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Frances H. Burnett O PEQUENO LORDE

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Frances H. Burnett
O Pequeno Lorde
Infanto-Juvenil
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Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destina-se unicamente à leitura de pessoas portadoras de deficiência visual. Por força da lei de direitos de autor, este ficheiro não pode ser distribuído para outros fins, no todo ou em parte, ainda que gratuitamente.
Composto e impresso por Printer Portuguesa, Indústria Gráfica, Lda. Mem Martins – Sintra para a EDITORIAL PUBLICA, com sede na Avenida Poeta Mistral, 6-B - 1000 Lisboa Maio de 1987 
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Uma grande surpresa
Cedric ignorava a sua própria história. Quando o pai morreu, ainda ele não tinha completado cinco anos. Sabia que era filho de um inglês, porque a mãe lho dissera, e lembrava-se, apenas, de que o pai era um senhor muito alto, com olhos azuis e grandes bigodes loiros. Recordava-se também de que o pai costumava escarranchá-lo no ombro, andando assim, com ele, em volta da sala de jantar, e rindo, os dois, cheios de alegria.
Um dia, o capitão Errol adoeceu e Cedric foi levado de casa. Quando voltou, algum tempo depois, tudo tinha mudado. A mãe não parecia a mesma: toda vestida de preto, estava magra, pálida e triste - ela que fora tão alegre! 	Com os lindos olhos escuros sempre cheios de lágrimas. Passava os dias sentada junto do fogão ou em frente da janela, fitando o espaço.
 	- Querida! - exclamou Cedric. (Era assim que o capitão Errol chamava sempre à mulher, e o pequenito habituara-se também a dar-lhe esse doce tratamento. ) - Querida, o paizinho está melhor?
A mãe apertou-o muito de encontroao coração, e não respondeu.
A pobre senhora mal podia reprimir os soluços.
Cedric ergueu para ela a cabecita toda cheia de caracóis dourados e insistiu:
- Como está o paizinho, Querida?
 O seu coraçãozinho dizia-lhe que a única coisa que tinha a fazer era deixar-se ficar no colo da mãe e lançar-lhe os braços em volta do pescoço, beijando-a com toda a ternura de que era capaz. E a mãe, já sem poder dominar-se encostou a cabeça ao ombro do pequenito e chorou con vulsivamente, apertando-o mais ainda, como se tivesse medo de o perder. Por fim, disse:
- O paizinho já não sofre mais, meu amor! Mas nós ficámos para sempre sozinhos. Não temos mais ninguém no mundo.
Apesar da sua pouca idade, Cedric percebeu que o pai tinha morrido, como já ouvira dizer de outras pessoas. Como fora possível?! Era tão alto, tão forte e belo! A palavra morte tinha um sentido que ele não podia compreender. Sabia somente que o pai nunca mais voltaria. Mas como a mãe chorava sempre que se referiam a ele, Cedric resolveu não falar tantas vezes no pai, e pensou também que a mãe não devia passar tanto tempo imóvel, sentada junto do fogão ou em frente da janela, a contemplar o céu, sem fazer nada, sem pronunciar uma palavra, em tão triste solidão.
A Sr. a Errol e o filho viviam muito isolados, quase sem relações, na grande cidade de Nova Iorque; mas Cedric só notou isto muito mais tarde, quando conheceu o motivo pelo qual só raramente recebiam visitas. Soube então que sua mãe era orfã, sem ter ninguém, quando o pai casara com ela.
Conhecera-o em casa de uma senhora já velha e muito rica, junto de quem ela desempenhava o lugar de dama de companhia. Era linda, e o capitão Cedric Errol, ao encontrá-la, por acaso, na escada, notara- lhe uma tal expressão de tristeza e doçura, que nunca mais pôde esquecê-la. Procurou tornar a vê-la. Apaixonaram-se um pelo outro e acabaram por casar, apesar da oposição feita a esse casamento.
 O conde de Dorincourt, pai do capitão Errol, foi quem mostrou maior descontentamento. Era um velho fidalgo inglês, da mais antiga linhagem, muito rico e de génio violento. Tinha uma especial aversão à América e aos americanos.
O capitão Errol era o mais novo dos seus três filhos. Conforme a lei e a tradição britânicas, o filho mais velho era o único herdeiro dos bens paternos. No caso da sua morte ou desaparecimento, a herança cabia ao segundo. Era, pois, pouco provável que o capitão Errol, pertencendo embora a uma família riquíssima, viesse a ser senhor de uma grande fortuna.
Mas, em compensação, era ele o mais bem dotado pela natureza; possuía as mais nobres qualidades morais; era decidido, inteligente, generoso e bom; o seu aspecto elegante e simpático tornava-o querido e amigo de quantos o conheciam.
Com os irmãos sucedia exactamente o contrário; nenhum deles dera provas de inteligência ou bondade. No colégio de Eton, onde foram educados, nunca souberam con quistar a estima dos professores nem dos colegas. Eram maus estudantes e maus camaradas, causando grandes desgostos ao pai, que não podia deixar de reconhecer a inferioridade dos dois filhos mais velhos.
O orgulhoso fidalgo sofria profundamente ao pensar que o herdeiro da sua fortuna e do seu título viria a ser um homem insignificante, egoísta e mesquinho, sem nenhuma das qualidades nobres e viris que convinham à sua elevada posição social. Não se conformava com a ideia de o terceiro filho, destinado a uma vida apagada e medíocre, ser o único que possuía dons intelectuais e beleza física capazes de o fazerem brilhar na sociedade. No entanto, lá bem no íntimo do seu inflexível coração, não podia deixar de sentir um “fraco” pelo mais novo dos três rapazes.
 Receando, talvez, deixar-se dominar por essa preferência instintiva, um dia, num acesso de altivez, mandou-o para a América. Parecia-lhe ser aquela a melhor maneira de evitar comparações com os irmãos, cada vez máis antipáticos e malcomportados.
Pouco depois, ainda não tinham passado seis meses, já o conde de Dorincourt estava cheio de saudades do filho. Sentia-se só e resolveu escrever-lhe, dizendo que regressasse a Inglaterra. Esta carta cruzou-se no caminho, com outra do capitão Errol, contando ao pai o seu amor por uma linda americana com quem tencionava casar.
Ao receber esta notícia, o conde ficou cheio de cólera, a tal ponto que os criados recearam que ele enlouquecesse.
Resolveu então escrever novamente ao filho, proibindo-o de voltar à casa paterna e de se dirigir, mesmo que fosse só por carta, ao pai e aos irmãos. Não contente com isso, acrescentou, ainda, que nunca mais, fosse em que circunstâncias fosse, o capitão Errol poderia esperar qualquer ajuda da família.
Esta resposta causou a maior mágoa ao capitão Errol, que estimava profundamente o pai, apesar do seu génio irascível, e tinha grande afeição à casa em que nascera. Sabia perfeitamente que nunca mais podia contar com o velho conde. No primeiro momento, sentiu-se completamente desorientado, pois não estava preparado para uma vida de trabalho e não sabia nada de negócios. Era, porém, corajoso e persistente; pediu a demissão de oficial da marinha inglesa e, depois de vencer muitas dificuldades, conseguiu, finalmente, arranjar um emprego em Nova Iorque. Em seguida casou.
O jovem passou a viver modestamente numa rua tranquila dos arredores da grande capital americana. Havia uma grande diferença entre a existência que Errol agora levava e aquela a que estava habituado em Inglaterra.
 Mas a esposa era tão gentil, tão carinhosa e boa, que ele nunca teve motivo para se arrepender de haver casado com uma simples dama de companhia. Pelo contrário, sentia que a felicidade presente o compensava generosamente de tudo quanto tinha perdido. A casinha onde habitava era alegre, primorosamente arranjada, com simplicidade e bom gosto.
Quando lhes nasceu um filhinho, o simpático casal Errol considerou-se o par mais venturoso do mundo. Realmente, era difícil imaginar criança mais encantadora que o pequenino Cedric.
Parecido, ao mesmo tempo, com o pai e com a mãe, tinha os cabelos muito loiros e encaracolados, os olhos de um castanho muito claro, com longas pestanas e uma expressão cheia de inteligência e bondade. Saudável, sempre bem disposto, desenvolvia-se de dia para dia, e cativava toda a gente com o seu lindo sorriso e maneiras afáveis. Parecia um principezinho, apesar da modéstia em que era criado.
No bairro onde viviam, todos gostavamdele; até mesmo o Sr. Hobbes, dono da mercearia que ficava ao fim da rua, e que era conhecido como incorrigível maldizente, não se cansava de elogiar aquele menino tão simpático e bem-educado, como ele nunca vira outro.
À medida que ia crescendo, mais atraente se tornava o pequeno Errol. A sua beleza física correspondia às boas qualidades morais que o distinguiam. A maneira agradável como falava a qualquer pessoa, era um dos seus maiores encantos; todo o seu empenho era ver felizes aqueles que o rodeavam, e satisfazer-lhes os desejos.
O ambiente de delicadeza e ternura em que era criado, desenvolvia ainda mais as suas naturais tendências para a cortesia e para a bondade. Nunca ouvira pronunciar uma palavra grosseira ou dura; ouvia o pai dizer “Querida”, sempre que se dirigia à mãe, e aquela intimidade afectuosa enchia a sua alminha de sentimentos generosos e ternos.
- Querida, minha querida! - foram também as primeiras palavras que ele soube pronunciar.
Por isso, quando compreendeu que o pai nunca mais voltaria, e o motivo por que a mãe chorava tão amargamente, prometeu a si próprio fazer tudo quanto fosse possível para a consolar e lhe tornar mais suave a sua grande dor. Tomou esta resolução naquele mesmo dia em que, ao regressar a casa, a mãe o abraçou a chorar, escondendo o rosto entre os seus caracóis doirados. Era ainda muito criança, mas o seu coraçãozinho afectuoso não podia conformar-se com a tristeza da mãe.
Ocorreu-lhe então uma ideia: mostrar-lhe todos os seus brinquedos e livros com gravuras. Assim fez, e, ao mesmo tempo que lhos colocava, um a um, diante dos olhos, murmurava com infinita meiguice:
- Ora vê, Querida, vê!
No rosto doloroso da infeliz senhora passou rapidamente um sorriso que era a expressão do maior amor humano.
“Meu adorado filhinho!” - pensava ela.
- Tenho a certeza de que ele me compreende! - dizia a viúva de Errol para a criada Maria, que a servia desde que casara e trouxera Cedric ao colo. - Olha para mim com tanta ternura e tão preocupado como se adivinhasse tudo quanto me aflige. É um homenzinho!
Cedric passou a ser o companheiro constante da mãe. Passeavam juntos; conversavam e brincavam como se tivessem a mesma idade. Logo que soube ler, era ainda muito novinho, Cedric passava horas estendido sobre o tapete, em frente ao fogão, lendo em voz alta, não só histórias infantis, como outros livros, revistas e até o jornal. A mãe escutava-o enlevada, quase feliz, e a velha Maria ouvia muitas vezes, na cozinha, o riso da Sr. a Errol, perante as inesperadas observações que o pequenino fazia acerca do que ia lendo.
A criada gostava de conversar com o Sr. Hobbes, e sempre que podia, demorava-se na mercearia a contar coisas extraordinárias do “seu menino”.
- Palavra! Nunca vi uma criança como aquela! Tem modos e falas de pessoa crescida. No dia da eleição do Presidente entrou pela cozinha dentro, parou em frente do fogão, com as mãos atrás das costas, sério que nem um juiz, e disse-me assim: “Olha lá, Maria, que te parece isto da eleição? Eu sou e hei-de ser sempre republicano. A Querida também é da minha opinião. E tu, qual é o teu partido?” Respondi-lhe que não percebia nada de política, e ele, então, mostrou-se todo ofendido e disse que todos deviam saber o que convinha ou não convinha ao país. Só queria que o visse, Sr. Hobbes! Ficava de boca aberta. E de então para cá, todos os dias, vai à cozinha falar-me de política.
Maria adorava aquela criança e tinha tanto orgulho nela como se lhe pertencesse. Depois da morte do patrão, a boa mulher passara a fazer, sozinha, o serviço de cozinheira e criada de fora. Era saudável e trabalhava com gosto, ajudando ainda a Sr. a Errol a confeccionar os seus vestidos e as roupinhas de Cedric.
- É tal qual um príncipe! - costumava ela dizer, ao pentear os lindos cabelos loiros, que lhe desciam, em caracóis, até aos ombros. - Sempre gostava que me mostrassem uma criança da Quinta Avenida, mais bonita e distinta do que o “nosso” menino. Toda a gente olha para ele, quando vai com o fato de veludo preto e a cabeleira a brilhar ao sol. Parece mesmo um pequeno lorde!
Para Cedric, porém, tudo isto era indiferente. Não lhe importava ter ou deixar de ter o ar de um lorde. Nem mesmo sabia o que vinha a ser um lorde!
 O seu amigo predilecto era o merceeiro da esquina, que, apesar de embirrar com toda a gente, se mostrava sempre amável para ele, e, verdade se diga, o estimava deveras. Para o pequenito, o Sr. Hobbes devia ser uma pessoa muito rica e importante, pois tinha a loja cheia de coisas boas - ameixas, figos; laranjas, conservas e bolos - possuindo, além disso, uma carroça e um cavalo, para levar as compras a casa dos fregueses.
Cedric também gostava do leiteiro, do padeiro e da mulher da hortaliça, mas preferia, a todos, o seu amigo Hobbes, que visitava todos os dias e com quem tinha grandes conversas acerca das notícias publicadas nos jornais. Falavam de tudo, até mesmo de política. Um dos assuntos mais discutidos era o Quatro de Julho, festa nacional comemo rativa da independência dos Estados Unidos. Cedric não se cansava de ouvir o merceeiro descrever-lhe episódios dessa época. E quando regressava a casa, com o olhar brilhante e a cabeleira em desalinho, esperava ansiosamente a hora do jantar, para contar tudo à mãe.
Foi, sem dúvida, o sr. Hobbes, contando-lhe constantemente o que se passava em Washington e dizendo-lhe a sua opinião sobre o próprio Presidente, quem fez nascer no espírito do pequeno Errol o gosto pela política. Pouco tempo depois de uma eleição presidencial deu-se um inci dente que transformou por completo a existência de Cedric. Tinha ele então oito anos de idade.
Nesse dia, Hobbes conversara com ele acerca da Inglaterra e da rainha Vitória, que governava então o Império Britânico, aproveitando a ocasião para censurar asperamente a aristocracia inglesa, e, em especial, os condes e os duques.
Fazia um calor sufocante e Cedric, depois de ter brincado aos soldados com outros rapazes seus conhecidos, resolveu entrar na mercearia para descansar um pouco. Encontrou o merceeiro a olhar atentamente, com ar de reprovação, para as gravuras de uma revista londrina, que reproduziam uma cerimónia da corte inglesa. Ao vê-lo exclamou:
- Aqui está no que eles se entretêm! Mas isto não pode durar muito! Mais dia, menos dia, vai tudo pelos ares: condes, duques, lordes e toda essa tropa fandanga! Não escapa nem um! Pode ter a certeza.
Como de costume, Cedric sentou-se sobre um caixote, com o chapéu atirado para trás e as mãos nas algibeiras, tal como o dono da loja. De repente, perguntou muito sério:
- O Sr. Hobbes conhece muitos duques e muitos condes?
- Não! Felizmente não conheço! - respondeu o outro, todo exaltado. - Até hoje nenhum se atreveu a passar desta porta para dentro. Tinha que ver, eu permitir que gente dessa se encostasse às minhas latas de bolacha!
Ao dizer isto, o homenzinho sentiu-se tão importante, que olhou em volta da sua pessoa, com orgulho, e limpou o suor da testa.
- Talvez sejam condes por não poderem ser outra coisa
- observou Cedric, com instintiva simpatia por aqueles que o merceeiro acusava tão severamente.
- Eles?! Está enganado! Até sentem vaidade de ser o que são. Está- lhes na massa do sangue - respondeu Hobbes.
E continuou a proclamar a superioridade da república sobre a monarquia, dos republicanos sobre os aristocratas, com tal entusiasmo, que o pequenito olhava para ele, es pantado, ansioso por contar à Querida tudo quanto estava ouvindo. A cada pergunta que Cedric fazia, respondia Hobbes com novas exclamações de indignação, muito vermelho e congestionado.
 A meio desta conversa entrou na loja a criada Maria. O pequeno pensou que ela viesse fazer compras, mas não era disso que se tratava. A boa mulher estava pálida e agitada.
- Venha, meu amor. A mãezinha mandou-o chamar. 
Cedric saltou para o chão, despediu-se de Hobbes e acompanhou a criada.
- A Querida vai sair? - perguntou ele.
Maria não respondeu,mas olhou de tal maneira para o pequenito, que ele sobressaltou-se.
- Aconteceu alguma coisa, Maria?
- Esta vida é cheia de surpresas! - murmurou ela.
- Mas que foi?!
- Quem havia de pensar! - balbuciou a criada, sem responder directamente ao pequeno.
- A Querida está doente?
- Não, menino, não é nada disso.
- Então que é? - insistiu ele, já impaciente. Mas a criada não havia meio de responder. Ao chegar a casa, Cedric viu uma carruagem parada em frente da porta. A mãe estava na sala do primeiro andar, com um senhor que ele não conhecia. Que queria dizer tudo aquilo?
Apressadamente, Maria levou-o ao quarto e vestiu-lhe o fatinho de verão, de flanela creme com gola cor-de-rosa. Penteou-lhe cuidadosamente os cabelos e, por fim, disse, quase a medo:
- Um lorde! Nem mais nem menos! Um lorde! E também é conde! Quem havia de dizer!
Cedric, cada vez mais intrigado, já nem se atrevia a interrogar a criada. A mãe, com certeza, lhe explicaria tudo. Por isso não perguntou mais nada. Mas a boa mulher não se calava, repetindo sempre:
“Um conde! Tem que ser tratado por senhoria!”
 Logo que se viu pronto, Cedric, desceu as escadas, a correr, e entrou na sala. O senhor que falava com a mãe estava sentado numa poltrona; era velho, alto e magro, com a barba inteiramente rapada. A mãe estava de pé, muito pálida; tinha os olhos cheios de lágrimas!
Quando o viu, correu para ele e, apertando-o entre os braços, exclamou:
- Meu filho! Meu querido filho!
O senhor, então, levantou-se e fitou Cedric demoradamente. Depois passou a mão pelo queixo. A criança causara-lhe boa impressão.
Com um ligeiro sorriso, inclinou-se, como se fizesse uma reverência, e disse lentamente:
- Sua Senhoria o pequeno Lorde Fauntleroy!
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Os amigos de Cedric
A surpresa de Cedric não pode descrever-se. Durante a semana que se seguiu, tudo lhe pareceu estranho e irreal. Por mais que pensasse, não conseguia decifrar o que significavam as palavras do velho que inesperadamente os visitara.
Depois de ele sair, a mãe contou-lhe uma história extraordinária, que ele ouviu atentamente, mas que não compreendeu bem... Foi preciso repeti-la, para o pequenito se convencer.
O avô, que ele nunca tinha visto, era conde, e o mais velho dos tios seria, também, conde, um dia, se não tivesse morrido em consequência de uma queda que dera de um cavalo. Depois desse desastre, o título pertencia ao outro tio; mas também esse morrera, repentinamente, durante uma viagem a Roma. Se o pai de Cedric fosse vivo, seria, por morte dos irmãos, o herdeiro do título. Mas, como ele também já não pertencia ao número dos vivos, era Cedric quem viria a ser conde, quando o avô morresse. Entretanto, era, desde já, Lorde Fauntleroy.
Ao saber isto, o pequeno empalideceu e, abraçando a mãe, exclamou:
- Oh! Querida, eu não quero ser conde! Nenhum dos rapazes que eu conheço é conde. Não me podem dispensar disso?
A mãe explicou-lhe que não era possível. E, enquanto anoitecia, mãe e filho conversaram longamente, junto da janela, donde se avistava a modesta rua em que moravam. Cedric, sentado num banquinho, como era seu costume, tinha uma expressão de espanto, e corava com o esforço que fazia para reflectir.
Soube, então, que o avô mandara à América o Sr. Havisham - aquele mesmo que ele encontrara na sala, e que era uma pessoa da intimidade e confiança do velho conde - encarregando-o de levar Cedric para Inglaterra.
A mãe achava que ele devia ir, e dizia-lhe, com uma tristeza muito doce:
- Tenho a certeza de que seria esse o desejo de teu pai. Ele adorava a sua pátria! Além disso, há outras razões que um menino da tua idade não pode ainda compreender bem. Eu seria muito egoísta se não te deixasse ir. Quando fores um homem, compreenderás tudo.
O pequenito, porém, estava profundamente triste.
- Tenho muita pena de me separar da mamã! - murmurou ele. - Também tenho pena do Sr. Hobbes! Ele vai sentir a minha falta... E eu vou sentir a falta de todos, todos...
O Sr. Havisham voltou no dia seguinte, e Cedric soube ainda mais coisas extraordinárias: o enviado do conde de Dorincourt disse-lhe que ele seria muito rico e possuiria castelos, grandes parques, minas, vastas propriedades e numerosos empregados. Isto, porém, não conseguiu modificar a disposição de Cedric, que não se conformava com a nova situação. Pensava no seu amigo Hobbes e preocupava-se com a opinião dele acerca de tudo o que, tão inesperada mente, estava sucedendo.
Depois do almoço, o seu primeiro cuidado foi procurá-lo, e dirigiu- se para a mercearia com o espírito muito perturbado.
O pequenito encontrou o Sr. Hobbes a ler o jornal da manhã, e aproximou-se dele com ar grave.
 Adivinhava que a notícia da transformação que acabava de dar-se na sua vida não podia deixar de impressionar o seu amigo; por isso procurava a maneira mais agradável de lha dar.
Quando ele apareceu, o Sr. Hobbes exclamou:
- Bom dia!
- Bom dia! - respondeu Cedric.
Não saltou, como era seu costume, para cima de um caixote. Sentou-se sobre uma caixa de bolachas e, juntando as mãos sobre os joelhos, deixou-se ficar silencioso. Estranhando aquela atitude, o merceeiro levantou os olhos do jornal e fitou o pequeno com ar interrogador.
- Que há? - perguntou.
Cedric reuniu toda a sua coragem e respondeu:
- Lembra-se da conversa que tivemos ontem de manhã?
- Deixe-me ver. Parece-me que foi acerca da Inglaterra.
- Sim - disse Cedric. - Mas eu refiro-me ao que nós dizíamos quando a Maria veio chamar-me, lembra-se?
Hobbes coçou a cabeça e disse:
- Falávamos da rainha Vitória e da aristocracia inglesa.
- Isso mesmo... - concordou Cedric, com uma certa hesitação. - E... também falámos nos condes... não foi?
- Exactamente! Dissemos o que pensávamos de todos eles, creio eu.
Cedric corou até à raiz dos cabelos. Nunca, na sua vida, se sentira tão embaraçado, e parecia-lhe que a situação era igualmente embaraçosa para o Sr. Hobbes. Depois de uns instantes de silêncio, o pequeno continuou:
- O senhor disse que não lhes permitiria que se sentassem nas suas caixas de bolachas...
- Disse e repito! - exclamou Hobbes, com energia. Que experimentem, se querem ver...
- Sr. Hobbes - disse, então, Cedric -, neste momento está um conde sentado nas suas caixas de bolachas.
- O quê?! - gritou o merceeiro sobressaltado.
- É assim mesmo - confirmou Cedric, com ar modesto. - Eu sou conde... ou por outra, hei-de sê-lo, mais tarde. Não quero enganá-lo.
Hobbes estava agitadíssimo. Levantou-se e foi ver o termómetro.
- O calor subiu-lhe à cabeça! - exclamou, voltando-se para o seu jovem amigo e observando-lhe o rosto. O dia está muito quente. O menino sente-se mal? Dói-lhe alguma coisa? Quando foi que o menino adoeceu?
Ao dizer isto, o homem punha a mão, carinhosamente, sobre os cabelos do pequenito. A situação tornava-se cada vez mais embaraçosa.
- Estou bem, muito obrigado - respondeu Cedric. Não me dói nada. Tenho muita pena de que seja verdade, Sr. Hobbes, mas foi exactamente por causa disso que a Maria me veio chamar. O Sr. Havisham estava lá em casa a explicar tudo à mamã, e o Sr. Havisham é advogado, conhece perfeitamente a lei.
Hobbes deixou-se cair sobre a cadeira e enxugou o suor que lhe cobria a fronte.
- Um de nós apanhou sol na cabeça... - exclamou ele.
- Não se trata disso, está enganado. Acredite o que lhe digo, Sr. Hobbes: o Sr. Havisham veio propositadamente de Inglaterra para nos explicar isto. Foi o meu avô que o mandou.
O merceeiro olhou com ar perfeitamente desorientado para o rostozinho grave e ingénuo que estava na sua frente.
- Como se chama o seu avô? - perguntou ele. Cedric meteu a mão na algibeira e tirou de lá, cuidadosamente, um bocado de papel, sobre o qual tinha escrito qualquer coisa, com a sua caligrafia irregular.
 - Como é difícil de decorar, escrevi aqui o nome - disse ele. E leu em voz alta, lentamente: - “John Arthur Molinex Eol, Conde de Dorincourt. Aqui tem o nome dele.Vive num castelo - creio mesmo que vive em dois ou três castelos - e o meu pai era o seu filho mais novo. Se o meu pai não tivesse morrido, eu não seria lorde. E o meu pai não seria conde se os dois irmãos mais velhos, que ele tinha, não tivessem morrido também. Mas como morreram todos, e eu fiquei sendo o único homem da família, sou obrigado a ser conde e o meu avô mandou- me buscar pelo Sr. Havisham, que me levará com ele para Inglaterra.
Hobbes, cada vez mais vermelho, transpirava abundantemente, e enxugava a testa e a calva, respirando com força. Começava a compreender que, na realidade, tinha sucedido qualquer coisa extraordinária. Porém, ao olhar para o pequenito, sentado sobre a caixa de bolachas, que o olhava também com uma expressão inquieta no rosto infantil, e ao verificar que ele tinha o mesmo aspecto e era, tal qual, o mesmo rapazinho gentil, que tinha visto na véspera, vestido de preto e com uma gravata vermelha, toda esta his tória de títulos e nobreza lhe parecia fantástica. O que o desorientava ainda mais era a maneira simples e ingénua como Cedric lhe fazia semelhante revelação, sem perceber, ele próprio, o que havia de prodigioso em tudo aquilo.
- Como. como disse o menino que era o seu nome? - perguntou Hobbes, por fim.
- Cedric Errol, Lorde Fauntleroy - respondeu a criança. - Foi assim que o Sr. Havisham me chamou.
- Muito bem! Sim senhor! Demónios me levem!
Era uma exclamação que Hobbes empregava sempre nos momentos de grande surpresa. E, naquela ocasião, não encontrou mais nada que dizer para exprimir o seu espanto.
Cedric achou que a exclamação se adaptava bem à situação. Tinha tanta admiração pelo Sr. Hobbes, que aprovava tudo o que ele dizia, sem perceber, ainda, que a linguagem do seu amigo nem sempre era elegante. Evidentemente, achava que o Sr. Hobbes era muito diferente da mamã, mas a mamã era uma senhora e ele achava que as maneiras das senhoras eram diferentes das dos homens. Olhou para o merceeiro com ar sonhador e perguntou:
- A Inglaterra é longe daqui, não é?
- Fica no outro lado do oceano Atlântico - respondeu Hobbes.
- Isso é que me aborrece mais - disse Cedric. - Talvez passe muito tempo sem o ver, Sr. Hobbes; é o que mais me custa.
- Quantas vezes os melhores amigos são obrigados a separar-se! - observou Hobbes.
- E nós já somos amigos há muito tempo!
- Desde que o menino nasceu. Tinha seis semanas, pouco mais ou menos, quando atravessou a rua, pela primeira vez, ao colo da criada.
- Quem me diria então que eu me veria obrigado a ser conde! - exclamou Cedric, suspirando.
- E não há maneira de evitar que isso suceda?
- Creio que não - respondeu Cedric. - A mamã diz que o papá teria gostado muito que isto acontecesse. Mas, visto que é forçoso eu ser conde, há uma coisa que posso fazer: ser um conde bom. E se alguma vez houver o perigo de uma guerra entre a Inglaterra e a América, procurarei evitá-la.
A conversa entre Cedric e Hobbes foi longa e séria. Passado o espanto dos primeiros momentos, o merceeiro não se mostrou tão descontente como seria de esperar. Achou preferível tirar partido da situação e fez muitas perguntas a Cedric. Como o pequenito não estava à altura de responder a todas, Hobbes procurou responder ele próprio, e uma vez lançado no capítulo dos condes, marqueses e lordes, explicou várias coisas de uma forma que teria, certamente, surpreendido deveras o Sr. Havisham, se o digno procurador do conde de Dorincourt o pudesse ouvir.
Na realidade, o Sr. Havisham já se sentia bastante admirado. Vivera sempre em Inglaterra e não estava habituado aos costumes americanos. Havia quarenta anos que tinha relações com a família Dorincourt. Conhecia a fundo tudo o que dizia respeito aos seus vastos domínios, à sua grande fortuna e ao lugar de relevo que ocupava na alta sociedade inglesa. Embora conforme a sua maneira de ver, fria e fleumática, interessava-se deveras por aquele pequenito que seria, mais tarde, senhor de todos os bens e conde de Dorincourt. Sabia quantas humilhações os outros filhos haviam causado ao velho conde, e a cólera que o casamento do mais novo lhe provocara. Sabia também como o conde continuava a odiar a jovem viúva, a quem se referia sempre com palavras duras, afirmando que ela não passava de uma intrigante vulgar, que tivera artes de levar ao casamento o comandante Errol, porque o sabia filho de gente nobre.
O próprio Havisham estava também convencido disso. Habituara-se a encontrar, ao longo da sua carreira de advogado, pessoas interesseiras e egoístas. Além disso, tinha, acerca dos americanos, uma opinião pouco lisonjeira.
Logo que a sua carruagem entrara na rua banal onde morava a Sr. a Errol, e parara em frente da casa, tão modesta, que ela habitava, Havisham sentira-se surpreendido. Era-lhe doloroso pensar que o futuro senhor dos castelos de Dorincourt, de Wyndham Tomers, de Chorlworth e de tantas outras maravilhas, tinha nascido e fora criado naquela insignificante habitação, perdida num bairro popular. Perguntava a si próprio como poderia ser a criança, e que espécie de pessoa seria a mãe. A perspectiva de ir travar conhecimento com aquelas duas criaturas não lhe causava o menor prazer. Sentia-se orgulhoso da nobre família, cujos negócios dirigia há tantos anos, e ser-lhe-ia muito desagradável ter que tratar com uma pessoa vulgar e interesseira, sem consideração pela pátria de seu marido, nem respeito pelo seu nome.
Quando a criada o introduziu na pequena sala, examinou tudo o que o rodeava.
O mobiliário era simples, mas a casa tinha um ar de conforto e intimidade. As poucas gravuras que guarneciam as paredes eram de muito bom gosto, e havia também bonitos bordados executados, sem dúvida, por mãos de mulher.
“Por agora não há nada a dizer” - pensou ele. - “Isto deve ter sido ainda o gosto do marido”.
No entanto, quando a Sr. a Errol entrou na sala, ele disse, de si para si, que talvez fosse, afinal, o gosto dela.
Se Havisham não fosse um velho bem senhor de si, certamente não teria podido dominar um gesto de surpresa ao vê-la aparecer. Com o seu vestido preto, muito simples, justo ao corpo, parecia mais uma rapariguinha do que a mãe de um rapaz de oito anos.
Os seus grandes olhos escuros tinham uma expressão terna e ingénua, e no rosto transparecia-lhe aquela doce melancolia, que nunca mais perdera depois da morte do marido.
A experiência pessoal do advogado ensinara-lhe a decifrar o carácter das pessoas com quem falava, e, logo que viu a mãe de Cedric, compreendeu que o conde cometera um grande erro, ao considerá-la uma mulher vulgar e interesseira.
Havisham não era casado, nem estivera nunca apaixonado; no entanto, ao ver aquela encantadora criatura, de olhar triste, sentiu que ela se tornara esposa do capitão Errol unicamente porque o amava, sem qualquer ideia de ambição. Compreendeu também que não lhe levantaria dificuldades e, além disso, teve a impressão de que o pequeno Lorde Fauntleroy, apesar de tudo, talvez não deslustrasse a sua nobre família. O capitão Errol fora um belo homem; a mãe era, realmente, muito bonita; havia, portanto, probabilidades de o pequeno ter um físico agradável.
Quando Havisham disse à Sr. e Errol o motivo da sua visita, ela tornou-se muito pálida e exclamou:
- Oh! vem então buscar o meu filho? Ele é toda a minha felicidade! Não tenho mais ninguém no mundo! E é tão meu amigo! Tenho feito tudo para lhe dar uma boa educação.
A sua voz tremia, ao pronunciar estas palavras, e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.
- Não pode imaginar o que esta criança representa para mim! - murmurou ela.
Havisham tossiu, para aclarar a voz.
- Devo dizer-lhe - continuou ele - que o conde de Dorincourt não está muito bem disposto a seu respeito. É um velho de carácter violento, fortemente agarrado às suas ideias. Nunca gostou da América nem dos americanos, e o casamento do filho desgostou-o em extremo. Lamento estar encarregado de uma comunicação tão desagradável, mas é meu dever dizer-lhe que ele não quer vê-la, a si.O seu desejo é que Lorde Fauntleroy seja educado sob a sua direcção e que viva junto dele. O conde afeiçoou-se à sua residência de Dorincourt, onde passa a maior parte do ano. Sofre de ataques de gota e não gosta de viver em Londres. Por consequência, Lorde Fauntleroy viverá principalmente em Dorincourt. O conde oferece-lhe a si, minha senhora, como residência, Court Lodge, um bonito pavilhão agradavelmente situado nas proximidades do castelo. Oferece-lhe, além disso, uma mesada em harmonia com a sua situação. Lorde Fauntleroy irá visitá-la muitas vezes. A única imposição do conde é esta: a viúva do capitão Errol não poderá, sequer, transpor os portões do parque. Como vê, não ficará verdadeiramente separada do seu filho. Afirmo-lhe que esta proposta não é tão dura... como poderia ser. Tenho a certeza que avaliará bem as vantagens enormes, de meio e educação, oferecidas a Lorde Fauntleroy.
A mãe de Cedric afastou-se um pouco, voltou-se e ficou uns momentos em frente da janela, como se contemplasse a rua. Porém, Havisham compreendeu perfeitamente que ela procurava dominar a sua comoção, e admirou sinceramente a serena coragem daquela jovem mulher, disposta a sacrificar-se pelo bem do filho.
Minutos depois, a Sr. a Errol veio novamente para junto de Havisham e fixou nele um olhar pensativo. Depois continuou:
- Sim, o desejo de meu marido era que o filho fosse educado em Inglaterra. Estou convencida de que o conde não terá a crueldade de o separar de mim, e mesmo que o tentasse, sei que o meu Cedric é muito parecido com o pai e não mudaria. Ainda que estejamos separados, continuará a querer-me com toda a sua ternura. Por meu lado, desde que possa vê-lo, não me queixarei.
Enquanto ela falava, o advogado ia pensando: <	<Só pensa no filho. Para ela não impõe condições”. Depois, erguendo a voz, disse:
- Minha senhora, rendo homenagem à sua abnegação em favor de seu filho. Ele próprio lhe agradecerá, mais tarde, a sua atitude de agora.
- Espero - murmurou a mãe, com a voz ligeiramente trémula - que o avô de Cedric seja carinhoso para ele. O pequeno tem uma natureza afectiva e viveu sempre rodeado de ternura.
Havisham tornou a tossir. Não acreditava que o velho conde, gotoso e irascível, se afeiçoasse fosse a quem fosse.
 Mas estava convencido de que ele procuraria mostrar-se bom, à sua maneira, para o herdeiro do seu nome e da sua fortuna. E também sabia que, se o pequeno se mostrasse à altura da sua condição, o avô teria orgulho nele. Por isso respondeu:
- Lorde Fauntleroy será muito bem tratado, pode ter a certeza, minha senhora.
Quando a Sr. a Errol mandou chamar Cedric, o enviado do conde de Dorincourt sentiu um ligeiro choque, ao ouvir a criada dizer:
- Não terei muito trabalho a procurá-lo. A esta hora deve ele estar na mercearia, sentado nalgum caixote, a discutir política com o Sr. Hobbes, ou a brincar com o sabão, as velas e as batatas.
Os receios de Havisham aumentaram. Em Inglaterra, os filhos dos fidalgos não costumam conviver com merceeiros. Seria lamentável que a criança tivesse adquirido hábitos ordinários, em semelhante companhia.
Lembrou-se, então, de que os filhos mais velhos de Lorde Dorincourt sempre haviam gostado de conviver com gente grosseira, e fora essa uma das mais amargas humilhações que o conde sofrera, por causa deles. Quem sabe se aquele pequenito herdara as más inclinações dos tios, em vez das nobres qualidades do pai?
Esta ideia atormentava-o, enquanto continuava a conversa com a Sr. a Errol. Quando a porta se abriu, Havisham hesitou um momento antes de olhar para Cedric; mas, logo que os seus olhos pousaram no rapazinho, que correu a abraçar a mãe, todos os receios desapareceram. Verificou imediatamente que era uma das crianças mais belas que tinha visto; desenvolvido para a idade, forte e esbelto, tinha um rosto encantador, de expressão franca, decidida, e erguia a cabeça, muito direita, com natural distinção. A semelhança com o pai era evidente. Tinha os cabelos loiros do capitão Errol e os olhos escuros da mãe, mas no seu olhar, confiante e sereno, não havia a menor sombra de tristeza. Dava a impressão de não ter medo de coisa alguma.
“Nunca vi um rapazinho tão gentil e com tão boa apresentação” - pensou Havisham, mas em voz alta disse apenas:
- Sua Senhoria o pequeno Lorde Fauntleroy! 
A partir desse momento, o enviado do conde de Dorincourt encontrou-se muitas vezes com Cedric, que o surpreendia cada vez mais.
Havisham não estava habituado a conviver com crianças, embora conhecesse muitas. A verdade é que não interessavam ao seu feitio cerimonioso e rígido de homem de leis. Com Cedric, porém, não sucedia assim. Talvez o interesse que lhe merecia o destino do pequeno Lorde Fauntleroy o levasse a observá-lo mais de perto. Fosse qual fosse a razão, o que é certo é que o pequeno despertara extraordinariamente a sua atenção e a sua curiosidade.
Cedric, sem perceber que estava sendo objecto de minucioso exame, conservava toda a sua naturalidade. Apertava a mão que Havisham lhe estendia e respondia às suas perguntas com a mesma espontaneidade com que responderia ao Sr. Hobbes. Não era tímido nem atrevido, e Havisham reparou que, quando ele próprio conversava com a Sr. a Errol, o pequenito seguia a conversa com o mesmo interesse de uma pessoa crescida.
- Tem o ar de um homenzinho muito ponderado - disse Havisham à mãe.
- Em muitas coisas, sim. Mostrou sempre uma grande facilidade em aprender, e como tem vivido principalmente com pessoas mais velhas, tem uma maneira engraçada de empregar palavras e expressões complicadas, que ouve em conversas ou encontra nos livros. Mas também gosta de se distrair. Julgo que é bem dotado sob o ponto de vista de inteligência, o que não o impede de ser um rapazinho alegre e brincalhão.
No dia seguinte, Havisham teve ocasião de observar que esta afirmação da mãe era verdadeira.
Quando ele se dirigia de carruagem, como de costume, a casa da Sr.a Errol, ao dobrar a esquina, viu um grupo de rapazes que pareciam muito excitados. Dois, dentre eles, preparavam-se para fazer uma corrida, e um dos pequenos campeões, aquele que tinha peúgas vermelhas, era, exactamente, o jovem Lorde Fauntleroy, que gritava e se entusiasmava tanto como o mais ruidoso dos seus amigos. Estava colocado a par do outro concorrente, com a perna direita para a frente.
- Um... Preparem-se! - gritou o árbitro. - Dois... Atenção! Três... Partida!
Havisham debruçou-se na portinhola, cheio de interesse. Não se lembrava de ter visto coisa alguma semelhante ao espectáculo oferecido por esse pequeno lorde, lançado em corrida, a devorar terreno com toda a velocidade das ágeis pernas, os punhos cerrados, a cabeça direita, o rosto contraído.
- Coragem, Ced Errol!. - gritavam os outros garotos, agitando os braços, num entusiasmo louco, próprio da sua idade.
- Coragem, Billy Williams. Vá, Ced. Vá, Billy. “É ele quem vai ganhar” - pensava Havisham. A rapidez com que as pernas de peúgas vermelhas avançavam, os gritos dos rapazes e os esforços desesperados das pernas morenas do outro concorrente, que era também um bom corredor, excitavam o grave advogado inglês, mesmo sem ele dar por isso.
“Realmente. oxalá que ele ganhe!“ - dizia Havisham, de si para si, tossindo levemente como se quisesse desculpar-se a si próprio.
 Nesse mesmo instante, o grupo dos pequenos espectadores da corrida agitou-se freneticamente e ouviam-se exclamações ainda mais selvagens que as precedentes: num arranco magnífico, o futuro conde de Dorincourt tinha chegado ao ponto onde a corrida terminava, dois segundos antes de Billy.
- Viva Ced Errol! - aclamavam os rapazes, como loucos. - Hurrah por Ced Errol!!
Havisham retirou a cabeça da portinhola e murmurou: 	Bravo, Lorde Fau ntleroy “
Quando a carruagem parou em frente da casa da Sr. a Errol, Havisham avistou o vencedor e o vencido, caminhando juntos, seguidos pelo grupo ruidoso dos outros pequenos. Cedric falava com Billy. O seu rosto estava muito vermelho e tinha uma expressãoexcitada. Os caracóis doirados colavam-se-lhe à fronte húmida de transpiração, e trazia as mãos metidas nas algibeiras.
- Sabes? - dizia ele ao outro, com evidente intenção de lhe adoçar a sensação da derrota. - Estou convencido de que ganhei porque as minhas pernas são um pouco mais compridas do que as tuas. Foi por isso, com certeza. E, além disso, sou mais velho três dias do que tu, o que é também uma vantagem.
Esta maneira de apreciar as coisas devia ter agradado a Billy, porque principiou a sorrir e tomou um ar quase tão triunfante como se, na realidade, tivesse ganho a corrida, em vez de a ter perdido.
Cedric Errol sabia, maravilhosamente, consolar as pessoas; no entusiasmo da vitória, pensava que o seu concorrente não devia estar tão satisfeito como ele, e achou que, certamente, daria prazer imaginar que, noutras condições, poderia, talvez, ter ganho.
Nesse mesmo dia, Havisham teve com o jovem campeão uma conversa, durante a qual sorriu por mais de uma vez, e passou a mão pelo queixo, como era seu costume, quando alguma coisa o impressionava deveras.
A Sr.a Errol, a quem a criada veio chamar, teve que sair da sala, para resolver qualquer assunto que requeria a sua atenção, e Havisham ficou só com Cedric.
A princípio, o advogado perguntou a si próprio o que diria ao pequeno. Sem dúvida, devia ir preparando Cedric para o encontro com o avô, e também para a mudança que ia dar-se na sua vida. Já notara que o pequenito não fazia a menor ideia do que ia encontrar em Inglaterra, nem do género de existência que ali o esperava. Ignorava igualmente que ia viver separado da mãe. Tanto ela como Havisham haviam achado preferível informá-lo disso mais tarde.
O advogado e Cedric estavam sentados em confortáveis poltronas, um a cada lado da janela. Com a cabeça encostada ao estofo, as pernas cruzadas e as mãos muito enterradas nas algibeiras, à maneira de Hobbes, Cedric olhava para Havisham. Observara-o atentamente, enquanto a mãe se conservara na sala, e continuava a fitá-lo agora, com uma expressão de respeitoso interesse.
Quando ficaram a sós, houve um breve silêncio, durante o qual o advogado e a criança pareciam querer estudar-se mutuamente. Havisham perguntava a si próprio qual seria a melhor maneira de um velho falar a um rapazinho de calção e peúgas vermelhas, cujas pernas não chegavam ainda ao chão, quando ele se enterrava numa espaçosa poltrona. Mas Cedric, como se adivinhasse, livrou-o de embaraços, tomando, de repente, a palavra.
- Sabe uma coisa, Sr. Havisham? - disse ele. - Não faço a menor ideia do que venha a ser um conde!
- Isso é verdade?
- É! - respondeu Cedric. - E parece-me que uma pessoa que há-de vir a ser conde um dia, deve saber o que isso é. Não acha?
 - Com certeza que sim! - respondeu Havisham.
- Importa-se de me explicar - perguntou Cedric, delicadamente - que é, afinal, um conde?
- A princípio - explicou Havisham - o título de conde era concedido por um rei ou por uma rainha, em reconhecimento por serviços prestados ao soberano, ou em recompensa de qualquer acção heróica.
- Nesse caso é como para ser presidente! - exclamou Cedric.
- Ah! Sim? É assim que o presidente é eleito?
- Pois é! - respondeu o pequenito, com ingenuidade. - Quando um homem é muito bom e muito sábio, nomeiam-no presidente. Há marchas luminosas, bandas a tocar, e toda a gente faz discursos. Eu até já tinha pensado que podia, mais tarde, vir a ser presidente; o que nunca me passou pela cabeça foi que ainda havia de ser conde. É verdade que nunca ouvira falar em condes... - apressou-se ele a explicar, receando que esta indiferença pudesse parecer indelicada.
- Ser conde ou presidente não é bem a mesma coisa!
- observou Havisham.
- Não? - exclamou Cedric. - E qual é a diferença? Não há marchas luminosas?
Havisham cruzou as pernas, ajustou cuidadosamente os dedos da mão direita aos da mão esquerda e tentou dar uma explicação.
- Um conde é uma pessoa... muito importante.
- E o presidente também! - interrompeu Cedric. As marchas luminosas têm quase duas léguas de comprimento, toca a música e deitam foguetes. O Sr. Hobbes levou-me, uma vez, a ver tudo isto.
- Um conde - continuou Havisham - é quase sempre de muito antiga linhagem.
- Que quer isso dizer? - perguntou o pequenito.
 - Quer dizer que descende de uma família muito antiga... muito velha.
- Ah! - exclamou Cedric, enterrando ainda mais as mãos nas algibeiras - é como a vendedeira de maçãs que está ao pé do parque. Pode-se dizer que é de muita antiga linhagem. É tão velha, tão velha, que ninguém sabe como ela pode conservar-se de pé. Tem mais de cem anos, com certeza. E, apesar disso, está sempre na rua, esteja o tempo que estiver. Eu tenho pena dela, e os outros rapazes também. Uma ocasião, o Billy Williams tinha quase um dó lar, e eu pedi-lhe que comprasse todos os dias cinco cêntimos de maçãs, até gastar o dinheiro todo. Assim chegava para vinte dias. Mas, infelizmente, ele enfartou-se das maçãs, ao fim de uma semana. Então - foi uma sorte! - um senhor deu- me meio dólar, e eu pude comprar as maçãs, em lugar do Billy. Faz pena ver alguém assim tão pobre e de tão velha linhagem. Ela diz que a sente nos ossos e que, quando chove, ainda é pior!
Havisham olhava para o pequenito, enquanto ele falava, e sentia-se ligeiramente embaraçado.
- Parece que não me compreeendeu bem! - explicou ele, por fim. - Quando eu falava de “antiga linhagem” não queria dizer “velhice”. Queria dizer que o nome dessa família já era conhecido há muitos anos. Durante centenas de anos, talvez, muitas pessoas usaram aquele mesmo nome, ou desempenharam um papel na História do seu país.
- É tal como George Washington - disse Cedric. Ouço falar dele desde que nasci, e é conhecido ainda há mais tempo! O Sr. Hobbes diz que nunca se esquecerá dele. É por causa da declaração da Independência e do Quatro de Julho, sabe? É um homem muito valente!
- O primeiro conde de Dorincourt foi nomeado conde há quatrocentos anos! - disse Havisham, em tom solene.
 - Oh! Oh! - exclamou Cedric. - Isso é muito tempo! É preciso dizer à Querida; deve interessá-la muito. E, depois de ser nomeado, o que faz o conde?
- Muitos ajudaram a governar a Inglaterra. Alguns eram muito valentes e distinguiram-se nos campos de batalha.
- Também eu gostava de combater! O meu papá era soldado e era muito valente - tão valente como George Washington. Talvez fosse por ser filho de um conde. Gosto muito de saber que os condes são valentes. É uma grande vantagem! Dantes, eu tinha medo da escuridão; mas comecei a pensar nos soldados da Revolução e em George Washington, e perdi o medo.
- Às vezes, há ainda outra vantagem em ser conde - disse lentamente Havisham, e fixou no pequenito os seus olhos penetrantes, com uma expressão particular. E continuou: - Alguns condes têm muito dinheiro.
Tinha curiosidade em saber se o seu jovem amigo conhecia o poder do dinheiro.
- Deve ser muito agradável - respondeu Cedric ingenuamente. - Eu gostava de ter muito dinheiro.
- Gostava? - perguntou Havisham. - Porquê?
- Ora! Porque há muitas coisas que se podem fazer com dinheiro. Por exemplo: à vendedeira de maçãs, se eu fosse rico, havia de comprar- lhe uma barraca para ela estar abrigada, um fogão para ela se aquecer, e havia de dar-lhe um dólar, todos os dias, quando chovesse, para não precisar de sair de casa. E depois... Oh! também lhe dava um xaile. Bem vê, com o xaile já lhe não doíam tanto os ossos. Os ossos dela não são como os nossos; doem-lhe quando se mexe. Deve ser horrível. Se eu tivesse dinheiro, com certeza que ela não sofreria tanto.
- Bem - disse Havisham. - E que mais faria, Lorde Fauntleroy, se fosse rico?
 - Oh! Muitas coisas! Como é natural, dava os mais lindos presentes à Querida: carteiras de agulhas, leques, dedais de ouro, anéis, uma enciclopédia e uma carruagem, para ela nunca mais ter que esperar pelo ónibus. Se ela gostasse de vestidos de seda cor-de-rosa, também lhe comprava alguns, mas ela prefereos pretos. Havia de a levar aos maiores estabelecimentos, para ela escolher o que quisesse. E depois, Dick...
- Quem é Dick? - perguntou Havisham.
- Dick é um engraxador - explicou o jovem lorde, animando-se cada vez mais, ao fazer tão maravilhosos projectos. - É o engraxador mais gentil que se possa imaginar. Está a um canto da rua, num bairro central. Já o conheço há muitos anos. Uma vez, quando eu era pequenino, fui passear com a Querida, e ela comprou-me uma linda bola, que se podia atirar muito alto. De repente escapou-se-me das mãos e rolou na calçada, no meio de carruagens e cavalos. Fiquei tão triste, que comecei a chorar - eu era ainda muito pequeno, só tinha três anos. - Dick estava a engraxar os sapatos de um senhor. Gritou: “- Espere, menino!”, e correu por entre os cavalos, até apanhar a minha bola. Limpou-a ao casaco e veio dar-ma, dizendo: “- Aqui tem! Esta não se parte!” A Querida achou isto muito gentil e eu também. Depois disso, quando passeamos para aquele lado, vamos sempre cumprimentá-lo. Ele costuma dizer-me “- Como está?”, e eu respondo: “- Bem, obrigado!” Conversamos um bocadinho, e ele conta-me como vão os negócios. Parece que agora correm mal.
- E que desejaria fazer por ele? - perguntou o advogado, coçando o queixo com um sorriso singular.
- Se eu tivesse dinheiro - disse Lorde Fauntleroy, enterrando-se ainda mais na poltrona, com um ar de homem de negócios -, compraria a parte de Jack.
- Quem é Jack? - perguntou Havisham.
 - É o sócio de Dick; e, pelo que Dick me conta, é o pior sócio que há no mundo! Não honra o negócio; não é honesto. Até o senhor ficaria raivoso se engraxasse calçado, o melhor que pudesse, mostrando-se honesto e leal em negócios, e, entretanto, o seu sócio fizesse exactamente o contrário. Os fregueses gostam do Dick mas detestam Jack, e é por isso que nunca mais voltam. Aqui tem a razão pela qual, se eu fosse rico, compraria a parte de Jack e mandaria fazer uma bonita tabuleta para o Dick. Ele diz que não há nada para atrair fregueses como uma bonita tabuleta. Também havia de lhe comprar escovas e fatos novos, para o ajudar a “lançar-se”. A única coisa que ele deseja é exactamente poder “lançar-se”.
Cedric contava a sua historiazinha, citando, ao mesmo tempo, certos ditos em calão, usados pelo seu amigo Dick, com a maior ingenuidade e confiança. A ideia de que o respeitável Sr. Havisham podia não se interessar pelo que ele contava, nem sequer lhe passou pela cabeça. Efectivamente, Havisham começava a mostrar-se vivamente interessado, mas não era, talvez, tanto pelo engraxador e pela vendedeira de maçãs, como por aquela encantadora criança, cujo cérebro trabalhava tão activamente, fazendo planos a favor dos seus amigos e esquecendo- se completamente de si próprio.
- E para si, que compraria, Lorde Fauntleroy, se fosse rico? - perguntou ele.
- Muitas coisas! - respondeu logo Lorde Fauntleroy. - Mas, primeiro, daria algum dinheiro à Maria, para a Brígida. A Brígida é uma irmã dela que tem doze filhos e o marido desempregado. Costuma vir cá a casa e chora. Então, a Querida dá-lhe coisas, numa cesta, e ela torna a chorar e a dizer: “-Deus a abençoe, minha rica senhora!”. Também penso que o Sr. Hobbes haveria de gostar de ter um relógio e uma corrente de ouro, como recordação minha, assim como um cachimbo de espuma. E depois... gostaria de me alistar num regimento!
- Um regimento? Para quê? - exclamou Havisham.
- Para fazer como na festa nacional - explicou Cedric, que se entusiasmava cada vez mais. - Teria archotes, uniforme e insígnias para mim e para os meus camaradas. Faríamos marchas, exercícios, reconhecimentos... Aqui tem o que eu queria, se fosse rico.
A porta abriu-se e a Sr.a Errol entrou.
- Peço desculpa de me ter demorado tanto, mas tive que atender uma pobre mulher, que tem uma vida muito amargurada e costuma vir visitar-me de vez em quando.
- Lorde Fauntleroy tem estado a falar-me de alguns dos seus amigos, e do que desejaria fazer por eles, se fosse rico - disse Havisham.
- Brígida faz parte dos seus amigos - respondeu a Sr.a Errol - e foi com ela, exactamente, que eu estive a conversar. Neste momento, a situação dela é angustiosa, porque, além de tudo o mais, o marido está com um ataque de reumatismo articular.
Cedric desceu apressadamente da cadeira e disse:
- Vou cumprimentá-la e desejar as melhoras do marido. Gosto muito dele porque, um dia, fez-me uma espada de madeira. É muito habilidoso!
O pequeno saiu, a correr. Havisham levantou-se e ficou, um momento a reflectir. Depois de uma breve hesitação, olhou para a Sr.a Errol e disse:
- Antes de deixar Dorincourt tive, com o conde, uma longa conversa, durante a qual recebi instruções, em relação a Lorde Fauntleroy. O conde deseja ardentemente que o neto aceite, com alegria, a ideia de ir viver em Inglaterra e conhecer o avô. Recomendou-me que lhe explicasse bem que a mudança operada na sua vida lhe dará, além da riqueza, tudo o que as crianças apreciam. Desde que Lorde Fauntleroy manifeste um desejo, devo satisfazê-lo e dizer-lhe que o avô lhe dará tudo quanto ele quiser. Estou convencido de que o conde não imaginou que o neto tivesse desejos desta ordem, mas, se Lorde Fauntleroy se sente feliz socorrendo essa pobre mulher, estou certo de que o conde ficaria zangado ao saber que eu não satisfizera a sua aspiração.
A verdade, porém, é que a generosidade do conde não tinha uma intenção elevada. Se o pequeno Lorde Fauntleroy não fosse, de sua natureza, um carácter bondoso e recto, o resultado dessa generosidade poderia ser terrível. Quanto à Sr. a Errol, era incapaz de qualquer suposição má. Pensava que um velho solitário e infeliz por ter perdido os filhos certamente desejaria mostrar-se generoso para o neto, a fim de conquistar a sua confiança e afeição.
Alegrava-a a ideia de que Cedric poderia ajudar Brígida, e sentia- se feliz ao pensar que a primeira consequência daquela extraordinária mudança de sorte, era o filho poder praticar um acto caridoso. Fez-se corada e exclamou:
- Oh! Que grande bondade, da parte de Lorde Dorincourt. Como Cedric vai ficar contente.
Havisham tirou uma carteira do bolso interior do casaco. O seu rosto tinha uma expressão singular. Na verdade, perguntava a si próprio o que diria o conde, ao saber qual fora o primeiro desejo expresso pelo neto. Que pensaria o velho fidalgo, irritável, egoísta e tão profundamente agarrado aos bens deste mundo?
- Não sei se já compreendeu bem que o conde de Dorincourt tem uma enorme fortuna e pode satisfazer seja que fantasia for - disse ele. - Julgo que ficará contente, ao saber que todos os desejos de Lorde Fauntleroy foram satisfeitos. Quer ter a bondade de o chamar?! Se me autoriza, dar-lhe-ei dinheiro suficiente para ajudar os seus protegidos.
 - Cinco libras! Vinte e cinco dólares! - exclamou a Sr. a Errol. - Para aquela pobre gente é uma verdadeira fortuna? Será possível?
- Absolutamente possível - respondeu Havisham, com o seu discreto sorriso. - Deu-se uma grande transformação na vida do seu filho, minha senhora; vai ter nas mãos um grande poder.
- Oh! - protestou a Sr. á Errol. - Mas ele é ainda uma criança! Uma criança! Como poderei ensiná-lo a fazer bom uso desse poder? Sinto- me quase assustada. Meu adorado filho, meu amor...
O advogado tossiu ligeiramente, para aclarar a voz. O seu velho coração, seco e indiferente, comoveu-se com a expressão de ternura e receio que viu nos olhos da jovem mãe. E disse:
- Pela conversa que tive com Lorde Fauntleroy, estou convencido de que o futuro conde de Dorincourt saberá pensar primeiro nos outros do que em si próprio. É ainda uma criança, mas creio que se pode confiar nele.
A Sr. a Errol foi buscar Cedric. Quando se aproximavam, Havisham ouviu o pequeno dizer:
- Parece que é um reumatismo muito mau! Ainda não pagaram a renda da casa, e isso ainda os faz mais doentes.
Quando entraram na sala, Cedric trazia uma expressão apoquentada. Dirigindo-se a Havisham, disse:
- A Querida disse-meque o senhor quer falar-me. Eu estava a conversar com a Brígida.
Havisham fitou-o um momento. Era, na realidade, uma criança encantadora!
- O conde Dorincourt... - começou ele. Olhou para a Sr. a Errol. A mãe de Lorde Fauntleroy ajoelhou junto do filho e enlaçou-o nos braços. Depois disse:
- Cedric! O conde é teu avô, pai do teu pai. É muito bom, gosta muito de ti e quer que tu gostes também muito dele, porque os filhos que ele tinha morreram todos. Deseja que sejas feliz e faças os outros felizes. É muito rico e quer que te deem tudo o que tu desejares. Disse isto ao Sr. Havisham e entregou-lhe muito dinheiro para ti. Podes dar uma parte a Brígida - o necessário para ela pagar a renda da casa e comprar remédios para o marido. Que dizes a isto, Cedric? Como o teu avô é bom!
Ao terminar, beijou carinhosamente as faces do filho que o espanto tornara coradas.
O olhar de Cedric ia da mãe para Havisham. De repente, perguntou:
- Posso ter o dinheiro já? Posso dá-lo imediatamente? A Brígida vai- se embora.
Havisham estendeu-lhe a mão com dinheiro - um belo maço de notas de banco, muito novinhas.
Cedric, sem esperar mais nada, saiu da sala, a correr. Ouviram-no a gritar:
- Brígida! Brígida! Espera um instante! Aqui tens dinheiro para pagar a renda da casa. Foi o meu avô quem mo deu! É para ti e para o teu marido.
- Oh! menino Cedric! - exclamou Brígida, com a voz alterada. - São vinte e cinco dólares! Onde está a senhora?
Ouvindo isto, a Sr. a Errol disse a Havisham:
- Tenho que ir explicar-lhe.
Saiu também da sala, e Havisham ficou só, um momento. Foi até à janela e olhou para a rua, com ar pensativo. Imaginava o conde de Dorincourt sentado na biblioteca do castelo, uma sala esplêndida mas triste; imaginava o velho fidalgo gotoso e solitário cercado de luxo e esplendor, mas sem ter a estima de ninguém; porque, durante toda a sua vida, só gostara verdadeiramente de si próprio.
Sempre se mostrara egoísta, arrogante e violento; toda a sua fortuna e a sua influência, todas as vantagens que lhe vinham do seu nome e da sua elevada categoria social, apenas tinham servido para lhe proporcionar, a ele próprio, distracções e satisfação. Nunca pensara nos outros. E agora, que a velhice chegara, toda esta vida agitada e unicamente consagrada ao prazer, tinha, como consequência, a falta de saúde, a má disposição, um génio irascível e o desdém pela vida de sociedade, que já não conseguia interessá-lo!
Apesar de toda a sua magnificência, não havia fidalgo menos popular do que o conde de Dorincourt, nem velho mais isolado.
Podia, sem dúvida, encher o palácio de hóspedes escolhidos, dar grandes recepções e esplêndidas caçadas. Mas ele próprio não ignorava que todas essas pessoas que acei tavam os seus convites, no íntimo, temiam as suas palavras mordazes e sarcásticas, os seus modos desabridos, porque ele sempre gostara de ferir a susceptibilidade dos outros, ou vexá-los, principalmente se eram tímidos.
Havisham conhecia melhor do que ninguém os modos desagradáveis do conde. E era em tudo isto que ele pensava, enquanto olhava para a rua, estreita e tranquila.
Depois, em vivo contraste, surgiu no seu espírito a figura do encantador rapazinho sentado na sua frente, a contar a história de Dick e da vendedeira de maçãs, com tanta candura e generosidade.
Havisham pensou nos imensos rendimentos, nas magníficas propriedades e no poder de fazer bem ou mal, que se encontrariam, um dia, naquelas mãos que o pequeno Lorde Fauntleroy costumava meter nas algibeiras.
E pensou: “Vai ser muito diferente, muito diferente!” Pouco depois Cedric e a mãe voltaram à sala. O pequeno estava excitadíssimo. Sentou-se entre a mãe e o advogado e tomou uma das suas atitudes predilectas: as mãos sobre os joelhos. Estava radiante, ao pensar na alegria e no alívio de Brígida.
 - Imagine que começou a chorar! - contou ele a Havisham. - Disse que chorava de alegria. Foi a primeira vez que vi chorar alguém de alegria. O meu avô é muito bom! No fim de contas é mais agradável ser conde do que eu pensava. Estou quase satisfeito... quase satisfeito ao pensar que, mais tarde, o serei também.
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A partida
A opinião favorável que Cedric começava a ter acerca das vantagens de ser conde, aumentou ainda no decorrer da semana seguinte.
Custava-lhe até a acreditar que podia fazer tudo quanto queria.
Depois de algumas conversas com Havisham, compreendeu, pelo menos, que era possível realizar os seus mais caros desejos, o que ele procurou fazer imediatamente, com um entusiasmo tão grande, que divertiu bastante o velho inglês.
E assim, nas vésperas da partida para Inglaterra, Havisham viu-se forçado a desempenhar missões singulares.
Nunca mais poderia esquecer aquela manhã em que Cedric o levou a visitar Dick, num bairro central de Nova Iorque, e a tarde em que anunciaram à vendedeira de maçãs que ia ter uma barraca, um fogão, um bom xaile e uma quantia, em dinheiro, que pareceu, à pobre mulher, verdadeiramente fantástica.
- É porque eu vou para Inglaterra, para ser lorde - explicou Cedric, com doçura. - E nos dias de chuva eu sofreria, ao pensar nos seus ossos. Agora, espero que se sentirá melhor.
Quando se afastaram, deixando a boa mulher tão espantada, que lhe custava a acreditar na sua felicidade, Cedric ia dizendo a Havisham:
 - É muito bondosa e gentil, esta velha de linhagem. Um dia, em que eu caí e esfolei um joelho, ela ofereceu-me uma maçã. Nunca mais me esqueci. Como é natural, nós lembramo-nos sempre de quem foi bom para nós.
Aquele rapazinho; de alma simples e bem formada, não supunha que houvesse alguém capaz de esquecer os benefícios recebidos.
A visita a Dick foi de palpitante interesse. Dick acabava de ter uma grave questão com Jack, e estava muito abatido quando chegaram os dois visitantes. Ao ouvir Cedric afirmar-lhe, com a maior naturalidade, que todos os seus aborrecimentos iam acabar, anunciando-lhe, ao mesmo tempo, que resolvera oferecer-lhe tudo quanto ele precisava, o honesto Dick ficou tão surpreendido que, por uns momentos, nem pôde falar.
Quanto a Havisham, ficou impressionado pela maneira clara, simples e precisa como Lorde Fauntleroy expôs ao jovem engraxador o fim da sua visita.
Ao saber que o seu amiguinho se tornara lorde e que viria a ser conde, Dick abriu muito os olhos e ficou tão sobressaltado, que o boné caiu-lhe ao chão. Ao apanhá-lo, soltou uma exclamação, que pareceu estranha a Havisham, mas que Cedric já lhe tinha ouvido mais vezes:
- Que grande patranha!
Como não podia deixar de ser, Cedric não gostou e respondeu logo, muito senhor de si:
- Toda a gente pensa que é mentira: o Sr. Hobbes até imaginou que eu apanhara sol na cabeça. Eu próprio, a princípio, não acreditei, mas já me convenci. Agora, quem é conde é o meu avô, e ele quer que eu faça tudo o que me der prazer. É muito bom, apesar de ser conde, e mandou-me muito dinheiro pelo Sr. Havisham. Foi desse dinheiro que tirei a quantia que te dou para te desembaraçares de Jack e comprares tudo o que te faz falta.
 Tal como a velha vendedeira de maçãs, Dick mal podia acreditar na sua boa sorte. Parecia-lhe um sonho e chegava a ter medo de acordar!
À despedida, Cedric estendeu-lhe a mão e disse- lhe:
- Desejo-te boa sorte nos negócios! Escreve-me a dar notícias. Não te esqueças de que somos bons amigos. Aqui tens a minha direcção. (Ao dizer isto, deu-lhe um bocado de papel onde estava escrita a sua nova morada. ) Já não me chamo Cedric Errol; sou Lorde Fauntleroy! Até à vista, Dick!
O engraxador tinha lágrimas nos olhos. Queria falar e não podia. Só a custo conseguiu dizer:
- Tenho muita pena de que se vá embora! 
Depois, voltando-se para Havisham, levou a mão ao boné e acrescentou:
- Muito obrigado!
Quando os dois se afastaram, Dick ficou imóvel, a segui-los, com os olhos rasos de água e a garganta apertada, até que eles desapareceram.
Nos dias que antecederam a partida, o pequeno Lorde Fauntleroy passou todos os momentos que pôdecom o seu amigo Hobbes. O pobre homem estava profundamente triste e abatido. Quando o seu amiguinho lhe entregou, com ar triunfal, um relógio e uma corrente de ouro, como presente de despedida, Hobbes mal soube agradecer. Colocou o estojo sobre o balcão e assoou-se ruidosamente várias vezes.
- Tem umas palavras escritas - disse Cedric. - Veja no interior da tampa. Fui eu mesmo quem disse ao relojoeiro o que devia escrever: “Lembrança de Lorde Fauntleroy ao seu velho amigo Hobbes. Para se lembrar do seu amigo”. Não quero que se esqueça de mim!
Hobbes tornou a assoar-se e respondeu, com voz enrouquecida pela comoção:
 - Nunca me esquecerei de si! Talvez suceda o contrário, e o menino se esqueça de mim, lá no meio da sua aristocracia inglesa!
- Está enganado! - exclamou Cedric. - Esteja onde estiver, nunca o esquecerei. Tenho até esperança de que me vá visitar um dia. O meu avô ficaria encantado. Talvez ele próprio lhe escreva, a convidá-lo. E se assim for... não recuse, não! Lá pelo convite vir de um conde...
- Com certeza! Se ele me convidar, irei imediatamente!
- respondeu Hobbes.
Chegou finalmente o momento da partida. As malas foram transportadas para o vapor e a carruagem que devia conduzi-las parou em frente da porta. Nesse instante, uma estranha melancolia invadiu a alma do pequenito. A mãe fechara-se, durante alguns minutos, no quarto. Quando desceu a escada, tinha os olhos húmidos e os lábios trémulos. Cedric correu para ela. Abraçaram-se e beijaram-se. A criança sentia que qualquer coisa os entristecia, mas não sabia explicar o quê. De repente, teve uma ideia e exclamou:
- Nós gostávamos muito da nossa casinha, não é verdade, Querida? E havemos de gostar sempre dela, não é verdade?
- Sim... sim respondeu a mãe, em voz baixa e muito doce. E repetiu: - Sim, meu tesouro!
Na carruagem, Cedric sentou-se muito encostado à mãe e enquanto ela se debruçava na portinhola, para lançar um derradeiro olhar para tudo o que deixava, o pequenito pegou-lhe na mão e acariciou-lha ternamente.
Depois, sem transição, sem quase saberem como, encontraram-se a bordo, no meio de um movimento enorme e de um ruído ensurdecedor.
Cedric reparava interessadamente em tudo o que o rodeava: viajantes que chegavam, outros que procuravam as bagagens; malas, cestos, caixotes, guindastes, cordas, oficiais que davam ordens; gente que se despedia - uns choravam, outros acenavam com lenços brancos. Olhava também para os salva-vidas, os mastros muito altos, que parecia tocarem no céu, e fez logo projecto de conversar com os marinheiros e pedir-lhes que lhe contassem histórias de piratas e ilhas desertas.
No último instante, quando se debruçava na ponte superior, para observar as manobras finais, percebeu que alguém pretendia atravessar por entre um grupo de pessoas que estava a seu lado. Essa pessoa queria chegar junto dele. Era um rapaz que trazia uma coisa vermelha na mão. Foi então que o pequeno Lorde Fauntleroy reconheceu Dick.
- Vim a correr - disse o engraxador. – Queria desejar-lhe boa viagem. O negócio “vai de vento em popa”! Comprei este presente para si, com o dinheiro que ganhei ontem. Perdi o papel do embrulho quando me “esgueirei” por entre esses “tipos” que não me queriam deixar passar. É um lenço de seda. É para fazer boa figura lá no meio dessa “gente da alta”.
Disse tudo isso sem parar, como se fosse uma só frase. Ouviu-se uma campainha e, antes que Cedric pudesse pronunciar uma única palavra, Dick foi-se embora, gritando com toda a força:
- Tenho que me “pôr a andar!” Até à vista! Não se esqueça de usar o lenço!
Atravessou a ponte como uma flecha, exactamente no último instante antes da partida. Depois, no cais, parou, tirou o boné e agitou-o no ar. Cedric, lá em cima, segurava na mão um lenço de seda vermelha, guarnecido de ferraduras cor de violeta.
O barulho era cada vez maior.
- Até à vista! Adeus! Até à vista! - parecia que todos gritavam, ao mesmo tempo.
- Não se esqueça! Escreva- me! Até à vista! Até à vista!
 O pequeno Lorde Fauntleroy, muito debruçado, agitava o lenço vermelho e gritava com quanta força tinha:
- Até à vista, Dick! Muito obrigado! Até à vista!
Então, o navio principiou a afastar-se, e os seus clamores redobraram. A multidão agitava-se no cais. A Sr.a Errol puxou o véu para os olhos. Mas Dick viu apenas um claro rosto de criança, uma cabeleira loira que brilhava ao sol, e, no meio de todo aquele ruído, só ouvia uma voz infantil que gritava: “- Até à vista, Dick!” - enquanto o navio se movia lentamente, levando o pequeno Lorde Fauntleroy para longe da terra onde nascera, para a pátria dos seus antepassados.
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Em Inglaterra
Foi mesmo durante a viagem que a mãe de Cedric lhe explicou que não viveriam juntos, na mesma casa, e esta notícia causou-lhe uma tal tristeza, que Havisham compreendeu como o conde fizera bem em decidir que a mãe habitasse perto do filho e pudesse vê-lo muitas vezes.
Era evidente que, noutras circunstâncias, a criança não suportaria a separação. Mas a mãe soube convencê-lo com tanta ternura, de que estaria muito perto dele, que pouco tempo depois Cedric deixou de estar atormentado com a ideia de se separarem.
- A casa em que eu viverei não é longe do castelo
- repetia ela, sempre que falavam no assunto. - Poderemos ver-nos todos os dias, e tu terás sempre muitas coisas para me contar. A casa para onde tu vais viver é muito bonita. O teu pai falava-me dela muitas vezes. Gostava muito dela, e tu também hás-de gostar!
- Mas, gostaria muito mais, se a Querida lá vivesse também - respondeu o jovem lorde, com um fundo sus piro.
Não podia compreender por que razão a mãe devia viver numa casa e ele noutra.
A Sr.a Errol achava preferível não lhe explicar as razões desta resolução e dissera a Havisham:
- Se lhe disser a verdade, isso far-lhe-á muita impressão. Tenho a certeza de que se afeiçoará mais facilmente ao avô se ignorar que ele tem por mim uma tal aversão. É preferível não lhe dizer nada, pois, de contrário, pode cavar-se uma barreira entre o conde e ele, apesar de Cedric ser ainda uma criança.
Ficou, então, combinado que Havisham diria apenas a Cedric que uma forte razão misteriosa, que ele era ainda muito pequeno para compreender, impedia a mãe de viver com ele e com o avô, no castelo. Mais tarde saberia tudo.
A verdade é que, apesar de todas as explicações da mãe, o pequeno lorde não se conformava com aquela ideia.
- Desagrada-me muito, muito! - disse um dia ao advogado. - Ninguém pode imaginar quanto me desagrada que a Querida viva numa casa à parte. Mas, enfim, há muitas coisas desagradáveis na existência e é preciso suportá-las. Ouvi dizer isto à Maria e ao Sr. Hobbes. Além disso, a Querida quer que viva feliz ao pé do avô, porque ele perdeu todos os filhos que tinha. Tenho muita pena dele!
Uma das coisas que encantava toda a gente que convivia com o pequeno Lorde Fauntleroy era o ar atento com que seguia todas as conversas. Este ar, as observações, próprias de pessoas crescidas, que fazia frequentemente e a expressão ao mesmo tempo grave e ingénua do seu rosto infantil, eram irresistíveis. Havisham gostava cada vez mais de conversar com ele.
- Está, então, disposto a gostar muito do conde de Dorincourt? - perguntou-lhe um dia.
- Estou. É da minha família e nós gostamos sempre da nossa família. Além disso, foi muito gentil para mim, e quando alguém é assim tão gentil para nós, devemos estimá-lo, mesmo que não seja da nossa família. Ora, sendo meu avô, devo estimá-lo ainda mais.
- Parece-lhe que ele gostará também de si, Lorde Fauntleroy? - insistiu Havisham.
 - Oh! Sem dúvida! Bem vê, eu também sou da sua família e sou o filho do seu filho. Tenho mesmo a certeza de que já gosta de mim, senão não me mandaria buscar e não satisfaria todos os meus desejos.
- Realmente... - concordou Havisham.
- Sim - repetiu Cedric -, é natural que um avô goste do neto. Não é da minha opinião?
Os passageiros simpatizavam, todos, com o pequenoLorde Fauntleroy, como se conhecessem a sua romântica história. Viam-no correr de um lado para o outro, passear com toda a seriedade entre a mãe e Havisham, ou conversar animadamente com os marinheiros, e todos lhe queriam bem. Mas era entre os marinheiros que ele tinha os seus melhores amigos. Contavam-lhe histórias maravilhosas de ilhas desertas, de piratas e naufrágios, ensinavam-lhe a entrançar cordas, a aparelhar barquinhos de madeira, e explicavam-lhe minuciosamente as manobras de bordo. Cedric aprendia termos náuticos, empregando-os depois nas suas conversas com os passageiros, que lhe achavam imensa graça.
Jerry, um velho “lobo do mar” que, segundo ele dizia, já fizera duas ou três mil viagens, contava-lhe as peripécias mais extraordinárias da sua vida, aumentadas agora pela sua própria imaginação. A acreditar no que dizia, Jerry já tinha sido parcialmente assado, comido e escalpelizado pelos canibais, uma boa dúzia de vezes.
- É por isso que ele é calvo - explicava Lorde Fauntleroy à mãe. - Quando se é escalpelizado muitas vezes, os cabelos nunca mais tornam a nascer. Jerry tinha uma bonita cabeleira, mas o rei dos canibais arrancou-lha, para ele próprio a usar. E como Jerry estava a tremer de medo, os cabelos puseram-se-lhe em pé e nunca mais tornaram a ficar macios. E agora, o rei dos canibais usa a cabeleira de Jerry, toda espetada, como uma escova. Nunca ouvi histórias tão extraordinárias! Quem me dera contá-las ao Sr. Hobbes!
Nos dias em que fazia mau tempo, os passageiros, reunidos no salão, pediam a Cedric que contasse histórias de Jerry, e o pequenito, sentado no meio deles, encantava-os com a ingenuidade e a graça das suas narrativas.
Por seu lado, Cedric costumava dizer à mãe:
- As histórias de Jerry agradam a toda a gente! É pena ele já não se lembrar bem e confundir, às vezes, umas histórias com outras. Também não admira! Quando se foi escalpelizado várias vezes, é natural perder-se a memória.
Onze dias depois de terem embarcado, chegaram a Liverpool. No dia seguinte, ao anoitecer, a carruagem que os conduzia parava em frente do pavilhão de Court Lodge. Como estava escuro, a casa distinguia-se mal. Cedric viu apenas que havia uma alameda com grandes árvores, uma porta aberta e um raio de luz que viriha de dentro. A fiel Maria, que os havia acompanhado, chegara a Court Lodge primeiro que eles. Quando saltou da carruagem, Cedric avistou-a logo com mais duas criadas que os esperavam no vasto vestíbulo.
Lorde Fauntleroy correu para ela, com uma exclamação de contentamento:
- Chegaste bem, Maria? Querida, a Maria está aqui! E, ao dizer isto, beijou as faces vermelhas da velha criada.
A Sr. a Errol também se mostrou satisfeita. A presença de Maria fazia- lhe bem. Parecia-lhe, assim, que estaria menos só. Estendeu- lhe a mão, que a criada apertou afectuosamente, como se adivinhasse o que lhe ia na alma.
As criadas inglesas observaram mãe e filho com viva curiosidade. Tinham ouvido as coisas mais disparatadas acerca deles; sabiam que o conde não gostava da nora e que, por isso mesmo, ela ficaria vivendo no pavilhão, ao passo que a criança iria para o castelo. Também sabiam que o pequenito era o herdeiro da imensa fortuna do conde, e conheciam perfeitamente, por experiência própria, o irascível fidalgo, os seus ataques de gota e as suas fúrias.
- Não te invejamos a sorte, pequeno - diziam elas. Mas ignoravam absolutamente a personalidade de Lorde Fauntleroy, a sua maneira de ser e o seu carácter.
O futuro conde de Dorincourt observava tudo: o vestíbulo espaçoso, com numerosos quadros, as cabeças de veado e todos os objectos curiosos que o ornamentavam. Era diferente de tudo quanto ele tinha visto, até então.
- É uma casa muito bonita, não achas, Querida?
- disse ele. - Gosto que fiques a viver aqui! É uma grande casa.
Era, realmente, uma grande casa, comparada com aquela onde haviam vivido em Nova Iorque. Maria conduziu-os ao primeiro andar, a um quarto de cama forrado de tecido claro, onde ardia um belo fogo. Uma gata persa, branca de neve, dormia regaladamente perto do lume.
- Foi a governante do castelo que a mandou para a senhora. Diz que sempre é uma companhia - explicou Maria. - A governante é boa pessoa e veio, pessoalmente, preparar tudo, aqui. Ela disse-me que estimava muito o capitão Errol, e que teve imensa pena dele. Contou-me que o capitão, em criança, era lindo, e que depois, quando se fez homem, tinha sempre uma palavra agradável para toda a gente. Então eu disse- lhe: “- Pois saiba, minha senhora, que o capitão Errol deixou um filho que é tal qual como ele “.
Pouco depois, mãe e filho desceram e dirigiram-se a uma grande sala, muito bem iluminada e com mobiliário sumptuoso. Em frente do fogão estava estendida uma grande pele de tigre e, de cada lado, havia uma poltrona.
 A linda gata branca, sensível às festas de Lorde Fauntleroy, seguiu-o quando voltaram para o rés-do-chão. Cedric estava encantado com ela e estendeu-se no tapete, deixando- se ficar assim, com a cabeça encostada à dela, a acariciá-la, sem prestar atenção ao que a mãe e Havisham diziam.
Falavam em voz baixa e a Sr. a Errol, um pouco pálida, parecia comovida.
- É forçoso que ele vá hoje? - perguntou ela.
- Não, não é necessário ir já hoje - respondeu Havisham. - Irei eu, pessoalmente, logo que acabemos de jantar, prevenir o conde da nossa chegada.
A Sr. a Errol contemplou o filho, e depois sorriu tristemente, dizendo:
- O conde não avalia, com certeza, o que me leva. Depois, fitando Havisham, acrescentou:
- Quer fazer-me o favor de lhe dizer que eu prefiro não receber este dinheiro?
- Este dinheiro?! - exclamou Havisham. - Quer dizer, a mesada que ele resolveu conceder-lhe?
- Exactamente - respondeu ela, com simplicidade. Prefiro não a receber. Aceitarei a casa, para viver, porque não pode ser de outra maneira, e fico muito grata ao conde de Dorincourt, pois, assim, tenho possibilidade de ficar perto do meu filho. Mas eu possuo algum dinheiro - o suficiente para levar uma vida simples. O conde tem tal aversão por mim, que eu teria um pouco... a impressão de lhe vender Cedric. Cedo-lhe, sim, mas unicamente porque é para bem do meu filho e porque o pai gostaria que ele fosse educado aqui.
Havisham coçou o queixo.
- A sua resolução é muito estranha - disse ele. - O conde de Dorincourt vai ficar descontente e não compreenderá a sua maneira de ver.
 - Se reflectir, compreenderá. Para o necessário, não preciso de dinheiro. E porque havia de aceitá-lo, para o supérfluo, da parte de um homem que me detesta, a ponto de me tirar o meu filho. o filho do seu filho?
Havisham ficou silencioso durante um momento. Depois respondeu:
- Transmitir-lhe-ei o que deseja.
Serviram o jantar. A gata instalou-se numa cadeira ao lado de Cedric, e ali se conservou até se levantarem da mesa.
Quando, mais tarde, Havisham se apresentou no castelo, foi logo introduzido nos aposentos do conde, que encontrou comodamente instalado numa grande poltrona, junto do fogão.
O velho fidalgo fixou em Havisham o olhar penetrante e o advogado compreendeu que, apesar da sua aparência impassível, o conde estava nervoso e intimamente agitado.
- Ei-lo de volta, Havisham. Que notícias me traz? - perguntou ele.
- Lorde Fauntleroy e sua mãe chegaram a Court Lodge
- respondeu Havisham. - Fizeram boa viagem e estão de perfeita saúde.
O conde teve um gesto impaciente e disse, bruscamente:
- Tanto melhor! Até aqui tudo vai bem. Ponha-se à vontade, Havisham; tome um cálice de Porto e sente-se. Tem mais alguma coisa para me dizer?
- O jovem lorde passará esta noite com a mãe. Acompanhá-lo-ei amanhã ao castelo.
O conde tinha o cotovelo apoiado ao braço da poltrona. Levantou a mão até aos olhos, como se quisesse ocultá-los. Depois disse:
- E então? Continue. Recomendei-lhe que não me escrevesse; portanto ignoro tudo. É um rapaz de que género? A mãe não interessa. Como é o rapaz?
 Havisham bebeu um gole de vinho do Porto e respondeu,

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