, matéria de ação e matéria de mérito. As duas primeiras, conjuntamente, podem ser chamadas de condições de admissibilidade do julgamento da lide. 12. Legitimidade para a causa O direito de ação é abstrato e a relação processual autônoma e independente, sem nenhuma vinculação com o direito material deduzido no processo. Em razão desta abstração e autonomia, não se pode dizer que só possa propor ação quem seja sempre o titular do direito e que o pedido só pode ser feito contra o obrigado da relação de direito material. Não, afaste--se tal entendimento por demais pernicioso. A pessoa pode não ter o direito e ser parte legítima para propor ação. Alguém se diz credor de outro e pretende receber. O juiz diz que o crédito não existe, mas procurou receber quem se dizia credor contra quem alegava ser devedor. Há legitimidade. Para se aferir corretamente a noção de legitimidade, deve-se apegar muito mais à característica de autonomia da relação processual do que ao conceito abstrato do direito de ação. A relação processual é outra. Em consequência, duas definições se fazem necessárias na lei, a da relação de direito material e a da relação processual. Definida que seja a primeira, não se pode dizer que também o esteja a segunda. Há autonomia. Poderia ser absurdo filosófico, mas não ilógico e contraditório, afirmar-se que todo credor tem direito de receber de seu devedor, mas quem tem direito de propor ação para recebimento do crédito é o pai do credor, exatamente porque a definição da relação processual e, em consequência, da legitimação para a causa é dada por conceito próprio e exclusivo não, necessariamente, coincidente com a relação de crédito e débito do direito material. O art. 18 do novo Código de Processo Civil brasileiro diz: “Ninguém poderá pleitear direito alheio, em nome próprio, salvo quando autorizado pelo ordenamento jurídico”. Isto quer dizer que só terá legitimidade ativa para a ação, em princípio, apenas quem pleiteia direito próprio, ou, melhor dizendo, direito de que se julga portador, caso exista. A norma é de direito processual e apenas por coincidência é que pode haver identificação com o titular do direito material, muito embora coincidência que, no maior número dos casos, se repete. Não seria nenhum absurdo a regra da legitimação sendo outra, como, por exemplo, “Compete ao Ministério Público pleitear direito dos particulares”. A conveniência da norma é sempre informada pelas razões primeiras do direito, e, neste caso, a regra geral de legitimação é para aquele que na definição hipotética do direito é seu titular. Por exceção, a lei permite que outros postulem direito alheio, como é o caso do marido que defende bens dotais da mulher (CC/16, art. 289, III)3, do Promotor de Justiça, quando propõe ação de indenização a favor da família pobre da vítima (CPP, art. 68), ou do Sindicato, ao pleitear melhorias salariais para toda a classeque representa (CLT, art. 872, parágrafo único). São casos chamados, vulgarmente, de substituição processual, mas que, no fundo, em razão de ser a ação direito abstrato e ser autônoma a relação processual, é legitimação que decorre da lei e consequentemente sem nenhuma anomalia. Legitimação tão normal que o próprio titular tem, em princípio, plena disponibilidade da ação, a ponto de poder propô-la, quando quiser, sem que aquele para quem se pleiteia possa impedi-lo e mesmo interferir negativamente, como seria o caso de pretender formular a própria desistência. A legitimação para a causa é vista de ambos os polos da relação processual, a ativa e a passiva respectivamente, e não se confunde com a legitimação processual, ou capacidade de estar em juízo. Um menor de dezesseis anos pode ter legitimidade para a causa, mas não tem capacidade de estar em juízo, devendo ser representado (art. 71). A ilegitimidade para a causa pode ser manifesta e pode depender de indagação. Ocorre a primeira, quando, pela simples leitura da petição inicial, ela se revela. O locatário, como tal, pleiteia reconhecimento de servidão a favor do proprietário, ou alguém o pleiteia contra ele, reconhecendo-o locatário. O pai, sem representação, em nome próprio, intenta receber crédito do filho. A ilegitimidade que depende de indagação, ao contrário, é aquela que não se revela na petição inicial, nem pelos documentos fundamentais ou substanciais que a ela acompanham. O sindicato, que pode defender interesses da categoria (art. 8º, III, da Constituição Federal), às vezes, está a desviar-se das finalidades de sua atuação, defendendo outros que não aqueles, e sua legitimidade depender de provas. O caso é de ilegitimidade para a causa, mas não pode ser reconhecida de plano, por haver matéria probatória a se questionar. A ilegitimidade para a causa pode ser reconhecida a qualquer momento (art. 485, VI), a manifesta pode ser causa de indeferimento liminar da petição inicial (art. 330, II). 13. Interesse processual O Estado se obriga à prestação jurisdicional. Ao cumpri-la, evidente que deva fazê-lo movido pela necessidade ou, pelo menos, pela utilidade de sua intervenção. O pai comparece a cartório e registra o filho. Levado mais tarde por questões íntimas, o filho propõe investigação de paternidade contra o pai. Ora, já havendo o reconhecimento legal, qual a necessidade ou utilidade da atuação do Estado? O imóvel já é de propriedade indiscutível e incontestável da parte, posto que fora sujeito a Registro Torrens4. Mesmo assim, a parte pede declaração de propriedade, sem denunciar nenhuma contestação séria. O procedimento especial de consignação em pagamento, previsto pelos arts. 539 e seguintes é obrigatório, pois, para seu desenvolvimento, mister se faz o depósito prévio da importância a ser consignada. O autor, porém, faz o pedido no procedimento ordinário, requerendo simplesmente a condenação. O juiz, logicamente, não deverá examinar o pedido por sua completa inutilidade, já que o procedimento especial é imposição intransacionável. Nos exemplos supracitados, no caso da investigação de paternidade e no do Registro Torrens, não há, na verdade, nenhum conflito de interesses, nem efetivo nem eventual. Na hipótese da consignação, há falta de adequação do pedido do autor, já que a providência concreta solicitada (condenação) não pode ser atendida, porque o autor só se libera se o bem objeto do pagamento estiver em depósito. A ausência de conflito de interesses e a falta de adequação do pedido do autor revelam falta de interesse processual, que é a segunda condição da ação. Por falta manifesta de interesse processual também pode a petição inicial ser liminarmente indeferida (art. 330, III). Nenhuma correspondência há entre as condições da ação e a existência do direito. As condições da ação são examinadas exclusivamente do ângulo processual. Não se faz mister que o direito pleiteado exista, para que a parte tenha ação. No entanto, se o processo é instrumento de composição das lides e de efetivação do direito, sem razão fica o exercício da ação, quando o pedido, a providência invocada pelo autor não tem permissibilidade, em abstrato, no ordenamento jurídico respectivo. Mulher que convive maritalmente com determinado cidadão, pelo espaço de trinta anos, pretende que o juiz os declare casados, por decurso de tempo. Caso típico de impossibilidade jurídica do pedido, pois nosso direito não reconhece tal espécie de matrimônio, embora pudesse até ser de justiça. A possibilidade jurídica do pedido, no Código revogado, era condição, atendendo, inclusive, a posição primitiva do inspirador do estatuto, Enrico Liebman5. A falta de possibilidade jurídica do pedido pode revelar, na verdade, falta de interesse processual, não podendo confundir sua mera declaração com o mérito da causa, cujo julgamento, estando sujeito à coisa julgada, não permite o retorno da questão em outro processo, o que não ocorrerá se a possibilidade jurídica da hipótese vier, posteriormente, a ser consagrada. O divórcio, negado como possibilidade jurídica, quando ainda não adotado no Brasil, pode ser reexaminado em feito posterior, após a adoção do instituto. A matéria sujeita-se à preclusão, mas não à coisa julgada, como, aliás, agora, se consagra expressamente no art. 473, § 1º (“No caso de ilegitimidade ou falta de interesse processual, a nova propositura da ação depende da correção do vício”). Também a proibição de determinada providência é caso de impossibilidade jurídica, como seria, no caso, por exemplo, de se pretender a existência de paternidade, realizada em cartório apenas com informação de testemunhas. 14. Carência de ação A falta de qualquer das condições da ação faz com que o juiz extinga o processo, sem julgar o pedido, o mérito, a lide (art. 485, VI). O julgamento é de carência de ação, expressões usadas no Código anterior (art. 330, X). Carência de ação e improcedência do pedido não se confundem. A primeira, se reconhecida, não inibe o autor de renovar o pedido, instaurando novo processo, tal como ocorre quando falta pressuposto processual (art. 486), exatamente porque a definitividade do julgamento só se verifica na decisão da lide (art. 490), que se identifica com o mérito nas hipóteses do art. 474, I a III. Com referência ao último exemplo dado de interesse processual, deve-se lembrar que a falta de adequação que nela se traduz não se refere ao procedimento, mas ao pedido, à providência concreta solicitada. Destarte, se se pede prestação de contas adequadamente, mas o caso não é de prestação de contas, o julgamento que assim o reconhece é do próprio pedido, do mérito, da lide e está sujeito à definitividade, à coisa julgada material, dentro dos limites propostos, isto é, somente prestação de contas. 15. Condições de admissibilidade do julgamento da lide. Reconhecimento de ofício Matéria referente a pressupostos processuais, neles se incluindo coisa julgada, litispendência e perempção, e matéria referente a condições da ação, em qualquer tempo e grau de jurisdição, antes de proferida sentença de mérito, podem ser examinadas, até mesmo de ofício pelo juiz ou tribunal, ainda que sobre elas já tenha havido pronunciamento expresso (art. 485, § 3º, c/c art. 485, IV, V, VI e IX). Tais matérias interessam diretamente ao poder jurisdicional e apenas indiretamente às partes. São deordem pública e importam ao próprio funcionamento da jurisdição, cujas finalidades são a solução dos litígios e a efetivação dos direitos já reconhecidos. O Código atual adota, expressamente, o entendimento de que, mesmo podendo repetir a demanda, no caso de falta de condições da ação, a reiteração só poderá ocorrer, se o vício for sanado (art. 486, § 1º), não bastando a repetição pura e simples da ação. A questão não se acoberta por coisa julgada, mas por simples preclusão, pois, submetida à jurisdição, foi decidida. Portanto, até que se demonstre sanado o vício, a rejeição da ação está de pé. 16. Ação e pretensão A ação é o direito de pedir tutela jurisdicional. Direito que se exercita contra o Estado, tendo-o como sujeito passivo da relação. De tal ângulo, pode-se entender Liebman que a ação seria o poder jurídico de requerer tutela jurisdicional, o que, evidentemente, não a desnatura como direito. A pretensão é um ato concreto, realizado perante o juiz, mas com relação ao réu. É uma afirmação, objetivando o reconhecimento ou a inexistência de um direito, com efeitos específicos, ou ainda a efetivação do que já está reconhecido. A pretensão é o conteúdo da ação. Reivindicando bens, o autor solicita do juiz tutela jurisdicional e afirma a providência efetiva que quer, através do pedido de condenação do réu, para que ele lhe entregue o que reivindica. O pedido de tutela jurisdicional é a ação e a reivindicação afirmada, a pretensão. Havendo nítida diferença, não se pode classificar a ação pela pretensão. O Código de 1973, de início, no art. 10, parágrafo único, I, falava em ações reais imobiliárias. Constituía erro terminológico, pois só a pretensão é que pode ser real ou pessoal 6, erro que não comete o novo Código, já que fala também em “direitos reais imobiliários”, para exigir o consentimento de outro cônjuge e a citação, quando um deles for réu. Da mesma forma, é erro dizer ação reivindicatória, ação negatória, ação revocatória, ação de depósito, ação de prestação de contas etc., pois a ação só objetiva tutela jurisdicional generalizada, sendo a pretensão que caracteriza a providência concreta invocada. A não ser que se tenha um outro conceito de ação, que não processual. Hoje, pelo entendimento de haver também processos especiais, e não apenas procedimentos especiais, em razão da própria finalidade e especialidade do procedimento básico, parece que se pode afirmar: ação rescisória, ação de mandado de segurança, ação de injunção, ação de habeas data etc. 17. Ação de conhecimento e de execução A ação é o direito do particular de requerer tutela jurisdicional. Sua classificação deve atender à espécie de tutela invocada, na sua generalidade. Se se pretender a solução de uma lide, a ação será de conhecimento; se se pretender a efetivação de direito já acertado, será de cumprimento da sentença, se tal for o acertamento; se o acertamento ocorrer entre os próprios particulares conforme admitido em lei, para a efetivação da obrigação instaura-se o processo de execução; se se pretender acautelar outros processos, será de cautela. Ação de conhecimento e ação de execução correspondentes, respectivamente, ao processo de conhecimento e processo de execução. Tem-se procurado dar outra ideia de tutela jurisdicional, de forma tal que a ação, continuando como sendo direito a uma sentença de mérito, passa a ser também forma de dar efetivação ao direito material, com resultados eficientes e justos. Em outras palavras, para que o processo atinja sua finalidade, não basta que o interessado logre alcançar uma sentença de mérito, mas também o resultado adequado, na forma e momento também próprios. Vale a pena, embora não seja o sistema do livro, citar passagem de Cândido Dinamarco: “O direito moderno não se satisfaz com a garantia da ação como tal e por isso é que procura extrair da formal garantia desta algo de substancial e mais profundo. O que importa não é o oferecer ingresso em juízo, ou mesmo julgamentos de mérito. Indispensável é que, além de reduzir os resíduos de conflitos não jurisdicionalizáveis, possa o sistema processual oferecer aos litigantes resultados justos e efetivos, capazes de reverter situações injustas e desfavoráveis. Tal é a ideia de efetividade da tutela jurisdicional, coincidente com a da plenitude do acesso à justiça e a do processo civil de resultados” (Tutela Jurisdicional, RF, 334:18). 18. Ação declaratória, condenatória e constitutiva Toda ação de conhecimento é declaratória, pois, de qualquer forma, ela sempre objetiva a declaração da existência ou inexistência de relações jurídicas entre as partes. Chama-se, porém, simplesmente declaratória a ação que apenas declara a existência ou inexistência de relação jurídica (investigação de paternidade – declaração de filiação) ou autenticidade ou falsidade de documento (art. 19, I e II). Se à simples declaração se adere a imposição de cumprimento de determinada prestação pelo réu, tem-se a ação condenatória (o credor pede o reconhecimento do crédito e a condenação do réu ao pagamento). Se, pela declaração, há a criação, modificação ou extinção de um estado ou relação jurídica, tem-se a ação constitutiva (rescisão de contrato, pedido de anulabilidade do negócio jurídico por fraude contra credores, separação judicial e o divórcio contencioso). O pedido simplesmente declaratório é admissível, ainda que haja violação de direito (art. 20), ou seja, decisão que poderia gerar condenação. O art. 584 do Código de 1973 diz que “São títulos executivos judiciais: I) a sentença condenatória proferida no processo civil”. Ao disciplinar o “cumprimento da sentença”, a Lei n. 11.232/2005 rompeu a tradição de se considerarem apenas condenações expressas para se dar efetivação a direito reconhecido e adotou, no Código, no art. 475-N, a seguinte posição: “São títulos executivos judiciais: I) A sentença proferida no processo civil que reconheça a existência da obrigação de fazer, não fazer, entregar coisa ou pagar quantia certa”. O art. 502, I, do novo Código registra o seguinte dispositivo: “São títulos executivos judiciais...: I. As decisões proferidas no processo civil que reconheçam a exigibilidade de obrigação de pagar quantia, de fazer, de não fazer ou de entregar coisa”. Em razão, pois, da nova orientação, é de se entender que, se a sentença declaratória reconhecer, ainda que seja a favor do autor, ou mesmo do réu, em ação declaratória negativa, ou em sentença de improcedência, obrigação de fazer, não fazer, entregar ou pagar, a declaração equivale à verdadeira sentença condenatória que enseja cumprimento de sentença, ressalvadas, certamente, as obrigações ainda não exigíveis e as sentenças que apenas declararam relação jurídica, sem estabelecer, em razão de sua própria natureza, qualquer obrigação a ser cumprida, como seria, por exemplo, a investigação de paternidade. 19. Coisa julgada e questões prejudiciais A coisa julgada recebe sua limitação objetiva pela lide. A lide é o pedido com sua fundamentação. O proprietário do imóvel propõe ação contra o vizinho, objetivando reconhecimento de servidão. O réu contesta, negando o direito do autor, sob fundamento de que servidão não pode existir, porque ambos os imóveis são de sua propriedade, contrariando o pedido do autor o art. 1.378 do Código Civil de 2002,que exige prédios de donos diferentes. Julgando o pedido procedente ou improcedente, embora forçado a se pronunciar sobre a propriedade, entendia-se que o juiz sobre ela nada decidira, com força de definitividade, já que a limitação da lide estaria no pedido de servidão. A questão da propriedade seria mera prejudicial (art. 469, III, do Código de 1973). Se qualquer das partes pretendesse, poderia, no próprio processo, formular pedido declaratório incidente, para que o julgamento incidisse também sobre a questão prejudicial (arts. 5º, 325 e 470). Era a ação declaratória incidental que existia ao lado da declaratória comum. O Código atual, embora não ignorando a existência das questões prejudiciais, mudou a orientação, admitindo a ocorrência de coisa julgada sobre elas, se da resolução depender o julgamento de mérito; se tiver havido contraditório prévio e efetivo, não se aplicando no caso de revelia; se o juízo for competente em razão da matéria e da pessoa (art. 503, § 3º, I a III). 20. Ação executiva lato sensu e ação mandamental Recentemente, parte da doutrina pretende ainda a existência de mais duas espécies de ações: a executiva lato sensu e a mandamental. A primeira seria a correspondente à sentença a que se aderisse o elemento da auto- executividade, como ocorre nos pedidos de reintegração de posse. A segunda seria ação que objetivasse sentença ultrapassando a simples declaração, determinando ainda o cumprimento ou abstenção de fato. É o caso do mandado de segurança e do interdito proibitório. Obras consultadas Ada Pellegrini Grinover, Ação declaratória incidental, Revista dos Tribunais, 1972; Adroaldo Fabrício, A ação declaratória incidental, Forense, 1976; A. C. de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover, Cândido R. Dinamarco, Teoria geral do processo, 4. ed., Forense; Aroldo Plínio Gonçalves, Técnica processual e teoria do processo, Aide, 1992; Arruda Alvim, Código de Processo Civil comentado, Revista dos Tribunais, v. 1; Buzaid, Agravo de petição, Saraiva, 1956; A ação declaratória no processo brasileiro, 1933; Cândido Dinamarco, Tutela jurisdicional, RF, 334:19-41; Carlos Ramirez, Areila, La pretensión procesal, Editorial Temis, 1986; Carnelutti, Instituciones, trad. esp. Sentís Melendo, 5. ed., EJEA; Celso Barbi, Comentários ao Código de Processo Civil, 2. ed., Forense, v. 1; Chiovenda, Principios, trad. esp., 3. ed., Ed. Reus; Instituições, trad. bras., Saraiva; Couture, Fundamentos, 3. ed., Depalma; Elio Fazzalari, Istituzioni di diritto processuale, 5. ed., CEDAM, 1989; Enrique Vescovi, La acción y la excepción, in Curso de derecho procesal, Instituto Uruguayo de Derecho Procesal; Flávio Luiz Yarshell, Tutela jurisdicional, ed.Atlas, 1999; Humberto Theodoro Júnior, Processo de conhecimento, 1. ed., Forense; José Carlos Barbosa Moreira, O novo Código de Processo Civil brasileiro, 5. ed., Forense; José Frederico Marques, Manual, l. ed., Saraiva; José Roberto dos Santos Bedaque, Direito e processo, Malheiros Ed., 1995; Liebman, Manuale, 3. ed., Giuffrè; trad. esp. Sentís Melendo, EJEA; trad. bras. Cândido Dinamarco, 4. ed., v. 1; Lopes da Costa, Direito processual civil brasileiro, 2. ed., Forense; Rogério Lauria Tucci, Da ação e do processo civil na teoria e na prática, Saraiva, 1978. 2. O Código Civil atual não adotou qualquer conceituação da ação em moldes processuais, mas, ao tratar de prescrição, falou em pretensão e não em ação (art. 189), evitando penetrar na seara, hoje exclusiva do Direito Processual Civil. 3. O Código Civil em vigor não acolheu o regime dotal de bens no casamento, mas, enquanto existirem bens dotais, provenientes de anteriores regimes, a legitimação marital ainda persiste (art. 2.039, c/c art. 2.043). 4. Não se deve confundir a situação, quando não se tratar de Registro Torrens. Usucapião é forma de adquirir, como a transcrição. Nesse caso, embora transcrito o imóvel, o que cria presunção simplesmente iuris tantum, é possível de declaração. O Torrens, porém, é a indiscutibilidade absoluta da transcrição. 5. Na terceira edição de seu Manual, Leibman excluiu a possibilidade jurídica do rol das condições da ação. 6. A Lei n. 8.952/94 corrigiu o erro, dando ao art. 10 a seguinte redação: “O cônjuge somente necessitará do consentimento do outro para propor ações que versem sobre direitos reais imobiliários”. O Código Civil atual faz nítida diferença entre direito, ação e pretensão, quando afirmar que a prescrição vai incidir sobre esta última. E com razão, porque sujeito passivo da ação há de ser sempre o Estado, de quem se pede tutela jurisdicional, enquanto a pretensão se dirige contra a parte contrária.
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